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Saturday 2 March 2024

Good Reading: "Cumprindo Meu Dever" by Olavo de Carvalho (in Portuguese)

 

Um homem de pensamento deve ser fiel à verdade tal como ela se lhe apresenta a cada momento no exame das questões concretas, sem deixar-se envolver por uma atmosfera mental que tinja todo o seu horizonte de consciência com uma tonalidade geral e prévia de “esquerda”, de “direita” ou seja lá do que for. Pessoalmente, nunca me manifestei a favor de nenhuma política “de direita”, e é por pura indução psicótica e ressentimento de complexados que uns sujeitos de esquerda tentam enxergar em mim um feroz direitista. Deduzem isto das críticas que lhes faço. Raciocinam na base schmittiana do “Quem não está conosco está do outro lado”, mostrando que nem sequer em imaginação podem conceber que exista uma inteligência livre, capaz de atacar o mal sem cair no automatismo mentecapto de supor que a simples inversão da ruindade faria dela um bem.

Logicamente falando, a posição política de um indivíduo jamais pode ser inferida das críticas, por mais duras, que dirija a uma ideologia ou partido, pela simples razão de que críticas idênticas podem ser feitas desde várias posições ideológicas. O sionismo foi atacado com igual vigor pela extrema-direita e pelos comunistas. O fundamentalismo islâmico é tão abominado pelos cristãos conservadores quanto pela esquerda feminista e gay ou pelos liberais modernistas e ateus.

Só uma tomada de posição positiva em favor de determinadas políticas é que define identidade e compromisso ideológicos. A crítica é livre e pode vir de todas as direções.

A mentalidade comunista, no entanto, desconhece a tal ponto a liberdade de pensamento, subjuga tão pesadamente a inteligência ao comando partidário, que chega a catalogar a ideologia de um sujeito não pelas intenções e valores que ele professe, mas pela simples conjecturação hipotética e quase sempre paranóica do benefício político ou publicitário que partidos ou correntes possam auferir de suas palavras, ainda que oportunisticamente e contra a vontade dele. Na imaginação dos comunistas, ninguém afirma “x” ou “y” com a simples intenção de dizer a verdade, mas sempre com a premeditação de algum resultado político, mesmo remotíssimo. É que eles pensam assim, eles são indiferentes à verdade e à falsidade e só abrem a boca em vista de efeitos políticos. Por isso imaginam que o resto da Humanidade também é assim.

Foi com base nesse raciocínio alucinadamente projetivo que o Estado soviético chegou a condenar como crime a indiferença política, por julgar que ela denotava sinistras intenções contra-revolucionárias. Boris Pasternak foi parar na cadeia por conta disso.

Da minha parte, estou persuadido de que o homem de pensamento deve ser escrupulosamente comedido ao opinar a favor de qualquer política em especial: ele deve simplesmente fazer a crítica do que é ruim e perverso, deixando ao público e aos políticos, àqueles que se orgulham de ser “homens práticos” e que têm o dever de sê-lo, a decisão de políticas positivas que hão de suprimir ou remediar o mal.

Ademais, se critico a esquerda é porque hoje só existe esquerda. Não há direita nenhuma no Brasil. Há direitistas, mas cada um fechado nas suas convicções privadas, sem qualquer ação de conjunto. A prova mais patente é que a palavra “direita” só aparece na imprensa com conotações sombrias e criminais, jamais como a designação de uma corrente política que tenha o direito de existir como qualquer outra. Apontar um homem como direitista é acusá-lo de conspirador, de golpista, de corrupto, de torturador. Tanto é assim, que qualquer delito cometido em interesse próprio por analfabetos coronéis do sertão é imediatamente atribuído à “direita”, o que é pelo menos tão absurdo quanto enxergar motivação ideológica esquerdista em todos os crimes cometidos por meninos de rua. Só se pode falar nesse tom, impunemente, de uma minoria de párias sem voz nem poder. O curioso é que aqueles mesmos que sem temor de represália falam da direita nesses termos, provando com isto que ela não tem poder nenhum, querem nos fazer crer que ela existe, que ela é uma força organizada e manda no Brasil. Tudo isso é puro histrionismo de uma esquerda que sabe que está no poder mas não deseja assumir as responsabilidades de sua situação.

Hoje o establishment é esquerdista, a oposição também. Leiam as cartilhas de marxismo-leninismo do Ministério da Educação e me digam se um governo que educa as crianças nessa mentalidade não é comunista em espírito, conformado provisoriamente com o capitalismo que não pode suprimir. E qual governo sem forte inspiração comunista desejaria a supressão do sigilo bancário? Nessas condições, seria hipocrisia eu falar mal da “direita” só para me fazer de bom menino e afetar uma independência estereotipada. A independência autêntica não teme os rótulos que lhe queiram impor e não foge deles mediante o apelo a discursos de ocasião. Diz o que tem de dizer, e pronto. A confusão que façam em torno dela corre por conta da malícia e da sem-vergonhice de cada um.

 

O Globo, 30 de dezembro de 2000

 

Wednesday 3 January 2024

Good Reading: "Chávez, Lula e Gurdjieff" by Olavo de Carvalho (in Portuguese)

 

Na opinião do sr. Hugo Chávez, que com leves diferenças de nuance é a mesma do nosso governo e da nossa mídia, as Farc, que assaltam, seqüestram e matam a granel, não são uma organização terrorista de maneira alguma; terrorista é a TFP, que nunca matou um mosquito nem sugeriu o roubo de uma azeitona.

Quando lhes digo que o traço essencial e permanente da mentalidade revolucionária é a inversão psicótica, não estou brincando, nem exagerando, nem fazendo figura de retórica: estou apontando um dos fatos mais bem documentados da história cultural dos últimos séculos – um fato que pode ser verificado tanto nas estruturas gerais do pensamento revolucionário quanto nas atitudes práticas e até nos detalhes de linguagem de seus representantes mais notórios.

Quando o sr. Luís Inácio Lula da Silva se recusa a dizer uma palavrinha em favor de um preso político cubano em greve de fome, alegando escrúpulos de interferir nos assuntos internos de uma nação estrangeira, ao mesmo tempo que ajuda a reintroduzir no território hondurenho um presidente banido e se gaba de ter metido gostosamente o bedelho do Foro de São Paulo nos plebiscitos venezuelanos, ele ultrapassa os limites da mentira política normal, que no mínimo respeita um pouco o senso do verossímil: ele entra com as quatro patas no campo da inversão psicótica, chocando a platéia ao ponto de idiotizá-la, dessensibilizando-a para o absurdo do que está ouvindo.

Embora esse modo de falar possa se consolidar como vício ao ponto de seu próprio usuário se tornar insensível à maldade que pratica quando o emprega, na verdade ele se originou como uma técnica psicológica muito bem elaborada. Denomino-a “impressão paradoxal”, embora na bibliografia seja citada também com outros nomes, como “dissonância cognitiva” ou “psicose informática”. Georges Ivanovitch Gurdjieff, o maior gênio do charlatanismo esotérico, usava esse tipo de discurso para estontear seus discípulos e reduzi-los a uma obediência canina. Por exemplo, ele mobilizava todo o arsenal lógico do materialismo científico para persuadi-los de que eram apenas máquinas, de que não tinham alma nenhuma, e em seguida afirmava, com a maior seriedade, que poderiam adquirir uma alma… mediante uma certa quantia em dinheiro.

O sujeito que ouvia uma coisa dessas caía imediatamente numa zona nebulosa entre a piada e a realidade, sem saber como reagir ante a impressão paradoxal. Reaplicada a técnica um certo número de vezes, o infeliz perdia todo interesse em compreender racionalmente a situação e daí por diante se deixava conduzir pelo mestre como uma vaca puxada pela argola do nariz.

Quando Gurdjieff introduziu essa técnica no Ocidente, talvez nem ele próprio imaginasse a velocidade com que ela se disseminaria entre os políticos e os intelectuais ativistas, como um instrumento perfeito para tornar as massas incapazes de diferenciar entre a percepção humana normal e a inversão psicótica.

Adolf Hitler, que consta ter recebido a influência de um discípulo de Gurdjieff (Klaus Haushoffer), criou uma técnica oratória inteiramente baseada na impressão páradoxal, articulando o grotesco e o temível de modo que a platéia sentisse ao mesmo tempo o desejo de rir dele e o medo de ser punida por isso. Que fazer então, senão jogar fora o próprio cérebro e trocá-lo por uma recompensadora aceitação passiva do que desse e viesse? (Mutatis mutandis, foi por esse mesmo artifício que o sr. Lula transmutou, no coração do seu público, a piedade em admiração fingida, e a admiração fingida em bajulação compulsiva.)

Os comunistas deram um uso muito mais amplo a essa técnica, extorquindo do seu público a aprovação a crimes hediondos em nome dos sentimentos mais altos e sublimes, forçando a elasticidade moral até o último limite do humanamente suportável. A contradição internalizada acumulava-se no inconsciente até o ponto em que as vítimas estourariam se não descarregassem seus sentimentos de culpa sobre algum bode expiatório, acusando-o de toda sorte de delitos imaginários. Daí a facilidade com que o público – não só o exército dos militantes, mas a vasta massa dos intoxicados pela “onipresença invisível” da cultura revolucionária – perde todo senso de verossimilhança e acaba aceitando como razoável a conversa idiota de que a TFP é uma organização de alta periculosidade ou de que o sr. Alejandro Peña Esclusa, malgrado seu diploma de engenheiro, guardava em casa, ao lado do quarto onde dormiam suas três filhas pequenas, explosivos suficientes para fazer seu prédio voar em cacos.

20 de julho de 2010.

Saturday 30 December 2023

Good Reading: "Mensagem de Natal" by Olavo de Carvalho (in Portuguese)

Só existe um motivo para celebrar o Natal, mas esse motivo é tão amplamente ignorado que as festas natalinas devem ser consideradas uma superstição em sentido estrito, a repetição ritualizada de uma conduta habitual que já não tem significado nenhum e na qual, portanto, cada um está livre para projetar as fantasias bobas que bem entenda.

Jesus Cristo, encarnação do Verbo Divino, ou inteligência de Deus, veio ao mundo para oferecer-se como vítima sacrificial única e definitiva, encerrando um ciclo histórico que durava desde as origens da humanidade e que era regido essencialmente pela Lei do Sacrifício (v. Ananda Coomaraswamy, A Lei do Sacrifício, e René Girard, O Bode Expiatório).

A Lei do Sacrifício é inerente à estrutura da existência cósmica. Só Deus tem a plenitude do ser, e o que quer que exista sem ser Deus tem uma existência precária, fundada num débito ontológico insanável, que na escala da alma humana se manifesta como culpa.

A Lei do Sacrifício não pode ser suspensa e jamais o foi.

O que Nosso Senhor Jesus Cristo fez foi cumpri-la toda de uma vez, instituindo em lugar do Sacrifício a Eucaristia, que é a recordação do ato sacrificial definitivo. A recordação passa então a ter o valor de uma repetição sem necessidade de novas vítimas.

Antes as vítimas se somavam: 1 + 1 + 1 + 1…

Agora a vítima única se multiplica por si mesma no ato da Eucaristia: 1 x 1 x 1 x 1…

Façam as contas e compreenderão por que o Natal deve ser celebrado.

O problema é que o fim de um ciclo histórico não traz necessariamente, para as gerações seguintes, a consciência da mutação ocorrida.

Essa consciência deve ser reconquistada e retransmitida de geração em geração, e na sociedade moderna essa transmissão cessou já faz algum tempo. Pouquíssimas pessoas têm uma consciência clara do que ganharam com o Natal. A maioria, mesmo quando recebe presentes, não sabe que eles apenas simbolizam um ganho muito maior que já foi obtido 2003 anos atrás.

Esse ganho pode ser explicado em poucas palavras:

Todo homem, pelo simples fato de existir, é atormentado pela culpa e vive num constante discurso interior de acusação e defesa, que produz medo, ódio, inveja, ciúme, busca obsessiva de aprovação. Esses sentimentos tornam o homem vulnerável às palavras más, às acusações e insinuações que lhe chegam de seus semelhantes, da cultura ambiente ou de seu próprio interior. O conjunto dessas acusações e insinuações é o espírito demoníaco, que em razão da culpa mesma tem poder incalculável sobre o ser humano. Em busca de proteção contra esse poder, o homem se submete aos maus e aos intrigantes, isto é, aos representantes do próprio espírito demoníaco, acreditando que aqueles que podem feri-lo devem também poder ajudá-lo. Com isso ele se torna a vítima sacrificial, o bode expiatório num grotesco ritual simulado.

Cristo adverte-nos que esse sacrifício é inútil, desnecessário e pecaminoso. Não existe no mundo um poder ou autoridade habilitado a exigir vítimas. Deus Pai só exigiu uma, e Ele mesmo a forneceu. Quem quer que, depois disso, se sinta culpado, não deve se oferecer como vítima sacrificial perante altar nenhum. Deve apenas recordar-se do sacrifício de Cristo e alegrar-se. Isso é tudo.

Muitas pessoas até sabem que as coisas são assim, mas entendem isso somente do ponto de vista religioso formal, sem tirar desse conhecimento as conseqüências práticas de ordem psicológica, que são portentosas:

Aquele que se ofereceu para ser sacrificado em nosso lugar não é um cobrador de dívidas nem um acusador, mas um salvador. Ele nada pede, apenas oferece. E em troca aceita uma palavrinha, um sorriso, uma intenção inexpressa, qualquer coisa, pois não é irritadiço nem orgulhoso: é manso e humilde.

Se, sabendo disso, você ainda é vulnerável aos olhares acusadores e às palavras venenosas, se ainda sente ante os intrigantes e os maldosos um pouco de temor reverencial e tenta aplacá-los com mostras de submissão para que eles não o exponham à vergonha ou não o castiguem de algum outro modo, é porque ainda não compreendeu o sentido do Natal.

Esse sentido é simples e direto: os maus e intrigantes não têm mais nenhuma autoridade sobre você. Não baixe a cabeça perante eles, não consinta que suas fraquezas sejam exploradas pela malícia do mundo.

Jesus Cristo já pagou a sua dívida.

É por isso que comemoramos o Natal.

25 de dezembro de 2003.

Wednesday 9 November 2022

Good Reading: "Che Cos’è Questo Golpe?" by Pier Paolo Pasolini (in Italian)

Io so.

Io so i nomi dei responsabili di quello che viene chiamato golpe (e che in realtà è una serie di golpes istituitasi a sistema di protezione del potere).

Io so i nomi dei responsabili della strage di Milano del 12 dicembre 1969.

Io so i nomi dei responsabili delle stragi di Brescia e di Bologna dei primi mesi del 1974.

Io so i nomi del «vertice» che ha manovrato, dunque, sia i vecchi fascisti ideatori di golpes, sia i neofascisti autori materiali delle prime stragi, sia infine, gli «ignoti» autori materiali delle stragi più recenti.

Io so i nomi che hanno gestito le due differenti, anzi, opposte, fasi della tensione: una prima fase anticomunista (Milano 1969) e una seconda fase antifascista (Brescia e Bologna 1974).

Io so i nomi del gruppo di potenti, che, con l’aiuto della CIA (e in second’ordine dei colonnelli greci e della mafia), hanno prima creato (del resto miseramente fallendo) una crociata anticomunista, a tamponare il 1968, e in seguito, sempre con l’aiuto e per ispirazione della CIA, Si sono ricostituiti una verginità antifascista, a tamponare il disastro del referendum.

Io so i nomi di coloro che, tra una messa e l’altra, hanno dato le disposizioni e assicurato la protezione politica a vecchi generali (per tenere in piedi, di riserva, l’organizzazione di un potenziale colpo di Stato), a giovani neofascisti, anzi neo-nazisti (per creare in concreto la tensione anticomunista) e infine a criminali comuni, fino a questo momento, e forse per sempre, senza nome (per creare la successiva tensione antifascista). Io so i nomi delle persone serie e importanti che stanno dietro a dei personaggi comici come quel generale della Forestale che operava, alquanto operettisticamente, a Città Ducale (mentre i boschi italiani bruciavano), o a dei personaggi grigi e puramente organizzativi come il generale Miceli.

Io so i nomi delle persone serie e importanti che stanno dietro ai tragici ragazzi che hanno scelto le suicide atrocità fasciste e ai malfattori comuni, siciliani o no, che si sono messi a disposizione, come killer e sicari.

Io so tutti questi nomi e so tutti i fatti (attentati alle istituzioni e stragi) di cui si sono resi colpevoli.

Io so. Ma non ho le prove. Non ho nemmeno indizi.

Io so perché sono un intellettuale, uno scrittore, che cerca di seguire tutto ciò che succede, di conoscere tutto ciò che se ne scrive, di immaginare tutto ciò che non si sa o che si tace; che coordina fatti anche lontani, che mette insieme i pezzi disorganizzati e frammentari di un intero coerente quadro politico, che ristabilisce la logica là dove sembrano regnare l’arbitrarietà, la follia e il mistero.

Tutto ciò fa parte del mio mestiere e dell’istinto del mio mestiere. Credo che sia difficile che il mio «progetto di romanzo» sia sbagliato, che non abbia cioè attinenza con la realtà, e che i suoi riferimenti a fatti e persone reali siano inesatti. Credo inoltre che molti altri intellettuali e romanzieri sappiano ciò che so io in quanto intellettuale e romanziere. Perché la ricostruzione della verità a proposito di ciò che è successo in Italia dopo il 1968 non è poi così difficile.

Tale verità – lo si sente con assoluta precisione – sta dietro una grande quantità di interventi anche giornalistici e politici: cioè non di immaginazione o di finzione come è per sua natura il mio.

Ultimo esempio: è chiaro che la verità urgeva, con tutti i suoi nomi, dietro all’editoriale del «Corriere della sera», del 1o novembre 1974.

Probabilmente i giornalisti e i politici hanno anche delle prove o, almeno, degli indizi.

Ora il problema è questo: i giornalisti e i politici, pur avendo forse delle prove e certamente degli indizi, non fanno i nomi.

A chi dunque compete fare questi nomi? Evidentemente a chi non solo ha il necessario coraggio, ma, insieme, non è compromesso nella pratica col potere, e, inoltre, non ha, per definizione, niente da perdere: cioè un intellettuale.

Un intellettuale dunque potrebbe benissimo fare pubblicamente quei nomi: ma egli non ha né prove né indizi.

Il potere e il mondo che, pur non essendo del potere, tiene rapporti pratici col potere, ha escluso gli intellettuali liberi -proprio per il modo in cui è fatto – dalla possibilità di avere prove ed indizi.

Mi si potrebbe obiettare che io, per esempio, come intellettuale, e inventore di storie, potrei entrare in quel mondo esplicitamente politico (del potere o intorno al potere), compromettermi con esso, e quindi partecipare del diritto ad avere, con una certa alta probabilità, prove ed indizi.

Ma a tale obiezione io risponderei che ciò non è possibile, perché è proprio la ripugnanza ad entrare in un simile mondo politico che si identifica col mio potenziale coraggio intellettuale a dire la verità: cioè a fare i nomi.

Il coraggio intellettuale della verità e la pratica politica sono due cose inconciliabili in Italia.

All’intellettuale – profondamente e visceralmente disprezzato da tutta la borghesia italiana – si deferisce un mandato falsamente alto e nobile, in realtà servile: quello di dibattere i problemi morali e ideologici.

Se egli vien meno a questo mandato viene considerato traditore del suo ruolo: si grida subito (come se non si aspettasse altro che questo) al «tradimento dei chierici». Gridare al «tradimento dei chierici» è un alibi e una gratificazione per i politici e per i servi del potere.

Ma non esiste solo il potere: esiste anche un’opposizione al potere. In Italia questa opposizione è così vasta e forte, da essere un potere essa stessa: mi riferisco naturalmente al Partito comunista italiano.

E’ certo che in questo momento la presenza di un grande partito all’opposizione come il Partito comunista italiano è la salvezza dell’Italia e delle sue povere istituzioni democratiche.

Il Partito comunista italiano è un paese pulito in un paese sporco, un paese onesto in un paese disonesto, un paese intelligente in un paese idiota, un paese colto in un paese ignorante, un paese umanistico in un paese consumistico.

In questi ultimi anni tra il Partito comunista italiano, inteso in senso autenticamente unitario – in un compatto «insieme» di dirigenti, base e votanti – e il resto dell’Italia, si è aperto un baratro: per cui il Partito comunista italiano è divenuto appunto un «paese separato», un’isola. Ed è proprio per questo che esso può oggi avere rapporti stretti come non mai, col potere effettivo, corrotto, inetto, degradato: ma si tratta di rapporti diplomatici, quasi da nazione a nazione. In realtà le due morali sono incommensurabili, intese nella loro concretezza, nella loro totalità. E’ possibile, proprio su queste basi, prospettare quel «compromesso», realistico, che forse salverebbe l’Italia dal completo sfacelo: «compromesso» che sarebbe però in realtà una «alleanza» tra due Stati confinanti, o tra due Stati incastrati uno nell’altro.

Ma proprio tutto ciò che di positivo ho detto sul Partito comunista italiano, ne costituisce anche il momento relativamente negativo.

La divisione del paese in due paesi, uno affondato fino al collo nella degradazione e nella degenerazione, l’altro intatto e non compromesso, non può essere una ragione di pace e di costruttività. Inoltre, concepita, così come io l’ho qui delineata, credo oggettivamente, cioè come un paese nel paese, l’opposizione si identifica con un altro potere: che tuttavia è sempre potere.

Di conseguenza gli uomini politici di tale opposizione non possono non comportarsi anch’essi come uomini di potere.

Nel caso specifico, che in questo momento così drammaticamente ci riguarda, anch’essi hanno deferito all’intellettuale un mandato stabilito da loro. E, se l’intellettuale viene meno a questo mandato –    puramente morale e ideologico – ecco che egli è, con somma soddisfazione di tutti, un traditore.

Ora, perché neanche gli uomini politici dell’opposizione, se hanno –    come probabilmente hanno – prove o almeno indizi, non fanno i nomi dei responsabili reali, cioè politici, dei comici golpes e delle spaventose stragi di questi anni? E’ semplice: essi non li fanno nella misura in cui distinguono – a differenza di quanto farebbe un intellettuale – verità politica da pratica politica. E quindi, naturalmente, neanch’essi mettono al corrente di prove e indizi l’intellettuale non funzionario: non se lo sognano nemmeno, com’è del resto normale, data l’oggettiva situazione di fatto.

L’intellettuale deve continuare ad attenersi a quello che gli viene imposto come suo dovere, a iterare il proprio modo codificato di intervento.

Lo so bene che non è il caso – in questo particolare momento della storia italiana – di fare pubblicamente una mozione di sfiducia contro l’intera classe politica. Non è diplomatico, non è opportuno.

Ma queste sono categorie della politica, non della verità politica: quella che – quando può e come può – l’impotente intellettuale è tenuto a servire.

Ebbene, proprio perché io non posso fare i nomi dei responsabili dei tentativi di colpo di Stato e delle stragi (e non al posto di questo) io non posso non pronunciare la mia debole e ideale accusa contro l’intera classe politica italiana.

E lo faccio in quanto io credo alla politica, credo nei principi «formali» della democrazia, credo nel parlamento e credo nei partiti.

E naturalmente attraverso la mia particolare ottica che è quella di un comunista.

Sono pronto a ritirare la mia mozione di sfiducia (anzi non aspetto altro che questo) solo quando un uomo politico – non per opportunità, cioè non perché sia venuto il momento, ma piuttosto per creare la possibilità di tale momento – deciderà di fare i nomi dei responsabili dei colpi di Stato e delle stragi, che evidentemente egli sa, come me, ma su cui, a differenza di me, non può non avere prove, o almeno indizi.

Probabilmente – se il potere americano lo consentirà – magari decidendo «diplomaticamente» di concedere a un’altra democrazia ciò che la democrazia americana si è concessa a proposito di Nixon -questi nomi prima o poi saranno detti. Ma a dirli saranno uomini che hanno condiviso con essi il potere: come minori responsabili contro maggiori responsabili (e non è detto, come nel caso americano, che siano migliori). Questo sarebbe in definitiva il vero Colpo di Stato.

 

Wednesday 18 August 2021

Good Reading: "Os Últimos Instantes do Arcebispo" by Fr. Bruno Ricco (in Portguguese)

 Fr. Bruno Ricco was a eyewitness of Dom Francisco de Aquino Corrêa (2nd April 1885—22nd March 1956) death.

 

Foi no dia 22 de março. Sabedor de que muito se agravara seu estado de saúde, corri imediatamente ao Sanatório de Santa Catarina, às 6h30min. Em lá chegando, preparava-se o enfermo para receber o Sagrado Viático, o que se efetuou às 18 horas. A hora misticamente sugestiva da “Ave Maria”.

Antes, porém, lá pelas 16 horas, Dom Aquino perguntara à delicada Irmã Walburga: “Irmã, estou mal?” E a Irmã, com rude franqueza, necessária nessas horas, lhe respondeu: “Sim, Excelência. Quer receber a Extrema Unção?” Saiu-lhe espontânea a expressão que habitualmente tinha nos lábios “Que é isso?” e logo acrescentou: “Sim, quero…; é a terceira vez…”.

Completamente senhor de todas as suas faculdades, acompanhou com profunda piedade as orações do Ritual. Dirigindo-se à Irmã enfermeira que o assistia, perguntou-lhe se o Viático podia ficar para as 20 horas. Respondeu-lhe a Irmã: “Já que tem que lutar, é melhor lutar com Nosso Senhor”. “— Então, que venha logo”.

Achavam-se presentes os Reverendíssimos Padres José Fernandes Stringari, Diretor do Liceu Coração de Jesus, Pe. Teófilo Tworz, Vigário cooperador da Paróquia, o irmão leigo Carlos Godói e algumas Irmãs do Sanatório.

Ajoelhamo-nos todos ao redor do leito do amado Arcebispo.

Entra no quarto o Padre Capelão do Sanatório com o Sagrado Viático.

Acompanhamos comovidos todo o desenrolar da cerimônia.

O Senhor Arcebispo de Cuiabá recolhe-se, junta as mãos, concentra-se naquela piedade e fé eucarísticas que o caracterizavam.

Notei que, nesse instante, Dom Aquino chorava. Pressentia a morte. Recebeu a Sagrada Comunhão com muito recolhimento, movendo continuamente os lábios em fervorosas preces.

Depois de algum tempo, retiraram-se os Padres Diretor do Liceu e Teófilo. Permaneci o tempo todo ao lado do querido doente, fazendo o que é possível fazer nesse transe doloroso. Pedi-lhe uma bênção especial para a minha querida Paróquia. Fui prontamente atendido. Perguntando-lhe, alguma vez, como se sentia, dava como resposta: “Não estou bem”.

A certa altura, sai-se com este verso de Bocage: “Saiba morrer, o que viver não soube!” Disse-lhe, então: “Mas V. Ex.ª soube viver; sempre viveu bem”. Ao que ele logo acrescentou: “Que os Anjos digam: Amém!”

“Já que tem que lutar, é melhor lutar com Nosso Senhor”.

Pelas 19 horas, a fala começou a tornar-se dificultosa. Chamou diversas vezes pelo Bispo Auxiliar. Em dado momento me diz: “Que Dom Antônio comunique à Nunciatura…”. Certamente queria dizer: “o meu falecimento”.

Telefono ao Liceu, chamando o Padre Diretor, porque o desenlace se precipitava. Do Palácio do Senhor Cardeal pedem informações, respondo que o Senhor Arcebispo tem poucos instantes de vida.

Leio, então, a bela oração Anima Christi, sanctifica me, que ele acompanha com muita atenção. Para não cansá-lo, silencio. Pede-me, entretanto, que eu leia o hino Adoro te devote, composto por Santo Tomás de Aquino. Instantes depois, entra a Irmã Superiora do Sanatório. Com um sorriso franco, Dom Aquino agradece à Irmã e esta pede uma bênção para toda a comunidade. O Arcebispo traça a cruz por sobre a Superiora.

Recordo-me que nos achávamos às vésperas da solenidade das Dores de Nossa Senhora (sexta-feira da Semana da Paixão) e juntos rezamos a Salve Rainha. Dom Aquino rezava continuamente.

Leio as orações dos agonizantes por ele seguidas com plena lucidez de mente, e, às invocações, respondia Amém.

Chega Dom Paulo Rolim Loureiro, Bispo Auxiliar do Cardeal Mota, que o representa no momento. Dom Aquino já não fala. Faz gesto de beijar o Crucifixo que ele beija com unção.

Leio a oração: Proficiscere, anima christiana, de hoc mundo (Parte, alma cristã, deste mundo). Nisso, com suas próprias mãos, firmes, apesar do corpo quase frio, Dom Aquino arrumou melhor o travesseiro, e inclinando a cabeça para o lado do coração, suspirou profundamente, pela última vez.

Pusemos-lhe a vela acesa na mão.

Nenhum gemido. Morreu como viveu: placidamente, na Santa Paz do Senhor.

Thursday 30 April 2015

A Chronicle by José de Alencar (in Portuguese)



 Happy birthday, José de Alencar! (1829-1877)


Crônica publicada no jornal Correio Mercantil, em 19 de novembro de 1854.

Rio, 19 de novembro
Se a mitologia dos povos antigos tivesse dado formas de mulher, de fada ou ninfa, às semanas, como fêz com as horas, não me veria às vêzes em tão sérios embaraços para escrever esta revista.
                Em lugar de estar a cogitar idéias, a parafusar novidades, e a lembrar-me de fatos e coisas passadas, pediria emprestado a algum dos tipos da grande galeria feminina as feições e os traços para desenhar o meu original.
                Assim, quando me viesse uma semana alegre e risonha, mas muito inconstante, com uns dias cheios de nuvens, e outros límpidos e brilhantes, iluminados pelos raios esplêndidos do sol, uma semana elegante de teatros e de bailes, imaginaria alguma fada de formas graciosas, de olhos grandes, com uma certa altivez misturada de uma dose sofrível de loureirismo.
                Vestiria a minha fada de branco com algumas fitas côr-de-rosa, pedir-lhe-ia que me contasse com tôda a graça e travessura do seu espírito os segredos de suas horas e de seus instantes.
                Ao contrário, se fôsse uma semana bem calma e bem tranqüila, em que os dias corressem puros e serenos, em que fizesse umas belas noites de luar bem suaves e bem calmas, de céu azul e de estrêlas cintilantes, lembrar-me-ia de alguma moreninha da minha terra, de faces côr de jambo, ojos adormidillos, como dizem os espanhóis.
                Então escreveria uma poesia, um poema, um romance ou um idílio singelo, e livrava-me assim de meter-me em certas questões graves e importantes que ocupam a atualidade. Faria como o poeta; e limitar-me-ia às pequenas coisas que me tivessem interessado. Nugae, quarum pars parva fuit.
                É verdade que, quando me acertasse cair uma semana como esta passada, onde iria eu procurar um tipo, um modêlo que a caracterizasse perfeitamente? Lembro-me de uma mulher, que descreveu Byron, a qual, com algumas modificações, talvez me pudesse bem servir para o caso.
                Seu único aspecto (da mulher) valia um discurso acadêmico; cada um de seus olhos era um sermão; na sua fronte estava estampada uma dissertação gramatical. Enfim, era uma aritmética ambulante. Dir-se-ia uma correspondência ou alguma velha polêmica que se houvesse despegado do seu competente jornal, para andar pelo mundo a discutir e argumentar.
                Com efeito, só êste tipo imitado de D. Juan poderia dar uma ligeira idéia da semana passada, a qual num formulário de botica podia bem traduzir-se pela seguinte receita: uma dose de sol, duas de chuva e três de maçada. Admirável receita para curar a população desta côrte da febre de novidades que tem produzido a guerra do Oriente.
                Os antigos, porém, que fizeram tanta coisa boa, esqueceram-se dessa invenção de personificar a semana, e por conseguinte não há remédio senão deixar as comparações e voltar ao positivo da crônica, desfiando fato por fato, dia por dia.
                Aposto que já estais a rir dêste meu projeto, perguntando com os vossos botões que fatos são êstes que descobri na semana passada, que acontecimentos se deram nestes dias, que valham a pena, não já escrever simplesmente, mas contar.
                Ides ver. Em primeiro lugar, contar-vos-ei que a semana teve sete dias e sete noites, tal e qual como as outras. Dêstes sete dias muitos foram de chuva, e alguns estiveram tão belos, tão frescos, tão puros, que sentia-se a gente renascer com o sol que vivificava a natureza. As noites foram quase tôdas de inverno e de teatro.
                No Provisório estreou a nova cantora, completando-se assim o número das três deusas que devem disputar o pomo de ouro, o qual também foi pomo da discórdia. O público dilettante está por conseguinte arvorado em Paris; e os poetas já se prepararam para cantar a nova Ilíada e as causas terríveis de tão funesta guerra. Et teterrimas belli causas.
                Em São Pedro de Alcântara o aparecimento de João Caetano produziu uma noite de entusiasmo e um novo triunfo para o artista distinto, único representante da arte dramática no Brasil.
                Infelizmente as circunstâncias precárias do nosso teatro, ou outras causas que ignoramos, não têm dado lugar a que João Caetano forme uma escola sua, e trate de elevar a sua arte, que no nosso país ainda se acha completamente na infância.
                É a êste fim que deve presentemente dedicar-se o ator brasileiro. Sua alma já deve estar saciada destês triunfos e dessas ovações pessoais, que são apenas a manifestação de um fato que todos reconhecem. Como ator, já fêz muito para sua glória individual; é preciso que agora como artista e como brasileiro trabalhe para o futuro de sua arte e para o engrandecimento de seu país.
                Se João Caetano compreender quanto é nobre e digna de seu talento esta grande missão, que outros, antes de mim, já lhe apontaram; se, corrigindo pelo estudo alguns pequenos defeitos, fundar uma escola dramática que conserve os exemplos e as boas lições do seu talento e a sua experiência, verá abrir-se para êle uma nova época.
                O govêrno não se negará certamente a auxiliar uma obra tão útil para o nosso desenvolvimento moral; e, em vez de vãs ostentações, de coroas e de versos que se procuram engrandecer ùnicamente pelo assunto, terá o que lhe tem faltado até agora, o apoio e a animação da imprensa desta côrte.
                Uma das coisas que têm obstado a fundação de um teatro nacional é o receio da inutilidade a que será condenado êste edifício, com o qual decerto se deve despender avultada soma. O gôverno não só conhece a falta de artistas, como sente a dificuldade de criá-los, não havendo elementos dispostos para êsse fim.
                Não temos uma companhia regular, nem esperanças de possuí-Ia brevemente. A única cena onde se representa em nossa língua ocupa-se com vaudevilles e comédias traduzidas do francês, nas quais nem o sentido nem a pronúncia é nacional.
                Dêste modo ficamos reduzidos ùnicamente ao teatro italiano, para onde somos obrigados, se não preferimos ficar em casa, a dirigirmo-nos tôdas as noites de representação, quer cante a Casaloni, quer encante a Charton, quer descantem as coristas. Tudo é muito bom, visto que não há melhor.
                Já algumas vêzes temos censurado a diretoria do teatro por certas coisas que nos parece se podem melhorar sem grandes sacrifícios. Hoje cumpre-nos fazer-lhe uma justiça, e até um elogio, que ela merece sem dúvida alguma, pela resolução que nos consta ter tomado de reparar o edifício e iluminá-lo a gás.
                A polícia também tem-se esmerado em fazer cessar as cenas tumultuárias e desagradáveis que se iam tornando tão freqüentes naquele teatro, e que, se continuassem, acabariam por afugentar dêle os apaixonados da música de batuque.
                Não é, porém, ùnicamente no teatro que a polícia tem dado provas de atividade. Efetuou-se esta semana a prisão de um moedeiro falso, que se preparava a montar uma fábrica dessa indústria lucrativa.
                O crime de moeda falsa é um dos mais severamente punidos em todos os países, porque ameaça a fortuna do Estado e a dos particulares. Entretanto não acho razão no legislador em ter punido ùnicamente o falsificador de moeda, deixando impunes muitos outros falsificadores bem perigosos para a nossa felicidade e bem-estar.
                Todos os dias lemos nos jornais anúncios de dentistas, de cabeleireiros e de modistas, que apregoam postiços de tôdas as qualidades, sem que a lei se inquiete com semelhantes coisas.
                Entretanto imagine-se a posição desgraçada de um homem que, tendo-se casado, leva para casa uma mulher tôda falsificada, e que de repente, em vez de um corpinho elegante e mimoso, e de um rostinho encantador, apresenta-lhe o desagradável aspecto de um cabide de vestidos, onde tôda a casta de falsificadores pendurou um produto de sua indústria.
                Quando chegar o momento da decomposição dêste todo mecânico - quando a cabeleira, o ôlho de vidro, os dentes de porcelana, o peito de algodão, as anquinhas se forem arrumando sôbre o toilette - quem poderá avaliar a tristíssima posição dessa infeliz vítima dos progressos da indústria humana!
                Nem ao menos as leis lhe concedem o direito de intentar uma ação de falsidade contra aquêles que o lograram, abusando de sua confiança e boa-fé. É uma injustiça clamorosa que cumpre reparar.
                Um homem qualquer que nos dá a descontar uma letra de uns miseráveis cem mil réis, falsificada por êle, é condenado a uma porção de anos de cadeia. Entretanto aquêles que falsificam uma mulher, e que desgraçam uma existência, enriquecem e riem-se à nossa custa.
                Deixemos esta importante questão aos espíritos pensadores, aos amigos da humanidade. Não temos tempo de tratá-la com a profundeza que exige; senão, resumiríamos o quadro de tôdas as desgraças que produzem não só aquelas falsificações do corpo, mas também muitas outras, como um olhar falso, um sorriso fingido, ou uma palavra mentida.
                Demais, temos ainda de falar de uma outra medida do chefe de polícia a respeito dos cães, e que interessa extraordinàriamente a segurança pública. O que cumpre é zelar a sua execução para que não se torne letra morta, e faça cessar o perigo que corremos todos os dias de encontrarmos a cada momento na rua ou no passeio a morte do hidrófobo.
                Afonso Karr levou dois anos a escrever para conseguir que a polícia de Paris adotasse esta útil medida de segurança pública, a que ordinàriamente damos tão pouco cuidado, e muitas vêzes mesmo nos revoltamos por um mal entendido sentimento de humanidade.
                Um dos maiores obstáculos que êle encontrou sempre foram certos prejuízos, certos erros consagrados e que todo o mundo repete, sem refletir, nem compreender o sentido das palavras que profere.
                Assim, desde a antiguidade se diz que o cão é o amigo fiel do homem, o tipo e o môdelo da amizade.
                Êste consentimento unânime, diz o escritor francês, é uma singular revelação do caráter do homem. O cão obedece sem reflexões, se submete a todos os caprichos e a tôdas as vontades sem distinção; quando o castigam, em vez de se defender, roja-se aos pés de seu senhor e caricia a mão que o castigou. E é isto o que o homem chama um amigo!
                Já se vê que o sentimento não é tão nobre como o parece a princípio. Tôdas estas vãs declamações dos poetas sobre êsse animal, que dizem representar o símbolo da fidelidade, dão uma bem mesquinha idéia do coração humano.
                Não é, pois, o prazer de possuir um autômato, que se move à nossa vontade, que pode compensar um dos maiores riscos a que estamos sujeitos, e para o qual olhamos indiferentemente.