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Tuesday 12 October 2021

Tuesday's Serial: "Turbilhão" by Coelho Neto (in Portuguese) - the end

 Capítulo XVII

Habituada a viver entre valentes, homens atrevidos que não recuavam diante de perigo algum, achava desprezível o seu novo amante.

Percebera-lhe a fraqueza, o medo, e aborreceu-a. Lá fora estava o homem destemido, o capoeira apontado por todos como um herói. As suas façanhas eram célebres, os próprios companheiros respeitavam-no e, pensando nele, sentiu-se atraída. Deu d'ombros e, levantando-se, abriu resolutamente a janela e debruçou-se. Mamede avistou-a; sorriu, um sorriso mau, de ameaça. Ela fez-lhe sinal, chamando-o.

O mulato atravessou a rua, carrancudo, gingando e parou diante da janela:

— Que é que você quer?

Ela abriu a porta.

— Entra. Vem ver. Você pensa que estou de pagode, não é? Vem ver.

O mulato entrou.

— Lá não te disseram nada?

— A mim? Que haviam de dizer? resmungou.

— Pois eu pedi para te dizerem.

Sentou-se. Mamede, de pé, encostado à mesa, balançava a perna.

— Eu estava mesmo pensando em sair para procurar um cômodo, porque não podia mais com a amolação de seu Lisboa, que não me deixava a porta, quando seu Paulo me apareceu chorando, pedindo para eu vir para cá, fazer companhia à velha que estava nas últimas. Eu disse que estava devendo a casa, ele emprestou-me dinheiro, ofereceu-me um cômodo para guardar os meus trastes. Você não aparecia, eu vim. E estou aqui.

— Fazendo quarto? - troçou o mulato com ironia.

— Você não acredita; pois vem ver...

— Quero lá saber de histórias... Não pense você que eu vim aqui pelo faro. Mulheres, minha filha, isso é coisa que não falta. O que me arrancou do meu sossego foi o desaforo.

— Mas se eu estou dizendo a verdade, Mamede. Vem comigo.

Tomou-o pela manga do casaco, o mulato repeliu-a com um safanão.

— Sai! Você não vai com cachorro não sei por quê. Fica, eu vou-me embora, Eu só queria olhar essa cara. O outro não perde por esperar, só se eu não sou filho de minha mãe. Não pense você que eu tenho rabicho, o que eu tenho é vergonha, não engulo afronta. Vocês são todas umas vagabundas.

— Se você começa com má-criação eu vou-me embora.

— Pois vai! Quem te pega? Vai e diz ao menino que tome tento. Porcaria!

— Mas vem ver, rapaz. Deixa de estar dizendo desaforo à toa. Vem ver. Se for mentira minha...

Encaminhou-se para o corredor, ele resolveu-se a segui-la. Quando Paulo o viu aparecer no quarto ficou lívido e chegou-se tanto à cama, tão estabanadamente que o corpo da moribunda estremeceu. O mulato ficou espantado, a olhar, e ouvindo o estertor, meneou com a cabeça, compadecido. Paulo rompeu a chorar, nervoso, entre a angústia piedosa e o medo covarde.

— Tem paciência, nhozinho; consolou Mamede penalizado.

O rapaz desoprimiu-se e transbordou:

— Não imaginas como a coitada tem sofrido, Mamede. E eu só... Nem sei que seria de mim se não fosse Ritinha, tão boa. Ela já te disse, não? Pois foi, meu velho. Felícia fugiu, deixou-me só. Não tenho uma pessoa para ir avisar Violante.

Depois dum silêncio, ele falou lentamente, cedendo:

— Eu vou, nhozinho. Onde é? - Ele deu-lhe o endereço, foi buscar dinheiro. Fazia maior a aflição, deixando as lágrimas correrem livres, com soluços altos, muito humilhado de dor. Defendiase entrincheirado no desastre, opunha à fúria do mulato o corpo da agonizante e vencia, triunfava à custa da sofrimento. - Então vai e volta, vem ficar conosco. Não tenho cabeça para nada. Não demores... Nem sei se Violante ainda a encontrará com vida. Olha, passa primeiro pelo médico, aqui na Rua da Lapa; dize-lhe que ela está assim.

O mulato acenava com a cabeça. Saiu, Ritinha acompanhou-o e na sala, tomando-lhe a frente, sentindo-se justificada, exclamou:

— Então? Acreditas agora?

— Dá cá um fósforo.

Ela foi ao quarto, trouxe uma caixa de fósforos.

— É aí que você está dormindo? - perguntou ele chegando à porta e olhando o leito ainda desmanchado.

— Dormindo... É aqui que eu descanso; ninguém dorme nesta casa.

Acendeu vagarosamente o cigarro e tomando a chapéu:

— Bom, vou ver a menina.

A mulata prendeu-o, com um grande desejo dele, contorcendo-se de volúpia, mole, a entregar-se. Ele afastou-a:

— Deixa disso, criatura. Você está maluca?

Abriu a porta e saiu. Com as pernas bambas, nervosa, irritada, vibrando, ela deixou-se cair em uma cadeira e, quando sentiu os passos de Paulo, nem forças teve para levantar a cabeça derreada no espaldar. O rapaz fez um sinal interrogativo.

— Foi-se embora, - disse ela molemente, com os olhos amortecidos.

— E então?

Ela sorriu. Os seus lábios úmidos reluziam, o peito arfava em ansioso desejo.

Estendeu languidamente os braços, deixando-se escorregar na cadeira. Paulo olhava-a sem compreender, atônito, d'olhos muito abertos. Ela sussurrou um apelo, retorcendo-se como um vime ao fogo, a remorder os lábios, cerrando os olhos lacrimosos. Súbito, como o pássaro atraído pela serpe, ele caiu-lhe nos braços.

 

 

Capítulo XVIII

Quando Paulo tornou ao quarto a moribunda arquejava em agonia maior, respirando a espaços, ficava longo tempo imóvel, como se já houvesse acabado; de repente, porém, abria-se-lhe a boca imensa e o ar entrava de raspão como se fosse rompendo passagem. Ritinha chegou-se ao leito e ficou contemplando a velha, cuja fisionomia cavava-se com a angústia.

Apalpou-a, sentiu-a fria até o ventre - era a morte que começava a subir. Súbito abriram-se-lhe dilatadamente as olhos vítreos, assombrados e fitos. Os dois recuaram, um estremecimento sacudiu-a toda. Os braços enrijaram-se, a cabeça soergueu-se de leve, um gargarejo rolou no fundo da garganta, as pálpebras tremeram.

Ritinha pôs-lhe a vela na mão. Paulo ajoelhou-se soluçando. Fecharam-se-lhe os olhos e ficou imóvel. Ele ainda esperou ouvir o estertor angustioso, mas a morte passara - aquele fora o último olhar à vida, cheio de agonia, cheio de saudade, talvez de queixas, antes de apagar-se para todo o sempre na eterna sombra da morte.

— Então, Ritinha?

— Acabou. Deus a tenha!

— Coitada de minha mãe!

A mulata apalpou o peito procurando sentir o coração - todo o movimento cessara.

— Paciência, disse: Está no céu.

Ele saiu do quarto soluçando, atirou-se à rede e ali ficou, sem coragem, numa prostração invencível, recordando, com remorso, as cenas das últimas noites: "Coitada! Quem sabe se não foi o desgosto que a acabou mais depressa? Fiz mal! Devia ter esperado um pouco. Ela era tão boa, coitada!" Sentiu, então, um grande vazio, achou-se só, sem um afeto sincero, nas ruínas da casa. Foi, dia novo, ao quarto e, sentando-se na cama, a olhar a morta, pensou que não fizera o bastante para salvá-la. Esquecera-a, deixara-a acabar sem os necessários cuidados. Pobre velha! Tomou-lhe a mão, beijou-a repetidas vezes e baixinho, pedia perdão, desculpava-se: "Minha pobre mãe! Minha mãezinha... tão boa...!" Quando Mamede chegou perguntando se o médico já viera, Ritinha deu-lhe a notícia.

— Coitada da velha! A menina disse que só pode vir mais tarde. Estava lá de troça com uns moços. E nhozinho?

A mulata fê-lo entrar. Paulo recebeu-o soluçando, abraçaram-se

— Tenha coragem, nhozinho. Vosmecê é homem. Descansou, coitada. Coragem! Eu fico aqui para ajudar no que for preciso. Sou seu amigo, nhozinho. Tenha paciência. Conforme-se com a vontade de Deus.

A vizinha, sabendo que a velha havia morrido, apareceu, muito enternecida, lamuriando. A mulata levou-a ao quarto. Ficaram as duas diante do cadáver, em contemplação silenciosa. Paulo chegava à porta, olhava e retrocedia chorando.

A vizinha ofereceu-se para ajudar a vestir o corpo. Foi um devassar de móveis: armários abertos, canastras revolvidas à procura de roupa; camisas, saias, um vestido decente. E os linhos puídos, remendados, tresandando a ervas, empilhavam-se aos pés da cama sobre retalhos, restos de rendas, pedaços de fitas. Paulo lembrou um velho vestido de merinó preto; acharam-no, e os dois homens passaram à sala da frente enquanto as mulheres, abrindo de par em par as portas do quarto compunham o cadáver.

Quando reapareceram, Mamede propôs trazerem o corpo para a sala. Arranjaram a mesa colocando-lhe em cima duas tábuas e foram buscar o cadáver. Mamede saiu a comprar velas, acendeu-as e reuniram-se na sala. Paulo, sucumbido, suspirava de quando em quando. Ninguém ousava falar; foi a vizinha quem quebrou o silêncio para elogiar a finada:

— Nem parecia que morava gente aqui. A não ser o falatório da preta no quintal, era um silêncio completo. Boa criatura.

E referiu-se à família que anteriormente habitara a casa - um casal e dois filhos. Eram brigas desde que amanhecia e as crianças insuportáveis, muito atrevidas, sempre esmolambadas, sujas, trepadas no muro, atirando pedras, dizendo obscenidades. Deixaram a casa como um chiqueiro.

Mamede interveio. Falou dos bons tempos da velha, da sua beleza, da sua vida feliz em companhia do marido e, pouco a pouco, estabelecendo-se intimidade, conversaram; o próprio Paulo chegou-se ao grupo e falaram de tudo - da carestia da vida, dos crimes que os jornais referiam, das moléstias que devastavam. A vizinha, sem reservas, disse à Ritinha, não tão baixo que não pudesse ser ouvida dos homens:

— Eu, por mim, prefiro ficar sem um pedaço de pão para o dia seguinte, mas gente que eu não conheça não me dorme em casa. Ninguém sabe se o homem que se recebe é uma pessoa de bem ou um assassino. Deus me livre! Eu não! Os malfeitores não trazem sinal. Eu vejo o que se passa por aí, nos pontos mais freqüentados. Mesmo de dia não há segurança, quanto mais de noite e numa rua deserta como esta. Entram, fazem o que muito bem querem e saem muito frescos.

Ritinha concordou.

Ao cair da tarde Paulo chamou Mamede, deu-lhe dinheiro, pediu que fosse a um hotel encomendar alguma coisa. O mulato saiu. Pouco a pouco a tristeza foi-se desvanecendo. Ritinha convidou a mulher a entrar e, já íntimas, conversavam sobre Violante. A mulher vira-a na noite da visita.

— É a filha da velha?

— É.

— Mas, pelos modos, é moça da vida?

— Saiu de casa. E foi isso que matou mais depressa a pobre de Deus.

— Bonita?

— Dizem que sim. Eu ainda não a vi.

— Com quem vive?

— Não sei.

— Com certeza vem hoje cá. Já sabe?

— Sabe. Mamede foi lá.

— Onde mora?

— Em Botafogo.

— Também já morei lá.

— A senhora?

— Sim. Morei lá com um doutor. Isto é: tive casa, ele vivia com a família, ia só à noite. Morreu e eu fui obrigada a cair nesta vida de receber todo o mundo. É o fim de todas.

— Infelizmente! - suspirou Ritinha.

 

 

Capítulo XIX

Ao jantar Paulo insistiu com a mulher para que ficasse. Sentaram-se à mesa. O corpo ficou solitário na sala, entre as quatro velas, com Cristo à cabeceira.

Mamede fez pilhéria a propósito de um guisado de miolos: "Não, o que tinha na cabeça bastava, não queria mais..." e afastou, com repugnância, para a borda do prato, a porção que lhe haviam servido. E foi pretexto para que todos falassem de comidas, expondo, cada qual, os seus gostos.

Paulo apenas defendeu a cozinha francesa, mais saborosa e mais delicada. E reprovou a mania do empanturramento que caracteriza o brasileiro: um nunca acabar de pratos, tudo a esfriar. Perde-se até a vontade de comer.

— História, nhozinho. A gente vê logo tudo, come do que gosta. Eu não tenho paciência para estar esperando e quando vem a comida é um nadinha, no fundo do prato; é preciso a gente ter boa vista para enxergar um bife. Não há como a nossa mesa, deixe falar. Isso de francês pode ser muito bonito, mas ninguém come com os olhos. A moda é para a roupa, agora para o que diz com a barriga prefiro os costumes da nossa terra.

— Pois eu não.

— Ah! vosmecê é moço elegante.

A vizinha pensava como Mamede. "Nada de luxos. Comer é comer. Isso de pasteizinhos, saladinhas, não era com ela."

Escurecia. Mamede acendeu o gás. Só, então, lembraram-se da finada. Paulo propôs que o café fosse tomado na sala para que o corpo não ficasse sozinho. Ritinha, a pretexto de medo, pediu à vizinha que a acompanhasse.

— Não sou medrosa, mas hoje não que tenho - estou só vendo coisas, só ouvindo estalos. Parece que vou encontrar a maluca lá perto do fogão resmungando.

— Pois eu fico com a senhora.

— É favor. - E foram as duas para a cozinha.

Violante chegou às nove horas da noite, de carro. Ao entrar, vendo o cadáver hirto, de negro, as mãos enclavinhadas ao peito entre as quatro velas, ficou atarantada, a olhar para um e para outro. De repente, com um grito, arremessou-se para o corpo e derrubada sobre o peito, já rígido, da defunta, os braços molemente atirados, gania estorcegando-se, aos surdos arquejos trágicos, chamando a mãe em altas vozes. Um homem apareceu à porta, pedindo licença, muito cortês. Todo de flanela clara, botinas brancas, gravata frouxa com as pontas soltas, esvoaçando: deteve-se cerimonioso.

Já as duas mulheres, com muita meiguice, procuravam arredar Violante, cujos gritos longos, percucientes, vibravam. Levaram-na em braços para o quarto do irmão, deitaram-na, afrouxaram-lhe as roupas. Ela debatia-se, esperneava, escabujava rolando, a rilhar os dentes com um ofego d'agonia.

O homem, perplexo, torcia nervosamente os bigodes; sentindo, porém, a porta abrir-se com o vento logo a fechou, receoso de que o vissem da rua e, mais calmo, dirigindo-se a Paulo que o rondava, suspirando e limpando lágrimas, perguntou com interesse:

— Como foi?

O rapaz, com a voz sacolejada, descreveu a morte, toda a agonia da infeliz, lamentando a grande perda, a sua solidão no mundo. De repente, porém, a um grito mais agudo da irmã, notando que o homem afligia-se, franqueou-lhe o quarto:

— Entre, sem cerimônia. Minha pobre mãe!... - e precedeu-o, afastou-se escancarando a porta.

O homem agradeceu e, chegando-se ao leito, inclinou-se sobre Violante, chamando-a. As duas mulheres arredaram-se e Mamede, muito solícito, impondose, perguntou - "Se queriam alguma coisa da botica. Ia num pulo." O homem tranqüilizou-o:

— Isto passa, e sentou-se à beira da cama, afagando Violante, enxugando-lhe o rosto.

Houve um momento de calma, ela pareceu haver adormecido. De repente, porém, rompeu a chorar e todos desabafaram: "Agora sim. Era disso que ela precisava." E, discretamente, retiraram-se, deixando-a só com o irmão e o amante.

Quando ela recobrou os sentidos, quis ver a mãe, o homem opôs-se:

— Tem tempo. Estás muito nervosa. Descansa.

Ela, então, indagou como fora; e ao irmão:

— Por que não me mandaste dizer que ela estava tão mal? Coitada de mamãe! A que horas foi? E o enterro?

O amante consolou-a:

— Não te preocupes, há de arranjar-se tudo à tua vontade.

Paulo esmoía desculpas, muito humilde.

Só muito tarde, providencialmente, Mamede aparecera. Não tinha uma pessoa para mandar - estavam os dois sós, acompanhando-a - ele e aquela moça; a vizinha chegara depois. Demais, fora tudo tão rápido. Ainda na véspera ela conversara até tarde, muito calma; até pedira café. Uma coisa inexplicável!... e passeava arrepelando-se. Vendo, porém, que o homem sentava-se à beira da cama, oferecendo o ombro para que Violante repousasse a cabeça, retirou-se. Chegando-se, então, ao cadáver, descobriu-lhe o rosto, inclinou-se com o cotovelo fincado na tábua, a fronte nas mãos, e ficou numa atitude desolada, imóvel, como pesando para uma alegoria fúnebre.

Quando Violante reapareceu todos se puseram de pé, olhando-a. Ela caminhou vagarosamente e, diante da mesa, com as lágrimas nos olhos, ficou esquecida, em contemplativa mudez. Paulo fitou-a e disse surdamente:

— Estamos sem mãe, Violante.

Mas o homem passou por ele, tocou-lhe de leve no braço.

— Dê-me o atestado, eu encarrego-me de tudo. O senhor, no estado em que está... Basta que vá à pretoria, é perto. - E, referindo-se à Violante: É melhor distraí-la. Vamos levá-la lá para dentro.

Ele concordou:

— Como queira; - e foi oferecer-lhe o braço.

Ritinha lembrou o café, era necessário para passarem a noite.

As dez horas o homem retirou-se. Violante acompanhou-o à porta, segredou muito tempo sobre o enterro, coroas, um vestido para mudar. E ele, afagando-a, desculpou-se:

— Bem sabes que não posso ficar contigo...

— Já fazes muito, meu velho. Vai, e não te esqueças. O vestido preto, sabes?

— Sei. Até amanhã. Cedo estou aqui. E descansa.

— Até amanhã.

— Até amanhã. - E, ao entrar no carro: Linda noite, hem?

— É verdade.

O homem fizera sensação. Quando, depois do café, de novo reuniram-se para a vigília, Violante tomou-se o alvo de todas as atenções.

Sentada no sofá, muito quieta, mal respondendo às palavras do irmão, que referia pormenoes tristes, de quando em quando suspirava. As duas mulheres, muito juntas, cochichavam.

Mamede passeava ao longo da sala, parando de instante a instante junto à mesa para espevitar uma das velas ou arranjar uma dobra do vestido da finada. A rua caíra em silêncio, o próprio mar parecia dormir.

Na pequena sala, nublada de fumo, tresandando a cera, o calor sufocava. Mamede ousou propor abrir uma janela.

— Não é melhor?

Paulo consultou a irmã.

— Que achas?

Ela encolheu os ombros:

— Se quiserem...

Logo o mulato escancarou as janelas. Uma lufada de ar entrou curvando as compridas chamas das velas e enfiou pelo corredor levando papéis esparsos.

Dentro uma porta bateu com estrondo.

 

 

Capítulo XX

Noite admiravel. Nas aguas mansas da bahia o luar alastrava em esteira trémula. Vultos negros de navios destacavam-se na sombra, com as lanternas altas, visinhas das estrellas. Na fortaleza luziam fócos opalescentes; longe estendia-se a illuminação do littoral fronteiro. Um barco, todo negro, as velas abertas, deslisava. De repente entrou na zona illuminada e resplandeceu. Raro em raro um bonde passava com rumor; apitos trillavam e o murmurio da onda na praia era suave como um respirar tranquillo. As velas crepitavam e, como o silencio se fosse tornando incommodo, o mulato, mais ousado, rompeu-o:

— E é assim. A gente vai indo... Quem diria!... Parece que foi hontem que vosmecês nasceram. Eu ainda estou vendo NháViolante de vestido curto, puxando estica com nhôsinho por causa de brinquedos. Nem vosmecês se lembram. Também eram tão pequeninos. E ela, coitada! contendo um, contendo outro, para não brigarem. Parece que foi ontem.

Violante ouvia com a cabeça inclinada ao ombro. Paulo falou lentamente:

— Tu nem te lembravas do Mamede, hem, Violante?

Ela fitou os olhos no mulato e murmurou:

— Lembrava-me.

— Qual! Estou velho.

— Nem por isso.

— Nem por isso? É porque vosmecê está me vendo de noite. - E, passando a mão na poupa da gaforinha: Cabelo branco aqui é mato. Vosmecê sim, é que está uma mocetona de pancas! Eu hoje, quando dei com vosmecê, palavra! até duvidei...

— Querias encontrar-me ainda de vestido curto, brincando com bonecas?

— Uai! Nhazinha, a gente fica com as pessoas no coração. Eu, quando falava em vosmecê, só via a menina que conheci no tempo do velho. De repente sai diante de mim um pedaço de moça, quase da minha altura. Fiquei tonto, palavra.

— E que faz você, Mamede?

— Eu Nhazinha? por aqui, cachimbando tristezas. Nem todo o mundo é feliz como vosmecê.

— Feliz, hem? Achas que sou feliz...

— Uai? Que mais então?

— Cada um sabe de si e Deus de todos.

— Isso é que é verdade! - sentenciou a vizinha.

E a conversa generalizou-se. Pouco a pouco a morta foi-se tornando esquecida. Entretidos com a palestra, só de quando em quando um ou outro lançava os olhos para o seu lado a ver se havia necessidade de cortar um morrão às velas ou de arranjar o lenço que o vento, por vezes, levantava.

Um carro parou à porta e a criada de Violante desceu com um embrulho - era o vestido que ela pedira ao amante.

— A senhora precisa de mim?

— Não, podes ir. Vai e vê lá aquilo...

E levava a criada, como que a expulsava para que não tivesse tempo de ver a pobreza de onde ela saíra, a casa dos seus e, como a rapariga levantasse piedosamente o lenço que encobria o rosto da finada, ela pareceu envergonhar-se da própria morta e despachou-a mais apressada: Vai!

— Deus lhe dê o reino do céu.

— Amém, - sussurraram as duas mulheres.

Já na rua a criada ainda perguntou:

— E é só?

— Só.

— Boa noite!

E o carro partiu com estrépito na rua calada e deserta.

Violante não resistiu à fadiga e adormeceu recostada ao sofá. Mamede, a pretexto de arranjar cigarros, saiu. Paulo rondava o cadáver, mas como a mulata fosse ao interior da casa, seguiu-a disfarçadamente deixando a vizinha de guarda ao corpo. Quando Ritinha o sentiu voltou-se.

— Que é que o senhor vem buscar atrás de mim?

— Você fica comigo ou não? - interpelou sem preâmbulos.

— Sei lá! Mas agora é que o senhor quer tratar disso? Vá para a sala. Temos muito tempo.

— Não, eu quero que tudo fique decidido já. Mamede está aí, ele há de querer continuar contigo e eu não estou disposto. Escolhe: ou ele ou eu.

— Já disse que temos muito tempo.

— Não, não!

A mulata quis passar, ele tomou4he a frente:

— Hás de dizer...

— Oh! meu Deus! que homem! Pois o senhor nem respeita o corpo de sua mãe!?

— Que tem uma coisa com outra? Tu o que queres é fugir do assunto, mas eu não sou tolo.

Ameigando-se sussurrou:

— Somos agora nós dois, és a dona da casa, senhora de tudo. Eu quero resolver a minha vida. - se ficas comigo, continuo aqui, se não vendo tudo isto e tomo um quarto.

— Pois deixe a casa como está.

— Ficas comigo?

— Fico.

— Então sim. E Mamede? Como há de ser?

— Como há de ser...?! Eu digo que não quero mais saber de estalagem, que estou muito bem. Isso fica por minha conta. Mas vá lá para a sala - sua irmã pode acordar e essa mulher do lado tem uma língua muito comprida.

Verdadeiramente Ritinha hesitava entre os dois homens - um atraía-a pela vida aventurosa, de ousadia e troça: sentia-o forte e lembrava-se, com saudade, dos dias felizes que passara com ele quando, com um pouco de dinheiro, entrava a alegria em casa. Tinha orgulho em ser dele, um valente de fama, chefe de malta temido. O outro era um fraco, mas dispunha de recursos, podia garantir-lhe a tranqüilidade e adorava-a. Precisava cuidar de si... Depois, se tivesse um capricho, que custava? Não fora amante de Paulo enquanto vivera com o Mamede?

O mulato não a estimava. Se a estimasse não teria procedido como procedera. Um brigador como ele que, por qualquer coisa, puxava a navalha, depois de tanto rondar a casa... nem nada. Prosa! E a mulata sentia-se melindrada com a submissão do amante - preferia, talvez, que ele a houvesse maltratado, ferido, ameaçado com armas àquela quieta, resignada condescendência com que se portara. Assim, que se arranjasse...

Quando tornou à sala Violante, que despertara, estava à janela olhando o mar, tremulamente de luzes. Paulo contemplava o corpo e a vizinha, acaçapada na cadeira, a cabeça descaída, a boca aberta, dormia com um silvo nasal.

À hora do enterro, quando fecharam o caixão, Violante, que se vestira de preto, um rico vestido de gorgorão, rebrilhante de vidrilhos, teve uma crise de lágrimas beijando desesperadamente a face lívida, as mãos engelhadas da finada.

A vizinha arranjava as flores, a mulata ainda compunha o vestido ruço acomodando-o. Mamede apanhava as duas coroas, uma pobre, de flores de pano, lembrança de Paulo; outra, que viera com o caixão, de biscuit, com largas fitas roxas onde, em letras de ouro, a filha mandara colar a sua "saudade eterna", quando o homem da véspera, todo de preto, saltou de um coupé e entrou com liberdade, indo direito a Violante.

Tanto que ela o sentiu, logo calou os gemidos e, erguendo a linda face, perguntou tristemente:

— Veio o carro?

— Está aí. - E baixinho, com meiguice: Então? Está a teu gosto?

Ela lançou um olhar ao caixão que Mamede ia fechando:

— Muito bom. Não sei como te hei de agradecer tanta bondade. - E olharam-se com ternura.

— Eu queria acompanhar, mas... É a minha hora de trabalho, depois... - e sorriu, um triste sorriso em que havia a leve sombra de uma contrariedade.

— Oh! já fizeste tanto...

Todos esperavam por eles e olhavam imóveis, calados. Paulo, por fim, adiantou-se:

— Vamos, Violante? Ela pôs-se de pé, choramigando, com o lenço nos olhos. Mamede saíra à porta e dois homens entraram para ajudar a levar o caixão. Paulo, atarantado, voltou e estendendo a mão à irmã: Esperas aqui?

— Não, estou com muita dor de cabeça.

— Então, adeus.

Abraçaram-se longamente.

— E aparece, Paulo. Vai lá.

O homem corroborou:

— Quando quiser. Tem uma casa às ordens. Sem cerimônia.

Ele agradeceu comovido e, como passasse perto de Ritinha, que retirava os castiçais da mesa, sussurrou:

— Até logo. Olhou em torno, apressado, procurando alguém: Que é da senhora?

— Já foi... - disse Ritinha.

— Então até à volta.

E, chamando Mamede, meteu-se com ele no único carro que havia para acompanhar o enterro. E o féretro partiu.

Violante lançou um derradeiro olhar à casa, e pondo o chapéu ao acaso, falou à Ritinha:

— Fica aí um vestido meu. Mando-o buscar logo mais.

E saiu apressada, como a fugir daquela miséria onde a morte deixara o seu fortum funéreo, feito dum misto de aroma de flores fanadas e do cheiro aborrecido das velas de cera. O homem despediu-se dela à porta do coupé que partiu. A mulata ficou a remorder-se de fúria, abriu a janela e explodiu:

— Grosseirona! Quem sabe se eu sou criada! Uma vagabunda e tão cheia de empáfia. Comigo não!

A vizinha apareceu à janela e a mulata desabafou:

— A senhora já viu? A tal sujeitinha. .. Nem para agradecer o que fiz pela mãe... como se eu tivesse obrigação.

— Já foi?

— Já, com o amigo.

— Ah! minha senhora, essa gente... Enquanto está por cima é assim: presunção até o diabo dizer basta! Mas também dura pouco. Eu é que nunca fui orgulhosa.

Calou-se, como recolhida às recordações do seu tempo de fastígio. De repente, tomando ao acaso:

— E a senhora pensa que ela sentiu alguma coisa? tudo fingimento.

— Isso sei eu... Pois não vi?!

— A pobre da velha é que se foi, coitada!

— Ora, antes assim... Está com Deus.

Depois de um silêncio a vizinha, lançando os olhos ao céu azul, ao mar luminoso, disse extasiada:

— E foi com um dia lindo!

— Muito bonito!

Calaram-se, d'olhos alongados, contemplando o mar azul palhetado de sol. Foi a mulata que interrompeu o êxtase:

— Bom, até logo. Vou varrer e defumar a casa para acabar com este cheiro de morte.

— É sim, confirmou a outra. Até logo.

E despediram-se risonhas, com adeusinhos íntimos.

Tuesday 5 October 2021

Tuesday's Serial: "Turbilhão" by Coelho Neto (in Portuguese) - XI

Capítulo XIV

Paulo estava à janela quando uma carrocinha de mão parou à porta. O carroceiro adiantou-se e ele, antes que o homem falasse, disse: "É aqui mesmo." Era a bagagem de Ritinha: um baú de couro, uma pequena lata, dois caixotes e a gaiola do canário que esvoaçava, assustado. Justamente o carroceiro arrastava a baú pesado, tombando-o sobre a calçada, quando a mulata apareceu risonha. Paulo recebeu-a e, dizendo ao carroceiro que deixasse tudo na sala, levou-a para o sofá. Ela queixou-se de cansaço.

— Vieste a pé?

— Não, vim de bonde até o Largo da Lapa, mas de lá toquei-me numa batida até aqui e com este calor... E sua mãe?

— Está lá dentro. Nós precisamos conversar. Deixa o homem acabar o serviço. Temos uma combinaçãozinha. - E, voltando-se para o carroceiro, que deixara a gaiola a um canto: Pronto?

— Sim, senhor.

— Ajustaste? perguntou à Ritinha.

Ela disse-lhe o preço. Pagou, fechou a porta e tornou ao sofá sentando-se muito chegado à mulata que parecia examinar a sala, escura àquela hora da tarde.

— Ouve, eu falei à mamãe: disse-lhe que vinhas a mandado do Mamede. Tendo-lhe eu dito que ela estava sem uma pessoa de confiança em casa, ele fez questão de que viesses para tratá-la. Dormes no meu quarto, eu vou lá para dentro... Isto é só nas primeiras dias, já se vê; depois... fica por minha conta. - E beijou-a. - Agora vamos lá, quero apresentar-te á velha. Hás de gostar dela.

Ritinha estava receosa, e, no sofá, retorcendo o lenço, parecia meditar.

— Anda!

— Olhe lá! Veja bem o que vai fazer...!

— Não tenhas medo. Deixa de tolice. Mamãe está doente, não se levanta. Anda.

— Se ela me disser alguma coisa eu volto, vou-me embora. Isso tão certo...

— Ora... Vamos.

A mulata levantou-se e foram juntos pelo corredor escuro. Paulo acendeu o gás na sala de jantar e, chegando à porta da quarto, anunciou:

— Mamãe, está aqui a moça de que lhe falei. Ela pode entrar? A velha desculpou-se:

— Oh! meu filho, isto está num desarranjo... nem foi varrido. Pede desculpa.

— Ela sabe, mamãe.

— Não sou de cerimônia, - disse Ritinha já no quarto.

A luz da lamparina mal aclarava uma parte do aposento. A enferma sentou-se na cama e procurou ver a mulata que se adiantava, estendendo a mão. Houve um momento de travado silêncio - as duas mulheres pareciam examinar-se. Por fim Dona Júlia falou tranqüilizada, como se a fisionomia de Ritinha a houvesse serenado:

— É ainda muita mocinha.

— É o que parece. Então que é isso?

— Eu sei, minha filha?! Estou fazendo horas para seguir o meu destino. E queira Deus que não demore porque já estou cansada de sofrer.

— Qual! a senhora fica boa. Eu estou aqui para o que for preciso. Não valho muito, mas os meus préstimos ficam às suas ordens. Antes mesmo de Mamede me falar eu já tinha dito a seu filho que, se fosse preciso...

— Obrigada. Nem sei como a senhora vai se arranjar nesta barafunda. Isso lá por fora está que é uma vergonha. Eu imagino! A nossa criada, coitada! lá está na cozinha gemendo, gritando.

— Ainda!

— Ora!

— Se eu digo à mamãe que o melhor é pedir que a mandem tirar daqui...

— Tenho pena... - E tomando à Ritinha: A senhora compreende, foi uma criatura que sempre nos acompanhou com a maior dedicação, muita amiga de todos. Teve a infelicidade de ficar assim e eu, francamente, não tenho coração para tocá-la de casa.

— Aqui é que ela não pode ficar, mamãe. É impossível. Não há tanta gente boa no Hospício? Aquilo não é um presídio, é uma casa de caridade.

— Sim, mas a gente sempre tem pena. Enfim, tu é que sabes. Eu não digo nada.

Paulo convidou Ritinha para ver o quarto, ela devia querer ficar a gosto.

Levou-a à sala e, ligeiramente, atirando-lhe os braços ao pescoço, rosto contra rosto, perguntou:

— Então?

— Parece uma boa criatura.

E na sombra uniram as bocas demoradamente.

Instalando-se no quarto de Paulo, Ritinha pôs-se logo à vontade e, cheia de solicitude, muito carinhosa com a enferma, insistiu com ela para que tomasse alguma coisa: um pouco de chá, ao menos.

Dona Júlia cedeu ao carinho e a mulata entrou na despensa, acompanhada de Paulo, que fazia empenho em que ela tudo visse. Abria latas, pacotes, com uma grande vaidade de dono de casa a exibir a abundância. Foram à cozinha. A um canto, encolhida, Felícia resmungava como um animal medroso. Os seus olhos luziam na sombra, de quando em quando um suspiro subia-lhe do peito. Arrepanhava os molambos, fazia-se humilde, chegava-se à parede como se procurasse refúgio.

— Esta é que é a maluca? - perguntou Ritinha inclinando-se, com a vela muito chegada ao rosto da negra.

— É. Um diabo que só nos dá trabalho. É até capaz de morrer aqui. Não come, nem sei como vive. A noite é um horror.

— Coitada!

— Coitada!? Hás de ver logo mais: grita, sapateia, chora.

Ritinha pôs-se a acender o fogo juntando gravetos, Paulo ajudava e, passando por ela, sem importar-se com a louca que os olhava, beliscava-a, atirava-lhe beijos à nuca, emprazando-a para a noite alta, quando a velha dormisse.

— Olhe lá! não comece com imprudências. Eu não quero histórias comigo.

— Quê! pensas que eu hei de dormir sozinho tendo-te aqui em casa, minha, minha só?...

Num frenesi lúbrico agarrou-a, levantou-a nos braços e a sombra dos dois corpos enlaçados tremia nos muros negros da cozinha fuliginosa. Felícia foi-se arrastando, meteu-se debaixo da pia, sem sentir a umidade, ficou a olhar assombrada. Dona Júlia chamou:

— Paulo!

— Senhora!

— Dá-me um bocadinho d'água.

Ele foi pronto em servi-la. Depois de beber, a enferma perguntou:

— Que estás fazendo lá dentro?

— Fui mostrar a despensa, a cozinha.

Sentou-se e, meigo, perguntou:

— Então, que lhe parece?

A velha não respondeu; ele continuou:

— É uma excelente criatura e a senhora não imagina o que ela sofre do Mamede.

— Por quê?

— Ora! Não lhe dá vintém. Tudo quanto ganha é para o jogo; e ela, a bem dizer, quem sustenta a casa com o que faz lavando e engomando. A senhora há de gostar dela. Eu já lhe disse que vou tomar uma criada para o serviço pesado. Ela fica apenas para fazer-lhe companhia.

— E Violante? perguntou Dona Júlia.

— Que tem?

— Não tens tido notícias?

— Não. Talvez vá vê-la amanhã. Quer que ela venha cá?

— Sinto-me tão mal, esta falta de ar...

— Isso passa. É questão de dias. Foi uma felicidade acharmos esta moça, porque a senhora não imagina como ando agora cheio de trabalho. Se for feliz, como espero, em certos negócios em que me meti, talvez faça exame em março. Tudo depende de tranqüilidade.

Ritinha apareceu à porta perguntando onde estava o pão. Paulo precipitou-se, abriu o guarda-comida, solícito:

— Quer umas torradas, mamãe?

— Umas duas, não tenho fome.

A mulata tornou à cozinha. Pouco depois aparecia com a bandeja e, acendendo o gás no quarto, ficaram os dois juntos à enferma, vendo-a comer, animando-a. Distraíram-se em conversa. Ritinha a falar de uma moléstia que também a martirizara durante meses. Andara nas mãos de um bando de médicos e ficara boa com remédios caseiros.

— A gente não acredita, mas a verdade é que não é um caso nem dois, quantos!?

— Mas a minha moléstia não tem cura. Não imagina como estou inchada e esta aflição que me mata. As vezes, de noite, fico sem ar, levanto-me, abro as janelas. É uma agonia que só Deus sabe! Dizem que é o coração, não sei.

Palmas estrondaram na sala. Paulo saiu precipitadamente do quarto e, chegando ao corredor, viu a porta da rua escancarada e um vulto branco de pé no limiar: era a vizinha.

— A sua criada saiu correndo e deixou a porta aberta. Foi lá para baixo, atirando murros, desesperada.

— Há muito tempo?

— Não, senhor. Agora mesmo. Parece que ela não está muito boa da cabeça.

— Está perdida. Nós conservamo-la aqui por pena.

— Vai por aí à toa. São até capazes de prendê-la.

— Isso com certeza.

— Bom. Boa noite.

— Muito obrigado. Entrou, fechou a porta, exclamando: Melhor! Reaparecendo no quarto, deu logo a notícia de chofre: Felícia fugiu.

— Como? perguntou a enferma, emocionada.

— Sei lá. Foi a vizinha que bateu, porque a maluca deixou a porta escancarada.

— E agora, meu filho! - exclamou Dona Júlia de mãos postas.

— Agora o quê, mamãe?

— Que há de ser dela?

— Sei lá. Eu é que não me vou cansar por aí atrás de doidos. Foi melhor assim. Tinha de sair mesmo, se havia de ser com escândalo, à força, foi melhor assim. Acham-na, levam-na à polícia, mandam-na para o Hospício e está tudo acabado.

— Pobre coitada! - suspirou Dona Júlia e, voltando-se para Ritinha, murmurou: Filhos, vê a senhora? é o que eles fazem. Era uma criatura excelente, não imagina. Veio para aqui e, duma hora para outra, virou a cabeça. Deus tenha pena dela.

— Mas não se incomode. Que se há de fazer? Trate de descansar.

A velha revoltou-se contra a indiferença do filho.

— Ah! Paulo, tu não tens coração... Não sei a quem saíste assim.

— Hei de chorar?

— Não digo que chores, mas a gente tem pena: é uma infeliz.

Ele resmungou passando à sala e, sentando-se diante da janela, ficou a olhar a noite estrelada, ansioso pelo silêncio, pelo sono da enferma, para realizar o desejo tantas vezes sufocado no seu quarto quando, recolhendo ao leito, cansado da vida errante, excitado com o contato das mulheres que se roçavam lascivamente por ele, insone, punha-se a pensar em Ritinha, vivendo-a na imaginação.

 

 

Capítulo XV

No silêncio da casa, guiando-se por uma réstia de luz que vinha do quarto, cuja porta ficara entreaberta, Paulo, que se deitara na rede, armada no chamado quarto de Violante, levantou-se pé ante pé, contendo o hálito, as mãos estendidas, e atravessou a sala.

As suas articulações estalavam irritando-o - era o seu próprio corpo que o denunciava. Parava, apoiando-se às paredes, à escuta, e lá ia, vagaroso, cauteloso, excitado, como a farejar o almíscar lascivo da mulata. Seguiu pelo corredor. Na sala foi com o maior cuidado para evitar esbarros e, chegando à porta do quarto, empurrou-a de leve. Um estalo ríspido dos gonzos pareceu-lhe um estrondo; recuou, nervoso. A cama rangeu e Ritinha sussurrou no escuro:

— Que maluquice, meu Deus!

— Cala a boca!

Curvou-se, os braços estendidos, varrendo o vazio, a procurá-la; as mãos encontraram-se.

— E sua mãe?

— Está dormindo.

— Olhe lá.

Encolheu-se, chegando-se à parede. Ele meteu-se na cama. O mar rouquejava na praia. De espaço a espaço a casa estremecia, trepidava, à passagem de um elétrico.

Saiu cedo no dia seguinte. Sentiu-se como transfigurado - era outro, com outros gozos; homem, com uma mulher sua, inteiramente sua, vivendo sob as mesmas telhas.

Sentia necessidade de comunicar a sua ventura, de contá-la a todos, de ser invejado. As mesmas despesas, pelas quais se tornara responsável, como que lhe davam maior prestígio, engrandecendo-o aos seus próprios olhos. Mas a outra paixão chamava-o, atraía-o. Saciado um desejo, corria alucinadamente ao outro; mesmo porque o dinheiro começava a minguar. Era necessário refazer o maço, aumentá-lo, para que a mulata sentisse a sua superioridade sobre o amante que deixara.

Queria humilhar o outro, inutilizá-lo de vez, receoso de que ela pudesse vir a ter saudade do Mamede. Era necessário esmagá-lo, torná-lo esquecido, substituí-lo vantajosamente e ele havia de o fazer.

Já, então, conhecia os segredos da roleta, podia fazer jogo franco, dar um golpe de mestre que lhe assegurasse lucro de vulto e não miseriazinhas de contos de réis. Sabia de uma casa, na Rua Sete, onde se jogava forte durante o dia. Lá foi. Perdeu. Atirou-se ao dado: foi infeliz e, contendo-se, procurando justificativas para o caiporismo, descobriu um homem calvo, de casaco no fio, lenço ao pescoço, que seguia atentamente o seu jogo. Irritou-se. De ímpeto, deu a troco as fichas que lhe restavam e, resmungando, passou por diante do homem, carrancudo. Tomou o chapéu e saiu.

Na rua, sem destino, desesperado com o prejuízo, arrependido de haver entrado naquela "espelunca", seguiu direito ao Largo do Rócio, mas voltou à Rua do Teatro, dirigindo-se à do Ouvidor. Havia de encontrar amigos.

Entrou no Pascoal - todas as mesas estavam ocupadas; nenhum conhecido. Saiu, e depois de haver descido a rua, sempre a pensar no jogo que fizera, desconfiado da roleta, sem poder explicar a insistência do "pequeno", resolveu descansar um bocado para estar pronto, à noite, para a desforra. Mal entrou em casa, Ritinha, que demorara em abrir a porta, perguntou-lhe em tom receoso: "Se não vira o Mamede."

— Não. Por quê? Andou por aqui?

— Toda a manhã. Esteve muito tempo ali defronte, encostado ao cais, olhando para cá. Acho que me viu porque cheguei à janela para chamar um quitandeiro, quando ele vinha vindo. Tome cuidado. Mamede não é bom.

— Histórias...!

— Histórias!? O senhor pensa que ele é uma coisa e ele é outra. Eu é que posso falar. Basta que eu diga que vivi com ele dois anos, não foram dois dias.

Paulo sorriu; e ela ajuntou: que haviam aparecido duas criadas. Não ajustara por não saber o preço que convinha.

— É verdade! Nem me lembrei de prevenir-te. E... para onde foi ele?

— Não sei. Anda por aí rondando, com certeza. Mamede é mau; ouça o que lhe estou dizendo. Mamede tem maus bofes.

— Pois sim.

Fez-lhe uma festa no rosto e entrou para falar à mãe. Achou-a agitada, aflita, queixando-se de falta de ar, pedindo que abrissem largamente as portas do quarto; não podia respirar, sentia um peso enorme no peito.

— Quer que eu vá chamar o médico?

— Para que médico? Pede para me fazerem um pouco de chá.

Não lhe passou despercebido o mau humor de Dona Júlia, que evitava encará-lo, desviando o olhar. Teria ela desconfianças? Tê-lo-ia visto passar, à noite, sentido algum rumor através da parede que separava os dois quartos? Falou à Ritinha, comunicando o desejo da enferma e, para sondá-la, sem dar a perceber a sua suspeita, perguntou:

— Ela passou bem o dia?

— Não quis comer; está até agora com o café que tomou de manhã. Tem dormido muito; sempre que vou ao quarto encontro-a dormindo.

Paulo empalideceu, compreendendo que a velha descobrira a cena da noite e que começava a hostilizar a mulata. Resolveu defendê-la a pé firme, sustentá-la, custasse o que custasse. Não trocaram mais palavras toda a tarde. A noite, quando ele se foi despedir, ela mal o abençoou.

— A senhora está sentindo alguma coisa?

— Não.

— Eu tenho que fazer, mas se está incomodada, não saio.

— Não tenho nada.

— Então, até logo.

Ritinha não o acompanhou à porta, e ele, ao despedir-se, falou para que a mãe ouvisse:

— Pode dormir tranqüila, Dona Ritinha; eu levo o trinco. Boa noite.

 

 

Capítulo XVI

— Boa noite.

Eram 2 horas da manhã quando Dona Júlia, que não dormira, ouviu ranger de leve a porta da rua. Esperou atenta, o ouvido alerta ouviu os surdos passos do filho ao longo do corredor, sentiu-os junto ao quarto; compreendeu que ele a espreitava. A lamparina dava uma luz escassa que apenas manchava as paredes, fazendo bailar sinistramente as grandes sombras das imagens e dos mais objetos pousados na cômoda. Os passos continuaram, vagarosos, cautelosos, com um rangido de solas, e cessaram. Ela não se movia, decidida a certificar-se. Uma hora imensa passou, muda, no silêncio da casa escura e quieta.

Não sem cuidado, os olhos no quarto da velha, que parecia dormir tranqüila, Paulo atravessou devagarinho a sala e foi-se pelo corredor. Dona Júlia sentiu-o passar, chegou mesmo a mover-se, revoltada contra o desrespeito, mas conteve-se. Talvez se houvesse iludido. Tentou erguer-se e, com grande esforço, trêmula, sentou-se na cama, tocando o soalho frio com os pés nus. Custava-lhe acreditar que o filho a houvesse enganado, abusando do seu estado para meter em casa uma mulher perdida. Amparou-se à cama e ficou de pé. Sentia-se fraca, arvoada, oscilando. Sentou-se de novo, sem ânimo, mas a indignação impelia-a; fez o primeiro passo, chegou à porta e, no escuro, encaminhou-se para o quarto em que dormia o filho. Foi d’encontro a uma cadeira: com o rumor deteve-se, assustada; pensou em voltar e quedou hesitante, o ouvido atento, receosa de que o filho aparecesse e a encontrasse de pé, espionando.

Paulo, efetivamente, ouvira o barulho do esbarro e logo pensara nela. Sentando-se na cama, ficara à escuta, e os dois, mãe e filho, imóveis, temiam-se — um, sem coragem de deixar o leito em que se metera, outra sem ânimo de prosseguir. Ritinha perguntou baixinho:

— Que é?

Ele murmurou:

— Pareceu-me ter ouvido barulho lá dentro.

— Quem sabe se sua mãe precisa de alguma coisa?

Ele não respondeu. A velha atreveu-se a continuar na treva, mais cautelosa. As pernas tremiam-lhe violentamente, mal a sustinham. Quando chegou à porta do quarto, firmou-se ao umbral, respirando cansada, com o coração a bater sôfrego.

Entrou: os braços estendidos encontraram os punhos bambos da rede: não estava ali ninguém. Ainda curvou-se, apalpou e, convencida, aprumou-se e ficou inerte, em grande desânimo, de olhos muito abertos na escuridão.

Era a amante; ele lá estava com ela. Vivia com ela, trouxera-a para casa, instalara-a sob as mesmas telhas que a agasalhavam. Voltou-se e retrocedeu no mesmo passo cauteloso, entrou no quarto e deitou-se, chorando aflitivamente.

Estava explicada a repentina saída de Felícia. Fora ele que a expulsara para ficar à vontade, sem o testemunho incômodo da pobre louca. Onde andaria a infeliz? Pobrezinha!

Paulo não ousou sair da cama, certo de encontrar a mãe, porque era ela que andava lá dentro, tinha certeza. Ritinha, vendo-o indeciso, sentou-se também e ficaram os dois muito juntos, à escuta, como à espera de que se repetisse o rumor que os havia alarmado. Ela deitou-se, puxou-o.

— Não é nada. Deixa lá. Que pode ser? Se fosse ela, chamava.

— Não sei.

— Se quer, eu vou ver.

— Não; não vale a pena.

E deitou-se. Mas ficou imóvel, preocupado. Às vezes parecia-lhe ouvir passos no corredor, na sala; sentia empurrarem a porta do quarto; levantava vivamente a cabeça, atento.

— Que medo tolo!

— Não é medo.

— Então que é?

— Sei lá.

Falaram de Mamede: ela, pedindo que se acautelasse contra o mulato, que estava preparando alguma; ele, sempre indiferente, não ligando importância. Que havia ele de fazer? Se o ameaçasse, dava queixa à polícia e estava tudo acabado.

— Sim, mas ninguém se defende de uma traição.

— Qual traição! Mamede o que quer é dinheiro para jogar. Pensas que ele tem saudade de ti? Pois sim. Quem quer bem não faz o que ele fazia. Histórias!

— Eu não digo que ele me queira bem, nem que se vingue por amizade, mas por capricho é capaz de tudo, eu sei.

— Pois que venha!

— Eu aviso para que o senhor se previna. Quem anda avisado vale por dois. Ele não é bom, isso não é. Eu sei por que falo.

— Pois sim, mas deixemos Mamede; — e, lânguido, passou-lhe o braço por baixo da cabeça, atraindo-a.

Pela madrugada, voltando ao seu quarto, Paulo percebeu que a mãe estava acordada — sentia-a mexer-se na cama, voltar-se, arquejar na aflição. Esteve a embalar-se de leve na rede, preocupado, não com o que ela lhe pudesse dizer, mas com o que faria Ritinha se fosse maltratada.

A passividade da enferma, a resignação de que dava provas constantes tranqüilizaram-no.

“Ora! que há de fazer? Se duvidar digo-lhe tudo. Afinal quem paga a casa sou eu... Não posso ter liberdade? Não posso ter um gozo? Falta de respeito? Ainda faço muito em guardar reserva. Não sou uma criança. ”E adormeceu resolvido a manter a mulata, a lutar por ela, a defendê-la da mãe cuja animada aversão sentia. Despertou em sobressalto, com Ritinha que sacudia a rede, chamando-o.

— Sua mãe não está boa, venha vê-la.

— Que tem?

— Não sei.

Saltou da rede em ceroulas, descalço, correu ao quarto. Dona Júlia, imóvel, de olhos cerrados, a boca entreaberta, seca, deixando ver os dentes, ralava com o cirro. De instante a instante, com esforço, sorvia o ar que lhe passava pela garganta com um gargarejo rascante, difícil, estrangulado. As faces cavavam-se-lhe; as pomas do rosto, muito salientes, luziam; as têmporas afundavam; os olhos perdiam-se enterrados. Paulo ficou atordoado, e, com os olhos cheios d’água, arrependido, com um remorso a remordê-lo, inclinou-se sobre a moribunda, chamando-a:

— Mamãe! Mamãe!

Respondia-lhe, de espaço a espaço, a respiração estertorosa da agonia. Mamãe! Apalpou-lhe os pés, esfriavam; as mãos inertes, com os dedos encolhidos, repousavam no colo imenso que parecia crescer na angustia.

— Ah! Ritinha... Mas, como foi? Por que não me chamaste?

— Eu não sabia. Foi só agora que vi, entrando no quarto com o café. Pensei que estava dormindo, mas quando ouvi o cirro compreendi tudo e fui acordar o senhor. Não há uma vela?

Paulo chorava em silêncio e a moribunda, entre os dois, continuava a estertorar abrindo muito a boca para a respiração.

Ritinha acendeu uma vela e colocou-a à mesa de cabeceira, ao lado de um pequeno crucifixo. Paulo arrancava os cabelos, retorcia as mãos.

— Nem uma pessoa para avisar Violante, para chamar um médico. Eu não tenho coragem de sair deixando-a assim. Como há de ser, meu Deus! Se tu pudesses, Ritinha... É perto, na Praia de Botafogo. Minha pobre mãe, coitada! Morrer assim, tão só. Vai, minha velha, faze-me este favor.

Ela ficou indecisa, receando um encontro com Mamede; por fim resolveu-se e murmurou:

— Pois sim.

— Tem paciência.

A mulata dirigiu-se para a sala, foi direito à janela, entreabriu-a e espiou. Ao longo do cais, ao sol, um homem passeava olhando o mar. Era o mulato.

Fechando vagarosamente a janela, Ritinha tomou ao quarto e, indiferente ao transe lúgubre, inclinou-se ao ouvido de Paulo, que se sentara à cabeceira da cama e lentamente enxotava as moscas que teimavam em pousar no rosto da moribunda e sussurrou:

— Ele está ali defronte.

O rapaz encarou-a pálido, transido de medo, e, em voz surda, num sopro, perguntou:

— Onde?

— Venha ver. Eu não dizia?

Ele lançou um triste olhar à agonizante. O ruído estertoroso continuava rouco, e, de quando em quando, com o enrijamento túmido do pescoço, a cabeça derreava-se no travesseiro.

— Ela pode morrer.

— É um momento.

Ele passou ao seu quarto, vestiu-se ligeiramente e seguiu a mulata.

Segredavam, pisavam devagarinho, em pontas de pés. Ele entreabriu cautelosamente a janela e deu logo com o mulato junto ao cais, ao sol, guardando a casa.

— E agora?

— Eu não lhe dizia? Olhe, o melhor é eu ir-me embora.

Ele voltou-se de repelão:

— Por quê? isso não! Então és obrigada a viver com um homem de quem não gosta?

— Não vou viver com ele. Vou por aí.

— E se eu o chamasse?

— Para quê?

Sem uma idéia, acabrunhado pela covardia, Paulo sentou-se no sofá, abatido, e ficou raspando o soalho com os pés nus. De repente. fitando a mulata, lembrou:

— Há um meio, Ritinha. — Olharam-se em silêncio e ele expôs a sua idéia: Eu chamo-o, digo-lhe que tu vieste para cá a meu pedido porque eu não tinha quem ficasse com mamãe...

— Pois sim!... — interrompeu incrédula a mulata esticando o beiço. — Não vê que ele é tolo!

— Então não sei, resmungou. Que faça o que quiser. Tu é que não devias ter medo, afinal não és escrava, não tens obrigação de viver com ele. Se não fosse o estado de mamãe eu sei o que faria, assim não posso. Não hei de deixar a pobre coitada sozinha para dar trela a Mamede.

E tornou para junto da velha. Ritinha ficou na sala.