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Saturday 26 November 2016

"Sermão do Mandato" pelo Padre Antônio Vieira (in Portuguese)



Concorrendo no mesmo dia o da Encarnação. Ano de 1655.
Pregado na Misericórdia de Lisboa, às 11 da manhã.
"Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit: Cum dilexisset suos, in finem dilexit eos".

I
            No ano presente concorrem e se ajuntam no mesmo dia os dois maiores mistérios e os dois maiores dias: o dia da Encarnação do Verbo e o dia da partida do mesmo Verbo Encarnado. O que dizem os dias e o que declaram as noites. A competição do Amor divino consigo mesmo e a justa dos gigantes. Argumento do sermão: foi maior o amor de Cristo no dia da Encarnação ou no dia da partida?
            Grande dia! Grande amor! Depois que o Eterno se fez temporal, também o amor divino tem dias. O evangelista S. João querendo-nos declarar a grandeza e grandezas do mesmo amor neste dia, a primeira coisa que ponderou, com tão alto juízo como o seu, foi ser um dia antes de outro dia: Ante diem festum Paschae. Tanto pode acrescentar quilates ao amor a reflexão ou circunstância dos dias! E que farei eu? Dois dias hei de combinar também hoje, mas não o dia de antes com o dia de depois, senão o dia de depois com o dia de antes; e não livremente ou por eleição própria e minha, senão por obrigação forçosa dos mesmos dias. Assim como depois de longo círculo de anos se encontram e ajuntam dois planetas a fazer uma conjunção magna, assim no ano presente concorrem e se ajuntam hoje no mesmo dia os dois maiores mistérios e os dois maiores dias: o dia da Encarnação do Verbo, e o dia da partida do mesmo Verbo encarnado. O dia da Encarnação do Verbo: Sciens quia a Deo exivit - que foi o princípio com seu amor para com os homens: cum dilexisset suos - e a partida do mesmo Verbo encarnado: Et ad Deum vadit - que foi o fim sem fim do mesmo amor: In finem dilexit eos.
            0 real profeta Davi, antevendo em espírito estes dois dias, diz que o dia de hoje fala com o dia da Encarnação, e o dia da Encarnação com o dia de hoje, e que ambos se entendem entre si, e se respondem um ao outro: Dies diei eructat verbum. Assim explica este famoso texto Santo Agostinho. E se perguntarmos que é o que falam estes dias, que devem de ser coisas muito dignas de se ouvir e saber, responde o mesmo Davi que as noites dos mesmos dias nos dirão e declararão o que eles falam: Dies diei eructat Verbum, et nox nocti indicat scientiam. Pois as noites, que são escuras, nos hão de declarar o que dizem os dias? Sim. Porque os mistérios do dia de hoje, e do dia da Encarnação, ambos se celebraram nas noites dos mesmos dias. Tanto silêncio e reverência era devido à majestade de tão divinos mistérios! Os do dia da Encarnação de noite: Cum quietum silentium contineret omnia, et nox in suo cursu medium iter haberet - e os do dia de hoje também de noite: Et coena facta. As luzes a que se há de ver toda esta famosa representação são as da fé; os lugares, um cenáculo grande em Jerusalém, e uma casa humilde, mas real, em Nazaré. E a questão ou problema, qual será? Se foi maior o amor de Cristo no dia da Encarnação ou no dia de hoje.
            Posto, pois, um dia defronte do outro dia, e um mistério à vista de outro mistério, e um amor competindo com outro amor, é certo que nunca o amor divino se viu em mais glorioso teatro, pois sai a competir consigo mesmo. Nas outras comparações do amor divino com o amor dos homens, ou seja com o amor dos irmãos, ou com o amor dos pais, ou com o amor dos filhos, ou com o amor dos esposos, ou com o amor dos amigos - que deve ser o maior de todos ainda que saia vencedor o amor de Cristo, sempre fica agravado na vitória, porque entra afrontado na competência. Só hoje, se vencer, será vencedor glorioso, porque tem competidor igual, e se vencerá a si mesmo. Quando Davi saiu a desafio com o gigante, mediu-lhe o gigante com os olhos a estatura, e, posto que não duvidava da vitória, na desigualdade de tão inferior combatente teve por injuriosa a batalha. Do mesmo modo, e com mais verdade, Cristo. Quando o seu amor se compara com outro amor, compete o gigante com Davi; mas quando se compara o amor de Cristo com o amor do mesmo Cristo, como fazemos hoje, é competir o gigante com o gigante. Assim o disse ou cantou o mesmo Davi: Exultavit ut gigas ad currendam viam. Entrou Cristo na estacada como gigante. E que fez? Justou consigo mesmo. A primeira carreira foi do céu para a terra: A summo caelo egressio ejus; a segunda carreira foi da terra para o céu: Et occursus ejus usque ad summum ejus: e neste encontro se cerrou a justa, e se quebraram as lanças um e outro amor. É em verso de Davi o mesmo que diz a prosa do nosso Evangelho. A primeira carreira: A summo caelo egressio ejus - foi no dia da Encarnação, quando o Verbo saiu do Padre: a Deo exivit; a segunda carreira: Et occursus ejus usque ad summum ejus - foi no dia de hoje, quando o mesmo Verbo tornou para o Padre: Et ad Deum vadit. Na primeira carreira, amor: Cum dilexisset suos; e na segunda também amor: In finem dilexit eos. O dilexisset e o dilexit distingue os dias: o dilexisset declara um amor, e o dilexit outro; mas nem juntos, nem divididos sinalam a vitória, nem resolvem qual foi maior. Esta famosa decisão entre os maiores combatentes que jamais se viram, havemos de ver hoje. Assistir-nos-á com a graça quem foi presente em um e outro dia, e quem teve a maior parte em um e outro mistério, que foi a Mãe do mesmo amor: Mater pulchrae dilectionis. Mas como invocaremos seu favor e patrocínio? Com as mesmas palavras com que também hoje a invocou o anjo: Ave gratia plena.

II
            O amor de Cristo quanto à substância e quanto aos efeitos. Os extremos do amor de Cristo no dia da Encarnação e no dia da partida. Comparando-se os efeitos Deuses dois dias, afirma o autor que maiores foram os extremos do dia da partida que os do dia da Encarnação.

    Cum dilexisset, dilexit.

Nestas palavras - como dizia - deixou o Evangelista indecisa a nossa questão, porque não disse: como amasse mais amou menos, nem como amasse menos amou mais, senão como amasse amou. Distinguiu somente os tempos, e pelos tempos o amor, sem preferência porém, ou vantagem nem do amor passado ao presente, nem do presente ao passado. Falou S. João como divino teólogo, e não só como quem tecia a história, mas como quem compunha o panegírico do amor de Cristo. Quanto à substância do amor, Cristo, Senhor nosso, tanto nos amou no dia da Encarnação, como no dia de hoje, e em todos os dias da sua vida, porque o seu amor é amor perfeito, e não fora seu, se assim não fora. O amor dos homens, ou míngua,ou cresce, ou pára; o de Cristo nem pode minguar, nem crescer, nem parar, porque é, foi, e será sempre amor perfeito, e por isso sempre o mesmo, e sem alteração nem mudança. Ama Cristo enquanto homem, como ama enquanto Deus. Perguntam os teólogos: como ama Deus a uns mais e a outros menos, se o seu amor - o qual se não distingue da sua essência - é sempre um só e o mesmo, infinito, simplicíssimo e imutável? E respondem que a diferença ou desigualdade não está no amor, senão nos efeitos, porque a uns sujeitos faz Deus maiores bens que a outros. Os homens amamos os objetos pelo bem que tem: Deus ama-os pelo bem que lhes faz. E assim como julgamos a maioria do amor de Deus belos efeitos, assim havemos de julgar também a do amor de Cristo. Este é o fundamento sólido e certo sobre que excitamos a nossa questão, e estes os termos de igual certeza, com que a havemos de resolver. Nem daqui deve inferir ou cuidar a rudeza do nosso entendimento que seria menos afetuoso, ou menos amoroso, este modo de amar de Cristo, porque assim como em Deus o fazer o bem se chama amor efetivo, e o querê-lo fazer amor afetivo, assim no amor de Cristo os afetos foram a causa dos efeitos que veremos, e os efeitos a demonstração dos afetos.
            Vindo, pois, aos efeitos e demonstrações de um e outro amor no dia de hoje e no dia da Encarnação, parece que assim no número, como no modo, os esteve medindo e proporcionando o mesmo amor, que neles se quis igualar e vencer. O Concílio Niceno, no Símbolo da Fé, ponderando o amor de Cristo na Encarnação, reduz os efeitos dele a dois extremos: descer do céu e fazer-se homem: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis. Et incarnatus est ex Maria Virgine, et homo facctus est. Isto diz o Espírito Santo no Concílio, falando do dia da Encarnação. E falando do dia de hoje, que é o que diz e pondera o mesmo Espírito Santo no Evangelho? Outros dois efeitos e outros dois extremos: lavar os pés aos homens, e deixar-se no Santíssimo Sacramento: Et coena facta, coepit lavare pedes discipulorum. Supostos de uma e outra parte este par de extremos, uns e outros não só admiráveis mas estupendos, comparando-se o amor de Cristo, e competindo-se em uns e outros, que diremos ou que podemos dizer? Sem temeridade nem temor, digo e afirmo que maiores foram os extremos do dia de hoje que os do dia da Encarnação. E por quê? Porque, se no dia da Encarnação foi grande extremo de amor descer Deus do céu à terra: Descendit de coelis - muito maior extremo foi no dia de hoje lavar Cristo os pés aos homens: Coepit lavare pedes discipulorum. E se foi grande extremo de amor no dia da Encarnação fazer-se Deus homem: Et homo factus est - muito maior extremo foi no dia de hoje deixar Cristo seu corpo no Sacramento para que o comessem os homens, como fez na Ceia: Et coena facta. - Estes serão os dois pontos do nosso discurso, em que ele descobrirá muito mais do que aparece no que está dito.

III
Estranheza da exclamação de Jacó quando viu em sonhos aquela famosa escada que chegava da terra até o céu, pela qual subiam e desciam anjos. Como se há de entender o dito de Davi, quando afirma que Deus tinha feito o homem pouco menor que os anjos. O estupendo prodígio que fez Deus por amor de el-rei Ezequias em benefício de sua saúde, e o prodígio da Encarnação.
Tão grande e tão prodigiosa coisa foi descer Deus em Pessoa do céu à terra que, visto de muito longe este mistério, não só causava admiração e espanto ao entendimento, mas horror e assombro à mesma fé. Viu Jacó em sonhos aquela famosa escada que chegava da terra até o céu, pela qual subiam e desciam anjos, encostado e inclinado Deus no alto dela, e, assombrado do que via, acordou com um grito, dizendo: Terribilis est locus iste (Gen. 28, 17)! Ó que terrível, ó que temeroso lugar! - De vários modos se costuma ponderar a estranheza deste dito. Eu só noto que nem a vista podia causar horror, nem a novidade espanto. O que só poderia causar horror a Jacó era ver que os que subiam e desciam fossem somente anjos, e que nem ele, que estava no baixo da escada, subisse, nem Deus, que estava no alto, descesse, com que se demonstrava uma grande separação entre Deus e o homem, como aquela de que disse Abraão ao avarento: Inter nos et vos chaos magnum firmatum est. E posto que hoje esta apreensão seria para nós de grande horror, porque sabemos o contrário, naquele tempo nem podia causar horror pela vista, nem espanto pela novidade, como dizia, porque tudo o que Jacó viu, e tudo o que mostrava significar o que via, era o mesmo que ele e os demais supunham. Até o tempo de Jacó, e ainda depois, no tempo da lei escrita, nunca Deus prometeu aos homens o céu, senão tudo prêmios da terra. E daqui nasceu aquela parêmia ou provérbio: Caelum caeli Domino; terram autem dedit Filiis hominum: que o céu era para Deus, e a terra para os homens. Logo não se podia assombrar nem espantar Jacó de que ele, sendo homem, e estando na terra, não subisse pela escada, e, muito menos, de que Deus, sendo Deus, e estando no céu, não descesse. Pois, se Jacó não tinha que admirar nem que estranhar no seu sonho, de que acordou com tanto horror e tão notável assombro?
Acordou assombrado Jacó, não do que vira, senão do que na mesma visão Deus lhe revelara.Revelou Deus a Jacó que naquela escada era significado o mistério altíssimo da Encarnação do Verbo, e que para ele, Jacó, os outros homens poderem subir ao céu, ele, Deus, havia de descer do céu à terra: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis. E vendo Jacó que a majestade suprema de Deus, deixando do modo que o podia deixar o trono do empíreo, havia de descer em pessoa do céu à terra, a revelação desta estupenda novidade, que nunca entrou na imaginação humana, lhe causou no mesmo sono tal horror e assombro, que acordou tremendo e gritando: Terribilis est locus iste! Duas coisas viu Jacó no que viu, que muito e com muita razão lhe assombraram, não a vista, senão o entendimento. E quais foram? A primeira que, sendo a escada para descer Deus, a descida era muito maior que a escada. Pois a descida maior que a escada? Sim. Porque a escada chegava da terra ao céu, que é distância limitada, e a descida era de Deus ao homem, que é distância infinita. E vendo unir dois extremos infinitamente distantes, quem, ainda estando muito em si, não ficaria atônito e assombrado? A segunda causa, e não menor, do mesmo assombro, foi que por meio da Encarnação do Verbo, assim revelada a Jacó, vinha a conseguir muito mais o menor anjo do que a soberba de Lúcifer tinha afetado. Porque Lúcifer quis ser igual a Deus, e fazendo-se Deus homem, ficava Deus por este lado sendo inferior ao menor anjo. Este foi o grande mistério - diz Santo Agostinho - por que os anjos da escada uns desciam, outros subiam. Como Deus estava no alto da escada, e Jacó ao pé dela, os anjos que ficavam da parte de Deus desciam, e os que ficavam da parte de Jacó subiam, e este subir e descer não era ato ou movimento da vontade dos mesmos anjos, senão ordem e constituição da sua própria natureza. Os da parte superior da escada, onde estava Deus, desciam, porque todos os anjos são muito inferiores a Deus; e os da parte inferior, onde estava Jacó, subiam, porque estes mesmos são muito superiores ao homem. E como os anjos são superiores ao homem, e Deus não havia de tomar a natureza angélica, senão a humana, isto era o que assombrava a Jacó, e lhe parecia coisa terrível: que Deus houvesse de descer, e abater-se tanto, que ficasse por esta parte muito inferior a qualquer anjo.
Lá disse Davi que Deus tinha feito ao homem pouco menor que os anjos: Minuisti eum paulo minus ab angelis (Sl 8, 6). Mas isto se entende no domínio, e não na natureza, porque deu Deus a Adão o senhorio e império de todos os animais da terra, do mar e do ar, como logo declarou o mesmo profeta: Minuisti eum paulo minus ab angelis; gloria et honore coronasti eum; et constituisti eum super opera manuum tuarum. Omnia subjecisti sub pedibus ejus, oves et boves, insuper et pecora campi, volucres caeli, et pisces maris. De maneira que no domínio e uso de todas as coisas criadas para serviço seu nos três elementos, é o homem pouco menor que os anjos; porém, no ser e nobreza natural, não só quanto à parte do barro, em que aparentamos com os brutos, senão ainda quanto à parte espiritual da alma e suas potências, em que imitamos a natureza angélica, não é o homem pouco menor, senão muito menor e muito inferior a qualquer anjo, e tanto quanto for de mais superior hierarquia. A escada de Jacó tinha nove degraus, que são as nove ordens de criaturas racionais que há entre Deus e o homem, as quais por outro nome chamamos nove coros dos anjos, e todos estes degraus desceu Deus, e os deixou e passou por eles, para se unir com a natureza humana, que jazia em Jacó, abaixo de todos.
É o que ponderou S. Paulo naquelas palavras: Nusquam angelos apprehendit, sed semen Abrahae apprehendit, cujo fundo e energia não acho tão declarada nos expositores como ele pede. Dizem que nusquam é o mesmo que nunquam ou nequaquam, mas nusquam não é simples negação, nem advérbio de tempo, senão de lugar, e propriamente quer dizer: em nenhuma parte. Pois, por que diz S. Paulo que não tomou Deus a natureza angélica em nenhuma parte, nusquam? Porque tinha Deus nove partes em que a tomar: três na primeira hierarquia, três na segunda e três na terceira. E essa foi a maravilha do mistério da Encarnação, que por tomar Deus a natureza humana, deixasse em tantas partes a angélica. Na primeira hierarquia deixou serafins, querubins, tronos; na segunda deixou potestades, principados, dominações; na terceira deixou virtudes, arcanjos, anjos; e no homem, que era o décimo, último e ínfimo lugar, onde jazia Jacó, ali tomou a nossa natureza caída, para a levantar, e enferma, para lhe dar saúde, que foi o fim para que tanto se abateu e desceu. Estando el-rei Ezequias mortalmente enfermo, prometeu-lhe o profeta Isaías a vida em nome de Deus; e em testemunho de que a promessa era divina, deu-lhe, por sinal no céu, que o sol tornaria atrás dez linhas, ou dez degraus, e assim sucedeu: Et reversus est sol decem lineis per gradus quos descenderat. E por que tornou o sol atrás dez linhas, ou dez degraus, e não onze, ou nove, senão dez, nem mais nem menos sinaladamente? Porque naquele prodígio, verdadeiramente grande, se significava outro maior, que era o da Encarnação do Verbo, na qual, assim como o sol, estando no zênite - que não podia ser de outra sorte - tornou atrás dez linhas, até se pôr nos horizontes da terra, assim Deus, desde o mais alto de sua majestade infinita, desceu outras dez linhas até se pôr na última e ínfima da natureza humana, e assim como fez aquele estupendo prodígio por amor de Ezequias, e em benefício da sua saúde, assim obrou o da Encarnação muito mais estupendo, por amor dos homens e para saúde dos homens: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis, et incarnatus est.

IV
            O pasmo e o horror dos discípulos de Cristo no Cenáculo. O assombro de Jacó e a reverência de Pedro. Quando se fez Deus homem e quando se fez servo? As duas metáforas ou comparações de São Paulo. Por que diz o apóstolo do terceiro céu que quando Cristo se fez servo não cuidou nem teve para si que a sua divindade não era sua?
            Isto é o que neste dia se obrou em Nazaré. Mudemos agora a cena, e ponhamo-nos no Cenáculo de Jerusalém, e veremos com quanta maior razão se pode dizer daquele lugar: Terribilis est locus iste! Despe-se Cristo das roupas exteriores, cinge-se com uma toalha, deita água em uma bacia com suas próprias mãos: entende-se destas ações, que quer lavar os pés aos discípulos. E qual foi, com esta vista, o assombro, o pasmo, o horror com que as mesmas paredes do Cenáculo parece que tremiam? Não estava aqui Jacó, mas estava Pedro, o qual mais fora de si que no Tabor, exclamou, dizendo: Domine, tu mihi lavas pedes (Jo 13, 6)? Vós, Senhor, a mim lavar os pés? - Eternamente não consentirei tal coisa: Non lavabis mihi pedes in aeternum (Jo 13, 8). Já neste primeiro movimento se vê quanto vai de dia a dia, e de mistério a mistério. Comparai-me a S. Pedro com Jacó. Jacó, depois que viu a escada, e que Deus havia de descer por ela, desejava sumamente que descesse, e enquanto tardava a vir, lhe parecia uma eternidade: Donec veniret desiderium collium aeternorum. Pelo contrário, Pedro, vendo que Cristo lhe quer lavar os pés, não sofre nem consente em tal ação, antes diz resolutamente que a não consentirá por toda a eternidade: Non lavabis mihi pedes in aeternum. - Se isto era amor e reverência de Cristo em Pedro, também Jacó o reverenciava e arnava muito. Pois, se Jacó deseja que Deus desça e se abata a se fazer homem, por que não consente Pedro que se abata a lhe lavar os pés? Por isso mesmo. Porque tanto vai de um abatimento a outro abatimento. Encarnar Deus, era fazer-se homem; lavar os pés aos homens era fazer-se servo; encarnar era vestir-se da nossa humanidade; fazer-se servo dos homens era despir-se da sua divindade.
            Não me atrevera a dizer tanto se S. Paulo o não tivera dito, e ainda muito mais. É passo muitas vezes ouvido, mas que terá que explicar até o fim do mundo: Qui cum in forma Dei esset, non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus, et habitu inventus ut homo. Quer dizer: que sendo o Verbo Eterno igual ao Padre em tudo, se fez, e se desfez. Se fez porque, sendo Deus, se fez homem: ln similitudinem hominum factus, et habitu inventus ut homo; e se desfez porque, sendo Deus e homem, se fez servo, e, fazendo-se servo, se desfez e aniquilou a si mesmo: Exinanivit semetipsum, formam servi accipiens. Agora pergunto: quando se fez Deus homem, e quando se fez servo? Fez-se homem na Encarnação, e fez-se servo no lavatório dos pés. Logo, na Encarnação se fez e no lavatório se desfez. Muitos autores entendem todo este texto só da Encarnação, e que o fazer-se Deus homem foi juntamente fazer-se servo. Mas esta interpretação é imprópria, por não dizer injuriosa à natureza humana. O ser homem é indiferente, ou para ser servo ou para ser senhor; e Cristo, enquanto homem, não só foi Senhor, senão grande Senhor. Assim o disse o anjo no mesmo dia da Encarnação, anunciando que, enquanto Deus, seria Filho do Altíssimo, e, enquanto homem, herdeiro do cetro de seu pai Davi. Nesta suposição falou sempre o mesmo Cristo: Non est servus major domino suo. Si me persecuti sunt, et vos persequentur; e hoje, depois do mesmo ato do lavatório: Vos vocatis me Magister et Domine, et bene dicitis: sum etenim. Nem encontram, antes confirmam esta distinção as mesmas palavras de São Paulo, as quais dizem que tomou o Senhor a forma de servo, não fazendo-se, senão feito homem: Formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus - porque, feito homem na Encarnação, tomou a forma de servo, lavando os pés aos homens. Expressa e esquisitamente Dioniso Alexandrino: Jesus Christus, Dominus et Deus apostolorum, cum accipisset ,formam servi, surgit a coena, et ponit vestimenta sua, et linteo praecinxit se: haec est forma servi. A baixeza do servo não é obra ou injúria da natureza, senão da fortuna. A natureza a todos os homens fez iguais: a fortuna é a que fez os altos, os baixos e os baixíssimos, quais são os servos. E esta foi a fineza do amor de Cristo hoje sobre a do dia e obra da Encarnação. Quando se fez homem tomou as condições da natureza; quando se fez servo e lavou os pés aos homens, tomou as baixezas da fortuna. Aquilo foi fazer-se, e isto desfazer-se: Exinanivit semetipsum, formam servi accipiens.
            Com duas comparações ou metáforas, declara S. Paulo este fazer-se e desfazer-se: com metáfora da roupa que se veste e se despe, e com metáfora do vaso que se enche e se vaza. Com metáfora da roupa que se veste e se despe: Habitu inventus ut homo; com metáfora do vaso que se enche e vaza: Exinanivit semetipsum e ambas as metáforas parece que as tomou S. Paulo do mesmo ato do lavatório em que estamos. . A da roupa enquanto se despe: Ponit vestimenta sua - e a do vaso enquanto se vaza: Mittit aquam in pelvim. E por que usou S. Paulo destas duas metáforas e destas duas comparações? Porque só com elas podia mostrar a diferença deste ato e deste dia ao ato e ao dia da Encarnação. No dia e ato da Encarnação, fazendo-se Deus homem, Deus vestiu-se da humanidade, porque a uniu a si, e se cobriu com ela; e a humanidade, que era um vaso de barro pequeno e estreito, ficou cheia de Deus, porque Deus a encheu com toda a imensidade de seu ser: Quia ín ipso inhabitat omnis plenitudo divinitatis corporaliter. E, sendo isto o que se fez no dia da Encarnação, tudo isto - quanto à vista dos olhos humanos - se desfez no dia e no ato de hoje. Porque, lançando-se Cristo aos pés dos homens, e tais homens, e fazendo-se servo seu, e servo em ministério tão vil e tão abatido, parece que Deus se despira outra vez da humanidade de que estava vestido, desunindo-se dela, e que a mesma humanidade, que estava cheia de Deus, perdida a união com a divindade, ficara totalmente vazia: Exinanivtt semetipsum, formam servi accipiens. E foi isto assim como parece? Não. Mas, posto que a humanidade de Cristo por este ato não perdeu a união com a divindade, nem deixou de estar tão cheia de Deus como dantes estava, abaixar-se, porém, e pôr-se em estado tão abatido, que o parecesse ou pudesse parecer aos homens, foi uma diferença tão notável e tão estupenda, que só o mesmo S. Paulo a pode ponderar e encarecer. Agora entra o mais profundo pensamento das suas palavras.
            Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit, formam serv accipiens (Flp 2, 6 s). O fazer-se Cristo servo, sendo Deus - diz S.Paulo - não foi porque cuidasse ou tivesse para si o mesmo Cristo que a sua divindade não era sua, senão alheia, como se a tivesse roubado ao Padre. Pois Cristo podia cuidar nem ter para si que a sua divindade não era sua? Claro está que não podia ter para si uma coisa tão contrária à verdade, nem cuidar o que era tão alheio de todo o pensamento. Por que diz logo o Apóstolo do terceiro céu que, quando Cristo se fez servo, não cuidou nem teve para si que a sua divindade não era sua? Porque foi tal ato o de Cristo se abater aos pés dos homens, que podiam os mesmos homens cuidar que Cristo o cuidara assim. Homem que tanto se abate, ou não é Deus, ou, se foi Deus alguma hora, tem deixado de o ser, ou, se ainda é Deus, deve de cuidar sem dúvida que o não é, porque, sendo Deus, e tendo para si que é Deus, não se podia abater a coisa tão baixa. E como o ato foi alheio de quem o fazia, que os homens podiam entrar em tal pensamento, que, ou cuidassem que Cristo não era Deus, ou cuidassem que o mesmo Cristo cuidou que o não era, por isso pondera e adverte S. Paulo primeiro que tudo que, quando Cristo se abateu à baixeza de servo, não foi porque cuidasse ou tivesse para si que não era Deus: Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit, formam servi accipiens.É o que também advertiu e ponderou o nosso evangelista, na prefação com que entrou a narrar este mesmo ato. Por isso disse que, quando o Senhor começou a lavar os pés dos discípulos, sabia que era Deus, e que nas mesmas mãos com que lhes lavava os pés, tinha o poder de tudo: Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit, et quia omnia dedit ei Pater in manus, caepit lavare pedes discipolorum. Crendo pois S. Pedro firmissimamente esta verdade - que por isso disse: Domine, tu mihi? que muito é que, sendo aquele grande piloto, que nunca perdeu o tino nas maiores tempestades, e se atreveu a caminhar a pé sobre as mesmas ondas do mar, agora areasse e se afogasse em tão pouca água, como a daquela bacia, e não pudesse tomar pé na profundidade imensa de tão tremendo mistério?

V
            Que importa que Pedro diga tu mihi, se de si conhece pouco, e de Cristo nada? Se S. Pedro antes desse dia foi capaz de entender perfeitamente o mistério da Encarnação, como agora não estava ainda capacitado para entender o mistério do lavatório dos pés? Por que Deus não é humilde, nem pode ser humilde? A voz dos dois abismos. Cristo na Encarnação fez-se homem, e no lavar os pés aos homens fez-se não homem. Cristo aos pés de Judas. No Cenáculo de Jerusalém, os dois degraus ou dois estados mais abaixo do não ser.
            Sossegou Cristo o assombro e resistência de S. Pedro. Mas como? Quod ego facio, tu nescis modo, scies autem postea (Jo 13, 7): Pedro, o que eu agora faço, tu não o sabes nem o entendes, mas sabê-lo-ás depois. - Depois, Senhor? E quando? Quando vires no céu, revestido de sua própria majestade, o mesmo que agora vês meio despido e cingido com este pano servil. - Neste sentido entendem o scies autem postea, Santo Agostinho, S. Crisóstomo, Beda, Ruperto, Teofilato, Eutímio. E com razão. Assim como as semelhanças se não podem conhecer senão de perto, assim as distâncias não se podem medir senão de longe. - Que importa que digas tu mihi, se de ti conheces pouco, e de mim nada? Quando vires o tudo que sou, então entenderás o muito que faço. Se falas pelo que viste no Tabor, este é o excesso que se havia de cumprir em Jerusalém, de que Moisés e Elias, mais assombrados do que tu, falavam. Agora deixa-te lavar, sob pena de me não veres eternamente, nem chegares a saber o que estás vendo e não sabes: Quod ego facio, tu nescis modo.
            Assim disse com graves e temerosas palavras o Senhor, e se dissera o mesmo a outro apóstolo, não me admirara tanto, mas a S. Pedro? Isto é o que me admira muito, e muito mais na memória e concurso dos dois dias em que estamos. Perguntou Cristo noutra ocasião aos discípulos, que também estavam juntos: Quem dicunt homines esse Filium hominis (Mt 16, 13)? Quem dizem os homens que é o Filho do homem? - Os outros referiram vários ditos, porém S. Pedro respondeu: Tu es Christus, Filius Dei vivi ( Mt 16, 16 ): Vós, Senhor, sois Cristo, Filho de Deus vivo. - Ajuntai agora esta resposta de S. Pedro com a pergunta de Cristo, e vereis como o príncipe dos Apóstolos, em tão poucas palavras, compreendeu e resumiu todo o mistério da Encarnação: Filium hominis: Filius Dei vivi. No Filium e no Filius compreendeu as duas gerações, uma eterna e outra temporal; no hominis e no Dei vivi compreendeu as duas naturezas, divina e humana; e no tu es, compreendeu a união hipostática, com que uma indissoluvelmente se uniu à outra. Pois, se S. Pedro antes deste dia, estando na terra, foi capaz de entender e saber tão perfeitamente o mistério da Encarnação, como agora, com muito mais tempo e estudo da escola de Cristo, não estava ainda com suficiente capacidade para entender e penetrar o mistério do lavatório dos pés: Quod ego facio, tu nescis? E se pela confissão do mesmo mistério da Encarnação se deram ao mesmo Pedro as chaves do céu, como se lhe reserva para o céu a ciência do que estava vendo e admirando Scies autem postea? Aqui vereis quanto maior profundidade de mistérios e de amor se encerra na ação tremenda de Cristo se prostrar aos pés dos homens, do que no mesmo mistério altíssimo de Deus se fazer homem. A alteza do primeiro com luz do céu pode-a alcançar na terra um pescador: a profundidade deste segundo não a pode sondar em tão pouca água o maior apóstolo. A alteza do mistério da Encarnação revelou-a o Padre, que está no céu, a Pedro estando na terra. Caro et sanguis non revelavit tibi, sed Pater meus, qui in caelis est; mas a profundidade do lavatório dos pés não a revelará ao mesmo Pedro o Filho, senão quando o Filho e Pedro ambos estiverem no céu: Scies autem postea.
            Parece-me que S. Paulo falou com o espírito de S. Pedro, quando disse: Neque altitudo, neque profundam poterit nos separare a charitate Christi. Esta caridade de Cristo, conforme dizem os intérpretes, ou se pode entender do amor com que nos amamos a Cristo, ou do amor com que Cristo nos ama a nós, e neste segundo sentido diz S. Paulo que nem a alteza nem o profundo pode fazer que Cristo nos não amasse, porque na alteza da Encarnação, sendo Deus, nos amou fazendo-se homem, e no profundo do lavatório dos pés, sendo já homem, nos amou pondo-se aos pés dos homens. Mas o eloqüentíssimo apóstolo, depois de por o alto, então pos o profundo: Neque altitudo, neque profundum - porque mais pondera e mais encarece o amor de Cristo o profundo do lavatório, onde se abateu aos pés dos homens, que o alto da Encarnação, donde desceu a ser homem.
            Isto é o que eu sou obrigado a ponderar nesta profundíssima ação; mas, quando Cristo diz a Pedro: Quod ego facio, tu nescis - onde Pedro não sabe entender, quem saberá falar? À vista, contudo, da sua ignorância, me atreverei eu a dizer as minhas, mas no concurso e comparação somente de um dia com outro dia. O que todos encarecem no dia da Encarnação é humilhar-se Deus a se fazer homem, mas é certo que este ato não foi de humildade; o lavar Cristo os pés dos homens, sim, é a maior humildade de todas. E por que não foi humildade o fazer-se Deus homem? Porque Deus não é humilde, nem pode ser humilde. Humildade essencialmente é o conhecimento da própria dependência, da própria imperfeição e da própria miséria, e, sendo Deus suma independência, suma perfeição e suma felicidade, nem e nem pode ser humilde. Como dizem logo todos os santos que Deus se humilhou neste grande ato? Porque se humilhou por humilhação, e não por humildade. De el-rei Acab disse Deus ao profeta: Nonne vidisti humiliatum Achab (3 Rs 21, 29)? Não viste humilhado a Acab? - E Acab não era humilde, nem tinha humildade, mas estava naquele caso humilhado não por humildade, senão por humilhação. A este modo - mas por modo diviníssimo e santíssimo - se humilhou também Deus quando se fez homem, porque até então nem era nem podia ser humilde. Porém, no primeiro instante da Encarnação, ou no segundo depois de encarnado - como querem outros teólogos - então começou também a ser humilde, e sumamente humilde, como hoje mostrou mais que nunca. Onde se deve notar que este grande extremo de humildade, depois da humilhação de se fazer homem, não só foi conseqüência do novo estado, senão obrigação. Porque se Deus, antes de ser humilde, se humilhou tanto que se abateu a ser homem, segue-se que, depois de ser humilde, tinha obrigação de se humilhar muito mais. Obrigado, pois, Deus a se humilhar mais do que se tinha humilhado, que havia de fazer? Só lhe restava o que hoje fez. Ajoelha-se diante dos homens, e lava-lhes os pés com suas próprias mãos, porque, só prostrado aos pés dos homens, se podia humilhar mais do que se tinha humilhado fazendo-se homem.
            Esta conseqüência, como forçosa, a que a humilhação do primeiro mistério obrigou e empenhou a Cristo para a humildade do segundo, reconheceu profeticamente Davi, quando disse: Abyssus abyssum invocat ( Sl 41 , 8 ): que um abismo chama outro abismo. - Abismo já sabeis que é um pego imenso e profundíssimo, como aquele de que fala a Escritura na primeira criação dos elementos: Et tenebrae erant super faciem abyssi. E que dois abismos foram estes, em que o primeiro chamou pelo segundo? Não dissemos ao princípio que o dia da Encarnação se falava com o dia de hoje: Dies diei eructat verbum? Pois, quando estes dois dias se falaram, então chamou o mistério da Encarnação pelo mistério do lavatório dos pés, e estes foram os dois abismos. O primeiro abismo foi a Encarnação do Verbo, porque, fazendo-se Deus homem, se abismou e sumiu de tal sorte a divindade na natureza humana, que desapareceu totalmente, e por isso, estando dentro nela, não aparecia. O segundo abismo foi o lavatório dos pés, porque, tendo-se Cristo sumido na Encarnação, enquanto Deus, lançado depois aos pés dos homens, também se sumiu ali, enquanto homem. O mesmo Cristo o disse: Ego sum vermis, et non homo; opprobrium hominum, et abjectio plebis (Sl 21, 7): Eu sou um bichinho da terra, e não sou homem, porque sou o opróbrio dos homens, e o abjeto da plebe. - E quem é esta plebe, e quem é este abjeto? A plebe eram os apóstolos, por natureza, por geração e por ofício plebe, porque eram uns pobres pescadores; e o abjeto desta plebe era Cristo posto a seus pés e lavando-lhos, porque não pode haver ato mais abjeto e vil, e mais inferior à mesma plebe, que ajoelhar-se diante dela e lavar-lhe os pés. A água era somente a de uma bacia, mas o abismo da ação era tão profundo que nele se abismou e sumiu de tal sorte Cristo, ainda enquanto homem, que já não parecia nem aparecia nele sinal do que era, senão uma negação do que tinha sido: Non homo: um não homem. Muito mais se desfez logo Cristo sem comparação, e muito mais fez o seu amor no ato do lavatório dos pés que na obra da Encarnação, porque na Encarnação fez-se homem, no lavar os pés aos homens fez-se não homem: Non homo.
            E se assim se sumiu Cristo lavando os pés a Pedro e aos outros discípulos, que direi eu, ou que posso imaginar, quando o vejo prostrado aos pés de Judas? Aqui se somem também até os entendimentos dos serafins, e emudecem de pasmo as línguas dos anjos. - Se Pedro, Senhor, vos disse assombrado: Tu mihi: Vós a mim? - com quanto maior assombro vos podemos nós dizer - Tu Judae: Vós a Judas? A Judas, aquele traidor endemoninhado, de quem diz S. João: Cum diabolus jam misisset in cor ut traderet eum Judas? A Judas, aquele precito infernal e maior de todos os precitos, do qual vós mesmo dissestes: Bonum erat ei, si natus non fuisset homo ille? Não quero outra ponderação que estas vossas mesmas palavras. - Diz Cristo que em Judas era melhor o não ser que o ser, e não se pudera mais encarecer, nem a ínfima miséria de Judas, nem o ínfimo abatimento de Cristo posto a seus pés. Eu bem sei as sutilezas com que a filosofia disputa se em Judas e em qualquer outro condenado fora melhor o não ser que o ser; mas, onde temos uma conclusão absoluta de Cristo, não valem nada as argúcias dos filósofos. Salomão faz três classes de homens: os vivos, os mortos e os que não nasceram; e só na consideração dos males temporais desta vida antepõe os mortos aos vivos, e os que não nasceram a uns e outros. Que diria se fizera a comparação com os males eternos que esperavam a Judas, e com o pecado em que estava obstinado, que é o maior de todos os males? Por todas as razões era melhor em Judas o não ser que o ser. E que se pusesse Cristo aos pés de um homem, cujo ser era pior que o não ser? Do ser, qualquer que seja, ao não ser, há infinita distância; e sendo esta distância infinita, hoje se viram no Cenáculo de Jerusalém dois degraus, ou dois estados mais abaixo do não ser. O primeiro em Judas, que estava mais abaixo do não ser, porque lhe fora melhor não ser que ser; e o segundo em Cristo que, estando Judas mais abaixo do não ser, ele estava aos pés de Judas. Medi agora, começando de Deus, a baixeza em que esta posto o Filho do mesmo Deus, por amor dos homens. Abaixo de Deus, com infinita distância, está todo o criado; abaixo de todo o criado, com distância também infinita, está o não ser; abaixo do não ser está Judas, e abaixo de Judas está Cristo. Tanta diferença vai de Deus no dia da Encarnação feito homem, a Cristo no dia de hoje, posto aos pés de tal homem! Aquele foi o cum dilexisset, este é o in finem dilexit.

VI
            O Sacramento do Altar e o mistério da Encarnação. Se Cristo, Senhor nosso, se chamou Jesus, como diz o profeta Isaías que o Filho que nascesse de uma Virgem se havia de chamar Emanuel? No caso em que Adão não pecasse, se havia de encarnar Deus?
            Tarde chego, sacramentado Senhor, à comparação desse sacrossanto e diviníssimo mistério com o mistério de vossa Encarnação, também diviníssimo; mas esse mesmo trono de majestade, em que vos vemos e adoramos, ou vos adoramos sem vos ver, nos está publicando os triunfos de vosso amor neste dia, em que por ser o último de vossa visível presença, vos deixastes conosco. Seja esta a primeira prova.
            Profetizando Isaías o mistério da Encarnação do Verbo com palavras mais expressas e circunstâncias mais singulares que todos os outros profetas, disse que uma Virgem conceberia e pariria um Filho, o qual se chamaria Emanuel: Ecce Virgo concipiet, et pariet Filium, et vocabitur nomen ejus Emmanuel (Is 7, 14). Nesta última palavra reparam muito os pouco versados na frase da Escritura. Cristo, Senhor nosso, não se chamou Emanuel, chamou-se Jesus: como diz logo o profeta que o Filho que nascesse de uma Virgem se havia de chamar Emanuel? Mas este reparo, como digo, é por ignorância da frase hebréia. Na língua hebraica, assim como as coisas se chamam palavras: verba, assim o chamar-se significa ser, e isso quer dizer vocabitur. Da mesma frase usou o anjo, no mesmo dia e mistério da Encarnação, anunciando à Virgem que o que de suas puríssimas entranhas havia de nascer se chamaria Filho do Altíssimo: Filius Altissimi vocabitur (Lc 1, 32) - sendo assim que Cristo, por humildade, não se chamava Filho do Altíssimo, senão: Filius hominis: Filho do homem. Mas falaram por esta frase, assim o profeta como o anjo no mesmo caso, porque vocabitur quer dizer será. Suposto, pois, que o chamar- se significa ser, e o nome se toma pelo significado, que quis significar o profeta quando disse que o Filho que nasceria de uma Virgem se havia de chamar Emanuel? Emanuel quer dizer: Nobiscum Deus: Deus conosco, e isto é o que anunciou e prometeu Isaías nesta famosa profecia, dando por nova aos homens, tão admirável como certa, que aquele mesmo Deus, cuja majestade se conservou sempre tão retirada e longe de nós, sem jamais se abalar nem sair do céu, agora se havia de humanar tanto, que se fizesse homem, e descesse à terra para nela morar e estar conosco: Nobiscum Deus.
            Disse, sem se abalar jamais nem sair do céu, porque quando se diz nas Escrituras que Deus formou o barro de Adão, e que desceu a impedir a fábrica de Babel, e que apareceu a Moisés na sarça, e lhe deu a lei no Monte Sinai, e outras ações semelhantes, os que obravam visivelmente estas coisas - segundo o mais provável sentir dos doutos - eram anjos que representavam a Deus, e não o mesmo Deus em pessoa. Por isso Deus naquele tempo dizia: Caelum mihi sedes est. E Davi contava e cantava por grande maravilha que, estando Deus tão alto, se dignasse de olhar cá para baixo e por os olhos na terra: Quis sicut Dominus Deus noster, qui in altis habitat, et humilia respicit in caelo et in terra? Porém, como o amor não se contenta de longes, e sofre mal ausências, pode tanto o amor dos homens com Deus que o trouxe do céu à terra, e o fez homem, não tanto para nos remir e salvar - como muitos cuidam - quanto pelo desejo que tinha e pelo gosto que havia de ter de estar conosco: Nobiscum Deus.
            É celebérrima questão entre os teólogos, no caso em que Adão não pecasse, se havia de encarnar Deus? Santo Tomás e a sua escola dizem que não. Scoto, com a sua, afirma que sim. Distingo e concordo ambas as opiniões. Porque Adão pecou, encarnou Deus em carne passível, porque era mais proporcionado à culpa, e mais conveniente à satisfação o padecer e morrer. Porém, se Adão não pecara, havia de encarnar contudo Deus, mas em carne impassível, porque onde não havia culpa, não era necessária a pena, e fazia-se homem no tal caso, não para satisfação do nosso pecado, senão para satisfação do seu amor. Não é esta distinção minha, senão do mesmo Concílio Niceno: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem incarnatus est: Encarnou Deus por amor de nós e por amor de nossa saúde. - Onde se vê claramente que o mistério da Encarnação teve dois motivos distintos: um motivo o remédio, e outro motivo o amor, mas o amor primeiro que o remédio. De sorte que, se o remédio não fora necessário, pelo motivo só do amor dos homens havia de encarnar Deus, porque esse foi o primeiro motivo, e o primário: Qui propter nos homines. Íeis visitar um amigo, soubestes no caminho que estava ferido, e visitastes-lo como amigo e como ferido, mas com tal pressuposto, que, se não estivera ferido, só por amigo o havíeis de visitar, que este foi o vosso primeiro intento. O mesmo sucedeu no mistério da Encarnação, ao qual Zacarias chamou visita de Deus: Visitavit nos, oriens ex alto. O primeiro decreto de Deus se fazer homem, antes da previsão do pecado, foi unicamente o amor dos homens, e para morar e estar com eles, como já então dizia: Deliciae meae esse cum filiis hominum. Aconteceu depois o pecado de Adão, e a ferida mortal do gênero humano, com que ao motivo do amor se ajuntou o motivo do remédio, e Deus, que só nos havia de visitar por amigo, nos visitou também por feridos. Propter nos homines, et propter nostram salutem. E assim como ao outro amigo na visita que só fazia por amor e por gosto, lhe acresceu a dor e a pena, assim Deus, que havia de vir homem impassível, veio passível. Em suma, que o intento e fim da Encarnação, como dizia, não foi tanto para Deus nos remir e salvar, que foi o segundo motivo, quanto para satisfazer a seu amor e estar conosco, que foi o primeiro; e por isso Isaías, que com tanta expressão de circunstâncias revelou os arcanos da Encarnação do Verbo, podendo dizer que o Filho que havia de nascer da Virgem se chamaria Jesus, que quer dizer Salvador, não disse senão que se chamaria Emanuel, que quer dizer Deus conosco, porque o principal motivo de Deus se fazer homem não foi tanto o remédio de salvar os homens, quanto o amor e desejo de estar com eles: Nobiscum Deus.

Saturday 14 December 2013

"A Reforma da Natureza" by Monteiro Lobato (in Portuguese)

CAPÍTULO 1
A Reforma da Natureza

Quando a guerra da Europa terminou, os ditadores, reis e presidentes cuidaram da discussão da paz. Reuniram-se num campo aberto, sob uma grande barraca de pano, porque já não havia cidades: todas haviam sido arrasadas pêlos bombardeios aéreos. E puseram-se a discutir, mas por mais que discutissem não saía paz nenhuma. Parecia a continuação da guerra, com palavrões em vez de granadas e perdigotos em vez de balas de fuzil.

Foi então que o Rei Carol da Romênia se levantou e disse:

- Meus senhores, a paz não sai porque somos todos aqui representantes de países e cada um de nós puxa a brasa para a sua sardinha. Ora a brasa é uma só e as sardinhas são muitas.

Ainda que discutamos durante um século, não haverá acordo possível. O meio de arrumarmos a situação é convidarmos para esta conferência alguns representantes da humanidade. Só essas criaturas poderão propor uma paz que satisfazendo a toda a humanidade também satisfaça aos povos, porque a humanidade é um todo do qual os povos são as partes.

Ou melhor: a humanidade é uma laranja da qual os povos são os gomos.
       Essas palavras profundamente sábias muito impressionaram àqueles homens. Mas onde encontrar criaturas que representassem a humanidade e não viessem com as mesquinharias das que só representam povos, isto é, gomos da humanidade?

O Rei Carol, depois de cochichar com o General de Gaulle, prosseguiu no seu discurso.

- Só conheço - disse ele - duas criaturas em condições de representar a humanidade, porque são as mais humanas do mundo e também são grandes estadistas.

A pequena república que elas governam sempre nadou na maior felicidade.

            Mussolini, enciumado, levantou o queixo.

- Quem são essas maravilhas!

- Dona Benta e tia Nastácia - respondeu o Rei Carol - as duas respeitáveis matronas que governam o Sítio do Pica-pau Amarelo, lá na América do Sul. Proponho que a Conferência mande buscar as duas maravilhas para que nos ensinem o segredo de bem governar os povos.

- Muito bem! - aprovou o Duque de Windsor, que era o representante dos ingleses. - A Duquesa me leu a história desse maravilhoso pequeno país, um verdadeiro paraíso na terra, e também estou convencido de que unicamente por meio da sabedoria de Dona Benta e do bom-senso de tia Nastácia o mundo poderá ser consertado. No dia em que o nosso planeta ficar inteirinho como é o sítio, não só teremos paz eterna como a mais perfeita felicidade.

Os grandes ditadores e os outros chefes da Europa nada sabiam do sítio. Admiraram-se daquelas palavras e pediram informações. O Duque de Windsor começou a contar, desde o começo, as famosas brincadeiras de Narizinho, Pedrinho e Emília no Pica-pau Amarelo. O interesse foi tanto que pouco depois todos aqueles homens estavam sentados no chão, em redor do Duque, ouvindo as histórias e lembrando-se com saudades do bom tempo em que haviam sido crianças e, em vez de matar gente com canhões e bombas, brincavam na maior alegria de "esconde-esconde" e " chicote-queimado.”

Comoveram-se e aprovaram a proposta do Rei Carol.

Eis explicada a razão do convite a Dona Benta, tia Nastácia e o Visconde de Sabugosa para irem representar a Humanidade e o Bom-Senso na Conferência da Paz de 1945.

Com grande naturalidade Dona Benta aceitou o convite e deliberou seguir com todo o seu pessoalzinho - menos a Emília. Emília recusou-se a partir porque estava com a idéia que lhe veio pela primeira vez quando ouviu a fábula do Reformador da Natureza. Fazia já meses que Dona Benta havia contado essa fábula assim:

O Reformador da Natureza, Américo Pisca-Pisca, tinha o hábito de botar defeito em todas as coisas. O mundo para ele estava errado e a Natureza só fazia tolices.

- Tolices, Américo?

- Pois então?!... Aqui neste pomar você tem a prova disso. Lá está aquela jabuticabeira enorme sustendo frutas pequeninas e mais adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira.

Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas - punha as jabuticabas na aboboreira e as abóboras na jabuticabeira. Não acha que tenho razão?

E assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.

- Mas o melhor - concluiu - é não pensar nisso e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha?

E Américo Pisca-Pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.

Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, inteirinho reformado pelas suas mãos. Que beleza!
De repente, porém, no melhor do sonho, plaf! uma jabuticaba cai do galho bem em cima do seu nariz.

Américo despertou de um pulo. Piscou, piscou. Meditou sobre o caso e afinal reconheceu que o mundo não estava tão mal feito como ele dizia. E lá se foi para casa, refletindo:

- Que espiga! ... Pois não é que se o mundo tivesse sido reformado por mim a primeira vítima teria sido eu mesmo? Eu, Américo Pisca- Pisca, morto pela abóbora por mim posta em lugar da jabuticaba? Hum!... Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está que está tudo muito bom.

E Pisca-Pisca lá continuou a piscar pela vida em fora, mas desde então perdeu a cisma de corrigir a Natureza.

Ao ouvirem Dona Benta contar essa fábula todos concordaram com a moralidade, menos Emília.

- Sempre achei a Natureza errada - disse ela - e depois de ouvir a história do Américo Pisca-Pisca, acho-a mais errada ainda. Pois não é um erro fazer um sujeito pisca-piscar? Para que tanto "pisco"? Tudo que é demais está errado. E quanto mais eu "estudo a Natureza" mais vejo erros. Para que tanto beiço em tia Nastácia? Por que dois chifres na frente das vacas e nenhum atrás? Os inimigos atacam mais por trás do que pela frente. E é tudo assim. Erradíssimo. Eu, se fosse reformar o mundo, deixava tudo um encanto, e começava reformando essa fábula e esse Américo Pisca-Pisca.

A discussão foi longe naquele dia; todos se puseram contra a reforma, mas a teimosa criaturinha não cedeu. Berrou que tudo estava errado e que ela havia de reformar a Natureza.

- Quando, Marquesa? - perguntou ironicamente Narizinho.

- Da primeira vez em que me pilhar aqui sozinha.