Palmeira, 3 de janeiro de
1929.
MARÇAL JOSÉ OLIVEIRA
Secretário
Visto. — Palmeira, 8 de
janeiro, 1929.
GRACILIANO RAMOS
Prefeitura
Municipal de Palmeira dos Índios. — Relatório ao Governador de Alagoas. — Sr.
Governador. — Esta exposição é talvez desnecessária. O balanço que remeto a V.
Exa. mostra bem de que modo foi gasto em 1929 o dinheiro da Prefeitura
Municipal de Palmeira dos Índios. E nas contas regularmente publicadas há
pormenores abundantes, minudências que excitaram o espanto benévolo da
imprensa.
Isto é,
pois, uma reprodução de fatos que já narrei, com algarismo e prova de
guarda-livros, em numerosos balancetes e nas relações que os acompanharam.
RECEITA
— 96:924$985
No
orçamento do ano passado houve supressão de várias taxas que existiam em 1928.
A receita, entretanto, calculada em 68:850$000, atingiu 96:924$985.
E não
empreguei rigores excessivos. Fiz apenas isto: extingui favores largamente
concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo às extorsões que
afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados,
esbrugados pelos exatores.
Não me
resolveria, é claro, a pôr em prática no segundo ano de administração a
eqüidade que torna o imposto suportável. Adotei-a logo no começo. A receita em
1928 cresceu bastante. E se não chegou à soma agora alcançada é que me foram
indispensáveis alguns meses para corrigir irregularidades muito sérias,
prejudiciais à arrecadação.
DESPESA
— 105:465$613
Utilizei
parte das sobras existentes no primeiro balanço.
ADMINISTRAÇÃO
— 22:667$748
Figuram
7:034$558 despendidos com a cobrança das rendas, 3:518$000 com a fiscalização e
2:400$000 pagos a um funcionário aposentado. Tenho seis cobradores, dois
fiscais e um secretário.
Todos
são mal remunerados.
GRATIFICAÇÕES
— 1:560$000
Estão
reduzidas.
CEMITÉRIO
— 243$000
Pensei
em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será
insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não
me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos
esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam.
ILUMINAÇÃO
— 7:800$000
A
Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o
fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que
assinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá.
HIGIENE
— 8:454$190
O
estado sanitário é bom. O posto de higiene, instalado em 1928, presta serviços
consideráveis à população. Cães, porcos e outros bichos incômodos não tornaram
a aparecer nas ruas. A cidade está limpa.
INSTRUÇÃO
— 2:886$180
Instituíram-se
escolas em três aldeias: Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. O Conselho
mandou subvencionar uma sociedade aqui fundada por operários, sociedade que se
dedica à educação de adultos.
Presumo
que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras
revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas
algumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras.
Não
creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade
precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos,
passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.
UMA
DÍVIDA ANTIGA — 5:210$000
Entregaram-me,
quando entrei em exercício, 105$858 para saldar várias contas, entre elas uma
de 5:210$000, relativa a mais de um semestre que deixaram de pagar à empresa
fornecedora de luz.
VIAÇÃO
E OBRAS PÚBLICAS — 56:644$495
Os
gastos com viação e obras públicas foram excessivos. Lamento, entretanto, não
me haver sido possível gastar mais. Infelizmente a nossa pobreza é grande. E
ainda que elevemos a receita ao dobro da importância que ela ordinariamente
alcançava, e economizemos com avareza, muito nos falta realizar. Está visto que
me não preocupei com todas as obras exigidas. Escolhi as mais urgentes.
Fiz
reparos nas propriedades do Município, remendei as ruas e cuidei especialmente
de viação.
Possuímos
uma teia de aranha de veredas muito pitorescas, que se torcem em curvas
caprichosas, sobem montes e descem vales de maneira incrível. O caminho que vai
a Quebrangulo, por exemplo, original produto de engenharia tupi, tem lugares
que só podem ser transitados por automóvel Ford e por lagartixa. Sempre me
pareceu lamentável desperdício consertar semelhante porcaria.
ESTRADA
PALMEIRA A SANT’ANA
Abandonei
as trilhas dos caetés e procurei saber o preço duma estrada que fosse ter a
Sant’Ana do Ipanema. Os peritos responderam que ela custaria aí uns seiscentos
mil-réis ou sessenta contos. Decidi optar pela despesa avultada.
Os
seiscentos mil-réis ficariam perdidos entre os barrancos que enfeitam um
caminho atribuído ao defunto Delmiro Gouveia e que o Estado pagou com
liberalidade: os sessenta contos, caso eu os pudesse arrancar ao povo, não
serviriam talvez ao contribuinte, que, apertado pelos cobradores, diz sempre
não ter encomendado obras públicas, mas a alguém haveriam de servir. Comecei os
trabalhos em janeiro. Estão prontos vinte e cinco quilômetros. Gastei
26:871$930.
TERRAPLENO
DA LAGOA
Este
absurdo, este sonho de louco, na opinião de três ou quatro sujeitos que sabem
tudo, foi concluído há meses.
Aquilo,
que era uma furna lôbrega, tem agora, terminado o aterro, um declive suave. Fiz
uma galeria para o escoamento das águas. O pântano que ali havia, cheio de
lixo, excelente para a cultura de mosquitos, desapareceu. Deitei sobre as
muralhas duas balaustradas de cimento armado. Não há perigo de se despenhar um
automóvel lá de cima.
O plano
que os técnicos indígenas consideravam impraticável era muito mais modesto.
Os
gastos em 1929 montaram a 24:391$925.
SALDO —
2:504$319
Adicionando-se
à receita o saldo existente no balanço passado e subtraindo-se a despesa, temos
2:504$319.
2:365$969
estão em caixa e 138$350 depositados no Banco Popular e Agrícola de Palmeira.
PRODUÇÃO
Dos administradores
que me precederam uns dedicaram-se a obras urbanas; outros, inimigos de
inovações, não se dedicaram a nada.
Nenhum,
creio eu, chegou a trabalhar nos subúrbios.
Encontrei
em decadência regiões outrora prósperas; terras aráveis entregues a animais,
que nelas viviam quase em estado selvagem. A população minguada, ou emigrava
para o Sul do país ou se fixava nos municípios vizinhos, nos povoados que
nasciam perto das fronteiras e que eram para nós umas sanguessugas. Vegetavam
em lastimável abandono alguns agregados humanos.
E o
palmeirense afirmava, convicto, que isto era a princesa do sertão. Uma
princesa, vá lá, mas princesa muito nua, muito madraça, muito suja e muito
escavacada.
Favoreci
a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei as patifarias dos
pequeninos senhores feudais, exploradores da canalha; suprimi, nas questões
rurais, a presença de certos intermediários, que estragavam tudo; facilitei o
transporte; estimulei as relações entre o produtor e o consumidor.
Estabeleci
feiras em cinco aldeias: 1:156$750 foram-se em reparos nas ruas de Palmeira de
Fora.
Canafístula
era um chiqueiro. Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados com
gente. Nunca vi tanto porco.
Desapareceram.
E a povoação está quase limpa. Tem mercado semanal, estrada de rodagem e uma
escola.
MIUDEZAS
Não
pretendo levar ao público a ideia de que os meus empreendimentos tenham vulto.
Sei perfeitamente que são miuçalhas. Mas afinal existem. E, comparados a outros
ainda menores, demonstraram que aqui pelo interior podem tentar-se coisas um
pouco diferentes dessas invisíveis sem grande esforço de imaginação ou
microscópio.
Quando
iniciei a rodovia de Sant’Ana, a opinião de alguns munícipes era de que ela não
prestava porque estava boa demais. Como se eles não a merecessem. E
argumentavam. Se aquilo não era péssimo, com certeza sairia caro, não poderia
ser executado pelo Município.
Agora
mudaram de conversa. Os impostos cresceram, dizem.
Ou as
obras públicas de Palmeira dos Índios são pagas pelo
Estado.
Chegarei a convencer-me de que não fui eu que as realizei.
BONS
COMPANHEIROS
Já
estou convencido. Não fui eu, primeiramente porque o dinheiro despendido era do
povo, em segundo lugar porque tornaram fácil a minha tarefa uns pobres homens
que se esfalfam para não perder salários miseráveis.
Quase
tudo foi feito por eles. Eu apenas teria tido o mérito de escolhê-los e
vigiá-los, se nisto houvesse mérito.
MULTAS
Arrecadei
mais de dois contos de réis de multas. Isto prova que as coisas não vão bem.
E não
se esmerilharam contravenções. Pequeninas irregularidades passam despercebidas.
As infrações que produziram soma considerável para um orçamento exíguo
referem-se a prejuízos individuais e foram denunciadas pelas pessoas ofendidas,
de ordinário gente miúda, habituada a sofrer a opressão dos que vão trepando.
Esforcei-me
por não cometer injustiças. Isto não obstante, atiraram as multas contra mim
como arma política. Com inabilidade infantil, de resto. Se eu deixasse em paz o
proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em
pasto a lavoura, devia enforcar-me.
Sei bem
que antigamente os agentes municipais eram zarolhos. Quando um infeliz se
cansava de mendigar o que lhe pertencia, tomava uma resolução heroica:
encomendava-se a Deus e ia à capital. E os prefeitos achavam razoável que os
contraventores fossem punidos pelo sr. secretário do Interior, por intermédio
da polícia.
REFORMADORES
O
esforço empregado para dar ao Município o necessário é vivamente combatido por
alguns pregoeiros de métodos administrativos originais. Em conformidade com
eles, deveríamos proceder sempre com a máxima condescendência, não onerar os
camaradas, ser rigorosos apenas com os pobres-diabos sem proteção, diminuir a
receita, reduzir a despesa aos vencimentos dos funcionários, que ninguém vive
sem comer, deixar esse luxo de obras públicas à Federação, ao Estado ou, em
falta destes, à Divina Providência.
Belo
programa. Não se faria nada, para não descontentar os amigos: os amigos que
pagam, os que administram, os que hão de administrar. Seria ótimo. E existiria
por preço baixo uma Prefeitura bode expiatório, magnífico assunto para
commérage de lugar pequeno.
POBRE
POVO SOFREDOR
É uma
interessante classe de contribuintes, módica em número, mas bastante forte.
Pertencem a ela negociantes, proprietários, industriais, agiotas que esfolam o
próximo com juros de judeu.
Bem-comido,
bem-bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer
higiene. É exigente e resmungão.
Como
ninguém ignora que se não obtém de graça as coisas exigidas, cada um dos
membros desta respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelos
outros.
PROJETOS
Tenho
vários, de execução duvidosa. Poderei concorrer para o aumento da produção e,
consequentemente, da arrecadação. Mas umas semanas de chuva ou de estiagem
arruínam as searas, desmantelam tudo — e os projetos morrem.
Iniciarei,
se houver recursos, trabalhos urbanos.
Há pouco tempo, com a iluminação que temos,
pérfida, dissimulavam-se nas ruas sérias ameaças à integridade das canelas
imprudentes que por ali transitassem em noites de escuro.
Já uma
rapariga aqui morreu afogada no enxurro. Uma senhora e uma criança, arrastadas
por um dos rios que se formavam no centro da cidade, andaram rolando de
cachoeira em cachoeira e danificaram na viagem braços, pernas, costelas e
outros órgãos apreciáveis.
Julgo
que, por enquanto, semelhantes perigos estão conjurados, mas dois meses de
preguiça durante o inverno bastarão para que eles se renovem.
Empedrarei,
se puder, algumas ruas.
Tenho
também a ideia de iniciar a construção de açudes na zona sertaneja.
Mas
para que semear promessas que não sei se darão frutos? Relatarei com pormenores
os planos a que me referia quando eles estiverem executados, se isto acontecer.
Ficarei,
porém, satisfeito se levar ao fim as obras que encetei. É uma pretensão
moderada, realizável. Se não realizar, o prejuízo não será grande.
O
Município, que esperou dois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura um sujeito
hábil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos.
Paz e prosperidade.
Palmeira dos Índios, 11 de janeiro de
1930.