Tuesday 30 April 2019

Tuesday's Serial: "História do Futuro" by Fr. António Vieira (in Portuguese) III


Volume I, Capítulo VII: Última utilidade.             
Entre as utilidades próprias a dos amigos, não quero deixar de advertir por fim delas, que também a lição desta História pode ser igualmente útil e proveitosa aos inimigos, se, deixada a dissonância e escândalo deste nome, quiserem antes ser companheiros de nossas felicidades, que padecê-las dobradamente na dor e inveja dos êmulos. Lerão aqui nossos vizinhos e confinantes (que muito a pesar meu sou forçado alguma vez a lhes chamar inimigos, havendo tantas razões, ainda da mesma natureza, para o não serem) lerão aqui com boa conjectura as promessas e decretos divinos, provada a verdade dos futuros com a experiência dos passados: e verão, se quiserem abrir os olhos, um manifesto desengano de sua profecia, conhecendo que na guerra que continuam contra Portugal, pelejam contra as disposições do supremo poder e combatem contra a firmeza de sua palavra. Oh quantos danos, quantas despesas, quantos trabalhos, quanto sangue e perda de vidas, quantas lágrimas e opressão de naturais e estrangeiros podia escusar Espanha, se, com os olhos limpos de toda a paixão e afeto, quisesse ler esta História do Futuro, e com tanto zelo e desejo de acertar com os caminhos de seu maior bem, como é o animo com que ele se escreve!
                Não entre só nos conselhos de Estado a conveniência e reputação, o apetite e o ódio, a vingança, o discurso militar e político; tenha também algum dia lugar neles a Fé; suponha-se que Deus é o que dá e tira os reinos, como e quando é servido; conheça-se e examine-se a sua vontade pelos meios com que ela se costuma declarar; e depois de averiguada e conhecida, ceda-se e obedeça-se a Deus por conveniência, pois se lhe não pode resistir com força.
                Bem pudera conhecer Espanha, voltando os olhos ao passado, pela experiência, que Deus é o que desuniu de sua sujeição a Portugal, e Deus o que o sustenta desunido e o conserva vitorioso.
                Quando se soube em Madrid do rei que tinham aclamado os Portugueses no primeiro de Dezembro do ano de 640, chamavam-lhe por zombaria rei de um Inverno, parecendo-lhes aos senhores Castelhanos, que não duraria a fantasia do nome mais que até a primeira Primavera, em que a fama só de suas armas nos conquistasse. Mas são já passados vinte e cinco Invernos, em que inundações do Bétis e Guadiana não afogaram a Portugal, e vinte e quatro Primaveras, em que sabem muito bem os campos de uma e outra parte o sangue de que mais vezes ficaram matizados.
                Imaginou Espanha que na prisão do Infante D. Duarte atava as mãos a Portugal e lhe tirava a cabeça com que haviam de ser governados na guerra, e que com os muros de Milão tinha sitiado a Portugal. Morreu enfim (ou foi morto) aquele príncipe, e nem por isso desmaiou o Reino, antes se armou de novo a justiça de sua causa com a sentença daquela inocência, e se endureceram e fortificaram mais os peitos com o horror e fealdade daquele exemplo.
                Voltou-se todo o peso da guerra contra Saul; maquinou-se contra a vida de El-Rei Dom João por tantos meios e instrumentos (e algum deles sobre indecente sacrilégio); parecia-lhe a Castela que, faltando a Portugal aquela grande alma, seria fácil a suas águias empolgarem no cadáver do Reino. Faltou El-Rei D. João ao Reino, sobre ter faltado de antes seu primogênito Teodósio, príncipe de tantas virtudes, opinião e esperanças; mas viu o Mundo, posto que o não quis ver Castela, que era o braço imortal o que defendia e conservava aos Portugueses. Sucedeu na menoridade do rei com tanta prudência e valor a regência da rainha-mãe, e à regência da rainha o governo felicíssimo de El-Rei D. Afonso, que Deus guarde, monarca de tão conhecida fortuna, que parece a traz a soldo nos exércitos.
                Fez Castela neste tempo os maiores esforços de seu poder, e para os poder fazer maiores, assim como por esta causa tinha já concluído ou comprado, a preço da própria reputação, a paz de Holanda, ajustou também a de França . Desembaraçadas em toda a parte as suas armas, chamou os espíritos de todo o corpo da monarquia aos dois braços com que Castela cerca a Portugal. Viram-se juntas contra ele em um exército Espanha, Alemanha, Itália, Flandres, com toda a flor militar, ciência e valor daquelas belicosas nações. Mas que resultas foram as desta tão estrondosa potência e dos progressos que com ela se tinham ameaçado a nós e prometido a Europa?
                Entrou a guerra dividida no ano de 62 por todas nossas províncias; em todas achou oposição igual e efeito superior. Uniu-se no ano seguinte com novo conselho o poder; acrescentou-se de gente de cavalos , de cabos, de aparatos bélicos ; escolheu-se para teatro daquela formidável campanha a província de Alentejo; começou a tragédia com prósperos e alegres passos, triunfando dos que não podiam resistir às armas castelhanas; mas o fim foi tão adverso, tão lastimoso e verdadeiramente trágico, como viu com admiração o Mundo e chorará eternamente Castela. Perdeu a batalha, o exército e a reputação; deixou a Portugal a vitória, a fama, os despojos, e só levou (como sempre) o desengano.
                Estes têm sido em vinte e cinco anos os efeitos do poder. Passemos aos da indústria.
                Entendeu Castela que não podia conquistar a Portugal sem Portugal; tratou de inclinar à sua devoção os grandes e os menores. Na constância houve diferença, mas nos efeitos nenhuma. O povo, cuja fortuna é inalterável, não padeceu alteração. Sendo tão livre e aberto em Portugal o mar como a terra, se não viu em tantos anos nenhum pastor que se passasse a Castela com duas ovelhas, nenhum pescador menos venturoso que aos seus portos derrotasse uma barca.
                Basta por exemplo ou desengano a famosa resolução do povo de Olivença , que com partido de poder ficar inteiro com casas e fazendas, se não achou em todo ele um só homem de espírito tão humilde, que aceitasse a sujeição. Perderam todos a Pátria pela lealdade, triunfou Castela das paredes e Portugal dos corações. Não viu Roma semelhante exemplo, e assim o celebrou um Jerônimo Petrucho poeta romano, com este epitáfio:

Victor uterque manet, victoria dividit orbem:
Alphonsus cives, saxa Philippus habet.

Ainda deu muito a Castela em partir a vitória pelo meio: o vencedor conquistou pedras o vencido vassalos. De indústria se pudera perder á praça, só por lograr a fineza; e de indústria se pudera também não ganhar, só por não experimentar o desengano. Isto vence Castela, quando vence. e assim se rende o povo de Portugal, quando se rende.
                A nobreza, em que tem maiores poderes o receio ou a esperança, como mais escrava da fortuna, não foi toda constante. Alguns grandes houve entre os grandes, uns que se passaram ao serviço de El-Rei D. Filipe, outros que com maior ousadia o quiseram servir em Portugal; a uns e outros castigou o mesmo braço da Providência, a estes com a vida, àqueles com o desterro. Até agora não tiveram outro prêmio, nem mereciam outro, porque Castela nem pode ressuscitar os primeiros, nem quis pagar os segundos.
                É fama que foi respondido à sua queixa que tinham feito o que deviam, mas ainda devem o que fizeram: cá perderam o que tinham, lá não ganharam o que esperavam; entre os Portugueses réus, entre os Castelhanos portugueses, que também é culpa.
                Isto é o que foram buscar a Castela todos os que lá se passaram — o desengano de seu discurso, o descrédito de sua resolução e o castigo de sua incredulidade; e ainda de lá nos mandam o exemplo de seu arrependimento. Levaram o que nos não faz falta, porque se levaram; e deixaram o que nos ajuda a defender, porque nos deixaram as suas rendas. A Portugal deixaram os despojos de suas casas, aos vindouros a memória de sua infidelidade e ao Mundo pregão de sua covardia. Tal foi o merecimento, tal o prêmio. Julgue agora Castela se terá esse interesse cobiçosos e este empenho imitadores.
                Dizia um dos primeiros embaixadores de Portugal em França (quando ainda havia quem impugnasse a esperança da nossa conservação), que, no caso em que a desgraça fosse tanta, antes se havia de entregar ao Turco que a Castela. Era o embaixador ministro de letras, e como um grande senhor francês lhe pedisse a razão deste seu dito, sendo católico e letrado, respondeu assim: -Porque eu em Turquia, se defender a Fé, serei mártir; se renegar, far-me-ão baxá: e em Castela Monsieur, nem baxá nem mártir.
                Foi muito celebrada a discrição da resposta, a que acrescentava galantaria a mesma pessoa do embaixador; porque era mui avultado de presença e tão bem lhe podia estar na cabeça o turbante, como na mão a palma.
                Nada mais venturosamente lhe sucederam a Castela as indústrias estrangeiras que as domésticas. todas desarmou em armas contra si mesma. Em Roma, impediu o provimento das mitras. mas os bagos se converteram em lanças e o que haviam de comer os pastores das ovelhas, comem os que as defendem dos lobos. Em Holanda, comprou os estorvos da paz, mas esta se retardou somente quando foi necessário para se recuperarem as Conquistas. Caso grande e de providência admirável! Em Inglaterra, se empenhou por divertir o parentesco; em França, capitulou que não pudéssemos ser socorridos. mas teve uma e outra diligência tão contrários efeitos, que se vêem hoje em Portugal as suas quinas tão acompanhadas das cruzes de Inglaterra, como assistida das lises de França. Unidas e complicadas estas três bandeiras, fazem um silogismo político, de tão segura como terrível conseqüência. Se só Portugal pôde resistir a Castela tantos anos, ajudado dos dois reinos mais poderosos da Europa, no mar e na terra, como não resistirá? O maior contrário que tem Espanha é o seu próprio poder. Quando se quis levantar sobre todos, se sujeitou à emulação de todos. Estes terá por si Portugal, enquanto ela for poderosa; se o não for, não os há mister.
                Os discursos da esperança (que é a última apelação de Castela) são os que mais lhe mentiram, porque os homens (quando assim lho concedamos) discorrem com a razão, e Deus obra sobre; ela. Todos os que nas matérias de Portugal se governaram pelo discurso, erraram e se perderam; e por aqui se perderam (ainda entre nós) os que na opinião dos homens eram de maior juízo. São obras e mistérios de Deus; quer Ele que se venerem com a fé e não se profanem com o discurso. Por isso todas as esperanças que se assentaram sobre esta fé foram certas e todas as que se fundaram sobre o discurso, erradas.
                É natureza isto, e não milagre da palavra e promessa divinas: ...in verba tua super superavi — dizia aquele grande político de Deus, que não só esperava, mas sobreesperava nas promessas de sua palavra divina; porque há-de esperar nas promessas da palavra divina, sobre tudo o que promete a esperança do discurso humano. Assim o temos sempre visto em Portugal, com admirável crédito da fé e igual confusão da incredulidade.
                No tempo em que Portugal estava sujeito a Castela, nunca as forças juntas de ambas as coroas puderam resistir a Holanda; e de aqui inferia e esperava o discurso que muito menos poderia prevalecer só Portugal contra Holanda e contra Castela. Mas enganou-se o discurso. De Castela defendeu Portugal o Reino e de Holanda recuperou as Conquistas.
                Aquele fatal Pernambuco, sobre que tantas armadas se perderam e se perderam tantos generais, por não quererem aceitar a empresa sem competente exército, que discurso podia imaginar que, sem exército e sem armada, se restaurasse? E só com a vista fantástica de uma frota mercantil se rendeu Pernambuco em cinco dias, tendo-se conquistado pelos Holandeses com tanto sangue em dez anos, e conservando-se vinte e quatro.
                Menos esperava o discurso que se conquistasse Angola com tão desigual poder enviado a tão diferente fim; e conquistou-se contudo aquela tão importante parte de África contra todo o discurso e antes de toda a esperança. E porque se saiba mais distintamente quão grandes significações se contêm debaixo destes nomes tão pequenos — Pernambuco e Angola — o que se recuperou em Angola foram duas cidades, dois reinos, sete fortalezas, três conquistas a vassalagem de muitos reis e o riquíssimo comércio de África e América. Em Pernambuco recuperaram-se três cidades, oito vilas, catorze fortalezas, quatro capitanias, trezentas léguas de costa.
                Desafogou-se o Brasil, franquearam-se seus portos e mares, libertaram-se seus comércios, seguraram-se seus tesouros. Ambas estas empresas se venceram e todas estas terras se conquistaram em menos de nove dias, sendo necessário muitos meses só para se andarem.
                Quem nestes dois sucessos não reconhecer a força do braço de Deus, duvidar-se pode se o conhece. Assim assiste a Portugal dentro e fora, ao perto e ao longe, aquele supremo Senhor que está em toda a parte e que em todas as do Mundo o plantou e quer conservar. Bendita seja para sempre sua onipotência e bondade!
                Também esperava o discurso de Castela que os ânimos dos Portugueses, com a continuação da guerra e experiência de suas moléstias, se enfastiassem e suspirassem pela antiga e amada paz, cujo nome é tão doce e natural, e mais à vista de seu contrário; que as contribuições forçosas para o subsídio dos soldados e a licença e opressão dos mesmos soldados fossem carga intolerável aos povos; que os povos, depois de apagados aqueles primeiros fervores que traz consigo o desejo e alvoroço da novidade, com o tempo e seus acidentes se fossem entibiando, até se esfriarem de todo; que os pais se cansassem de dar os filhos e que a guerra detestada das mães (como lhe chamou o Lírico) fosse também detestada e aborrecida das Portuguesas, que, entre as outras mães, o costumam ser mais que todas no amor e na saudade. Mas também aqui mentiu a esperança e se enganou o discurso, porque os ânimos se acham hoje mais alentados, os fervores mais vivos, os corações mais resolutos, o amor ao rei, à Pátria e à Liberdade mais forte, mais firme e mais constante, e maior que todos os outros afetos da fazenda, dos filhos, da vida.
                Lembram-se os pais que davam os filhos para as guerras de Flandres, de Itália, de Catalunha e navegação das Índias de Castela, onde os perdiam para sempre; e querem antes dá-los para as fronteiras de Portugal, onde os vêem, os assistem e os têm consigo; onde recebem a glória de ouvir celebrar as ações de seu valor e feitos galhardos, e vêem estampados seus nomes e estendida por todo o Mundo sua fama, honrando-se (como é razão) de serem pais de tais filhos; e que, se morrem na guerra, têm rei que lhes pague as vidas com larga remuneração de mercês e aumento de suas casas, sendo tão generosas as mães (nas quais este afeto é superior a toda a natureza), que com igual alegria os choram e sepultam mortos gloriosamente na guerra, do que os parem e criam para ela.
                Os povos não se cansam com os subsídios e contribuições; porque sabem quanto maiores e mais pesadas são as que se pagam em Castela para os conquistar, do que eles em Portugal para se defenderem. Vêem o fruto de seus trabalhos e suores, e que concorrem com ele para o estabelecimento e honra de sua Pátria, e não para a cobiça de ministros e exatores estranhos.
                Têm na memória que também antigamente pagavam, e que então era tributo do cativeiro o que hoje é preço da liberdade; sobretudo vêem a seu rei da sua Nação e da sua Língua, e que o têm consigo e junto a si para o requerimento da justiça, para o prêmio do serviço, para o remédio da opressão, para o alívio da queixa; rei que os vê e se deixa ver; que os ouve e lhes responde; que os entende e o entendem; que os conhece e lhes sabe o nome, sem a dura e insuportável pensão de o irem buscar a Madrid, não para o verem e lhe falarem, mas para o verem por fé. Conhecem a grandeza desta estimável felicidade, e que logram aquele estado ditoso de que se lembravam e falavam seus avós com tanta saudade e por que suspiravam seus pais com tantas ânsias; e todo o preço para a conservação de tanto bem lhos parece barato todo o trabalho leve toda a dificuldade suave, todo o perigo obrigação. Pelo contrário, todo o pensamento que não seja desta perpetuidade, horror; toda a conveniência, ruína; toda a promessa, traição; e toda a mudança impossível.
                Isto é o que só tem Castela, e o que só pode esperar dos ânimos dos Portugueses. Finalmente, esperava o discurso que Portugal, como Reino menor e dividido em todas as partes do Mundo, com obrigação de alimentar aqueles membros tão distantes com sua própria substância, havendo de sustentar as guerras e oposição de seus inimigos em todos eles, natural e necessariamente se havia de atenuar e enfraquecer; que a gente, sendo toda da mesma Nação, se havia lentamente de diminuir; que o dinheiro e cabedais, não tendo minas nem Potosis, se havia de esgotar; e que não era possível aturar por muitos anos as despesas excessivas de uma guerra interior, tão contínua, tão viva e tão multiplicada em tantas províncias, cercado dela por todas as partes, contra os combates de uma potência tão desigual e superior como era a do maior monarca do Mundo; que quando o valor dos Portugueses se atrevesse sobre suas forças, seria como o de Eleázaro contra a grandeza e corpulência do elefante, que, ainda caindo, seria sobre ele, e ficaria oprimido e sepultado debaixo de seu próprio triunfo, sem mais diligência nem ação que o mesmo peso e grandeza de tão imenso contrário.
                Verdadeiramente este discurso, humana ou gentilicamente considerado, e não entrando na conta desta aritmética o poder e assistência de Deus, tinha mui forçosa conseqüência, e antes da experiência mui dificultosa solução. E por tal julgaram ainda aqueles políticos que sem ódio nem amor esperavam e prognosticavam o fim e mediam a desproporção de tão desigual empresa. Mas Deus (a quem não queremos roubar a glória) e a mesma experiência natural e o concurso ordinário de suas causas, têm mostrado que só era sofístico e aparente, e em realidade falso, aquele discurso.
                Porque as Conquistas (que era o primeiro reparo), membros tão remotos e tão vastos deste corpo político de Portugal, ainda que do Reino, como do coração, recebem os espíritos de que se animam, é tanta a cópia de alimento, e tão abundante, que eles mesmos com suas riquezas lhe subministram, que não só tem suficiente matéria para formar os espíritos que com os membros mais distantes reparte, mas lhe sobeja com que se sustentar a si e a todo o corpo. E a verdade desta experiência se tem provado com mais sensíveis efeitos depois da paz universal das mesmas Conquistas, as quais com igual liberalidade e interesse remetem hoje ao Reino toda aquela substância que o calor da guerra própria lhes consumia; com que se acha Portugal mais rico e abundante que nunca das utilíssimas drogas de seus comércios. E ou seja esta a causa natural, ou outra mais oculta e superior, o certo é que as rendas e cabedais do Reino, assim próprios como particulares, com o tempo c continuação da guerra, não têm padecido a quebra e diminuição que o discurso lhes prognosticava; antes se prova com evidente e milagrosa demonstração da experiência, que a substância do Reino está hoje mais grossa, mais florente e opu1enta que no princípio da guerra; pois, crescendo mais os empenhos sempre, e desposas dela, ao mesmo passo parece que ou crescem ou se manifestam novos tesouros, com que se sustentaram até agora, e se sustentam todos os anos, sempre mais e maiores exércitos, tão notáveis por seu nome é grandeza como bizarros por seu luzimento.
                Nenhum ano se pôs em campo exército tão grande, que no seguinte se não pusesse outro maior; nenhum ano tão bizarro e tão luzido, que no seguinte se não excedesse na bizarria e nas galas. O ano passado, que foi o último, quando a Primavera se acabou nos campos, se renovou outra vez no nosso exército, tanta era a variedade das cores com que os terços se matizavam e distinguiam, para que pela divisa se conhecessem os soldados e ostentassem a competência de seu valor. O menor gasto nos vestidos é o que se veste; mais se gasta em cobrir os vestidos que em cobrir os corpos. A vulgaridade do ouro e prata só se estima pelo invento e pelo artífice, e não pelo preço; a pompa, riqueza e galhardia dos cabos mostra bem que vão às batalhas como a festas, e que se vestem mais para triunfar que para vencer.
                Não me atrevera a falar com tanta largueza, se não pudera alegar por testemunhas os mesmos que podiam ser partes. Diga agora o algarismo de seu discurso, se pode haver falta no necessário, onde sobeja e se dispende tanto com o supérfluo? Mais temo eu a Portugal os perigos da opulência, que os danos da necessidade.
                O mesmo que se vê na política bélica das campanhas, se admira na pacífica das cidades. Com a guerra, que tudo quebranta e diminui, cresceu e se aumentou tudo em Portugal. Nunca tanto se gastou no primor e preço das galas; nunca tanto no asseio e ornamento das casas; nunca tanto na abundância e regalo das mesas; nunca tantos criados, tantos cavalos, tanto aparato, tanta família. nunca tão grandes salários, nunca tão grandes dotes, nunca tão grandes soldos, nunca tão grandes mercês, nunca tantas fábricas, nunca tantos e tão magníficos edifícios, nunca tantas, tão reais e tão sumptuosas festas.
                Passo em silêncio os imensos gastos do serviço e majestade do culto divino, porque só o silêncio os pode explicar, não encarecer. Que templo, que capela, que altar, que santuário, que neste mesmo tempo se não renovasse, desfazendo-se e arruinando-se (com lástima) obras antigas e de grande arte e preço, só para se lavrarem outras de novo, mais ricas, mais preciosas e de mais polido artifício? Tudo isto do que sobeja da guerra. Mas por isso sobeja. As usuras de Deus são cento por um, e estas são as minas do nosso Reino, estes os Potosis de Portugal. Destes comércios lhe vêm as riquezas com que pode pagar e premiar seus exércitos e com que os prêmios e as pagas sejam verdadeiras, e não falsificadas, sem injúria dos soldados, sem adultério dos metais e sem hipocrisia da moeda.
                Bem sabem os doutos que o nome grego hipocrisia se deriva do fingimento do melhor metal, e parece que foi posto em nossos tempos mais para declarar o vício da moeda, que a mentira da virtude. Quem pudera nunca imaginar que chegasse a tal estado uma monarquia, que é a senhora da prata e de quem a recebe o resto do Mundo? Cuidou Castela que a Portugal havia de faltar o dinheiro, e vê em si o que cuidou de nós; e assim como o seu discurso errou as contas ao dinheiro, também as errou à gente. Com verdade se podia dizer de Portugal o que dos Romanos disse o seu poeta:

Per damna, per coedes ab ipso,
Ducit opes, animumque ferro.

Ou tenha Portugal a qualidade da hidra ou a natureza das plantas, por cada cabeça que corta a guerra em uma campanha, aparecem na seguinte duas; e por cada ramo que faltou no Outono, brotam dois na Primavera. Assim se foram dobrando e crescendo sempre os nossos presídios, assim os nossos exércitos: exército no Minho, exército em Trás-os-Montes, exército e dois exércitos na Beira, exército e florentíssimo exército, e sempre mais numeroso e florente em Alentejo. Assim se converte e se multiplica em nova substância tudo o que come a guerra. E: se Castela quer conhecer as causas naturais desta filosofia, sem serem os Portugueses dentes de Cadmo, saiba que a sua reparação foi o primeiro princípio deste aumento. Todos os Portugueses que povoavam suas Índias, que mareavam suas frotas, que lavravam seus campos, que freqüentavam seus portos, que trafegavam seus comércios, que inteiravam seus presídios, que militavam seus exércitos, ficam hoje dentro em Portugal, e o habitam e o enchem e o multiplicam, e assim se vêem hoje mais povoados seus lugares, mais freqüentadas suas estradas, mais lavrados seus campos, e até as serras, brenhas, lagos e terras, onde nunca entrou ferro, nem arado, abertas e cultivadas. As Conquistas com a paz não levam, nem hão mister socorros, antes delas os recebe o Reino com muitos e valentes soldados e experimentados capitães, que, ou vêm requerer o prêmio de seus antigos serviços, ou servir e merecer de novo, e justificar com os olhos do rei e do Reino as certidões mais seguras de seu valor.
                Foi lei, e lei prudentíssima, no princípio da guerra, que não se alistassem nela senão mancebos livres. A sombra desta imunidade, muitos filhos por indústria dos pais se acolhiam na menoridade ao sagrado do matrimônio, com que as famílias se multiplicavam infinitamente, e os mesmos que então se retiravam da guerra, têm hoje muitos filhos com que a sustentam e os sustentam com ela.
                Desta maneira se acha Portugal cada dia mais fornecido de muitos e valentes soldados, nascidos e criados entre o mesmo estrondo das armas, em que o pelejar e o morrer não é acidente senão natureza, todos dentro em si e nas mesmas províncias e climas, onde nada lhes é estranho, e não trazidos por força de Sicília, de Nápoles, de Milão e de Alemanha, comprados e conduzidos com imensas despesas e perigos, sendo muitos os que se alistam e pagam, e poucos os que chegam, uns para se passarem logo, como passam, a Portugal, outros para pelejarem sem amor e com valor vendido, como quem defende o alheio e conquista o que não há-de ser seu.
                Os Portugueses, pelo contrário, com grande vantagem de coração pelejam pelo rei, pela Pátria, pela honra, pela vida, pela liberdade, e cada um por sua própria casa e fazenda, sendo a maior comodidade da guerra e multiplicação da gente a mesma estreiteza do Reino (que o discurso mal avaliava), por benefício da qual os exércitos e províncias se podem dar as mãos umas a outras, pelejando os mesmos soldados quase no mesmo tempo em diversos lugares, e multiplicando-se por este modo um soldado em muitos soldados, e aparecendo em toda a parte (como alma de Dido) aos Castelhanos com novo horror e assombro. Desta maneira não teme o valor português que lhe suceda como a Eleázaro com o elefante, ficando oprimido com a sua própria vitória; mas está certo que lhe há-de suceder como a David com o gigante, logrando vivo a glória de seu triunfo.


Volume I, Capítulo VIII: Continua a mesma matéria       
Desenganado por estas evidências o poder, a indústria, o discurso e esperança espanhola, bem pudera eu esperar do juízo mais político de nossos competidores e seus conselheiros, acabassem de desistir de tão infrutuosa porfia. Mas deixados à parte os argumentos da razão e experiência, subamos um ponto mais alto, e se até agora me ouviram como homem a racionais, ouçam-me agora como cristão a católicos.
                Não duvido, nem alguém pode duvidar da fé, religião e piedade espanhola, que, se o seu católico príncipe e seus maiores conselhos se acabassem de persuadir que Deus tinha decretada a conservação e perpetuidade de Portugal, obedeceriam com suma reverência aos divinos decretos, abateriam a Deus, ainda que tremulassem vitoriosas suas católicas bandeiras, tocariam a recolher seus capitães e exércitos e confessariam, na mais levantada fortuna, a desigualdade de sua maior potência contra os acenos da divina.
                Isto é o que eu agora lhes quero persuadir e demonstrar, e um dos fins principais por que escrevo esta História, para que, pelo conhecimento de nossos futuros, possam emendar o engano de suas esperanças presentes.
                Sempre são falsas e enganosas as esperanças humanas, mas nunca mais certamente falsas, que quando se opõem e encontram com as promessas divinas. Veja e saiba Castela o que Deus tem prometido a Portugal, e logo advertirá a vaidade do que suas esperanças lhe prometem. Oh quantas guerras, oh quanto sangue, ou quantos tesouros baldados poderiam poupar os reis, se no meio de seus conselhos pudessem pôr um espelho em que se vissem os futuros! Tal é este livro, ó Espanha, que também a ti dedico e ofereço. Aqui verás os futuros de Portugal, e tudo o que podes esperar dele em sua conquista.
                Levantou Deus no Mundo a Jeremias por seu ministro, e a comissão e ofício que lhe deu foi esta: Ecce constitui te hodie super gentes et super regna, ut evellas, et destruas, et dissipes, et aedifices, et plantes: «Hoje te ponho e constituo sobre as gentes e sobre os reinos, para que arranques, destruas e dissipes a uns; plantes e edifiques a outros.» Não quer dizer Deus que Jeremias há-de arruinar ou edificar reinos com a espada; mas que os há-de arruinar ou edificar com as suas profecias, profetizando a uns sua exaltação e a outros sua destruição e ruína. Se as profecias resolutamente dizem que os reinos se hão-de perder ou arruinar, aparelhem-se sem remédio para sua ruína; e se dizem que se hão-de estabelecer e exaltar, crelam sem dúvida sua conservação e aumento: Ecce constitui te super gentes et super regna. Estão os profetas e as profecias sobre às gentes e sobre os reinos, ou como astros benignos que influem e prometem suas felicidades, ou como cometas tristes e funestos, que influem e ameaçam suas ruínas. Levantem pois os reis e os reinos os olhos, olhem para estes sinais do céu, e se os virem estrelas, esperem; se os virem cometas, temam. Mas porque muitos reis esperam de onde deviam temer, por isso erram, e se despenham, e se perdem, e perecem muitos. Se Acab, rei de Israel, temera, como devia temer, a profecia de Miqueas, desistira da conquista de Ramoth Galaad, em que tão teimosamente insistia; mas porque quis antes esperar, como não devera nas promessas e lisonjas vãs de seus aduladores, em um dia perdeu a batalha, a conquista a coroa a vida. Não podem as armas dar a vitória a Acab quando nas profecias está segura Ramoth.
                Clamava a profecia de Jeremias ao rei e príncipes de Jerusalém que se acomodassem com Nabucodonosor contra o qual não podiam prevalecer; mas porque El-Rei Sedecias, fiado na potência de suas armas, quis antes experimentar a fortuna da guerra que vir a honestos partidos com os Assírios, prevaleceram estes enfim como o profeta tinha prometido, e o rei conheceu tarde a temeridade de seu conselho.
                Que diferente foi o de Ciro, prudente e famoso rei de Babilônia! Entendeu este mesmo excelente príncipe, pela mesma profecia que Jeremias e pelas de outros profetas, que o cativeiro e sujeição dos Israelitas que ele tinha debaixo de seu império não queria Deus que durasse mais de sessenta anos. E tanto que estes se acabaram (sendo gentio idólatra), sem partido, sem interesse, sem obrigação nem reconhecimento, os restituiu todos livres à sua pátria.
                Contentou-se o gentio com o que Deus se contentava e não quis perpetuar a servidão, quando Deus tinha limitado anos ao castigo. Creu as profecias sem serem suas ou de seus oráculos, senão dos mesmos Israelitas, porque, tendo-as experimentado verdadeiras na sentença do cativeiro, fora cobiça e não razão tê-las por falsas na promessa da liberdade.
                Oh que caso tão parecido ao nosso caso! Oh que ação tão digna de se santificar e fazer cristã, passando-a de um rei gentio a um rei católico! Quis Deus por seus altos juízos que Portugal perdesse a soberania de seus antigos reis, e que sua coroa, ajuntando-se às outras de Espanha, estivesse sujeita a rei estranho; mas esta sujeição e este castigo, não quis o mesmo Deus que fosse perpétuo, senão por tempo determinado e limitado, e que este termo e limite fosse o espaço só de sessenta anos. Assim o diziam as profecias, e assim o provou com admirável consonância o cumprimento delas.
                Só faltou para total semelhança do caso de Babilônia e para imortal glória do Ciro de Espanha que a ação fosse voluntária e não violenta; sua, e não dos Portugueses. Mas vamos às profecias do cativeiro e ao termo dos sessenta anos dele.
                S. Frei Gil, religioso português da ordem de S. Domingos, (de cujo espírito profético se dará notícia em seu lugar) diz assim: Lusitania sanguine orbuta regio diu ingemiscet; sed propitius tibi Deus insperate ab insperato redimet: «Portugal por orfandade do sangue de seus reis, gemerá por muito tempo; mas Deus lhe será propício e, não esperadamente, será remido por um não esperado.»
                Gemeu Portugal muito tempo, porque gemeu por espaço de sessenta anos debaixo da sujeição de Castela; e foi ocasião desta sujeição ,e destes gemidos ficar o Reino órfão de seus reis, porque os dois últimos — D. Sebastião e D. Henrique — faltaram sem deixar sucessão; mas foi-lhe Deus propício, porque dispôs com tão notáveis sucessos a execução de sua liberdade e foi remido não esperadamente, porque muitos não esperavam, antes desesperavam desta redenção; e remido por um não esperado, porque o redentor, pelo qual geralmente se esperava, era outro e não el-rei D. João o IV.
                No juramento autentico de El-Rei D. Afonso Henriques, em que se conta o miraculoso aparecimento de Cristo, quando por sua própria pessoa quis fundar o Reino de Portugal, são bem notórias aquelas palavras mandadas anunciar ao rei pelo mesmo Senhor, com o recado de que lhe queria aparecer: Domine bono animo esto: vinces, vinces, et non vinceris. Dilectus es Domino, posuit enim super te et super semen tuum post te oculos misericordiae suae usque in decimam sextam generationem, in qua atteniabitur proles, sed in ipsa attenuata ipse respiciet et videbit: «Senhor, estai de bom animo: vencereis, vencereis e não sereis vencido; sois amado de Deus porque pôs sobre vós e sobre vossa descendência os olhos de sua misericórdia até a décima sexta geração, na qual se atenuará a mesma descendência, mas nela atenuada tornará a pôr seus olhos.»
                Até aqui a divina promessa, cujo cumprimento é tão manifesto, que quase não necessita de explicação. A décima sexta geração de El-Rei D. Afonso Henriques (contando as gerações, como se devem contar, de rei a rei e de coroa a coroa) foi o Cardeal D. Henrique, como se vê pelo catálogo seguinte:

    El-Rei D. Sancho I;
    El-Rei D. Afonso II;
    El-Rei D. Sancho II;
    El-Rei D. Afonso III;
    El-Rei D. Dinis;
    El-Rei D. Afonso IV;
    El-Rei D. Pedro I;
    El-Rei D. Fernando;
    El-Rei D. João I;
    El-Rei D. Duarte;
    El-Rei D. Afonso V;
    El-Rei D. João II;
    El-Rei D. Manuel;
    El-Rei D. João III;
    E1-Rei D. Sebastião;
    El-Rei D. Henrique.

Neste último rei se atenuou a descendência, porque ainda que não quebrou de todo, ficou por um fio, e fio tão delgado e atenuado como era a única casa de Bragança, descendente do infante D. Duarte irmão menor de D. Henrique. Mas neste fio único e tão delgado se veio a verificar que, depois da descendência de El-Rei D. Afonso Henriques, atenuada no décimo sexto rei, tornaria Deus a por seus olhos nela, porque nela se restituiu a coroa que Cristo então lhe dava, sendo restituída (como foi) ao Duque D. João, o II de Bragança, Rei D. João, o IV de Portugal e décimo sétimo dos reis portugueses descendentes do primeiro Afonso. Por outros modos também verdadeiros se faz esta mesma conta, mas este temos por mais natural, mais fácil e mais conforme à mente da profecia e às circunstancias em que naquela ocasião se falava.
                S. Bernardo, em uma carta escrita a El-Rei D. Afonso Henriques, com quem tinha particular e íntima amizade e correspondência, a respeito das cousas presentes e futuras do Reino, profetizou com admirável clareza o termo dos sessenta anos de castigo e a continuação e sucessão de reis portugueses, antes e depois dela. A carta é a que se segue, conservada em muitos arquivos deste Reino e divulgada fora dele muitos anos antes da nossa restauração: «Dou as graças a Vossa Senhoria pela mercê e esmola que nos fez do sítio e terras de Alcobaça para os frades fazerem mosteiro em que sirvam a Deus, o qual em recompensação desta, que no Céu lhe pagará, me disse lhe certificasse eu da sua parte que a seu Reino de Portugal nunca faltariam reis portugueses, salvo se pela graveza de culpas por algum tempo o castigar; não será porém tão comprido o prazo deste castigo, que chegue a termos de sessenta anos. De Claraval, 13 de Março de 1136. Bernardo».
                A condicional do castigo cumpriu-se por nossos pecados, que sem dúvida deviam ser muito grandes, mas também se cumpriu muito pontualmente que o castigo não chegaria a termo de sessenta anos, porque El-Rei D. Filipe o II foi jurado por rei de Portugal, nas Cortes de Tomar, em 26 de Abril do ano de I58I, El-Rei D. João o IV, nas cortes de Lisboa, em I3 de Dezembro de 640, que fazem 59 anos e cinco meses menos alguns dias, ou sessenta anos não completos, como S. Bernardo tinha profetizado. Outra carta temos do mesmo santo escrita ao mesmo rei, em que dá outro sinal manifesto (e também já cumprido), do tempo em que havia de faltar a coroa, que adiante poremos.
                Finalmente, muitas pessoas (de cujo espírito, a respeito dos sucessos futuros de Portugal, trataremos larga e particularmente no cap. IX deste livro) não só predisseram a sujeição do Reino a Castela, e sua liberdade, mas que o fim de uma e princípio de outra havia de ser sinaladamente no ano de quarenta, e que naquele ano seria levantado novo rei de Portugal e que este se chamaria D. João, com todas as outras circunstâncias tão miúdas e particulares, como se verá no mesmo lugar.
                De maneira que por todas estas profecias consta claramente que ao Reino de Portugal haviam de faltar os reis portugueses e que esta falta havia de suceder no décimo sexto rei descendente de El-Rei D. Afonso Henriques, e que havia o Reino de gemer debaixo da sujeição estranha, e que esta sujeição havia de ser a Castela, e que não havia de durar mais que sessenta anos não completos, e que o termo destes sessenta anos havia de ser no ano de quarenta, e que neste seria levantado pelos Portugueses rei novo, e que se havia de chamar D. João: as profecias o disseram e os olhos o viram.
                Pois se Deus não quis que a sujeição de Portugal a Castela fosse perpétua, porque hão-de querer e porfiar os homens em que o seja? Se Deus limitou esta sujeição ao termo de sessenta anos, porque se não hão-de conformar os homens com seus soberanos decretos? E porque se não hão-de contentar com o que Deus se contentou? Porque se não verá no católico Ciro de Espanha um ato de tanta justiça e generosidade, e de tanto rendimento e obediência a Deus, como se viu no Ciro de Babilônia? Se Deus lhe deu o usufruto de Portugal por prazo somente de sessenta anos, e estes são acabados, porque se há-de querer chamar ao domínio e prescrever contra o Céu? Se lhe parece cousa dura arrancar de sua coroa uma jóia tão preciosa como o Reino de Portugal, reparem seus prudentes e católicos conselheiros que o não era menos naquele tempo, nem menos conhecido e celebrado no Mundo o reino de Judá, e que Ciro, rei ambicioso, arrogante e gentio, nem duvidou de o demitir de seu império. Quanto mais que por este ato de consciência, religião e cristandade, e por este Reino que Castela restituir ou consentir a Deus (pois Ele tem já restituído), lhe pode Deus dar outros maiores e mais dilatados, com que enriqueça e sublime sua coroa e amplifique o império de sua monarquia, como sucedeu ao mesmo Ciro. Por aquele ato de generosidade e desinteresse, foi Ciro tão amado de Deus, que lhe chamava o meu rei, o meu ungido, o meu Cristo, o meu Ciro; e pelo merecimento deste obséquio e rendimento à-vontade divina lhe deu Deus em um dia o império dos Assírios, que era a primeira monarquia e universal do Mundo, como o mesmo Ciro reconhece havê-lo recebido da sua mão. Tão liberal é Deus com os príncipes que não regateiam reinos nem estados com Ele; e por um reino de tão poucas léguas de terra, qual era o de Judéia (igual com pouca diferença de Portugal), dá em prêmio e recompensa a monarquia de todo o Mundo!
                Tais são os interesses (quando houvera algum maior que o de obedecer a Deus), que Espanha podia esperar do desinteresse deste ato, podendo de outra maneira (para que não calemos esta verdade), temer justissimamente que à resolução e porfia contrária sucedam efeitos também contrários. Se por um ato de justiça, desinteresse e obediência dá Deus uma monarquia, por um ato de justiça, ambição e desobediência também poderia tirar outra. E já a ordem das cousas naturais as teve menos dispostas a uma grande ruína.
                Quero pôr aqui as palavras do Texto Sagrado, em que Ciro faz desistência do reino de Judéia e deixou aquele povo em sua liberdade, por serem mui dignas de toda a ponderação, imitação e memória. Dizem assim no I Livro de Esdras, cap. I, e são o exórdio de sua história: In anno primo Cyri, regis Persarum,ut cornpleretur verbum Dominini ex ore Jeremiae, suscitavit Dominus spiritum Cyri, regis Persarum, et traduxit vocem in omni regno suo, etiam per scripturam, dicens: Haec dicit Cyrus, rex Persarum: omnia regna terrae dedit mihi Dominus, Deus Caeli, et ipse praecepit mihi ut aedificarem ei domum in Jerusalem, quae est in Judaea. Quis est in vobis de universo populo ejus? Sit Deus illius cum ipso; ascendat in Jerusalem...
                Lástima é que semelhante escritura não fosse de rei católico; e maior lástima será ainda que, posto algum rei católico na mesma ocasião, não queira imortalizar seu nome e religião com outro decreto semelhante.
                «No ano primeiro de Ciro, rei dos Persas (quem assim começou a reinar não podia deixar de ter tão felizes progressos), para se dar cumprimento à palavra divina declarada nas profecias de Jeremias, levantou Deus o espírito de Ciro, rei dos Persas (que só podia fazer uma ação tamanha e tão real um rei de espírito e espíritos mui levantados por Deus), e mandou apregoar em todos seus reinos por escrito firmado de sua mão este decreto: «Ciro, rei dos Persas, diz: O Rei do Céu me deu e fez senhor de todos os reinos do Mundo e ele me mandou que lhe edificasse casa em Jerusalém, cabeça de Judéia; pelo que toda a pessoa que houver em meus estados pertencente àquele povo e reino, o mesmo Deus seja com ela, e se pode tornar livremente para Jerusalém, etc.».
                Leiam este decreto os reis e monarcas do Mundo, aqueles principalmente que, sendo reis e possuindo os reinos, como dizem em suas provisões por graça de Deus, com tão pouco respeito ao mesmo Deus e à mesma graça armam seus exércitos contra os alheios. Se Deus deu tantos reinos a Ciro, porque não dará Ciro um reino a Deus, ainda quando fosse seu indubitavelmente?
                Mas o que eu só quero ponderar, e peço por reverência do mesmo Deus aos Reis Católicos, a seus conselhos e a seus letrados ponderem, é o que Ciro, rei não católico, chama preceito de Deus neste seu edito. Não teve Ciro outro preceito ou mandado particular de Deus (como notam todos os expositores) mais que as profecias em que estava anunciado que, no fim de sessenta anos, havia de ser o reino e povo hebreu libertado do cativeiro de Babilônia e restituído à sua Pátria, coroa e liberdade; e a estas profecias chama o rei sem fé preceito de Deu; a este gênero de preceito assim escrito, posto que não intimado com outra autoridade ou solenidade, julgou que tinha obrigação de obedecer, e obedeceu com efeito, e observou em matéria tão grave e de tanto peso e interesse de sua coroa, como era demitir de si um povo e um reino tão notável, de que ele já era o terceiro possuidor, porque o primeiro foi Nabucodonosor, o segundo Baltasar e o terceiro Ciro.
                Não sei que possa haver mais claro espelho do nosso caso. Se Espanha se quiser ver e compor a ele, leia as profecias que neste livro vão escritas e já cumpridas; veja quão legitimamente está restituído por elas, conforme o decreto ou preceito divino, o rei e reino de Portugal, e não me creia a mim, senão a seus próprios doutores e aos que mais duramente têm impugnado em nossos dias esta parte e defendido a contrária. Siga-se a sua doutrina e não a minha advertência.
                D. João de Palafoz e Mendonça, bispo de la Puebla de los Angeles, do conselho supremo de Aragão na sua História Real Sagrada, escrita, como se vê em tantos lugares, mais para contradizer o novo Reino de Portugal, que para historiar o de Saul impugnando a eleição de El-Rei D. João o IV, cujo nome se dissimula, e ponderando augusta e doutamente os sinais com que se havia de justificar para ser legítima e de Deus, com maior elegância que decência, porque o afeto lhe fez corromper a pureza de seu estilo, diz assim:
                Hazia-se una mudança tan grande en Israel, como acabarse el gobierno de los Juezes, que havia durado quinjentos años, y começar el de los Reyes escogiase para principe un hombre, que ayer era subdito y labrador; el que antes era compañero avian de venerarlo por rey. Pues para cosa tan grande, de tan rara y de tales y tan graves dependencias, vayanse a sus casas los Israelitas, duerman y piensem sobre ello; buelva otra vez Samuel a la oracion, digale el Senor a que hora vendrá el dia siguiente, el destinado al império; suceda la profecia buelva-se otra vez dezir que aquel es el hombre, llevele a su casa, conozcale y reconozcale; unjale, y ungido, justifique su vocacion con algunas profecias y senales de lo que le ha de succeder despues de ungido, coh que el Profeta quede con quietud y sossiego de que áquello le mandò el Senor; y elegido jostifique la jorisdiccion, y se tenga por principe legitimo y llamado de Dios al gobierno.
                Três cousas requer Palafoz, ou três circunstâncias em uma, para que a vocação do rei se justifique ser de Deus e para que os ministros que o ungiram (como Samuel e Saul) fiquem com quietacão e sossego de ser aquele o que Deus mandou ungir, e para que o mesmo rei ungido e eleito justifique sua jurisdição e se tenha por príncipe legítimo e chamado por Deus ao governo. E quais são estas três cousas ou circunstancias?
                As mesmas que intervieram e sucederam na eleição e unção de Saul: Primeira, haver profecia de ser Saul o destinado por Deus ao império; segunda, que a profecia não seja só uma, senão algumas; terceira, que essas profecias sucedam, assim como estavam preditas e profetizadas.
                Verdadeiramente estas palavras do bispo Palafoz:
                Cum esset pontifex anni illius, me parecem ditadas por algum espírito e intento superior, para que, sendo ditas como as de Caifaz, com tão diverso e contrário intento, fossem verificadas no mesmo príncipe e no mesmo Reino que ele queria impugnar e destruir, e sua mesma acusação seja um testemunho público e mais qualificado da justiça e justificação de nossa causa.
                Se Palafoz pede profecias, damos a Palafoz profecias, e não profecias daquele dia. como as de Samuel, senão de cento, de trezentos e de quinhentos anos antes, que são as mais qualificadas e livres de suspeita, e que só podem ser ditadas e inspiradas por aquela sabedoria eterna a quem os futuros são presentes. E tais são as que pouco antes alegamos porque as últimas havia cem anos que estavam escritas, as de S. Frei Gil, trezentos anos e as de S. Bernardo e de El-Rei D. Afonso Henriques mais de quinhentos, e todas públicas, autênticas e justificadas com o testemunho universal do Mundo, que as tinha visto e lido.
                Se Palafoz pede que a profecia não seja só uma senão algumas, como as de Samuel foram três, não só damos a Palafoz três profecias, senão trinta profecias, e três vezes trinta, as quais se poderão ver no cap. VI deste anteprimeiro livro, porque tantas são (se bem se distinguirem e contarem) as cousas diversas e profetizadas que ali se referem todas, não só futuras, mas de futuros livres e contingentes, que nenhum entendimento humano, diabólico ou angélico, podia tantos anos prever nem conhecer sem revelação de Deus, que são as condições que propriamente se requerem para a verdadeira, rigorosa e provada profecia, como é sentença comum dos teólogos e se provará larga e demonstrativamente em seu lugar.
                Finalmente, se Palafoz pede que as mesmas profecias sejam provadas e confirmadas com o sucesso assim antes como depois de o rei ser eleito e ungido no alegado cap. VI se verão as mesmas profecias declaradas e ajustadas com o sucesso; algumas delas cumpridas antes da restituição e coroação de El-Rei D João IV, outras no mesmo caso e circunstancias de sua restituição, e as demais desde aquele tempo até o ano de 663, além de muitas outras que estão ainda por cumprir, que se lerão no discurso desta História, com cujo efeito, de que se não deve duvidar (como também provaremos), se irá cada dia confirmando reais e mais a mesma verdade, bastando e sobejando a décima parte das profecias já cumpridas, para se justificar superabundantemente, conforme a doutrina de Palafoz, com grande quietação e sossego dos ânimos, que a vocação daquele rei foi de Deus mandada e ordenada por ele e que a sua jurisdição é verdadeira e legítima, como de príncipe notoriamente chamado e destinado pelo mesmo Deus ao império. Tal foi a eleição de Saul; tal a de El-Rei D. Afonso Henriques, fundador do Reino de Portugal; e tal a de El-Rei D. João, seu restaurador.
                Não deixarei também de lembrar aqui que não são tão novas e desconhecidas em Castela as profecias ou esperanças de Portugal, que não façam menção delas seus autores, aplicando-as a primeira parte deste mesmo caso nosso, e não duvidando que dele falavam e dele se haviam de entender.
                D. João de Horosco e Covarrovias, arcediago de Cuellar na igreja de Segóvia, no seu Tratado de la verdadeira y falsa profecia, Liv. I, cap IV, diz assim: — «...desta manera tuvo yo noticia de [un çapatero en Portugal que fue tenido por propheta, y era aver leydo en] algunas prophecias como las de S. Isidoro, y [...] tengo notada una, en que a mi parecer se dixo mucho ha, el aver de jutar-se aquel reyno de Portugal con el nuestro, con harta particularidad.»
                Até aqui no corpo do livro; e comentando à margem o seu mesmo texto, põe as trovas seguintes:

Vejo, vejo, do Rey vejo
(Vejo, o estoy sonando?)
Simiente de rey Fernando
Hazer un forte despejo,
E seguir con gran desejo,
Y dexar acá sua viña
Y decir, esta casa es miña,
En que aora acà me vejo.

A tradução não é muito limada, mas a explicação é muito própria, muito acomodada e muito bem deduzida; porque, sendo o intento e o assunto ou tema daquela profecia predizer os sucessos futuros de Portugal depois de sua restauração, como se tem visto foi princípio muito conveniente à ordem dos mesmos sucessos começar pela sujeição do mesmo Reino a Castela, e pela entrada dos reis castelhanos em Portugal. E se o verdadeiro profeta e primeiro autor desta profecia é Santo Isidoro, e não outro, tanto melhor, porque temos mais qualificado autor e mais autorizado profeta.

Mas vejamos de caminho que é o que diz Santo Isidoro, e como avalia esta ação do rei, semente de El-Rei D. Fernando, que foi seu neto Filipe II.
                O nome que dá a esta ação Santo Isidoro é chamar-lhe despejo, que em tom castelhano quer dizer desverguença; e chamar-lhe despejo forte, porque foi despejo armado de poder e de exércitos, e não (como devera ser) de justiça; ou lhe chama também forte, porque às cousas feitas sem razão chamamos forte cousa, como se dissera: Forte cousa é, e despejo grande que estando em Portugal a senhora Dona Catarina, neta legítima de El Rei D. Manuel e filha herdeira do Infante D. Duarte, e devendo preceder a todos os pretensores da coroa, assim pelo direito comum da representação, como pela leis particulares do Reino, que não admitem à sucessão príncipe estrangeiro, um rei que era descendente de Fernando, por antonomásia chamado o Rei Católico, se viesse por força introduzir na casa alheia, sem mais razão nem justiça que meter-se nela e dizer: «Esta casa é minha, em que agora cá me vejo».
                Basta, Rei católico e descendente de católico, que porque vos vedes metido na casa alheia, por isso haveis de dizer: «Esta casa é minha»?!
                Não debalde o santo arcebispo se espanta tanto de uma tal ação, que depois de a estar vendo com espírito profético, ainda duvida se era visão ou sonho: Vejo, vejo, do rei vejo, vejo, ou estou sonhando? Mas o efeito mostrou que não era sonho, senão visão verdadeira, posto que visão de um caso tão dificultoso de crer. E pois o meterem se os Castelhanos em Portugal foi despejo, razão foi também que os fizessem despejar. Mas não é este o meu intento, nem esta ilação a que eu quero inferir.
                Diz o Doutor Horosco e Covarrovias que nesta profecia está profetizado con harta particularidad, haver de juntar-se aquel reino de Portugal con el nuestro. Bem dito. Mas se este mesmo autor, e este mesmo texto, e este mesmo Santo Isidoro diz que o Reino se há-de restituir outra vez, e com muito maior particularidade, no ano de quarenta, e que o seu rei se há-de chamar D. João; se isto, digo, está bem profetizado, e profetizado no mesmo livro e no mesmo tempo, e alegado o mesmo doutor; porque não hão-de crer os Horoscos e Covarruvias castelhanos nesta segunda parte da mesma profecia, assim como creram na primeira? De maneira que, quando as profecias de Portugal profetizam que Portugal se há-de ajuntar a Castela, são profecias; e quando profetizam que Portugal se há-de tornar a separar de Castela e se há-de restituir à sua liberdade, não são profecias?!
                Não o havia de julgar o mesmo Horosco e o mesmo Covarruvias, nem o julgou assim o mesmo Santo Isidoro. Forte despejo foi aquele, mas ainda esta conseqüência é mais forte. Ora, Senhores, acabemos de crer a Deus, que nem Ele pode mentir, nem nós o podemos enganar. Sei eu e sabe Portugal, e Castela também o sabe, quanto cuidado lá davam antes deste tempo e quanto temor se tinha de nossas profecias; e não entendo agora como, depois delas cumpridas e qualificadas com tão maravilhosos efeitos se lhos tem perdido a reverência. Em seu lugar, como tenho prometido, se verá tão demonstrada a sua verdade, que nenhum ódio nem interesse possa negar que são de Deus; e que, em conseqüência, será indigno de todo o juízo porfiar ainda contra elas depois de tão conhecidas.
                Conhecia Herodes a verdade das profecias; inquiriu por elas o tempo, o lugar do nascimento do Rei profetizado, e logo armou contra Ele a crueldade de seus exércitos. Até aqui podia chegar a loucura e a cegueira de um mal aconselhado príncipe: crer a verdade das profecias, e esperar prevalecer contra elas por força de armas. Mas que efeito tiveram ou que façanhas obraram os exércitos de Herodes? Contra o rei e contra o reino que pretendia estorvar, nenhuma cousa. Só se afogou Belém em sangue e nadou em lágrimas; só se ouviram em Ramá e no Céu as queixas e lamentações de Raquel. Este é o fim sem outro fruto de tão desesperadas resoluções: sangue inocente derramado, lágrimas, queixas, lamentações, clamores, e não dos outros, senão dos próprios vassalos.
                Vassalos eram do mesmo Herodes todos os que morreram em Belém: cobriu de luto o reino próprio, e não pôde atalhar com tantos rios de sangue os progressos do que procurava impedir, porque estava destinado por Deus ao domínio de seu verdadeiro Senhor e firmado com sua palavra.
                Considere Castela contra quem peleja, e conhecerá quão impossível é a empresa a que aspira; acabe de entender que não peleja contra Portugal, senão contra a firmeza da palavra e promessas divinas. Talar as nossas campanhas, vencer em batalha os nossos exércitos, sitiar as nossas cidades, bater, minar, escalar e arruinar as nossas muralhas, bem pode ser; mas fazer brecha na firmeza da palavra divina é impossível. Não há muro tão gastado da Antigüidade e tão fraco em Portugal, em cujas pedras não esteja escrito com letras de bronze: Verbum Domini manet in aeternum.
                Reparem os famosos capitães de Castela e considerem seus prudentíssimos e experimentados conselheiros, apartando os olhos por um pouco de Portugal, se se acham seus exércitos com forças e poder bastante para conquistar Europa, para sujeitar todas as quatro partes do Mundo e ainda para escalar, como filhos do Sol, o Céu, e tirar dele a Júpiter pois saibam que mais fácil será conquistar Europa, o Mundo e o mesmo Céu empíreo, do que vencer e sujeitar Portugal, defendido e armado como está com as promessas divinas: Coelum et terra transibunt, verba autem mea non praeteribunt. Pelejem primeiro contra a firmeza da palavra de Deus batam, abalem, derribem, desfaçam este castelo, e depois dele rendido, então poderão conquistar Portugal. Perguntem a El-Rei José e a El-Rei Acab com as forças de dois tão poderosos reinos unidos, porque não conquistaram a Ramoth? Perguntem a Benedad, rei de Síria, e aos trinta e dois reis que o acompanhavam, porque uma e outra vez não conquistaram Samaria, sendo tanto o número de seus soldados, que com um punhado de terra que cada um lançasse sobre ela (como eles diziam) a podiam sepultar? Perguntem ao soberbíssimo Senaquerib vencedor de tantas nações, com todo o estrondo de tantos mil carros de guerra e tão inumeráveis exércitos de pé e de cavalo, porque não chegou a meter uma seta dentro dos muros de Jerusalém?
                Porque Ramath estava defendida com uma profecia de Miqueas; Samaria com uma profecia de Eliseu; Jerusalém com uma profecia de Isaías.
                Mas deixados exemplos das Escrituras e profecias canônicas, ouçam também as nossas, que, sendo de inferior autoridade, também foram ditadas, como depois se verá, pelo mesmo espírito. Porque puderam romper os Portugueses os claustros impenetráveis do Oceano, e conquistaram nas outras três partes do Mundo, sendo um Reino tão pequeno, tantas, tão novas e tão poderosas nações, senão porque estava escrito? Porque, estando sujeitos a Castela e debaixo de seus presídios, sacudiram tão feliz e animosamente o jugo, e em um dia restauraram sua liberdade, em Portugal, na África, na Ásia e na América, senão porque estava escrito? Porque ontem, na memorável batalha do Cano, com partido tão desigual, romperam um tão luzido e poderoso exército formado mais de capitães que de soldados, e escalaram com tanta facilidade aquelas montanhas ou muralhas da natureza, a que o seu general chamou castelos de Milão, senão porque estava escrito? Pois se a conservação, a liberdade e perpetuidade, as vitórias e outros maiores triunfos de Portugal estão também escritos com as mesmas letras e ditados pelo mesmo espírito, que esperança ou desesperação é pretender conquistar a Portugal? Oh, acabe de entender Castela quem defende Portugal e contra quem peleja! Com mui desigual inimigo se toma, quem quer guerrear contra Deus!

Não é nem pode ser nossa intenção diminuir as forças de Espanha, nem escurecer a grandeza de sua potência, tão conhecida do Mundo todo e tão temida e reverenciada de seus inimigos e invejada de seus êmulos. Mas é força que ela e nós confessemos que são maiores os poderes de Deus, e que, assistida deles, a desigualdade de Portugal pode resistir e prevalecer contra Espanha, como lhe tem resistido e prevalecido em tantos anos.
                Dizem as fábulas, com significação não fabulosa mas verdadeira, que quando Páris houve de ferir mortalmente o impenetrável corpo de Aquiles, uniu o deus Apolo a mão de Páris com a sua e ambas juntas dispararam a seta fatal. Comparado o braço de Páris com o de Aquilles, mão por mão e braço por braço, mais forte é o de Aquiles; mas comparado o de Aquiles com o de Páris, acompanhado de Apolo mais forte é o de Páris. Não foi só a espada de Gedeão a que com tão poucos soldados venceu os exércitos dos Madianitas, mas a espada de Gedeão maneada pelo seu braço e pelo de Deus, juntamente: Gladius Domini et Gedeonis. Contra a espada de Gedeão naturalmente parece que haviam de prevalecer os exércitos madianitas; mas contra a espada de Gedeão e de Deus, nenhum poder humano pode prevalecer. Não peleja Castela só contra os exércitos de Portugal, mas contra o Senhor dos exércitos.
                No dia memorável da restituição de Portugal (ou fosse milagre ou mistério), é certo que a imagem de Cristo crucificado despregou publicamente o braço as portas daquele santo português que tem por graça própria sua recuperar o perdido. Contra o braço estendido de Deus, que força dá que possa prevalecer, nem ainda resistir? Este é aquele braço onipotente, que tira os poderosos do trono e levanta a ele os humildes ou os humilhados, como fez naquele dia. Grande glória é de Portugal ter em seu favor o braço de Deus; mas não foi menos honra e autoridade de Castela, que fosse necessário o braço de Deus a Portugal para se libertar da sua sujeição.
                Menos que o braço e menos que toda a mão de Deus, bastou para livrar o povo de Israel do poder do grande rei Faraó o dedo de Deus. O dedo de Deus é este — lhe disseram os seus sábios: Digitus Dei est hic. E verdadeiramente foi grande dureza de entendimento imaginar Faraó que podiam prevalecer seus exércitos contra um dedo da mão de Deus, quanto mais contra toda a mão. Assim lho remoqueou Moisés, quando escreveu aquela história: Induravit Dominus cor Pharaonis, regis Egypti, et persecutus est filios Israel, at illi egressi erant in manu excelsa.
                Notem muito estas últimas palavras os reis e seus conselheiros: At illi egressi erant in manu excelsa. Se a mão do Altíssimo é a que assistiu aos libertados, quando eles saíram do cativeiro, em vão se cansa Faraó em tirar carruagens, cavalarias e exércitos contra eles, senão é que o juízo divino os leva ao Mar Vermelho e os chama lá alguma oculta fatalidade. Bem se viu neste caso, tão horrendo, quão gravemente se ofende Deus de que ninguém presuma cativar a quem ele liberta.
                Desengano, Senhores meus; falemos e ouçamos como católicos. O que Deus faz, só Deus o pode desfazer; o que Ele levanta, só Ele o pode derribar. Bem sabe Castela (sinal é que o sabe bem, pois chega a o confessar, e no mesmo ano em que Portugal se havia de levantar, o estamparam assim seus escritos) bem sabe Castela (digo) que Portugal com singularidade única entre todos os reinos do Mundo foi reino dado, feito e levantado por Deus, naqueles mesmos campos e naquela mesma província onde todos os anos trabalham e batalham os homens pelo derribar, pelo desfazer e pelo tirar a quem foi dado.
                Se Deus o deu, como o podem os homens tirar? Se Deus o fez, como o podem os homens desfazer? Se Deus o levantou, como o podem os homens derribar? E se Deus prometeu que na décima sexta geração atenuada poria os olhos nela para o restituir, como há quem tanto à vista dos olhos de Deus queira triunfar sobre suas promessas e irritar seus decretos? Até a superstição dos Gentios conheceu a conseqüência desta verdade, e que os reinos fundados por um Deus, ainda quando houvesse muitos deuses, só o mesmo Deus os podia arruinar. Esta foi a teologia com que os dois príncipes dos poetas no incêndio e destruição de Tróia introduziram ao Deus Neptuno, batendo com o tridente os muros que ele mesmo tinha fundado.
                Naquela noite em que Cristo por sua própria Pessoa fundou o Reino de Portugal, aparecendo e falando ao seu primeiro rei, disse: Ego aedificator et dissipator regnorum alque imperiorum sum. Volo enim in te et in semine tuo imperíum mihi stabilire ut deferatur nomen meum in exteras nationes: «Eu sou o fundador e destruidor dos reinos e dos impérios, e quero em ti e em teus descendentes fundar um império para mim, pelo qual o meu nome seja levado às nações estrangeiras.:»
                Se Deus é o monarca supremo e universal, que funda e desfaz os reinos e os impérios e com tão especia1 solenidade fundou por sua própria Pessoa nos reis portugueses de Portugal, quem haverá, que não seja o mesmo Deus, que o possa desfazer e dissipar?
                Ponderem-se muito aquelas três cláusulas — in te mibi stabilire. Se Deus o fundou em nós — in te — quem o poderá arrancar de nós? Se Deus o quis para si mihi- como o poderá ser de outrem? E se Deus prometeu de o estabelecer stabilire- como o podem os homens arruinar? Acabem de conhecer os que se prezam de conhecer a Deus, que são homens; e tenham-se por homens, por racionais e por conselheiros, os que seguirem os ditames deste conhecimento. Na prodigiosa batalha das Linhas de Elvas, quando o duque-general, primeiro ministro de Espanha, se viu tão inopinadamente de conquistador, conquistado, as trincheiras entradas, os esquadrões rotos, os fortes rendidos, o exército desbaratado, as palavras com que se retirou, como tão prudente e tão católico capitão, foram: — Contra Dios no valen manos.
                Se este ditame tão são, tão verdadeiro e tão evidente se seguira desde aquele dia. quanto sangue que ao depois se derramou estivera guardado nas veias ou se tivera de uma e outra parte empregado em serviço daquele grande Senhor, contra o qual não valem mãos nem validos? Contra a evidência e fé desta razão, que não tem resposta, costuma atravessar o Demônio aquela torpeza do Inferno, a que os homens com nome especioso e significação verdadeira infernal chamaram reputação. Dizem que não convém à reputação do grande monarca das Espanhas desistir da empresa de Portugal, não pelo que ele é, mas pelo que dirá o Mundo. Como se não estivéramos no mesmo Mundo em que ontem o mesmo monarca cedeu às Províncias Unidas dos Países-Baixos todos aqueles estados de que com tão diferentes direitos era herdeiro e legítimo senhor!
                Mas para o nosso caso não são necessários exemplos, nem têm lugar, porque é diverso de todos e de superior hierarquia. E quando concedêssemos aos políticos que, para vaidade fantástica da opinião, se deviam arrastar tantos respeitos sólidos e verdadeiros, como eles falsamente ensinam, em nenhum caso da paz e recíproca desistência das armas esteve mais segura e mais honrada a reputação de Espanha e de seu grande monarca, que no da guerra presente. Pelo mesmo fundamento e único em que se funda todo este discurso, em ceder, obedecer a Deus e não resistir à sua vontade conhecida, nunca se perde nem pode perder reputação, antes se ganha a maior e mais qualificada de todas; porque, se a reputação consiste no juízo dos homens, nenhum juízo haverá no mundo católico, político, nem ainda gentílico, que não estime e venere uma tal ação pela mais cristã, mais justa, mais prudente, mais generosa, mais heróica de quantas honraram a memória dos maiores príncipes.
                Quando Moisés foi notificar da parte de Deus a El-Rei Faraó, que desse liberdade ao povo de Israel, que havia tantos anos tinha debaixo de seu domínio, o que respondeu foi: — Nescio Dominum et Israel non dimittam: «Não conheço esse Deus, e não hei-de demitir a Israel.»
                Não disse que não queria obedecer a Deus, senão que o não conhecia; porque o príncipe que conhece a Deus, ainda que seja tão bárbaro e arrogante como Faraó e em matéria de tanto peso e interesse, como demitir de si o domínio de uma nação inteira e tão populosa não pode duvidar de obedecer e se sujeitar à sua vontade. E porque Faraó o não fez assim, ainda que gentio e sem conhecimento de Deus, a reputação que granjeou com aquela teimosa resolução é a que hoje tem no Mundo, e terá enquanto durarem os Livros Sagrados, de bárbaro, de néscio, de obstinado de ímpio rei e de inimigo e destruidor (como foi por isso mesmo) de seu império.
                Resistir a uma razão tão evidente como a que diz — assim o quer Deus — , é tão indigna e tão afrontosa resistência, que nenhuma razão de estado a pode justificar, ainda que se perdesse o mesmo estado.
                Depois da morte de El-Rei Saul, o tribo de Judá seguiu as partes de David, e os outros onze tribos obedeceram e juraram por seu rei a Isboseth, filho herdeiro do rei defunto.
                Seguiram-se bravas guerras entre um e outro partido; duraram sete anos, e o fim notável em que vieram a parar foi que os onze tribos deixaram a Isboseth e voluntariamente se entregaram e sujeitaram todos a David; e a maior circunstancia do caso é que, sendo ao parecer tão indignas as condições da paz, ela se ajustou em um dia sem o mediador Abner sem haver em todos os doze tribos um só homem que falasse uma palavra em contrário, nem ainda o mesmo Isboseth, que ficara privado do reino de seu pai, passando todo a David, que ontem era seu vassalo.
                Mas que razões tão fortes e de tanta eficácia foram as que representou Abner para persuadir e concluir tão breve e subitamente um negócio tamanho, em que os interesses, a honra e a reputação de todos estava tão empenhada, e muito mais a do mesmo rei?
                A razão foi uma só e esta que estou alegando: ...quoniam locutus est Dominus.
                Propôs Abner aos tribos que a vontade de Deus era que David fosse rei, como o tinha declarado o profeta Samuel; e contra esta proposta não houve rei, nem conselheiros, nem vassalos que repugnassem ou respondessem, porque entenderam que o interesse de obedecer a esta razão era o maior de todos os interesses, e que debaixo dela, não só ficava salva a honra e a reputação, mas honrada a mesma honra.
                Assim como o vassalo nunca pode perder a honra e reputação, senão ganhá-la em obedecer ao rei, assim o rei nunca a pode perder em obedecer a Deus, senão ganhá-la, segurá-la e acrescentá-la muito.
                E se buscarmos a raiz desta verdadeira razão, achá-la-emos, sem muito cavar, no supremo domínio de Deus, que, como Senhor absoluto dos reinos e dos impérios, os pode dar e tirar inteiros quando lhe parecer, e também dividi-los e parti-los quando é servido. David, como acabamos de ver, começou com parte do reino de Israel, e depois inteirou-lhe Deus o império e reinou sobre toda a Judéia. Seu filho Salomão logrou o mesmo império inteiro pacificamente. Seu neto Roboão entrou no império também inteiro, mas em seu reinado lho dividiu Deus, e deu parte dele a Jeroboão.
                O mesmo sucedeu ao império de Espanha nos últimos três reis dela. Filipe II começou a reinar com parte, e depois com a união e sujeição de Portugal, inteirou-lhe Deus o império de toda Espanha.
                Seu filho Filipe III logrou o mesmo império inteiro pacificamente. Seu neto Filipe IV entrou no império também inteiro, mas em seu reinado lho dividiu Deus, e deu a Portugal a parte que lhe pertencia.
                Antes do Reino de Israel se dividir entre Reboão e Jeroboão, tomou o profeta Ahías a sua capa cortada em doze partes, e destas doze deu dez a Jeroboão, em sinal de que Deus o queria fazer rei de dez tribos de Israel.
                Note-se aqui, e note-se muito, que os profetas são os que dividem os reinos e os que os repartem: eles os dividem primeiro, profetizando, e depois Deus executando. E se o profeta Ahías pôde partir a sua capa e dar parte dela a El-Rei Jeroboão, e parte a El-Rei Roboão, porque não poderá Deus partir também a sua, e da púrpura inteira que tinha dado ou emprestado a um rei, cortar um retalho para vestir e coroar outro?
                Ah! se os reis e monarcas considerassem que as púrpuras que vestem lhas ,empresta Deus da sua guarda-roupa, para que representem o papel de reis enquanto ele for servido! E se o Roboão de Israel se contenta com que lhe tirem dez partes do Reino e lhe deixem uma (assim o diz expressamente o Texto Sagrado: Porro una tribus remanebit ei; porque o tribo de Benjamim, que ficou a Roboão juntamente com o de Judá, por sua pouquidade não fazia número - era outro Algarve em respeito de Portugal); e se o Roboão de Israel (como dizia) se contenta com que lhe tirem dez tribos e lhe deixem uma só parte, porque se não contentaria o Roboão de Espanha, quando lhe tire o mesmo Dono um reino, se lhe deixa dez?
                Oh! como se pode temer que chame Deus ingratidão ao que os homens chamam reputação! A maior reputação de um príncipe que conhece a Deus e reconhece seu supremo domínio, é dizer como Héli ainda quando se visse despojado de tudo: Dominus est; quod bonum est; in oculis suis faciat.
                E se esta razão, ainda em termos tão apertados, é sempre verdadeira, quanto mais no caso presente, em que a grandeza de Espanha e sua potência, é o maior seguro de sua reputação!
                Pedir paz quem se não pode defender da guerra, poderá ser menor crédito; mas dar a paz, não porque a há mister, senão porque a quer dar, quem pode fazer e apertar a guerra, sempre é generosidade, honra, reputação e glória. O grande poder é muito confiado. Poder pôr em campo doze legiões de anjos, e mandar embainhar a espada a Pedro, foi a maior glória do poder supremo. Não pode dar mais a fortuna a um príncipe que poder o que quer; nem pode exceder um príncipe essa mesma fortuna mais que não querendo o que pode; e não poder querer o que Deus não quer, ainda é um ponto mais alto sobre a grandeza. Mas se em toda a idade tem decência e decoro a gentileza desta resolução, nos maiores anos ainda é incomparavelmente maior.
                Pelejaram os pastores de Abraão com os de Loth, os do tio com os do sobrinho. Abraão, que foi o que apartou a demanda, não quis pelejar sobre a terra, quando os anos o chamavam mais para o Céu.
                Ó poderosíssimo monarca Filipe IV, o Grande! Dai licença para que tenham entrada a vossos ouvidos os ecos destas últimas cláusulas, não de meu discurso, senão de meu desejo. As vozes de que eles se formam, sabe O que conhece os corações, que não se escrevem com outro fim mais que o de O agradar, e de que todo os príncipes católicos O agradem.
                Que se não derrame sangue cristão, e sobre cristão espanhol, pois é aquele de que mais puramente se alimenta a Santa Madre Igreja e de que cabeça dela recebe os espíritos com que vivifica e anima seus mais distantes membros.
                Ouvi, Senhor, a voz de um estrangeiro, desinteressado vassalo que foi já vosso por sujeição, e hoje é também vosso (posto que não vassalo) por afeto. Ouvi a voz de um homem que nem das felicidades de Portugal espera, nem das vossas teme; porque vive fora da jurisdição da fortuna, por estado muito abaixo da sua roda, e por coração muito acima dela. Com todo este desinteresse me atrevo, Senhor, a vos dizer de longe o que pode ser não tenhais ouvido de mais perto.
                A maior façanha de Carlos, vosso avô, com que coroou todas as suas, foi saber morrer. Merecestes na vida o título de Grande; maior sereis no fim dela se ao de Grande acrescentardes o de Justo. Não se pode pagar a Deus o que é de Deus, sem dar a César o que é de César. E seria grande desgraça perder o Reino eterno por um temporal já perdido.
                Não duvido, Senhor, que tereis conselheiros de grandes letras, que segurem e justifiquem as causas e tão dilatada e cruel guerra; mas ponham os reis diante dos olhos as letras e as balanças de Baltasar e examinem eles se os seus maiores se governaram pelos pareceres dos letrados, ou os letrados pelos interesses dos reis. Os textos são da justiça, as interpretações podem ser da lisonja. Com um texto santo mal interpretado quis o Demônio despenhar a Cristo, e depois deste texto e desta interpretação, lhe ofereceu o reino que lhe não podia dar.
                Grande sinal é de predestinação de um príncipe que faça Deus por ele as restituições que nem seus predecessores fizeram, nem ele havia de fazer.
                Felicidade é levar já abatida das contas que se hao-de dar a Deus uma partida tão grossa, como o Reino de Portugal e suas Conquistas: basta haver-se de dar a mesma conta de Ormuz, de Ceilão, de Malaca, do Brasil, perdidos pela desatenção dos ministros ou pela intenção (que será pior) dos políticos. O tratado de uma boa e justa paz podia ser uma bula de composição geral, com que se levassem purgados todos estes encargos. Não queirais levar sobre vós e deixar sobre vossos filhos, por ama de tanto sangue derramado, o que ainda se pode derramar.
                Lembro-vos, Senhor, o signo debaixo de que nascestes — e seja este o último suspiro do meu afeto: nascestes no dia em que morreu o Rei dos reis e Monarca supremo do Mundo, para dar exemplo de morrer a príncipes. Ponde os olhos neste soberano exemplar; firmai o título de rei com o de católico, pois sempre prezastes mais o de católico que o rei; seja parte do sacrifício a repartição das vesti duras e leve embora a túnica aquele a quem coube em sorte; e faça-se tudo diante de vossos olhos antes que os fecheis. Se vos parece amargoso este trago, gostai o fel e não o passeis da boca. Com esta obra tão consumada, podeis entregar a alma segura nas mãos do Padre, que é rei e Senhor, o que só importa. Com uma inclinação da cabeça podeis deixar pacificado o Mundo. Deixai a paz por herança a vossa esposa. Esta será a maior prenda do vosso amor, este o troféu maior de vossas vitórias.