Showing posts with label Brazilian folklore. Show all posts
Showing posts with label Brazilian folklore. Show all posts

Wednesday 6 March 2024

Good Reading: "Os Três Desejos" by Ruth Guimarães (in Portuguese)

 

Um velho e uma velha, numa noite de frio, de muito frio mesmo, quando os animais se extanguiam em suas tocas, e o vento descabelava as árvores, sentaram-se diante de um bom fogo de lenha, na taipa do fogão.

Sentaram-se e ficaram. Não conversavam, pois não tinham assunto. Pouco saíam de casa, não trabalhavam, a não ser na sua rocinha, não frequentavam a casa dos outros, não liam jornais, nem livros, nem iam ao cinema, nem a teatro, não viajavam. Portanto, não tinham assunto. Deixaram-se estar muito calados, espiando as alegres labaredas, e esfregando de vez em quando as mãos engelhadas (envelhecidas). Foi ficando tarde, e eles não se animavam a ir para a cama, onde não se aqueceriam os seus velhos ossos, por falta de cobertores. Havia mais: a cabana tinha frinchas por todos os lados. Somente diante do fogo estavam bem. E assim foram ficando.

Já fazia muitas horas que estavam calados, olhando o fogo. A lenha se consumiu, no lugar das chamas ficou um brasido (grande quantidade de brasas) vermelho, alegre, com uns estalidos frequentes, o ar acima dele cintilava, relumeava, parecia vivo, o fogo era como um duendezinho que segredava coisas.

Sentiram fome. O velho olhava desconsolado do brasido para o fumeiro, onde não se pendurava nem um triste pedaço de chouriço. A velha seguiu-lhe o olhar e pôs em palavras o pensamento de ambos:

- Que bom, se caísse nesse brasido um pedaço bem grande de linguiça de carne de porco, temperada com uma pimentinha do reino e alho e cebola. E caindo, começasse a chiar, estalando, o cheiro se espalhando pela casa inteira. Ai, como havia de ser delicioso comê-la!

Nessa hora, os anjos do céu estavam dizendo amém. No mesmo instante caiu na brasa, tal como a velha dissera, um pedaço bem grande de linguiça de porco. Grossa, gordurenta, os pedaços de toucinho aparecendo, através da tripa fina, transparente, bem curada e seca. A linguiça se retorcia, assando, e o cheiro se espalhou, de bom tempero e de vianda (carne) curtida como se deve. Engoliam os velhos em seco, antegozando o momento de manducar (comer) o bom-bocado, quando o velho se lembrou de uma coisa em que ainda não pensara. Com efeito, se o pedido de linguiça fora tão prontamente atendido, um outro pedido, de dinheiro, por exemplo, seria atendido no momento, do mesmo modo.

– Estúpida – rosnou para a mulher. – Pedir linguiça. Bem se vê que você nasceu pobre, num monte de lixo. Por que não pediu riqueza, não pediu joias, não pediu dinheiro? Por que?

A velha se encolheu:

- Que sabia eu de pedidos? Como podia adivinhar que… que…

- Estúpida – tornou a gritar o velho, exasperado. - Sabe o que eu queria?

E antes de raciocinar, levado pela raiva, formulou o segundo desejo:

- Que essa linguiça saísse das brasas e se pendurasse no seu nariz!

O pedaço de linguiça deu um volteio, subiu e, diante do velho estupefato, grudou-se ao nariz da mulher.

– Uai! – berrou a mulher.

Agarrou-se à linguiça com as duas mãos, puxou, o velho foi ajudá-la.

– Aiaiaiaiaiai! Ai ai!

Puxa que puxa, a linguiça nada de sair.

A velha, desesperada, gritou:

- Eu quero já já, que essa linguiça…

- Não! – gritou o marido, tapando-lhe a boca com a mão. – Não. Vamos pedir uma coisa mais valiosa. Mulherzinha do meu coração! Deixa a linguiça aí, que não está incomodando tanto. Vamos pedir uma bonita casa.

– Não! – berrava a velha.

– Então um terreno com um formoso lago no centro.

– Não.

– Então uma arca cheia de moedas de ouro.

– Não e não.

Aproveitando-se de um momento em que o marido se distraiu e não teve tempo de lhe tapar a boca, ela falou, depressa:

- Quero que se desprenda do meu nariz essa linguiça.

E assim, viram eles satisfeitos os seus três desejos.

Friday 9 June 2023

Friday's Sung Word: "Engenho Novo" from the Brazilian folklore (in Portuguese)

Engenho novo, engenho novo
engenho novo, bota a roda pra rodar.

Eu dei um pulo, dei dois pulos, dei três pulos;
desta vez pulei o muro, e quase morro de pular.

Capim de planta, xique-xique, mela-mela;
eu passei lá na capela, vi dois padres no altar.


You can listen "Engenho Novo" in an arangement from Ernani Baga sung by Bidu Sayão here.

 

You can listen "Engenho Novo" in an arangement from Ernani Baga sung by Nadine Sierra and Angel Rodriguez here.

Thursday 30 June 2016

"As Doze Palavras Ditas e Retornadas" by Unknown Writer (in Portuguese)



Era uma vez um homem muito trabalhador e honrado, mas infeliz em todo negócio em que se metia. Tinha ele devoção ao Anjo da Guarda, rezando todos os dias em sua intenção.
            Cada vez mais pobre, o homem perdeu a paciência, e um dia gritou, desesperado com sua triste sina:
— Acuda-me o diabo, que o Anjo da Guarda não me quer ajudar!
            Apareceu um sujeito alto, todo vestido de preto, barbudo e feio, com uma voz roufenha e desagradável:
— Aqui estou! Aqui estou! Que é que queres de mim?
— Quero ficar rico.
            O diabo indicou uma gruta onde havia um tesouro enterrado, e disse:
— Daqui a vinte anos voltarei para buscar-te. Se não disseres as doze palavras ditas e retornadas, serás meu para toda a eternidade.
            O homem começou a viver folgadamente, em festas e alegrias, cercado de amigos e de mulheres.
            O tempo foi passando, e uma noite ele lembrou-se de que estava condenado às penas do inferno. Só se soubesse as doze palavras ditas e retornadas...
— Isso deve ser fácil — disse ele consigo. — Todo mundo deve saber.
            No dia seguinte perguntou aos amigos, aos vizinhos e a todos os moradores da cidade, e não havia quem soubesse o que vinha a ser o que ele lhes perguntava.
            O homem afligiu-se muito. Cada vez mais o tempo passava, e ninguém sabia o segredo das doze palavras ditas e retornadas. Largou ele a vida má que levava, fez penitência e saiu pelo mundo, perguntando. Todos diziam:
— Não sei, nunca ouvi falar...
            O homem só faltava morrer, com o pavor da ideia de ter de encontrar-se com o diabo e ser carregado para o fogo eterno.
            Já correra muito tempo desde que deixara o folguedo dos ricos, vestindo com modéstia e dando esmolas.
            Uma tarde, ia por um bosque na hora da "Ave-Maria". Ajoelhou-se para rezar, e ao terminar viu um velho que se aproximava dele.
            Cumprimentou-o, e foram andando juntos para a vila. Perguntou ao velho como ele se chamava.
— Chamo-me Custódio — respondeu.
            Para não deixar de perguntar, falou nas doze palavras ditas e retornadas. E o velho Custódio lhe disse:
— Eu sei as doze palavras ditas e retornadas.
            O homem ficou tão satisfeito que abraçou o velho, dando graças a Deus e dizendo que aquilo era um milagre do Anjo da Guarda, sua devoção antiga.
            — Como são as doze palavras ditas e retornadas? Qual é a primeira, amigo Custódio?
— Custódio, sim; amigo, não! A primeira palavra dita e retornada é a Santa Casa de Belém, onde nasceu Nosso Senhor Jesus Cristo, para nos remir e salvar.
            — E as duas palavras ditas e retornadas, amigo Custódio?
— Custódio, sim; amigo, não! As duas palavras ditas e retornadas são as duas tábuas de Moisés, em que Nosso Senhor pôs seus divinos pés, e a primeira é a Santa Casa de Belém.
            — E as três palavras ditas e retornadas, amigo Custódio?
— Custódio, sim; amigo não! As três palavras ditas e retornadas são as três pessoas da Santíssima Trindade, as duas são as duas tábuas de Moisés, e a primeira é a Santa Casa de Belém.
            — E as quatro palavras ditas e retornadas, amigo Custódio?
— Custódio, sim; amigo, não! As quatro palavras ditas e retornadas são os quatro evangelistas, as três são as pessoas da Santíssima Trindade, as duas são as tábuas de Moisés, e a primeira é a Santa Casa de Belém.
            — E as cinco palavras, amigo Custódio?
— Custódio, sim; amigo, não! As cinco palavras ditas e retornadas são as cinco chagas de Nosso Senhor.
            — E as seis palavras, amigo Custódio?
— Custódio, sim; amigo, não! As seis palavras ditas e retornadas são as seis velas bentas que estão no altar-mor de Jerusalém.
            — E as sete palavras, amigo Custódio?
— Custódio, sim; amigo, não! As sete palavras ditas e retornadas são os Sete Sacramentos.
            — E as oito palavras, amigo Custódio?
— Custódio, sim; amigo, não! As oito palavras ditas e retornadas são as oito bem-aventuranças pregadas por Nosso Senhor Jesus Cristo.
            — E as nove palavras, amigo Custódio?
— Custódio, sim; amigo, não! As nove palavras são os nove meses que a Virgem Mãe trouxe Nosso Senhor.
            — E as dez, amigo Custódio?
— Custódio, sim; amigo, não! As dez palavras ditas e retornadas são os Mandamentos da Lei de Deus.
— E as onze palavras, amigo Custódio?
— Custódio, sim; amigo, não! As onze palavras são as onze mil virgens.
            — E as doze, amigo Custódio?
— Custódio, sim; amigo, não! As doze palavras ditas e retornadas são os doze apóstolos, as onze são as onze mil virgens, as dez os Mandamentos, as nove os meses de Nossa Senhora, as oito as bem-aventuranças, as sete os Sacramentos, as seis as velas bentas, as cinco as chagas, as quatro os evangelistas, as três a Santíssima Trindade, as duas as tábuas de Moisés, a primeira a Santa Casa de Belém, onde nasceu quem nos salvou. Amém! Estas são as doze palavras ditas e retornadas.
            — De joelhos te agradeço, amigo Custódio, essa esmola, a qual há de salvar-me do demônio!
            — Custódio, sim, e teu amigo. Sou o Anjo da Guarda que vem perdoar-te pelo arrependimento e pela penitência.
            E sumiu-se. O homem, quando chegou o prazo para prestar contas ao diabo, disse as doze palavras ditas e retornadas, e o maldito rebentou como uma bola de fogo, espalhando cheiro de enxofre.
            O homem viveu santamente seus dias, e acabou na paz de Deus, salvando-se graças ao seu Anjo da Guarda.

Sunday 22 December 2013

Duas Histórias do Ladrão Gaião by Ruth Guimarães (in Portuguese)


            in Os filhos do medo. Porto Alegre, Editora Globo, 1950 (Coleção Autores Brasileiros, 34), p.33-35.

            Um homem não sabia a quem convidar para compadre de tantos filhos que já tinha.Quando nasceu o caçula, falou à mulher que convidaria até o diabo para padrinho do menino. Saiu e encontrou um homem muito bem apessoado. Convidou-o para compadre e ele aceitou.

            Depois do batizado, o padrinho carregou o afilhado. Ficou com ele sete anos. O pai ficou meio assustado, porque o padrinho nunca mais aparecia com o garoto e então veio a madrinha, que era Nossa Senhora, e se ofereceu para procurá-lo.

            Foi. O menino estava no inferno e o padrinho tinha lhe mostrado todos os quartos. Em cada quarto estava uma cama cheia de fogo. A cama onde havia mais labaredas estava separada das outras. O diabo falou: "Esta cama é para o maior ladrão do mundo. O ladrão Gaião".

            Nossa Senhora apareceu e levou o menino para a casa dos pais. Ele contou então que o padrinho era o diabo e contou tudo o que tinha visto no inferno.

            O ladrão Gaião soube e veio conversar com ele. "Menino, é verdade que você viu no inferno a cama cheia de labaredas que era para mim?" "Vi, sim. Meu padrinho é o diabo e me mostrou." Então o ladrão tornou a perguntar: "Você tem coragem?" "Tenho, sim." "Tem coragem de me cortar em pedacinhos?" "Tenho."

            Foram os dois para o meio do mato. O ladrão Gaião puxou uma faca e disse: "Vá me cortando em pedaços. Cada gemido ou cada grito que eu der, diga: 'Seja tudo pelo amor de Deus'."

            O garoto assim fez.Cortou o ladrão em pedacinhos. Quando ele gemia, o menino falava: "Seja tudo pelo amor de Deus!" Em vista do seu arrependimento e do seu martírio, Deus o perdoou e o grande ladrão foi para o céu.

            Acontece que no alto de um morro deserto morava um monge que fazia penitência. A vida que levava era tão agradável a Deus, que era servido pelos anjos. Estes lhe traziam o sustento de cada dia.

            No dia da morte do ladrão, o almoço demorou mais. "Vocês já ficaram brincando pelo caminho, outra vez?" ralhou quando os anjos chegaram. "Não, senhor. Hoje nos demoramos porque houve festa no céu. O senhor não soube da morte do ladrão Gaião? Pois ele se arrependeu do que fez e foi perdoado." O monge então falou:"Se o ladrão entrou no céu, quanto mais eu, que já em vida sou servido pelos anjos!"

            Só por isso, o monge se perdeu e a cama cheia de labaredas do inferno ficou para ele.
(Colhida no vale do Paraíba em 1940)
* * *
            O ladrão Gaião era o maior ladrão do mundo. E era atrevido, arrogante e perverso.

            Pois esse mau tinha um irmão que era um santo. Tão santo, que, em vida, já comia pela mão dos anjos. Todos os dias, nem bem dava meio-dia, vinham os anjos trazer-lhe maná do céu, para o seu sustento.

            Foi um dia, morreu uma criança sem batizar. Bateu no céu mas foi-lhe negada entrada. Mas tanto chorou, tanto pediu, que Deus ficou com muita pena e disse: "Tome este copo e volte à terra. Quando você o tiver enchido de água limpa, bem limpa, pode voltar que eu abro a porta".

            O menino saiu chorando e, em todas as fontes enchia o copo. Olhava-o contra o sol — a água estava suja. Então começou a clamar:

                                                              Hoje mesmo nasci
                                                              Hoje mesmo me criei
                                                              Hoje mesmo morri
                                                              Hoje mesmo me perdi

            O ladrão Gaião que estava sentado em cima de uma pedra escutou aquilo e pensou: "Se aquele que hoje mesmo nasceu e morreu, assim mesmo se perdeu, o que será de mim que sou tão pecador?"
         
         Começou a pensar nos seus crimes e teve um arrependimento tão profundo que chorou. O menino passou por ele e viu as lágrimas. Aparou-as com o copo. Quando o colocou diante da luz, estavam tão limpas que cintilavam. Louco de alegria, correu ao céu e pôde entrar.

            Nesse mesmo dia o ladrão morreu e também foi para o céu. E, com tudo isso, os anjos atrasaram o almoço do santo. Bateu meio-dia e nada de almoço. Bateu uma hora e nada. Lá pelas três horas vieram os anjos. O santo pergunto: "O que foi que vocês andaram fazendo no caminho, que só agora é que estão chegando?"

            Então os anjos contaram: "O senhor não sabe. Hoje houve festa no céu". "Por que?" "Porque o ladrão Gaião se arrependeu e salvou-se. Foi para o céu e nós fizemos uma festa." O santo teve um pequenino pensamento vaidoso. Um só e foi o bastante. Pensou: "Se o ladrão Gaião, que era tão pecador, se salvou, e eu então que já como pela mão dos anjos..."

            No outro dia, o santo esperou, e no outro, e, depois, no outro. Os anjos nunca mais lhe apareceram para trazer comida.
             (Contada pela mãe da autora)


Wednesday 4 September 2013

"O Bom Diabo" from "Histórias de Tia Nastácia" by Monteiro Lobato (in Portuguese)

XII
O Bom Diabo
      Houve um rei que tinha um filho de dezoito anos.
     "Meu filho — disse a rainha — é tempo de eu ler a tua sina" — e leu a sina do moço. Oh, bem triste! O moço tinha a sina de morrer enforcado. A rainha caiu numa grande tristeza, mas nada contou ao filho. "Que abatimento é esse, minha mãe?" — perguntava ele, e a rainha suspirava.
     Mas tanto ele insistiu com sua mãe para que lhe contasse a causa da tristeza, que ela contou.  "Meu filho, é que tua sina é morreres enforcado."
    O rapaz procurou consolá-la, dizendo que morrer todos morriam, e que tanto fazia morrer disto como daquilo. Mas já que sua sina era aquela, só desejava uma coisa: licença para correr mundo e ser enforcado longe dali, de modo que não desse maior desgosto aos seus. A rainha sentiu mas concedeu a licença pedida.
      No dia da partida o rei deu-lhe uma grande soma de dinheiro para a viagem — e lá se foi ele pelo mundo afora. Correu cidades e reinos, até que por fim chegou a um sítio onde havia uma capela de S. Miguel, com a imagem deste santo e a figura do diabo, mas tudo em ruínas. O príncipe parou ali, com a idéia de reconstruir a capelinha e restaurar as imagens.
      Chamou operários e pôs mãos à obra. Deixou tudo novinho em folha, uma beleza. Quando o pintor veio receber o seu dinheiro, contou que sobrara um pouco de tinta porque havia deixado de pintar a figura do diabo.
      — Por que o não pintou? Pinte o diabo também — ordenou o príncipe. E o pintor pintou o diabo.
      Concluída aquela tarefa, o príncipe continuou sua viagem pelo mundo. Certo dia foi dar à casa duma velha, à qual pediu pouso. Entrou, jantou, e depois começou a contar o dinheiro que ainda lhe restava. Vendo aquilo, a velha foi correndo dizer às autoridades que estava em sua casa um ladrão, contando o dinheiro que lhe havia roubado.
      Veio uma escolta, que prendeu o príncipe. Foi processado, julgado e condenado à morte na forca.  Mas no dia em que tinha de ser morto, lá na capelinha de S. Miguel o santo pôs-se a conversar com o diabo.
      — Então, estás agora bonito, hein diabo?
      — É verdade. Pintaram-me inteirinho.
      — E não sabes quem consertou esta capela e nos pintou?
      O diabo não sabia; o santo contou-lhe a história do príncipe que passara por ali, e disse mais que esse pobre moço fora preso, processado e julgado, e naquele mesmo dia ia ser erguido a uma forca por causa das intrigas de certa velha.
      O diabo não quis ouvir mais. Pulou num cavalo e foi voando à casa da velha; agarrou-a e levou-a ao rei, fazendo-a confessar toda a sua maquinação contra o moço. O rei deu ordens para que soltassem o preso e o trouxessem à sua presença.
      O diabo montou no cavalo e voou para a prisão onde o príncipe ia ser enforcado, e apresentou ao carrasco a ordem de soltura. O carrasco entregou-lhe o condenado, que lá se foi com o diabo para o palácio do rei.
      O rei indagou do príncipe quem era ele e de onde vinha. Sabendo de tudo, condenou a velha a restituir-lhe o dinheiro e a ir para a prisão em lugar dele. Terminado o caso, o moço partiu novamente a correr mundo.
      Pelo caminho encontrou um fidalgo, ao qual contou tudo.
      O fidalgo disse:
      — E não sabes quem te valeu?
      — Não sei de nada — respondeu o príncipe.
     — Pois fica sabendo que foi o diabo da capelinha de S. Miguel, e esse diabo sou eu. No dia em que iam enforcar-te S. Miguel me contou tudo. Montei num cavalo e voei à casa da velha; agarrei-a e levei-a ao rei, para que tudo se esclarecesse.
      — E a que devo eu tanta bondade? — perguntou o príncipe.
      — Ah! — exclamou o diabo, rindo-se. — Tudo deves àquele bocadinho de tinta que mandaste aplicar sobre minha figura. Agora estás livres da má sina, porque a velha vai ser enforcada em teu lugar. Podes voltar sossegadamente ao reino de teu pai, que nada mais te acontecerá.
      O príncipe assim fez. Antes, porém, voltou à capelinha de S. Miguel para agradecer ao bom santo — e enquanto rezava viu a figura do diabo muito contente da vida na sua pintura nova.
+++
      — Pois gostei! — gritou Emília. — Está aí uma historinha que descansa a gente daquelas repetições das outras. E mais que tudo gostei da camaradagem entre o santo e o diabo.
      — Sim — disse dona Benta. — Como os dois vivessem na mesma capela, sozinhos, acabaram em muito bons termos, como se vê na história. O diabo é o símbolo da maldade, mas até a maldade amansa quando em companhia da bondade. De viverem juntos ali na capelinha, o santo e o diabo se transformaram em amigos, e os bons sentimentos de um passaram para o outro.
      — Influência do meio! — gritou Pedrinho, que andava a ler Darwin.
      Narizinho confessou que gostava muito das histórias com o diabo dentro, e disse que todas elas confirmavam o dito popular de que o diabo não é tão feio como o pintam.
      — Credo! — exclamou tia Nastácia fazendo três benzeduras. — Como é que uma menina de boa educação tem coragem de dizer isso do canhoto?
      Narizinho arregalou os olhos.
      — Como? É boa! Pois você mesma não acaba de contar a história dum diabo bom?
      — Mas isso é história, menina. História é mentira. O "cão" é "cão". Não muda de ruindade.
      — Se o cão é cão, viva o diabo! — gritou Emília. — Não há animal melhor, nem mais nobre que o cão. Chamar ao diabo cão, é fazer-lhe o maior elogio possível.
      — Dona Benta — exclamou tia Nastácia horrorizada — tranque a boca dessas crianças. Estão ficando os maiores hereges deste mundo. Chegam até a defender o canhoto, credo!...
      — Olhe, Nastácia, se você conta mais três histórias de diabo como essa, até eu sou capaz de dar um viva ao canhoto — respondeu respondeu dona Benta.
      Tia Nastácia botou as mãos e pôs-se a rezar.