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Wednesday 17 April 2024

Good Reading: "Pórtico" by Raul de Leoni (in Portuguese)

 

Alma de origem ática, pagã,

Nascida sob aquele firmamento

Que azulou as divinas epopeias,

Sou irmão de Epicuro e de Renan,

Tenho o prazer sutil do pensamento

E a serena elegância das ideias...

 

Há no meu ser crepúsculos e auroras,

Todas as seleções do gênio ariano,

E a minha sombra amável e macia

Passa na fuga universal das horas,

Colhendo as flores do destino humano

Nos jardins atenienses da Ironia...

 

Meu pensamento livre, que se achega

De ideologias claras e espontâneas,

É uma suavíssima cidade grega,

Cuja memória

É uma visão esplêndida na história

Das civilizações mediterrâneas.

 

Cidade da Ironia e da Beleza,

Fica na dobra azul de um golfo pensativo,

Entre cintas de praias cristalinas,

Rasgando iluminuras de colinas,

Com a graça ornamental de um cromo vivo:

Banham-na antigas águas delirantes,

Azuis, caleidoscópicas, amenas,

Onde se espelha, em refrações distantes,

O vulto panorâmico de Atenas...

 

Entre os deuses e Sócrates assoma

E envolve na amplitude do seu gênio

Toda a grandeza grega a que remonto;

Da Hélade dos heróis ao fim de Roma,

Das cidades ilustres do Tirreno

Ao mistério das ilhas do Helesponto...

 

Cidade de virtudes indulgentes,

Filha da Natureza e da Razão,

– Já eivada da luxúria oriental, –

Ela sorri ao Bem, não crê no Mal,

Confia na verdade da Ilusão

E vive na volúpia e na sabedoria,

Brincando com as ideias e com as formas...

 

No passado pensara muito e, até,

Tentara penetrar o mundo das essências,

Sofrera muito nessa luta inútil,

Mas, por fim, foi perdendo a íntima fé

No pensamento, e agora pensa ainda,

Numa serenidade indiferente,

Mas se conforta muito mais, talvez,

Na alegria das belas aparências,

Que na contemplação das ideias eternas.

 

Cidade amável em que a vida passa,

Desmanchando um colar de reticências:

Tem a alma irônica das decadências

E as cristalizações de um fim de raça...

 

Conserva na memória dos sentidos

A expressão das origens seculares,

E entre os seus habitantes há milhares

Descendentes dos deuses esquecidos;

Que os demais todos têm, inda bem vivo,

Na nobre geometria do seu crânio

O mais puro perfil dólico-louro...

 

Os deuses da cidade já morreram...

Mas, amando-os ainda, alegremente,

Ela os tem no desejo e na lembrança;

E foi a ela (é grande o seu destino!)

Que Julião, o Apóstata, expirando,

Mandou a sua última esperança.

Pela boca de Amniano Marcelino...

 

Cidade de harmonias deliciosas

Em que, sorrindo à ronda dos destinos,

Os homens são humanos e divinos

E as mulheres são frescas como as rosas...

 

Jardins de perspectivas encantadas

– Hermas de faunos nas encruzilhadas –

Abrem ao ouro do sol leques de esguias

Alamedas: efebos, poetas, sábios

Cruzam-nas, dialogando, suavemente,

Sobre a mais meiga das filosofias,

Fímbrias de taças lésbias entre os lábios

E emoções dionisíacas nos olhos...

 

Como são luminosos seus jardins

De alegres coloridos musicais!

No florido beiral dos tanques, debruados

De rosas e aloés e anêmonas e mirtos,

Bebem pombas branquíssimas e castas,

E finamente límpidas e trêmulas

Irisadas, joviais e transparentes,

As águas aromáticas, sorrindo,

Tombam da boca austera dos tritões,

Garganteando furtivos ritornelos...

 

Dentro a moldura em fogo das auroras,

Pelas praias de opala e de ouro, antigas,

Na maciez das areias, em coréias,

Bailam rondas sadias e sonoras

De adolescentes e de raparigas,

Copiando o friso das Panatenéias...

 

Na orla do mar, seguindo a curva ondeante

Do velho cais esguio e deslumbrante,

Quando o horizonte e o céu, em lusco-fusco

Somem na porcelana dos ocasos,

Silhuetas fugitivas

De lindas cortesãs de Agrigento e de Chipre,

Como a sonhar, olham, perdidamente,

A volta das trirremes e das naves,

Que lhes trazem o espírito do Oriente,

Em pedrarias, lendas e perfumes...

 

Então, ondulam no ar diáfano e fluente

Suavidades idílicas, acordes

De avenas, cornamusas e ocarinas

Que vêm de longe, da alma branca dos pastores,

Trazidas pelos ventos transmontanos

E espiritualizadas em surdinas...

 

Terra que ouviu Platão antigamente...

Seu povo espiritual, lírico e generoso,

Que sorri para o mundo e para os seus segredos,

Não ouve mais o oráculo de Elêusis,

Mas ama ainda, quase ingenuamente,

A saudade gloriosa dos seus deuses,

Nas canções ancestrais dos citaredos

E nos epitalâmios do nascente...

 

Seus filhos amam todas as ideias,

Na obra dos sábios e nas epopeias;

Nas formas límpidas e nas obscuras,

Procurando nas cousas entendê-las

– Fugas de sentimento e sutileza –

E as entendem na própria natureza,

Ouvindo Homero no rumor das ondas,

Lendo Platão no brilho das estrelas...

 

Seus poetas, homens fortes e serenos,

Fazem uma arte régia, aguda e fina

Com a doçura dos últimos helenos

Estilizada em ênfase latina...

 

E os velhos da cidade, suaves poentes

De radiantes retores e sofistas,

Passam, olhando as cousas e as criaturas,

Com piedosos sorrisos indulgentes,

Em que longas renúncias otimistas

Se vão abrindo, entre ironias puras,

Sobre todos os sonhos do Universo...

 

Revendo-se num século submerso,

Meu pensamento, sempre muito humano,

É uma cidade grega decadente,

Do tempo de Luciano,

Que, gloriosa e serena,

Sorrindo da palavra nazarena,

Foi desaparecendo lentamente,

No mais suave crepúsculo das cousas...

Saturday 27 January 2024

Good Reading: "Ode a um Poeta Morto" by Raul de Leoni (in Portuguese)

À memória de Olavo BiIac.


Semeador de harmonia e de beleza
Que num glorioso túmulo repousas,
Tua alma foi um cântico diverso,
Cheio da eterna música das cousas:
Uma voz superior da Natureza
E uma ideia sonora do Universo!

Onde passaste, ao longo das estradas,
Linhas de imagens rútilas e vivas,
Em filigrana,
Foram tecendo, como o olhar das fadas,
Nas mais nobres e belas perspectivas,
O panorama dos ideais da Terra
E a ondulante paisagem da alma humana.

Toda a emoção, que anda nas cousas, fala,
Nos seus diversos tons e reflexos e cores,
Pela tua palavra irisada de opala,
Feita de radiações e finas tessituras:
Desde a vida sutil da borboleta
À alma leve das águas e das flores
À exaltação do Sol e ao sonho das criaturas:
Toda a sensualidade esparsa do Planeta.

Freme em tua arte o sangue de Dionisos,
Diluído nas virtudes apolíneas;
E do seu seio voluptuoso chovem
Alvas formas pagãs, ardentes frisos,
Baixos-relevos, camafeus, sanguíneas,
Numa palpitação de carne jovem.
 
Desfolhando um esplêndido destino,
A tua mão teve, por sentimento,
A sutileza platônica e a doçura
De um florentino do Renascimento,
Que, atormentado de ímpetos românticos,
Trabalhasse em esmalte do Piemonte,
Contendo no cinzel lascivo e fino
O sonho capitoso de Anacreonte
E o lirismo sensual do Cântico dos Cânticos.

Vieste de longe para longe. A tua
Alma encarnou-se em outras entidades,
Em outros povos, tempos e países,
E, deslumbrante, continua,
Plástica, móvel, irisada e nua,
A longa emigração pelas idades,
Deixando atrás de si seus frutos e raízes.

Foste o Homem de sempre, no prestígio
De poeta sensualista, atravessando as eras,
Por toda parte encontro o teu vestígio:
Um dia, na Índia védica, sonhando
No limiar das eternas primaveras,
– As mãos cheias de rosas e ametistas –
Fazes oblatas líricas e votos
Aos poderosos gênios avatares
E escreves os teus poemas animistas
Na folha dos nelumbos e dos lótus,
Na flor sonâmbula dos nenúfares...
E os teus versos, nos quais um grande sonho abranges,
Vão descendo a cantar na corrente do Ganges.
 
Depois, pastor na Argólida ou no Epiro,
Vivendo entre os rebanhos, em retiro,
Ao luar, sobre as montanhas, passo a passo
Vais contando as estrelas pelo espaço,
E a sonata sutil da tua avena
Tem o sabor do favo das abelhas
E a melodia simples e serena
Da alma dócil e errante das ovelhas.

Mais tarde, na Tessália, entre as selvas e os rios,
Companheiro dos sátiros vadios,
Modulas o teu canto surpreendente,
E vais buscar o som das tuas rimas
No intermezzo das fontes, ao nascente,
Na canção das águas frescas,
Na orquestração nostálgica dos ventos,
No tropel dos centauros truculentos,
Nas gargalhadas faunescas,
Na púrpura radiante das vindimas.

Mal doura o sol a folha das videiras
E ouves o ruído das primeiras frautas,
Sais a espreitar, horas e horas,
Sobre a areia de prata das ribeiras,
As oréades trêfegas e incautas,
De braços entrelaçados,
Urdindo a teia de ouro das auroras,
Na fantasmagoria dos bailados.
 
Reapareces, depois de vidas tantas,
Com o mesmo coração sonoro e imenso,
Dentro das cortes bíblicas e cantas,
Na harpa esguia e ritual, entre espirais de incenso,
As vitórias dos reis e as searas benditas,
As lendas do Jordão e o olhar das moabitas.

Voltas ainda à Grécia, onde pertences
Ao povo e és o poeta da cidade.
Honras a velha raça dos rapsodos;
A tua voz tem a sublimidade
Do perfume dos parques atenienses;
E é uma expressão da pátria e o evangelho de todos.
Trazes mirtos e pâmpanos na fronte;
Entoas hinos a Febus
E bailas, com Anacreonte,
No arabesco da ronda dos éfebos.

Depois, em Mitilene, és o único homem
Nessa ilha extravagante das mulheres.
Lá os epitalâmios que proferes,
Entre ruídos de crótalos e taças,
Sobem no ar e se consomem;
Despertam nossos desejos,
E consegues possuir para os teus beijos
A própria Safo numa noite – e passas.

Vais a Roma, no vértice do Império,
Onde a predileção do César te conforta.
Dão-te em Tíbure estâncias e domínios;
Vais a Capri na corte de Tibério;
Instalas teu palácio no Aventino;
Tens eunucos etíopes à porta
E liteiras de estofo damasquino.
És a alma delirante dos triclínios;
Exortas os circenses sobre vícios;
Cantas no banho azul das cortesãs cesáreas;
És íntimo nos tálamos patrícios,
Onde os teus versos sacros e profanos
São guardados nas urnas legendárias
Em custosos papiros africanos.

Mais tarde, já na idade alexandrina,
De novo, a terra helênica conquistas,
E, poeta irônico e brando,
No tom fresco e loução dos idilistas,
Passas cantando
As canções que Teócrito te ensina.
Revejo-te, depois, indiferentemente,
Em Córdoba, em Bagdá, quase em segredo,
No teu destino ideal de citaredo:
Cantor do califado, entre os tesouros
Do Islamismo e os mistérios do Oriente.
Dormes no harém real e vais às guerras.
Continuando de seres, entre os mouros,
O mesmo de outro tempo em outras terras.
Na Germânia feudal encontras nas distâncias,
Um bando de harmonias que comunguem
Com o teu coração de poeta heleno.
Murmura-te no ouvido, em ressonâncias,
A legenda pagã dos “Niebelungen”.
És todo o amor das castelãs do Reno
E a tua voz de “minnesinger” se ergue
Ora veemente e funda, ora em trêmulos suaves:
Com “Tannhäuser” visita “Venusberg”
E canta nos castelos dos margraves.
 
Mais adiante,
Renasces na Florença azul da “Senhoria”.
Florença eleva na canção dos sinos
A sua alma de Vênus e Maria.
É um sonho de amor nos Apeninos.
A cidade das flores e dos poetas,
Das paixões elegantes e discretas,
Das fontes, dos jardins e das duquesas,
Das obras-primas e das sutilezas.
É todo um povo amável que se anima
E que a amar e a sorrir, da alvorada ao sol posto,
Faz da Vida uma obra-prima
De sensibilidade e de bom gosto...

Há guirlandas votivas,
De acantos e de louros pelas ruas!
O Grande Pã voltou! As formas vivas
Da Grécia, emergem, fúlgidas e nuas!
Nas casas senhoriais e nas vilas burguesas,
Toda a gente, animada de surpresas,
Aprende o homérico idioma,
Entretém-se de Erasmo e de Bocácio.
De humanistas e letrados,
E dos últimos mármores achados
Sob a poeira católica de Roma.

Nos belvederes do Arno andam as grandes damas:
Smeralda, Lucrezia, Simonetta,
Entre rosas, sorrisos e epigramas...
Botticelli olha o céu azul violeta;
Lê-se Platão nos templos: e eu te vejo,
Sereno e lindo,
Diante do “Ponte-Vecchio”, num cortejo,
Dizendo aos príncipes sonetos de ouro
E Lourenço de Médicis te ouvindo!

Compões ainda com teu gênio afoito,
Na forma antiga que se cristaliza,
Certos versos do século dezoito,
Quando Watteau pintava, em plena primavera,
O “Embarque” para Citera
E Rousseau escrevia a Nova Heloísa.

Poeta cosmopolita, alma moderna,
Com Leconte e Banville, em Paris de setenta,
Buscas nas viagens teus motivos de arte,
Fazes o inverno em Nice e o verão em Lucerna
E a tua sombra cíclica se ostenta
Nos salões de Matilde Bonaparte.

***

Na amplitude geral do teu abraço:
– Fora do Tempo e do Espaço,
Na Humanidade e no Mundo –
Vejo-te sempre presente
Onde há um homem que sente
Que a vida é um sentimento esplêndido e profundo!
As almas como a tua a quem n’as fite
Transmitem a emoção da vida soberana.

Seja onde for se pode compreendê-las,
Porque, sem fim, sem pátria e sem limite,
Têm no conceito eterno da alma humana
A universalidade das estrelas.
Se a Humanidade fosse feita delas,
Na dúvida em que não cabe
E em que se estreita,
Talvez não fosse mais feliz, quem sabe?
– Mas seria mais bela e mais perfeita...

Dignificaste a Espécie, na nobreza
Das grandes sensações de Harmonia e Beleza;
Disseste a Glória de viver, e, agora,
O teu eco a cantar pelos tempos em fora,
Dirá aos homens que o melhor destino,
Que o sentido da Vida e o seu arcano,
É a imensa aspiração de ser divino,
No supremo prazer de ser humano!