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Wednesday, 12 November 2025

Wednesday's Good Reading: “Rex Pacificus” by Plinio Corrêa de Oliveira (in Portuguese)

 

Revista Legionário, 12-3-1939.

 

No dia em que se desenrolam em Roma as cerimônias faustosas da coroação do novo Pontífice, deve ser grato aos corações católicos meditar atentamente as circunstâncias dentro das quais essa solenidade se realiza.

No século passado, em que o liberalismo político grassava pela Europa inteira, agravado por uma monomania democrática vizinha do delírio, as grandes solenidades pontifícias se desenrolavam não raramente sob o olhar hostil e a censura surda de grandes setores da opinião pública. Evidentemente, durante toda a vida da Igreja, nunca faltou a esta o amor de filhos dedicados e entusiastas.

Entretanto, é incontestável que, no século passado, os fulgores dessas belas provas de amor alternavam sombriamente com o rancor igualitário daqueles que, na faina de destruir toda a ordem religiosa, política e social, não suportavam o espetáculo grandioso das cerimônias do Vaticano.

Os argumentos não faltavam para servir de pretexto a tanto rancor. O primeiro deles, já antigo, era da autoria de Judas Iscariotes: por que gastar tanto dinheiro, em lugar de dar aos pobres? O outro, de sabor mais acentuadamente luterano: não haverá idolatria em se prestar a um homem tantas provas de sumo respeito? Finalmente, a blasfêmia anarquista não deixava de se fazer ouvir neste triste concerto: quando chegará o dia feliz em que enforcaremos o último Papa nas tripas do último rei?

A Santa Sé nunca deu atenção a tais rancores. Com uma sublime e desassombrada energia, ela continuou a manter intacto seu magnífico e suntuoso cerimonial, que outra coisa não é senão a afirmação, através de cerimônias perceptíveis pelos sentidos, do princípio da autoridade, de que o Papa é o mais alto e mais sagrado representante na Terra.

Nas fileiras católicas, não faltou infelizmente quem tivesse a audácia de propor à Santa Sé que, para conciliar melhor as simpatias das massas, e vencer mais facilmente a revolução social que se fazia prenunciar de modo sinistro, o Papado se "democratizasse" e o Pontífice Romano renunciasse às manifestações exteriores e solenes de seu supremo poder.

A Igreja, entretanto, nunca deu ouvidos a essa falaciosa proposta. Não é de seu feitio transigir com o erro, ou procurar entabular com ele um duelo de subtilezas e astúcias.

Quando o princípio de autoridade periclitava no mundo inteiro, pondo em risco a autoridade de todos os monarcas e chefes de Estado, não era o Vigário de Cristo, do qual provém toda a autoridade, que tomaria ares de pactuar com a revolução. A missão da Igreja não consiste em se adaptar aos séculos, mas de adaptá-los a si própria. Ela nunca baixará até os erros dos homens, mas elevará a humanidade até si.

Por isso, enquanto as monarquias ruíam fragorosamente, as repúblicas se dissolviam na anarquia das crises sociais, e as mais antigas dentre as cortes sobreviventes se democratizavam a olhos vistos, o Vaticano conservou intacto seu grandioso cerimonial.

Vem, agora, o outro aspecto da questão.

Um verdadeiro vendaval político-social foi a consequência da pregação das doutrinas liberais. Esse vendaval suscitou a tendência geral para uma consolidação de autoridade. Todos os povos, outrora minados pela febre da liberdade, se sentem hoje trabalhados por uma intensa propaganda a favor da consolidação do Poder público, com preterição ou até supressão dos mais sagrados direitos da pessoa humana.

Os novos césares, como o exige a natureza das doutrinas que pregam, sentem a necessidade de confirmar sua autoridade com os sinais exteriores do poder, desenvolvidos através de imponentes cerimônias cívicas. E, com isso, todo um cerimonial político renasce em nossos dias, que bem poderia ser chamado a liturgia faustosa dos novos ídolos que as massas levantam acima de si mesmas para lhes prestar adoração.

Interessante é notar, a esse propósito, o ambiente que cerca essa nova e estranha liturgia política. Duas notas a caracterizam: força e domínio. Atente-se para uma cerimônia nazista. Em algum imenso estádio da Alemanha, comprime-se uma multidão incontável, que se torna cada vez mais densa porque os ônibus e os trens despejam ondas humanas sempre mais numerosas. Para encher o tempo, inúmeros alto-falantes transmitem a voz de um locutor.

Do que fala ele? Da luta do partido nazista, de suas vitórias passadas, dos inimigos que esmagou, esmaga e esmagará. Quando, ao cabo de uma longa série de injúrias e de ameaças, o locutor se cala para tomar fôlego, a multidão entoa cânticos guerreiros. Refletores deslumbrantes erguem para o céu colunas verticais. Uma tribuna imensa, composta de blocos graníticos pesados e brutais, se ergue no centro de tudo isso. De repente, estrugem gritos e urros de entusiasmo. É o “Führer” que chega.

As canções guerreiras redobram. Os canhões estrugem. A multidão ulula como um mar enfurecido. O “Führer” começa a falar: do outro lado das fronteiras, Chamberlain treme de medo, apoiado em seu guarda-chuva; Daladier prefere fingir que não ouve, para não ter de brigar (como os meninos bem educados, quando passam perto dos moleques na rua e ouve seus insultos, fingindo não notar nada). Mussolini presta atenção: é tão bonito; quem sabe se ele conseguirá fazer igual! Roosevelt não entende bem como é que, tendo ele tantos milhões de dólares, Hitler não é amigo dos Estados Unidos. E os povos fracos da Terra tremem.

Para completar o quadro, seria suficiente que uma legião de demônios aparecesse no céu, vociferando em gritos agrestes: glória ao novo messias, a opressão, na terra, para os povos que não têm canhões! E o mundo inteiro aplaude ou treme; mas, quer aplaudindo, quer tremendo, secretamente admira!

É sob o signo dessa dura liturgia do ódio e da guerra, do sangue e da luta, que o mundo curva a cabeça em atitude respeitosa e admirativa. Nessas grandes festas públicas, não há outro gáudio senão o do orgulho exacerbado e do ódio satisfeito.

Não são propriamente festas, esses tremendos “sabbats” cívicos. São bacanais em que as multidões não se embriagam mais, como no tempo dos césares, com o vinho capitoso e subtil das plantações itálicas, mas com o licor espiritual grosseiro, de um patriotismo levado até à loucura.

Enquanto isso, morre para o mundo e nasce placidamente para o Céu o Papa Pio XI. Sua morte não anunciada pelo troar dos canhões, mas pelo som paternal e suave dos sinos de São Pedro, que repercutem de campanário em campanário, até os extremos da China ou da Groenlândia.

Nenhum Departamento de Propaganda engaiola as multidões para levá-las à força para Roma. Mas Roma se enche de uma multidão que faria babar de inveja o Ministério da Propaganda da Alemanha [do período nazista], e muitas repartições congêneres de outros países. Não há desfiles marciais de soldados, nem desenrolar de tropas agressivas. Apenas a gendarmerie pontifícia, que contém e policia paternalmente a multidão pacífica e enlutada.

Anuncia-se, depois, o novo Papa. Uma multidão aguarda seu nome. Outras multidões afluem de todas as ruas e de todos os becos de Roma, para saber quem foi o eleito. Todo o mundo aplaude. Mas, ainda aí, não há outro eco senão o das sonoras e musicais trombetas de prata dos arautos, as harmonias graves dos sinos da Cidade Eterna, e os vivas da multidão.

Não, o Vaticano não é a caserna em que o gado humano é arregimentado para a carnificina, mas a casa suntuosa, porém acolhedora, do Pai comum, que é o lar espiritual de todos os povos da Terra, que ali ombreiam uns com os outros, numa alegria despreocupada e pacífica, de que só o Vaticano, hoje em dia, é teatro.

Finalmente, anuncia-se a coroação do Papa. Nenhuma cerimônia, no mundo inteiro, é mais majestosa. Nenhuma, porém, é ao mesmo tempo mais pacífica, mais serena, mais familiar. O povo não treme diante de um ídolo, mas delira de contentamento diante de um Pai. O povo não se ajoelha diante de um algoz, mas beija reverente os pés daquele que é uma branca e suave figura. E na majestade de seu porte, a Santidade e a Majestade suprema do Criador.

E, no menor Estado do mundo, que é o Vaticano, uma das maiores multidões que a Itália — mesmo a fascista — tenha jamais contemplado, celebra, à sombra do Vigário de Cristo, ao mesmo tempo a mais pacífica e a mais jubilosa das cerimônias deste sinistro século de lutas e de guerras.

Wednesday, 8 October 2025

Wednesday's Good Reading: “Sagrado Coração de Jesus” by Plinio Corrêa de Oliveira (in Portuguese)

 

    Legionário, N.º 458, 22 de junho de 1941

    Insistentemente, tem os Santos Padres recomendado que a humanidade intensifique o culto que presta ao Sagrado Coração de Jesus a fim de que, regenerado o homem pela graça de Deus e compreendendo que deve ser Deus o centro de seus afetos, possa reinar novamente no mundo aquela tranquilidade da ordem, da qual mais distante estamos, quanto mais o mundo descamba pela anarquia.

    Assim, não poderia um jornal católico deixar despercebida a festa que há dias transcorreu do Sagrado Coração. Não se trata apenas de um dever de piedade imposto pela própria ordem das coisas, mas de um dever que a tragédia contemporânea torna mais tragicamente premente.

* * *

    Não há quem não se alarme com os extremos de crueldade a que pode chegar o homem contemporâneo. Essa crueldade não se atesta apenas nos campos de batalha. Ela transparece a cada passo, nos grandes e nos pequenos incidentes da vida de todo o dia, através da extraordinária dureza e frieza de coração com que a generalidade das pessoas trata seus semelhantes. As mães em cujas entranhas decresce de intensidade o amor pelos filhos; os maridos que atiram à desgraça um lar inteiro, com o único intuito de satisfazer seus próprios instintos e paixões; os filhos que, indiferentes à miséria ou ao abandono moral em que deixam seus pais, voltam todas as suas vistas para a fruição dos prazeres desta vida; os profissionais que se enriquecem às custas do próximo, mostram muitas vezes uma crueldade fria e calculada, que causa muito mais horror do que os extremos de furor a que a guerra pode arrastar os combatentes.

    Realmente, se bem que na guerra os atos de crueldade se possam mais facilmente aquilatar, os que os praticam tem, se não a desculpa, ao menos a atenuante de que são impelidos pela violência do combate. Mas aquilo que se trama e se realiza na tranquilidade da vida quotidiana não pode muitas vezes beneficiar-se de igual atenuante. E isto sobretudo quando não se trata de ações isoladas, mas de hábitos inveterados que multiplicam indefinidamente as más ações.

    A guerra, tal qual ela é hoje feita, é um índice de crueldade, mas está longe de ser a única manifestação da dureza moral contemporânea.

* * *

    Quem diz crueldade diz egoísmo. O homem só prejudica seu próximo por egoísmo, por desejar beneficiar-se de vantagens a que não tem direito. Assim, pois, o único meio de extirpar a crueldade consiste em extirpar o egoísmo.

    Ora, a teologia nos ensina que o homem só pode ser capaz de verdadeira e completa abnegação de si mesmo quando seu amor ao próximo é baseado no amor de Deus. Fora de Deus não há, para os afetos humanos, estabilidade nem plenitude. Ou o homem ama a Deus a ponto de se esquecer de si mesmo, e neste caso ele saberá realmente amar o próximo; ou o homem se ama a ponto de se esquecer de Deus, e, neste caso, o egoísmo tende a dominá-lo completamente.

    Assim, é só aumentando nos homens o amor de Deus, que se poderá conseguir deles uma profunda compreensão de seus deveres para com o próximo. Combater o egoísmo é tarefa que implica necessariamente em “dilatar os espaços do amor de Deus”, segundo a belíssima frase de Santo Agostinho.

    Ora, a festa do Sagrado Coração de Jesus é, por excelência, a festa do amor de Deus. Nela, a Igreja nos propõe como tema de meditações e como alvo de nossas preces o amor terníssimo e invariável de Deus que, feito homem, morreu por nós. Mostrando-nos o Coração de Jesus a arder de amor a despeito dos espinhos com que O circundamos por nossas ofensas, a Igreja abre para nós a perspectiva de um perdão misericordioso e largo, de um amor infinito e perfeito, de uma alegria completa e imaculada, que devem constituir o encanto perene da vida espiritual de todos os verdadeiros católicos.

    Amemos o Sagrado Coração de Jesus. Esforcemo-nos por que essa devoção triunfe autenticamente (e não apenas através de alguns simbolismos da realidade) em todos os lares, em todos os ambientes e, sobretudo, em todos os corações. Só assim conseguiremos reformar o homem contemporâneo.

* * *

    “Ad Jesum per Mariam”. Por Maria é que se vai a Jesus. Escrevendo sobre a festa do Sagrado Coração, como não dizer uma palavra de comoção filial ante esse Coração Imaculado que, melhor do que qualquer outro, compreendeu e amou o Divino Redentor? Que Nossa Senhora nos obtenha algumas faíscas daquela imensa devoção que tinha ao Sagrado Coração de Jesus. Que Ela consiga atear em nós um pouco daquele incêndio de amor com que Ela ardeu tão intensamente, são nossos votos dentro desta oitava suave e confortadora.

Saturday, 30 August 2025

Saturday's Good Reading: Speech for the closing session of the IV National Eucaristic Congress by Plínio Corrêa de Oliveira (in Portuguese).

 

SAUDAÇÃO ÀS AUTORIDADES CIVIS E MILITARES

 

Contemplando por vários dias os esplendores desta cena que hoje se desenrola pela última vez diante de vossos olhos como diante dos olhos deslumbrados de nossa piedade, e pensando por certo nas emoções que sentiria o coração paternal do Sumo Pontífice se aqui estivesse, é possível que por uma natural associação de idéias vossa imaginação, vagueando, conduzida pelas saudades através dos salões do Vaticano tivesse estabelecido uma analogia entre a imortal obra prima de Rafael, na Stanza della Signatura, em que o grande pintor figurou a "Disputa do Santíssimo Sacramento", e o quadro esplêndido, que, não em pintura, nem em imaginação, mas em realidade e vida, agora se contempla neste local.

O certo é que a analogia é frisante e as diferenças de personagens passam quase despercebidas ante a identidade do ato místico e sobrenatural que naquela pintura e nesta hora de glória e de vida se celebra.

Figurou Rafael uma larga esplanada de mármore tendo ao fundo um panorama risonho da Itália, e ao centro sobre alguns degraus, um altar com a Sagrada Eucaristia. De um e de outro lado, em afetuosa e animada porfia os maiores potentados da Cristandade: papas, imperadores, reis, cardeais e doutores, contendem entre si, louvando cada qual o Diviníssimo Sacramento segundo toda a medida de seu fervor. Pairando sobre nuvens, as figuras mais excelsas da Igreja Gloriosa, no Antigo e Novo Testamento, coros inumeráveis de anjos, o próprio Padre Eterno, e o Espírito Paráclito figuram de forma a atribuir o lugar central ao Divino Redentor. É a glorificação do Sacramento do amor por todos os filhos de Deus, isto é, por todos aqueles que souberam ouvir o apelo austero e divinamente suave das bem-aventuranças.

Que importa que as figuras terrenas que aqui temos não sejam as mesmas que as da Stanza della Signatura? É sempre a mesma Igreja de Deus, é o mesmo o Sacramento que adoramos, e do mais alto dos Céus, são o Padre, o Filho e o Espírito Santo, a Rainha do Céu, as incontáveis multidões angélicas, os mártires, as virgens, os confessores e os doutores que nos contemplam. E como os atos de piedade praticados pelos fiéis sob o bafejo do Espírito Santo valem infinitamente mais do que a melhor das obras de arte produzidas pelo engenho humano, força é reconhecer, que há algo de mais e infinitamente mais precioso do que o inestimável quadro de Rafael que aqui temos.

Estes grandes dias que estão prestes a se escoar foram luminosos instantes de Tabor na história brasileira. E se no Tabor o tempo correu tão rápido que os apóstolos entenderam de poder apreciar plenamente suas delícias ali fixando morada, mandaria a lógica que também aqui aproveitássemos avidamente os minutos, na tarefa santamente silenciosa, da adoração. Entretanto, ordena a sagrada autoridade do Exmo. Revmo. Sr. Arcebispo Metropolitano que as nossas atenções se desviem por alguns minutos da Custódia Sagrada e, cessados por instantes os louvores eucarísticos, se faça uma saudação ao Chefe da Nação, e demais representantes do poder temporal aqui presentes. E fez bem. Não são apenas aqueles que dizem "Senhor, Senhor" que tem o reino de Deus, mas ainda os que ouvem a vontade de Deus e a cumprem. E é tão velho quanto o Catolicismo o preceito da obediência sobrenaturalmente respeitosa e filial, não apenas àqueles que tem o poder e o encargo de reger os interesses temporais da Cristandade.

Permita pois, Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Legado Pontifício que as homenagens e as saudações de toda esta multidão subam agora, até àqueles que, encarnando a autoridade natural do Estado, aqui representam a venerável soberania do poder temporal, e, com ela o próprio Brasil.

Exmo. Sr. Dr. Fernando Costa, DD. Interventor Federal; Exmo. Sr. General Maurício Cardoso, DD. Comandante da II Região Militar; Exmos. Srs. Presidente do Departamento Administrativo e Secretários do Governo; Exmo. Sr. Prefeito Municipal.

Não seria preciso que ouvísseis estas palavras, para que notásseis que, no curso já quatro vezes secular, da história do Brasil, jamais se reuniu assembléia mais solene e ilustre que esta. No momento em que a vida nacional caminha para rumos definitivos, quis a Divina Providência reunir em pleno coração de São Paulo, os elementos representativos de tudo quanto fomos e somos, de todas as glórias de nosso passado e de nossas melhores esperanças para o futuro como uma afirmação brilhante dos altos e amorosos desígnios que tem sobre nós.

Aqui está a Santa Igreja Católica. Em outros termos aqui está a própria alma do Brasil. Aqui estão sob a augusta presidência do Legado Pontifício aquele Episcopado e aquele clero que desde os nossos primeiros dias, ministrando os Sacramentos, e ensinando a palavra de Deus, conservaram o Brasil verdadeiramente brasileiro, conservando-o fundamentalmente católico. Há quanto tempo, a conjuração de todos os meios de descristianização desde os mais poderosos aos mais sutis, se estabeleceu nesta Terra de Santa Cruz, afim de arrancá-la ao regaço da Igreja. Mas enquanto quase tudo que no sentido humano da palavra pode chamar-se glória, poder, riquezas, se mobilizou no sentido de assim cometer esse estranho e tenebroso crime de matar a fogo lento a alma de um país inteiro – enquanto isto a Igreja estava vigilante, e, depois de perto de 40 anos de um agnosticismo desdenhoso e de uma luta insana, de norte a sul do país soprava uma verdadeira primavera, e o renascimento religioso provoca a estruturação de um apostolado tão vigoroso e tão coeso, tão sedento de ortodoxia de doutrina e pureza de vida que, hoje já o podemos afirmar, o movimento de leigos católicos, coesos e disciplinados, militantes e valorosos, já constitui por si uma vitória de imensas conseqüências e um penhor de que a Providência nos está armando para triunfos ainda maiores.

 

Aspectos da realização do 4º Congresso Eucarístico Nacional

Digamos tudo em uma só palavra: a Ação Católica, na solidez de suas organizações fundamentais e na sábia e justa policromia de suas associações auxiliares, é hoje uma potência ideológica de primeiro valor, que conta, na realização de suas finalidades, não só com o concurso apaixonado de quanto nela se inscreveram, mas ainda da própria massa do povo brasileiro.

Vós o sentistes, Senhores representantes do Poder Temporal, e vossa gratíssima presença entre nós constitui a afirmação tangível de que cessou para o Brasil a era do laicismo desdenhoso e artificial. Para explicardes vosso comparecimento em caráter oficial nestas solenidades, não vos seria necessário alegar convicções particulares nem pendores pessoais. Todo o mundo sentiria que direis uma grande verdade, afirmando que é hoje tal a pujança do movimento católico no Brasil, que governo algum o poderia ignorar, apegando-se às fórmulas decrépitas de um laicismo formalista.

Pois este magnífico reerguimento da alma nacional, no que ela tem de mais genuíno, isto é na Fé, é obra desse Episcopado e desse Clero que, pobre embora de todos os dons que devem fazer grandes as obras dos homens, soube vencer o deslumbramento de todos os artifícios com que se costuma fascinar as multidões.

Como não bastasse, para completar esse quadro tão evocativo das lutas passadas ou recentes de nossa História aqui se encontra também, cercado de nosso respeitoso carinho, o representante de uma família cujo nome não se pode pronunciar sem fazer vibrar todas as páginas de nossa História: é Dom Pedro de Orleans e Bragança, cuja presença lembra o heroísmo do brado do Ipiranga, a sabedoria do governo de Dom Pedro II, os louros da guerra do Paraguai e a figura radiante de piedade da Princesa que soube quebrar as algemas da raça negra.

Se alongarmos mais nossos olhares, veremos os vultos claros e alguns tanto indecisos, dos arranha-céus que a Paulicéia construiu. Moldura esplêndida deste quadro, ela nos fala das possibilidades de nossa grandeza temporal e nos traz a garantia de que por mais que o Brasil cresça no sentido espiritual, terá riquezas suficientes para crescer proporcionalmente no sentido material.

E, neste momento, os olhares de todos estes Prelados, as vistas de todas estas multidões, a atenção dos milhares de espectadores que para além do vale, do alto dos arranha-céus ou até onde as ondas do rádio puderem chegar em terras brasileiras acompanham esta solenidade, se volta para vós. Para vós cuja presença, como acabamos de ver, tanto significa e tanto realce dá a estas glorificações de Cristo-Eucarístico. Para vós, cujo comparecimento constitui a homenagem oficial do Brasil ao seu Divino Rei, que é Cristo, para vós que recebeis a demonstração inequívoca da satisfação que vossa presença nos causa.

Os aplausos que neste momento chegam até vós, são o de todo apoio que em todos os tempos a Igreja sempre tributou aos detentores da autoridade temporal.

A magnífica cena que tendes diante dos olhos, está longe de ser inédita nos fastos da Cristandade. Ela não tira seu valor do fato de ser uma novidade sensacional, mas, pelo contrário, da extraordinária continuidade com que se tem repetido.

Às margens do Jordão como do Nilo, à sombra das colunas clássicas de Atenas como nos esplendores da grande metrópole de Cartago, no fastígio do poder da Idade Média como nas lutas tormentosas contra o proto-totalitarismo josefista ou pombalino, sempre que assembléias como esta se tem reunido, a Igreja repete ao Poder Temporal com uma constância e uma uniformidade impressionante, a mesma mensagem de paz e aliança, em que para si reserva tão somente o reino do espiritual, ciosa de respeitar a plena soberania do Poder Temporal em todos os outros terrenos, dele pedindo tão somente que ajuste suas atividades aos preceitos evangélicos, ou seja aos princípios que constituem o fundamento da civilização cristã católica.

Essa mensagem é eco fiel do divino preceito: "Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus". Pelos aplausos dessa multidão, a vossos ouvidos chega agora esse eco, poderosa afirmação de princípios que as vicissitudes dos tempos, em todas as épocas não puderam aluir.

Poucas vezes, no curso de História Brasileira, se tem erguido em torno de uma figura, concerto tão generalizado, de louvores e admiração, do que em torno de S. Excia., o Sr. Presidente da República, Dr. Getúlio Vargas. Será supérfluo, neste momento, acrescentarmos a tantos louros, mais um. A situação de beligerância em que nos encontramos fez erguer-se em torno de S. Excia., todos os brasileiros, de todos os quadrantes geográficos e ideológicos do país. Esse apoio unânime ao governo de S. Excia., é hoje um imperativo patriótico, em cujo cumprimento os católicos reclamam para si a primeira linha, no terreno do devotamento e da disciplina.

Mas há uma afirmação sobremaneira importante a fazer aqui. Mil e mil vezes tem sido ditos a S. Excia. os motivos pessoais que em torno de sua figura tem congregado tanta solidariedade. É preciso que o intérprete da opinião católica afirme que a disciplina dos católicos ao Poder Temporal firma suas raízes mais no fundo, e que, abstração feita das considerações de ordem pessoal, sua obediência aos poderes públicos se baseia na convicção de que obedecem assim à vontade do próprio Deus, conhecida pela luz da razão natural e pelos esplendores da revelação cristã.

Católicos, não somos nem podemos ser partidários da doutrina da soberania popular, e por isto mesmo recusamo-nos a ver a augusta autoridade do Poder Temporal firmada sobre a areia movediça entre todas, da popularidade. Ela se crava na rocha firme das nossas consciências cristãs, e faz, de nossa submissão e de nossos propósitos de ardente colaboração convosco, nas sendas da civilização cristã e na realização da grandeza da Terra de Santa Cruz, um fundamento inabalável que as tempestades da adversidade contra as quais ninguém está garantido – jamais poderão destruir.

Isto não impede, entretanto, que depois de termos prestado homenagem ao Chefe da Nação, símbolo em tempo de guerra mais do que nunca, da unidade e grandeza pátrias, de público agradeçamos também a V.Excia. Sr. Interventor Fernando Costa, toda a cooperação que V.Excia. prestou para o êxito desse grande congresso. Essa vossa conduta simpaticíssima, de que as homenagens ao Cristo Eucarístico receberam tanto esplendor, foi seguida também por vosso ilustre secretariado, que aqui associamos o preito de reconhecimento que nesse momento prestamos a V.Excia. Na mesma homenagem de reconhecimento envolvemos a figura respeitável do Sr. Comandante da 2a. Região Militar, General Maurício Cardoso, no qual comprazemos em aplaudir neste momento todas as glórias do Exército Nacional; o Exmo. Sr. Dr. Godofredo da Silva Telles, Presidente do Departamento Administrativo do Estado, figura característica e brilhante do patriciado paulista; o Exmo. Sr. Dr. Prestes Maia, Prefeito Municipal, e todos quanto, mostrando compreender admiravelmente com isto o significado que para o povo católico do Brasil tem este Congresso, tanto concorreram para seu esplendor e grandeza.

Senhores, é hoje o dia 7 de setembro, a data é expressiva, e estou absolutamente certo de que um imenso clamor se levantará neste glorioso dia, transpondo os limites do Estado e do País para notificar ao mundo inteiro que como um só homem, o Brasil se ergue ao lado do Exmo. Sr. Presidente da República, Dr. Getúlio Vargas, contra o imperialismo nazista pagão que trama sua ruína e parece ter chamado a si, exatamente como seu sósia vermelho de Moscou, a diabólica empreitada de destruir a Igreja em todo o mundo.

Contra os inimigos da Pátria que estremecemos, e de Cristo que adoramos, os católicos brasileiros saberão mostrar sempre uma invencível resistência. Loucos e temerários! Mais fácil vos seria arrancar de nosso céu o Cruzeiro do Sul, do que arrancar a soberania e a Fé a um povo fiel a Cristo, e que colocará sempre seu mais alto título de ufania em uma adesão filialmente obediente e entusiasticamente vigorosa à Cátedra de São Pedro.

*    *    *

Mas esta saudação por demais longa não seria completa se não lhe acrescentássemos uma última palavra. É próprio do feitio que Deus deu ao brasileiro, que a suavidade de um ambiente de família impregne todos os atos de nossa vida e perfume sem os deslustrar até mesmo os mais solenes. A despeito dos esplendores desta noite, estamos pois em família, e o ambiente é propício para que se desatem em confidências as esperanças que abrigamos em nós.

Produto da cultura latina valorizada e como que transubstanciada pela influência sobrenatural da Igreja, a alma brasileira resulta da transplantação, para novos climas e novos quadros, destes valores eternos e definitivos que, precisamente porque definitivos e eternos, podem ajustar-se a todas as circunstâncias contingentes, sem perderem a identidade substancial consigo mesmo. A perfeita formação da alma brasileira comporta, pois, duas tarefas essenciais, uma que mantenha sempre intactos os fundamentos de nossa civilização cristã e ocidental e outra que ajuste esses fundamentos às condições peculiares a este hemisfério.

Nossos maiores executaram com evidente êxito e indomável valentia a primeira parte dessa ingente tarefa. Depois de quatrocentos anos de luta, de trabalho, aqui floresce este Brasil que é para a civilização ocidental um motivo de esperança, e para a Santa Igreja de Deus uma causa de júbilo. Mas esse esforço de conservação, que ainda é e continuará a ser sempre necessário, foi até aqui tão observante que relegou para o segundo plano o problema da adaptação.

Esmagava-nos a desproporção entre nossos recursos materiais que do seio da terra desafiavam nossa capacidade de produção, e a insuficiência de nossos braços, de nosso dinheiro e de nossas energias para os explorar. A terra brasileira apresentava-se cheia de possibilidades fabulosamente vastas, de riquezas inesgotávelmente fecundas, que se adivinhavam e se sentiam mesmo antes de qualquer demonstração técnica e científica. E o mesmo se poderia dizer de nossa história, toda tecida até aqui de acontecimentos políticos de alcance meramente ocidental e transcorrida quase toda ela em um tempo em que não estava na América o centro da gravidade do mundo. Bem estudada e despida das versões oficiais de um liberalismo anacrônico, aí podemos ver claramente, na fidelidade de Amador Bueno como no espírito de Cruzadas dos heróis da reconquista pernambucana, na fibra de ferro deste grande martelo da pior das heresias, que foi Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira, como no coração maternal e suave da princesa Isabel, as expressões rútilas de um grande povo que, ainda nos primeiros passos de sua História, já dava mostras de ser um povo que Deus criou para grandes feitos.

Esta predestinação se afirma na própria configuração de nossos panoramas.

Talvez não fosse ousado afirmar que Deus colocou os povos de sua eleição em panoramas adequados à realização dos grandes destinos a que os chama. E não há quem, viajando por nosso Brasil, não experimente a confusa impressão de que Deus destinou para teatro de grandes feitos esse País cujas montanhas trágicas e misteriosas penedias parecem convidar o homem às supremas afoitezas do heroísmo cristão, cujas verdejantes planícies parecem querer inspirar o surto de novas escolas artísticas e literárias, de novas formas e tipos de belezas, e na orla de cujo litoral os mares parecem cantar a glória futura de um dos maiores povos da Terra.

Quando nosso poeta cantava que "nossa terra tem palmeiras onde canta o sabiá, e que as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá", percebeu, talvez confusamente, que a Providência depositou na natureza brasileira a promessa de um porvir igual ao dos maiores povos da Terra.

E hoje, que o Brasil emerge de sua adolescência para a maturidade, e titubeia nas mãos da velha Europa o cetro da cultura cristã, que o totalitarismo quereria destruir, aos olhos de todos se patenteia que os países católicos da América são na realidade o grande celeiro da Igreja e da Civilização, o terreno fecundo onde poderão reflorir com brilho maior do que nunca as plantas que a barbárie devasta no velho mundo. A América inteira é uma constelação de povos irmãos. Nessa constelação, inútil é dizer que as dimensões materiais do Brasil não são uma figura de magnitude de seu papel providencial.

Tempo houve em que a História do mundo se pôde intitular "Gesta Dei per Francos". Dia virá em que se escreverá "Gesta Dei per brasilienses" (As ações de Deus pelos brasileiros).

A missão providencial do Brasil consiste em crescer dentro de suas próprias fronteiras, em desdobrar aqui os esplendores de uma civilização genuinamente Católica, Apostólica Romana, e em iluminar amorosamente todo o mundo com o facho desta grande luz, que será verdadeiramente o "lumen Christi" que a Igreja irradia. Nossa índole meiga e hospitaleira, a pluralidade das raças que aqui vivem em fraternal harmonia, o concurso providencial dos imigrantes que tão intimamente se inseriram na vida nacional, e mais do que tudo as normas do Santo Evangelho, jamais farão de nossos anseios de grandeza um pretexto para jacobinismos tacanhos, para racismos estultos, para imperialismos criminosos. Se algum dia o Brasil for grande, sê-lo-á para bem do mundo inteiro.

"Sejam entre Vós os que governam como os que obedecem", diz o Redentor. O Brasil não será grande pela conquista, mas pela Fé; não será rico pelo dinheiro tanto quanto pela generosidade. Realmente, se soubermos ser fiéis à Roma dos Papas, poderá nossa cidade ser uma nova Jerusalém, de beleza perfeita, honra, glória e gáudio do mundo inteiro.

Aqui mesmo encontrais disto, Senhores, um formoso símbolo. Pela primeira vez arderá em uma cerimônia pública o incenso nacional. Pela primeira vez órgão inteiramente nacional tem deliciado nossos ouvidos. Mas esse incenso queimará nos altares de uma Religião que é Universal, e esse órgão fará ecoar as melodias da Igreja na língua-mater de toda a cultura do mundo. Nada poderia dizer melhor do verdadeiro sentido de nosso nacionalismo, ou, posta de lado essa palavra tantas vezes mal empregada, de nosso patriotismo.

"Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus". Explorai, Senhores do Poder Temporal, as riquezas de nossa terra; estruturai segundo as máximas da Igreja, que são a essência da civilização cristã, todas as nossas instituições civis. Auxiliai quanto em Vós estiver, a Santa Igreja de Deus e que plasme a alma nacional na vida da graça, para a glória do céu. Fazei do Brasil uma pátria próspera, organizada e pujante, enquanto a Igreja fará do povo brasileiro um dos maiores povos da História. Na harmonia desta mesma obra está a predestinação de uma íntima cooperação entre dois poderes. Deus jamais é tão bem servido, quanto se César se porta como seu filho. E, Senhores, em nome dos católicos do Brasil, eu vo-lo afianço, César jamais é tão grande, como quanto é filho de Deus.

Nessa colaboração está o segredo de nosso progresso e nela vossa parte é verdadeiramente magnífica.

Trabalhai, senhores, trabalhai neste sentido. Tereis a cooperação entusiástica de todos os nossos recursos, de todos os nossos corações, de todo o nosso fervor. E quando algum dia Deus Vos chamar à vida eterna, tereis a suprema ventura de contemplar um Brasil imensamente grande e profundamente cristão, sobre o qual o Cristo do Corcovado, com seus braços abertos, poderá dizer aquilo que é o supremo título de glória de um povo cristão. Executai o programa de Governo que consiste em procurar antes o reino de Deus e sua justiça, que todas as coisas lhes serão dadas por acréscimo.

Em um Brasil imensamente rico, vereis florescer um povo imensamente rico, vereis florescer um povo imensamente grande, porque dele se poderá dizer:

Bem-aventurado este povo sóbrio e desapegado, no esplendor embora de sua riqueza, porque dele é o reino dos céus.

Bem-aventurado este povo generoso e acolhedor, que ama a paz mais do que as riquezas, porque ele possui a terra.

Bem-aventurado este povo de coração sensível ao amor e às dores do Homem-Deus, às dores e ao amor de seu próximo, porque nisto mesmo encontrará sua consolação.

Bem-aventurado este povo varonil e forte, intrépido e corajoso, faminto e sedento das virtudes heróicas e totais, porque será saciado em seu apetite de santidade e grandeza sobrenatural.

Bem-aventurado este povo misericordioso, porque ele alcançará misericórdia.

Bem-aventurado este povo casto e limpo de coração, bem aventurada a inviolável pureza de suas famílias cristãs, porque verá a Deus.

Bem-aventurado este povo pacífico, de idealismo limpo de jacobismos e racismos, porque será chamado filho de Deus.

Bem-aventurado este povo que leva seu amor à Igreja a ponto de lutar e sofrer por ele, porque dele é o reino dos céus".

7 de Setembro, 1942. 

Wednesday, 20 March 2024

Good Reading: "Quando é Instável a Base…" by Plinio Corrêa de Oliveira (in Portuguese)

 Publicado originalmente em Catolicismo Nº149, em maio de 1963

 

Jamais se usou tanto como em nossos dias, a palavra “social”. E também jamais tanto se abusou dela.

É este um fenômeno típico das épocas de crise: usar e abusar das palavras que exprimem grandes e augustos conceitos, de maneira a coonestar e até a prestigiar com elas os mitos, as fobias, as aspirações torvas e febricitantes das coletividades convulsionadas pela demagogia.

Deu-se isto, por exemplo, nos séculos XVIII e XIX com o nobre vocábulo “liberdade”. Nosso Senhor é por excelência o Libertador. Foi Ele quem quebrou os grilhões do pecado e da morte, e deu ao homem recursos superabundantes para se libertar da tirania do demônio e das paixões desordenadas. “Veritas liberabit vos” ( Jo. 8, 32 ), disse Ele.

E a Verdade, fonte da genuína liberdade, Ele a definiu claramente: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” ( Jo. 14, 6 ). Isso não obstante, o liberalismo que hipnotizava os espíritos daquela época, trombeteando aos quatro ventos a palavra “liberdade”, deturpou-lhe o sentido. Ela passou a não designar mais a soberana liberdade da Verdade e do Bem, triunfantes sobre o Erro e o Mal, mas o “direito” para o Erro e o Mal de fazer tudo quanto se permite à Verdade e ao Bem, e de agredir, perseguir, vilipendiar, caluniar à vontade os que são verazes e bons.

Daí um verdadeiro caudal de erros e até de crimes, provocado pelo liberalismo: “Liberdade, quantos crimes são cometidos em teu nome”, exclamou a liberal Madame Roland.

Leão XIII, na Encíclica “Libertas”, publicada no ano de 1888, distinguiu com exímia clareza a verdadeira liberdade cristã, da falsa liberdade revolucionária. O ensinamento pontifício serviu para esclarecer e orientar inúmeras pessoas. Não obstante, não logrou evitar que, grosso modo, as multidões ainda tenham em nossos dias um conceito de liberdade que, ou é exclusivamente revolucionário, ou é uma mescla deplorável de elementos revolucionários e de alguns vislumbres do conceito cristão, num sincretismo com o qual só a Revolução tem a ganhar. Tal é a força do erro e do mal, nas épocas de crise.

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Sim, tal é a sua força… E por isto hoje em dia a palavra “social” é tão torcida, sofismada e deturpada quanto era outrora a palavra “liberdade”. Disto é prova dolorosa toda a tempestade suscitada em torno do termo “socialização”, para demonstrar que a Encíclica “Mater et Magistra”, fundamentalmente anti-socialista, seria uma ponte lançada sobre o abismo que separa a doutrina católica da doutrina socialista.

Tanto se fala no Brasil de hoje em “social” e mais especialmente em justiça social! Nobres expressões, canonizadas até pelo seu freqüente emprego nos documentos pontifícios! Queira Deus, entretanto, que em breve não se diga delas, como da liberdade: “quantos crimes são cometidos em seu nome!”.

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Social… sociedade. Haverá algo de mais santa e augustamente social do que velar pela família? Pois a demagogia explora a palavra “social”, tanto mais os vários significados legítimos desta se vão obliterando. Ela vai perdendo muito de seu conteúdo bom, e se vai metamorfoseando lamentavelmente. Característico é o que se passa, nesse particular, no que diz respeito à família face a este novo espírito “social”. A noção de que ela é a base da sociedade vai passando para o segundo plano, e… a família vai ruindo aos pedaços. E isso em meio à indiferença completa dos nossos demagogos “sociais”.

São estas as considerações que nos sugere a leitura freqüente, na imprensa francesa, de anúncios de castelos para vender. Em nossos clichês, por exemplo, reproduzimos anúncios publicados [na internet] por corretores que oferecem lindos castelos para qualquer comprador.

E ainda é menos mal quando edifícios como estes passam das mãos das famílias que fizeram sua história para as de outras que lhes conservam pelo menos um caráter residencial distinto. Pois não é raro que essas ilustres mansões percam inteiramente seu cunho originário, transformando-se em fábricas, ou outra coisa qualquer.

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Sentimos de longe o rugido do espírito igualitário ao ler esta afirmação: que tem de ruim isto? Então as famílias nobres, que tantas vezes decaem por culpa própria, devem estar vacinadas contra as condições hodiernas que obrigam a estar mudando constantemente de lar, não só nos campos como nos grandes centros?

O mal está precisamente nisto: a instabilidade das famílias contemporâneas, em suas moradias, é o reflexo da instabilidade das condições de vida da família como instituição. E toda instituição que vive em condições instáveis caminha para a ruína. Tal instabilidade é mais visível quando se trata de moradias prestigiosas de famílias ilustres. Se ela afetasse só as famílias de grande importância, já constituiria de per si um perigo para todo o corpo social. O fato de que essa instabilidade não ocorre apenas em algumas famílias, mas em todas, não prova que nisto não haja mal: prova precisamente que o mal é imenso!

E de que instituição se trata: da que é a base da sociedade!…

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Haverá algo de mais “social” do que velar pela família?

Tanto se fala de reformas de base. Quem, entre os “arditi”, desse reformismo, fala seriamente de reformar a base, isto é, a família? Que espírito “social” é este, que não tem olhos para ver a crise da família, e a insuficiência de todas as medidas destinadas a salvar uma sociedade em que a base está minada?

Mas, dirá talvez alguém, a reforma urbana não visa exatamente dar uma casa a cada família que não a tem?

A família e a propriedade são instituições conexas. São como os dois olhos na face humana. Golpeada uma, está golpeada a outra. Consolidar a família declarando que o Estado tem o direito de confiscar a propriedade, é o mesmo que furar um dos olhos de um estrábico para remediar o fato de que seus dois olhos não convergem para o mesmo foco.

E depois… família? É a cada família que se pretende dar uma casa? Família só é a que se funda no casamento. A nossa legislação do inquilinato tanto favorece a família autêntica quanto a que se funda no concubinato. Qual o ingênuo que imagina faria a reforma urbana coisa diversa?

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Aqui fica a prova da grave deformação do senso social que apresenta a social-demagogia reinante.

A palavra “social” só lhe atrai a simpatia quando serve para fomentar a luta de classe. É verdade que, quando a base é instável, rui o edifício. Mas que importa isto à demagogia? Ou, antes, não é precisamente isto que ela visa?