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Friday, 28 February 2025

Friday's Sung Word: "Tico-Tico no Fubá" by Aloísio de Azevedo (in Portuguese).

music by Zequinha de Abreu.

O Tico-Tico tá
Tá outra vez aqui
O Tico-Tico tá comendo meu fubá
O Tico-Tico tem, tem que se alimentar
Que vá comer umas minhocas no pomar

Mas por favor, tire esse bicho do seleiro
Porque ele acaba comendo o fubá inteiro
E nesse tico de cá, em cima do meu fubá
Tem tanta coisa que ele pode pinicar
Eu ja fiz tudo para ver se conseguia
Botei alpiste para ver se ele comia
Botei um galo, um espantalho e alçapão
Mas ele acha que fubá é que é boa alimentação

O Tico-Tico tá
Tá outra vez aqui
O Tico-Tico tá comendo meu fubá
O Tico-Tico tem, tem que se alimentar
Que va comer é mais minhoca e nao fubá

 

 
You can watch "Tico-Tico no Fubá" sung by Carmen Miranda and the Bando da Lua in the movie "Copacabana" here.

Thursday, 27 February 2025

Thursday's Serial: “A Moreninha” by Dr. Joaquim Manoel de Macedo (in Portuguese) - X

 

CAP. XVI - O SARAU

‘Um sarau é o bocado mais delicioso que temos, de telhado abaixo. Em um sarau todo o mundo tem que fazer. O diplomata ajusta, com um copo de champanha na mão, os mais intrincados negócios; todos murmuram e não há quem deixe de ser murmurado. O velho lembra-se dos minuetes e das cantigas do seu tempo, e o moço goza todos os regalos da sua época; as moças são no sarau como as estrelas no céu; estão no seu elemento; aqui uma, cantando suave cavatina, eleva-se vaidosa nas asas dos aplausos, por entre os quais surde, às vezes, um bravíssimo inopinado, que solta de lá da sala do jogo o parceiro que acaba de ganhar sua partida do écarté mesmo na ocasião em que a moça se espicha completamente, desafinando um sustenido; daí a pouco vão outras pelo braço de seus pares, se deslizando pela sala e marchando em seu passeio, mais a compasso que qualquer de nossos batalhões da Guarda Nacional, ao mesmo tempo que conversam sempre sobre objetos inocentes que movem olhaduras e risadinhas apreciáveis. Outras criticam de uma gorducha vovó, que ensaca nos bolsos meia bandeja de doces que vieram para o chá, e que ela leva aos pequenos que, diz, lhe ficaram em casa. Ali vê-se um ataviado dândi que dirige mil finezas a uma senhora idosa, tendo os olhos pregados na sinhá, que senta-se ao lado. Finalmente, no sarau não é essencial ter cabeça nem boca, porque, para alguns e regra, durante ele, pensar pelos pés e falar pelos olhos.

E o mais é que nós estamos num sarau: inúmeros batéis conduziram da corte para a ilha de... senhoras e senhores, recomendáveis por caráter e qualidade: alegre, numerosa e escolhida sociedade enche a grande casa, que brilha e mostra em toda a parte borbulhar o prazer e o bom gosto.

Entre todas essas elegantes e agradáveis moças, que com aturado empenho se esforçam por ver qual delas vence em graças, encantos e donaires, certo que sobrepuja a travessa Moreninha, princesa daquela festa.

Hábil menina é ela! Nunca seu amor-próprio produziu com tanto estudo seu toucador e, contudo, dir-se-ia que o gênio da simplicidade a penteara e vestira. Enquanto as outras moças haviam esgotado a paciência de seus cabeleireiros, posto em tributo toda a habilidade das modistas da rua do Ouvidor e coberto seus colos com as mais ricas e preciosas jóias, d. Carolina dividiu seus cabelos em duas tranças, que deixou cair pela costa; não quis adornar o pescoço com seu adereço de brilhantes nem com seu lindo colar de esmeraldas; vestiu um finíssimo, mas simples vestido de garça, que até pecava contra a moda reinante, por não ser sobejamente comprido. Vindo assim aparecer na sala, arrebatou todas as vistas e atenções.

Porém, se um atento observador a estudasse, descobriria que ela adrede se mostrava assim, para ostentar as longas e ondeadas madeixas negras, em belo contraste com a alvura de seu vestido branco, e para mostrar, todo nu, o elevado colo de alabastro, que tanto a aformoseava, e que seu pecado contra a moda reinante não era senão um meio sutil de que se aproveitara para deixar ver o pezinho mais bem feito e mais pequeno que se pode imaginar.

Sobre ela estão conversando agora mesmo Fabrício e Leopoldo; terminaram sem dúvida a sua prática; não importa. Vamos ouvi -los.

— Está na verdade encantadora!... repetiu pela quarta vez aquele.

— Danças com ela? perguntou Leopoldo.

— Não, já estava engajada para doze quadrilhas.

— Oh! Lá vai ter com ela o nosso Augusto. Vamos apreciá-lo.

Os dois estudantes aproximaram-se de Augusto, que acabava de rogar à linda Moreninha a mercê da terceira quadrilha.

— Leva de tábua, disse Fabrício ao ouvido de Leopoldo; é a mesma que eu lhe havia pedido.

Mas a jovenzinha pensou um momento antes de responder ao pretendente; olhou para Fabrício e com particular mover de lábios pareceu mostrar-se descontente; depois riu-se e respondeu a Augusto:

— Com muito prazer.

— Mas minha senhora, disse Fabrício, vermelho de despeito e aturdido com um beliscão que lhe dera Leopoldo; há cinco minutos que já estava engajada até á duodécima.

— E verdade, tornou d. Carolina; e agora só acabo de ratificar uma promessa; o sr. Augusto poderá dizer se ontem pediu-me ou não a terceira contradança.

— Juro... balbuciou Augusto.

— Basta! acudiu Fabrício interrompendo-o; é inútil qualquer juramento de homem, depois das palavras de uma senhora.

Fabrício e Leopoldo retiraram-se; d. Carolina, que tinha iludido o primeiro, vendo brilhar o prazer na face de Augusto, e temendo que daquela ocorrência tirasse este alguma explicação lisonjeira demais, quis aplicar um corretivo e, erguendo-se, tomou o braço de Augusto. Aproveitando o passeio, disse:

— Agradeço-lhe a condescendência com que ia tomar parte na minha mentira... foi necessário que eu praticasse assim; quero antes dançar com qualquer, do que com aquele seu amigo.

— Ofendeu-a, minha senhora?

— Certo que não, mas diz-me coisas que não quero saber.

— Meu Deus! É um crime que também eu tenho estado bem perto de cometer!

— Pois bem, foi esta a única razão.

— Mas eu temo perder a minha contradança... alguns momentos mais e serei réu como Fabrício.

— A culpa será de seus lábios.

— Antes dos seus olhos, minha senhora.

— Cuidado, sr. Augusto! Lembre-se da contradança!

— Pois será preciso dizer que a detesto?...

— Basta não dizer que me ama.

— Ë não dizer o que sinto; eu não sei mentir. Ainda há pouco ia jurar falso...

— Nas palavras de um anjo ou de uma...

— Acabe.

— Tentaçãozinha.

— Perdeu a terceira contradança.

— Misericórdia! Eu não falei em amor!...

Neste momento a orquestra assinalou o começo do sarau. E preciso antecipar que nos não vamos dar ao trabalho de descrever este; é um sarau como todos os outros, basta dizer o seguinte:

Os velhos lembraram-se do passado, os moços aproveitaram o presente, ninguém cuidou do futuro. Os solteiros fizeram por lembrar-se do casamento, os casados trabalharam por esquecer-se dele. Os homens jogaram, falaram em política e requestaram as moças; as senhoras ouviram finezas, trataram de modas e criticaram desapiedadamente umas às outras. As filhas deram carreirinhas ao som da música, as mães, já idosas, receberam cumprimentos por amor daquelas e as avós, por não terem que fazer nem que ouvir, levaram todo o tempo a endireitar as toucas e a comer doces. Tudo esteve debaixo destas regras gerais; só basta dar conta das seguintes particularidades:

D. Carolina sempre dançou a terceira contradança com Augusto, mas, para isso, foi preciso que a sra. d. Ana empenhasse todo o seu valimento; a tirana princesinha da festa esteve realmente desapiedada. e não quis passear com o estudante.

.A interessante d. Violante fez o diabo a quatro: tomou doze sorvetes, comeu pão-de-ló como nenhuma, tocou em todos os doces, obrigou alguns moços a tomá-la por par, e até dançou uma valsa corrupio.

Augusto apaixonou-se por seis senhoras com quem dançou; o rapaz é incorrigível. E assim tudo mais.

Agora são quatro horas da manhã; o sarau está terminado, os convidados vão retirando-se e nós, entrando no toilette, vamos ouvir quatro belas conhecidas nossas, que conversam com ardor e fogo.

— É possível?!… exclamou d. Quinquina, dirigindo-se à sua mana; pois é verdade que esse sr. Augusto lhe fez uma declaração de amor?...

— Como quer que lhe diga, maninha!... Asseverou que meus olhos pretos davam à sua alma mais luz do que aos seus olhos todos os candelabros da sala nesta noite, e mesmo do que o sol nos dias mais brilhantes… palavras dele.

— Que insolente!… tornou d. Quinquina, ele mesmo, que me jurou ser a mais bela a seus olhos e a mais cara ao seu coração, porque meus cabelos eram fios de ouro e a cor das minhas faces o rubor de um belo amanhecer!... Palavras dele.

— Que atrevido!… bradou d. Clementina; o próprio que afirmou ser-lhe impossível viver sem alentar-se com a esperança de possuir-me, porque eu sabia ferir corações com minhas vistas e curar profundas mágoas com meus sorrisos!... Palavras dele.

— Oh! Que moço abominável, disse, por sua vez, d. Gabriela; e ousou dizer-me que me amava com tão subida paixão que, se fora por mim amado e pudesse desejar e pedir algum extremo, não me pediria como a outras, para beijar-me a face, porque das virgens do céu somente se beijam os pés, e de joelho! Palavras dele.

— Mas isto é um insulto feito a todas nós!

— Como se estará ele rindo!

— Qual! Se ele está apaixonado... Apaixonado?... E por quem?...

— Por nós quatro... talvez por outras mais: ele pensa assim.

— Que maldito brasileiro com alma de mouro!...

— E havemos de ficar assim?...

— Não, acudiu d. Joaninha: vamos ter com ele, desmascaremo-lo.

— Isto é nada para quem não tem vergonha!...

— Pois troquemos os papéis: finjamos que estávamos tratadas para desafiar-lhe os requebros, e... ridicularizemo-lo como for possível.

— Sim... obriguemo-lo a dizer qual de nós é a mais bonita; cada uma lhe pedirá um anel de seus cabelos... uma prenda... uma lembrança... ponhamo-lo doido.

— Muito bem pensado! Vamos!

— Deus nos livre!... A vista de tanta gente!...

— Então, quando e aonde?

— Uma idéia... seja a zombaria completa: escreva-se uma carta anônima, convidando-o para estar ao romper do dia na gruta.

— Bravo! Então escreva...

— Eu, não, escreva você...

— Deus me defenda! ... escreva d. Gabriela, que tem boa letra...

— Então, nenhuma escreve? Pois tiremos por sorte.

A idéia foi recebida com aprovação e a sorte destinou para secretária d. Clementina, que tirando de seu álbum um lápis uma tira de papel, escreveu sem hesitar:

"Senhor: — Uma jovem que vos ama e que de vós escutou palavras de ternura tem um segredo a confiar-vos: ao ralar da aurora a encontrareis no banco de relva da gruta; sede circunspecto e vereis a quem, por meia hora ainda, quer ser apenas — Uma incógnita".

— Bem, disse d. Quinquina, eu me encarrego de fazer-lhe receber a carta. Saiamos.

As quatro moças iam sair, quando um suspiro as suspendeu; mais alguém estava no toilette. D. Joaninha, medrosa de que uma testemunha tivesse presenciado a cena que se acabava de passar, voltou-se para o fundo do gabinete e o susto logo se dissipou.

— Vejam como ela dorme! ... disse.

Com efeito, recostada em uma cadeira de braços, d. Carolina estava profundamente adormecida.

A Moreninha se mostrava, na verdade, encantadora no mole descuido de seu dormir, e à mercê de um doce resfolegar, os desejos se agitavam entre seus seios; seu pezinho bem à mostra, suas tranças dobradas no colo, seus lábios entreabertos e como por costume amoldados àquele sorrir cheio de malícia e de encanto que já lhe conhecemos e, finalmente, suas pálpebras cerradas e coroadas por bastos e negros supercílios, a tornavam mais feiticeira que nunca.

D. Clementina não pôde resistir a tantas graças: correu para ela… dois rostos angélicos se aproximaram... quatro lábios cor-de-rosa se tocaram e este toque fez acordar d. Carolina.

Um beijo tinha despertado um anjo, se é que o anjo realmente dormia.

 

 

Cap. XVII - Foram buscar lã e saíram tosquiadas

Se houve alguém que quisesse servir a d. Quinquina, ou se foi ela mesma quem pôs a carta anônima no bolso da jaqueta de Augusto, é coisa que pouco interesse dá; o certo é que o estudante, indo tirar o lenço para assoar-se, achou o interessante escritinho; então correu logo para um lugar solitário, e só depois de devorar o convite sem assinatura, foi que lembrou-se que ainda não se havia assoado e que o pingo estava cai não cai na ponta do nariz; enfim, ainda com o lenço acudiu a tempo, e depois entendeu que, para melhor decidir o que lhe cumpria fazer naquela conjuntura, deveria avivar o cérebro, sorvendo uma boa pitada de rapé; portanto, lançou a mão ao segundo bolso de sua jaqueta, e eis que lhe sai com a caixa do bom Princesa um outro escritinho como o primeiro.

— Bravo! exclamou o nosso estudante; temíveis mãozinhas seriam estas, se se dessem ao exercício, não de encher, mas de vazar as algibeiras da gente.

E sem mais dizer, abriu e leu o escrito.

"Senhor: — Uma moça, que nem é bonita nem namorada, mas que quer interessar-se por vós, entende dever prevenir-vos que no banco de relva da gruta não achareis ao amanhecer uma incógnita, porém quatro conhecidas, que pretendem zombar de vós, porque esta mesma noite jurastes amar a cada uma delas cm particular. Não procureis adivinhar quem vos escreve, porque apesar de vossa amiga será por agora — Uma incógnita".

— Muito bonito! Muito bonito!... disse Augusto, beijando o bilhete; estou exatamente representando um papel de romance! Mas quem sabe se ainda acharei mais cartas?...

E nisso pensando, foi correndo um por um todos os bolsos de seus vestidos, sem esquecer o do relógio; e até passou os dedos pela sua basta cabeleira, presumindo que talvez introduzissem algum no enorme canudo de cabelos que lhe escondia as orelhas.

Porém nada mais havia; também duas cartas tão curiosas já eram de sobra em uma só noite.

O estudante pensou no conteúdo de ambas, e ainda reflexionava se lhe cumpria fugir ou aceitar um certame com quatro moças, que ele adivinhava quais eram, quando a primeira rosa da aurora se desabriu no horizonte. Augusto correu para a gruta encantada.

Chegando ao pé, foi de mansinho se aproximando, sentiu rumor e ouviu que alguém dizia em tom baixo:

— Oh! Se ele vier!

— Ei-lo aqui, minhas belas senhoras, exclamou o estudante, que entendeu não lhes dever nunca dar tempo a tomarem a ofensiva; eis-me aqui!...

As moças, que estavam todas sentadinhas no banco de relva, como quatro pombas rolas enfileiradas no mesmo galho, ergueram-se sobressaltadas ao ver entrar inopinadamente o estudante; era isso mesmo o que ele queria, pois continuou:

— As senhoras vêem que acudi de pronto ao honroso convite e que me entusiasmo vendo quatro auroras em lugar de uma só. Belo amanhecer é este, sem dúvida… mas, exposto ao fogo abrasador de oito olhos brilhantes… eu me sinto arder... juro que tenho sede... Eis ali uma fonte... Mas, meu Deus, é a fonte encantada que descobre os segredos de quem está conosco!... Bem! Bem! Melhor… uma gota desta linfa de fadas!...

— O que é que ele está dizendo, mana? exclamou d. Quinquina, apontando para Augusto, que tinha entre os lábios o copo de prata.

— É preciso decidir-nos a começar, disse d. Gabriela.

— Principie você, disse d. Joaninha.

— Eu não! comece você.

— Eu não, que sou a mais moça.

Então o estudante, que tinha acabado de esgotar o seu copo d’água, voltou-se para elas, e dando a seu rosto uma expressão animada e às suas palavras estudado acento:

— Começo eu, minhas senhoras, disse, e começo por dizer-vos que aquela fonte é realmente encantada; sim, eu tenho, à mercê de sua água, adivinhado belos segredos: escutai vós Perdoai e consenti que vos trate assim, enquanto vos falar inspirado por um poder sobrenatural. Vós viestes aqui para maltratar-me e zombar de mim, por haver amado a todas vós numa só noite; que ingratidão!... Eu vos poderia perguntar como o poeta: Assim se paga a um coração amante?! Mas, desgraçadamente, a fada que preside àquela fonte, quer mais alguma coisa ainda, e me dá uma cruel missão! Ordena-me que eu diga a cada uma de vós, em particular, algum segredo do fundo de vossos corações, para melhor provar os seus encantamentos. Pois bem, é preciso obedecer; qual de vós quer ser a primeira?...

Eu não ouso falar alto, porque pelo jardim talvez estejam passeando alguns profanos. Qual de vós quer ser a primeira?...

Nenhuma se moveu.

— Será preciso que eu escolha? continuou o tagarela. Escolherei... lluminai-me, boa fada! Quem será?... Será… a sra. d. Gabriela?

— Eu?! respondeu a menina, recuando.

— A senhora mesma, disse Augusto, trazendo-a pela mão para junto da fonte; vinde, senhora, para bem perto do lugar encantado; agora silêncio... ouvi.

— Ele está mangando conosco, murmurou d. Clementina.

Augusto já estava falando em voz baixa a d. Gabriela.

— Vós, senhora, ainda não amastes a pessoa alguma; para vós amor não existe: é um sonho apenas, e só olhais como real a galanteria; vós queríeis zombar de mim, porque vos protestei os mesmos sentimentos que havia protestado a mais três companheiras vossas, e todavia, estais incursa em igual delito, pois só por cartas vos correspondeis com cinco mancebos.

— Senhor!...

— Oh! Não vos impacienteis; quereis provas?... Há quatro dias, uma vendedeira de empadas, que se encarrega de vossas cartas, enganou-se na entrega de duas; trocou-as e deu, se bem se lembra a fada, a de lacre azul ao sr. Juca e a de lacre verde ao sr. Joãozinho.

— Ora… ora, senhor! Quem lhe contou essas invenções?

— A fada! E fez mais ainda. Vós não achareis em vosso álbum o escrito desesperado do sr. Joãozinho, que vos foi entregue no momento de vossa partida para esta ilha; sou eu que o tenho, a fada mo deu há pouco com sua mão invisível.

— Impossível! balbuciou d. Gabriela, recorrendo ao seu álbum.

Ela não podia encontrar o escrito.

— Sr. Augusto, disse então, toda vergonha e acanhamento, eu lhe rogo que me dê esse papel.

— Pois não quereis ouvir mais nada!...

— Basta o que tenho ouvido e que não posso bem compreender; mas dê-me o que lhe pedi.

— Daqui a pouco, senhora, na hora de minha partida para a corte, porém com uma condição.

— Pode dizê-la.

— Sois sobremaneira delicada, senhora; este excesso vos deve ser nocivo; quereis fazer-me o obséquio de ir descansar e dar-me a honra de aceitar a minha mão até à porta da gruta?...

— Com muito prazer.

Então os dois se dirigiram para fora; passando junto das três companheiras, d. Gabriela pôde apenas dizer-lhes:

— Até logo.

Chegando à porta, Augusto falou já em outro tom:

— Minha senhora, espero que me faça a justiça de crer que fico extremamente penalizado por não poder dilatar por mais tempo a glória de acompanhá-la; mas sabe o que ainda tenho de fazer.

— Obrigada, respondeu d. Gabriela, não poupe as outras.

Não é possível bem descrever a admiração das três.

Augusto chegou-se a d. Quinquina, e tomando-lhe a mão disse:

— Minha senhora, é chegada a vossa vez.

D. Quinquina deixou-se levar para junto da fonte; as moças tinham perdido toda a força; o que diante delas se passava pedia uma explicação que não estava ao seu alcance dar. Augusto começou:

— Senhora, eu poderia dizer-vos, pelo que me conta a boa fada, que vós sois como as outras de vossa idade, tão volúveis como eu; mas para tal saber não precisava eu beber da água encantada; podia também gastar meia hora em falar do vosso galanteio com um tenente da Guarda Nacional, por nome Gusmão...

— Senhor!...

— Por nome Gusmão, que leva o seu despotismo amoroso a ponto de exigir que não valseis, que não tomeis sorvetes, que não deis dominus tetum quando ao pé de vós espirrar algum moço e que não vos riais quando ele estiver sério,

— Quem lhe disse isto, senhor?...

— A fada, senhora; e ainda me disse mais: por exemplo, contou-me que no baile desta noite, passeando com um velho militar, vós recebestes da mão dele um lindo cravo e a seus olhos o escondestes, com gesto apaixonado, no palpitante seio; mas daí a um quarto de hora essa mesma flor, tão ternamente aceita, deveria ir parar ao bolso de um belo jovem, chamado Lúcio, se acaso não fosse roubada pela fada que preside esta fonte.

— Eu não entendo nada do que o senhor está dizendo… isso não é comigo.

— Eu me explico: o sr. Lúcio viu ser dado e recebido o presente, e fingindo-se zeloso, vos pediu esse cravo, muito notável porque, além da flor aberta, havia sete flores em botão. Ora, dizei, não é verdade? Pois o sr. Lúcio queria esse cravo, mas vós não lho podíeis dar, porque o velho militar não tirava os olhos de vós; ora, conversando com o sr. Lúcio, acordastes ambos que ele iria esperar um instante no jardim e que um pequeno escravo, por nome Tobias, lhe levaria a flor; e como o tal Tobias ainda não conhecia o sr. Lúcio, este lhe daria por senha as seguintes palavras — sete botões — não foi assim?

D. Quinquina guardou silêncio, porque tudo era verdade; ela estava cor de nácar. Augusto prosseguiu:

— Isto se passou estando vós na grande varanda, sentados em um banco e com as costas voltadas para uma janela da sala do jogo; ora, a fada esteve recostada a essa janela, ouviu quanto dissestes e como lhe é dado tomar todas as figuras, tomou a do moço, foi ao jardim, e quando viu o Tobias, disse — sete botões; e o cravo foi logo da fada e é agora meu; ei-lo aqui!...

— Isto é uma invenção; eu não conheço essa flor.

— Bem então consentireis que eu a traga esta manhã no meu peito?... Se não confessais, eu a mostrarei... O senhor coronel ainda se não retirou e...

— Perdoe-me, balbuciou, enfim, d. Quinquina, deixando cair uma lágrima na mão de Augusto. Dê-me esse maldito cravo.

— Eu vo-lo darei na hora de minha partida, senhora; porém, ouvi mais.

— Basta.

— Pois bem, basta; mas eu vejo que vossa face está umedecida; seria uma lágrima se o relento da noite não molhasse também a rosa. Quereis descansar sem dúvida; poderei gozar o prazer de conduzir-vos até à porta da gruta?...

— Sim, senhor.

Duas guerreiras tinham sido batidas; só a curiosidade retinha as outras; Augusto se chegou para elas e falou a d. Clementina:

— Agora vós, senhora.

Ela deixou-se levar pela mão até junto da fonte, e o estudante começou:

— Quereis fatos de anteontem ou da noite passada, senhora?

Eu não entendo o que o senhor quer dizer.

— Pergunto, senhora, se vos dá gosto que eu vos repita o que convosco se passou, quando tomáveis um sorvete ao lado de um jovem de cabelos negros... o que convosco conversou o meu colega Filipe, quando tomáveis chá?

— Eu não preciso saber mais nada disso.

— Então dir-vos-ei o que mais vos interessa; sossegarei mesmo os vossos cuidados e os de sr. Filipe, a respeito da perda de certo objeto...

— Sr. Augusto!

— Senhora, foi a fada desta misteriosa fonte quem vos roubou um precioso embrulho que continha uma trança de vossos cabelos e que deveria ser achado embaixo da quarta roseira da rua que vai ter

— Sr. Augusto!

— Senhora, foi a fada desta misteriosa fonte quem vos roubou um precioso embrulho que continha uma trança de vossos cabelos e que deveria ser achado embaixo da quarta roseira da rua que vai ter ao caramanchão; e essa trança pára hoje em minhas mãos, ei-la aqui...

— Oh! Dê-ma.

— Não preferis antes que eu a entregue ao feliz para quem a destináveis?

— Não, eu lhe peço que ma dê.

— Eu estou pronto a obedecer-vos, senhora, mas só na hora de minha partida. Vós quatro queríeis zombar de mim, e não concebo até onde iria a vossa vingança; preciso de reféns que assegurem a paz entre nós, estes são os meus; quereis saber mais alguma coisa?

— Eu já sei que o senhor sabe demais!

— Então...

Quer, como às duas primeiras, oferecer-me a mão e obrigar-me a desamparar o campo? Venceu, senhor, e sou eu que lhe peço que me acompanheis até à porta da gruta.

— Eu estou pronto, senhora, para servir-vos em tudo.

Só restava d. Joaninha: era a vez dela.

— Eu vos deixei para o fim, disse Augusto, porque a vós é que eu mais admiro, porque vós sois exatamente a única dentre elas que tem amado melhor e que mais infeliz tem sido; eu vos explicarei isto. Sois, todavia, um pouco excessiva em exigências.

— Que quer dizer, sr. Augusto?

— Que quereis muito, quando ordenais a um estudante que vos escreva quatro vezes por semana, pelo menos; que passe defronte de vossa casa quatro vezes por dia; que vá a miúdo ao teatro e aos bailes que freqüentais, e até que não fume charutos de Havana, nem de Manilha, por ser falta de patriotismo.

Quem lhe disse isso, senhor?

— A fada, senhora, que sabe que amais a um moço, a quem dais a honra de chamar querido primo.

— E uma vil traição!

— Exatamente diz o mesmo a nossa boa fada, e ainda mais, senhora, quer que eu vos aconselhe a que desprezeis esse jovem infiel, que não sabe pagar o vosso amor: eu poderia dar-vos provas...

— Não as tenho eu bastantes, exclamou d. Joaninha com sentimento, quando lhe ouço repetir o que deveria ser sabido dele e de mim somente?

Augusto ia falar; ela o interrompeu.

— Senhor, eu agradeço o benefício que recebi; o senhor quis zombar de mim, como das outras, mas não o fez; ao contrário, atalhou em princípio uma grande enfermidade, que, talvez, fosse daqui a pouco tempo incurável! Eu galanteio também às vezes, porém sei amar ao extremo. Adeus, senhor! Eu posso apenas agradecer-Lhe, dizendo que tenho tanta confiança na sua discrição e no seu caráter, que nem mesmo lhe recomendo o cuidado do meu segredo.

D. Joaninha ia deixar a gruta, e Augusto lhe ofereceu o braço.

— Agradecida, disse ela; permita que eu entre sé em casa. Augusto ficou sé. Esteve alguns momentos lembrando-se da cena que acabava de ter lugar; finalmente disse, soltando uma risada:

— Vieram buscar lã e saíram tosquiadas!

E já estava para pôr o pé fora da gruta, quando uma voz branda e sonora o suspendeu, dizendo:

— Agora, sr. Augusto, é chegada a sua vez...

Friday, 21 February 2025

Friday's Sung Word: "Tico-Tico no Fubá" by Eurico Barreiros (in Portuguese).

music by Zequinha de Abreu.

Um tico-tico só,
Um tico-tico lá,
Está comendo
Todo, todo meu fubá.

Olha, Seu Nicolau,
Que o fubá se vai,
Pego no meu pica-pau
E um tiro sai.

Coitado... Então eu tenho pena
Do susto que levou
E uma cuia se ia,
Mais fubá eu dou.

Alegre já,
Voando, piando,
Meu fubá, meu fubá,
Saltando de lá pra cá.

Tico-tico engraçadinho
Que está sempre a piar,
Vá fazer o teu ninho
E terás assim um lar.

Procure uma companheira
Que eu te garanto o fubá,
De papada sempre cheia
Não acharás a vida má.

Houve um dia lá
Que ele não voltou,
E seu gostoso fubá
O vento levou.

Triste fiquei,
Quase chorei,
Mas então vi
Logo depois,
Já não eram um,
Mas sim já dois.

Quero contar baixinho
A vida dos dois,
Tiveram seu ninho
E filhotinhos depois.

Todos agora
Pulam ali,
Saltam aqui,
Comendo sempre o fubá
Saltando de lá para cá.

 

You can listen "Tico-Tico no Fubá" sung by Ademilde Fonseca here.

 

Thursday, 20 February 2025

Thursday's Serial: “A Moreninha” by Dr. Joaquim Manoel de Macedo (in Portuguese) - IX

 

CAP. XIV - PEDILÚVIO SENTIMENTAL

Ria-se, jogava-se, brincava-se: todos se haviam já esquecido da pobre Paula. Na verdade também que, por ter a ama de d. Carolina tomado seu copo de vinho a mais, não era justo que tantas moças e moços, em boa disposição de brincar, e umas poucas velhas determinadas a maçar meio mundo, ficassem a noite inteira pensando na carraspana da rapariga. E, além disso, quatro semidoutores já haviam pronunciado favorável prognóstico; como, pois, se arrojaria Paula a morrer contra a ordem expressa dos quatro hipocratíssimos senhores?...

Era por isso que todos brincavam alegremente, menos o sr. Keblerc que, diante de meia dúzia de garrafas vazias, roncava prodigiosamente: grande alemão para roncar!... Era uma escala inteira que ele solfejava com bemóis, bequadros e sustenidos!

Dir-se-ia que entoava um hino… a Baco.

Os rapazes estavam nos seus gerais; a princípio, como era seu velho costume haviam festejado, cumprimentado e aplaudido as senhoras idosas que se achavam na sala, principalmente aquelas que tinham trazido consigo moças; mas, passada meia hora, adeus etiquetas e cerimônias!... Estabeleceu-se um cordão sanitário entre a velhice e a mocidade; a sra. d. Ana achou a ocasião oportuna para ir dar ordens para o chá; d. Violante ocupou-se em desenvolver a um velho roceiro os meios mais adequados para se preencher o deficit provável do Brasil para o ano financeiro de 44 a 45, sem aumentar os direitos de importação, nem criar impostos, abolindo-se, pelo contrário, a décima urbana. Já se vê que d. Violante tinha casas na cidade. Restavam quatro senhoras, que julgaram a propósito jogar o embarque, que na verdade as divertia muito, com o episódio do ás galar o sete; havia, enfim, outra mesa em que alguns senhores, viúvos, casados e velhos pais perdiam ou ganhavam dinheiro no écarté, jogo muito bonito e muito variado, que nos vieram ensinar os senhores franceses, grandes inventores, sem dúvida!...

A rapaziada empregava melhor o seu tempo: também jogava, mas na sua roda não havia nem mesa, nem cartas, nem dados. O seu jogo tinha um diretor que, exceção de regra entre os mais, não podia ter menos de cinqüenta anos: era um homem de estatura muito menos que a ordinária, tinha o rosto muito vermelho, cabelos e barbas ruivos, gordo, de pernas arqueadas, ajuntando ao ridículo de sua figura muito espírito; não estava bem senão entre rapazes. por felicidade deles sempre se encontra desses. Tal o diretor da roda dos moços. O sr. Batista (este o seu nome) era fértil em jogos; quando um aborrecia, vinha logo outro melhor. Já se havia jogado o do toucador e o do enfermo. O terceiro agradou tanto, que se repetia pela duodécima vez, com aplauso geral, principalmente das moças: era, sem mais nem menos, o jogo da palhinha.

Caso célebre!... Já se viu que coincidência!... Ora expliquem. se são capazes... Tem-se jogado a palhinha doze vezes e em todas elas tem a sorte feito com que Filipe abrace d. Clementina e Fabrício d. Joaninha! E sempre, no fim de cada jogo, qualquer das duas recua um passo, como se pouca vontade houvesse nelas de dar o abraço, e fazendo-se coradinha, exclama:

— Quantos abraços!... Pois outra vez?...

— Eu já não dei ainda agora?... Ora isto!...

Entre os rapazes, porém, há um que não está absolutamente satisfeito: é Augusto. Será porque no tal jogo da palhinha tem por vezes ficado viúvo?... Não! Ele esperava isso como castigo da sua inconstância. A causa é outra: a alma da ilha de... não está na sala! Augusto vê o jogo ir indo o seu caminho muito sem ordem; não se rasgou ainda nenhum lenço, Filipe ainda não gritou com a dor de nenhum beliscão, tudo se faz em regra e muito direito; a travessa, a inquieta, a buliçosa, a tentaçãozinha não está aí: d. Carolina está ausente!...

Com efeito, Augusto, sem amar d. Carolina (ele assim o pensa) já faz dela idéia absolutamente diversa da que fazia ainda há poucas horas: agora, segundo ele, a interessante Moreninha é, na verdade, travessa, mas a cada travessura ajunta tanta graça, que tudo se lhe perdoa. D. Carolina é o prazer em ebulição; se é inquieta e buliçosa, está em sê-lo a sua maior graça: aquele rosto moreno, vivo e delicado, aquele corpinho, ligeiro como a abelha, perderia metade do que vale se não estivesse em contínua agitação. O beija-flor nunca se mostra tão belo como quando se pendura na mais tênue flor e voeja nos ares; d. Carolina é como um beija-flor completo.

Neste momento a sra. d. Ana entrou na sala, e depois dirigindo-se à grande varanda da frente, sentou-se defronte do jardim. Batista acabava de dar fim ao jogo da palhinha e começava novo: Augusto pediu que o dispensassem e foi ter com a dona da casa.

— Não joga mais, sr. Augusto? disse ela.

— Por ora não, minha senhora.

— Parece-me pouco alegre.

— Ao contrário… estou satisfeitíssimo.

— Oh! O seu rosto mostra não sentir o que dizem seus lábios; se aqui lhe falta alguma coisa...

— Na verdade que aqui não está tudo, minha senhora.

— Então que falta?

— A sra. d. Carolina!

A boa senhora riu-se com satisfação. Seu orgulho de avó acabava de ser incensado: era tocar-lhe no fraco.

— Gosta de minha neta, sr. Augusto?

— É a delicada borboleta deste jardim, respondeu ele, mostrando as flores.

— Vá buscá-la, disse a sra. d. Ana, apontando para dentro.

— Minha senhora, tanta honra!

— O amigo de meu neto deve merecer minha confiança: esta casa é dos meus amigos e também dos dele. Carolina está, sem dúvida, no quarto de Paula; vá vê-la e consiga arrancá-la de junto da sua ama.

A sra. d. Ana levou Augusto pela mão até o corredor e depois o empurrou brandamente.

— Vá, disse ela, e receba isso como a mais franca prova de minha estima para com o amigo de meu neto.

Augusto não esperou ouvir nova ordem: endireitou para o quarto de Paula, com presteza e alegria. A porta estava cerrada; abriu sem ruído e parou no limiar.

Três pessoas havia nesse quarto: Paula, deitada e abatida sob o peso de sua sofrível mona, era um objeto triste e talvez ridículo, se não padecesse; a segunda era uma escrava que acabava de depor junto do leito a bacia em que Paula deveria tomar o pedilúvio recomendado, objeto indiferente; a terceira era uma menina de quinze anos, que desprezava a sala, em que borbulhava o prazer, pelo quarto em que padecia uma pobre mulher; este objetivo era nobre...

D. Carolina e a escrava tinham as costas voltadas para a porta e por isso não viam Augusto: Paula olhava, mas não via, ou antes não sabia o que via.

— Anda, Tomásia, dá-lhe o escalda-pés! disse d. Carolina.

Pela sua voz conhecia-se que tinha chorado.

A escrava abaixou-se e puxou os pés da pobre Paula; depois, pondo a mão n’água, tirou~a de repente, e sacudindo-a:

— Está fervendo!… disse.

— Não está fervendo, respondeu a menina; deve ser bem quente, assim disseram os moços.

A escrava tornou a pôr a mão e de novo retirou-a com presteza tal, que bateu com os pés de Paula contra a bacia.

— Estonteada!... Sai... Afasta-te, exclamou d. Carolina, arregaçando as mangas de seu lindo vestido.

A escrava não obedeceu.

— Afasta-te daí, disse a menina em tom imperioso; e depois abaixou-se no lugar da escrava, tomou os pés de sua ama, apertou-os contra o peito, chorando, e começou a banhá-los.

Belo espetáculo era o ver essa menina delicada, curvada aos pés de uma rude mulher, banhando-os com sossego, mergulhando suas mãos tão finas, tão lindas, nessa mesma água que fizera lançar um grito de dor à escrava, quando aí tocara de leve com as suas, tão grosseiras e calejadas!... Os últimos vislumbres das impressões desagradáveis que ela causara a Augusto, de todo se esvaíram. Acabou-se a criança estouvada… ficou em seu lugar o anjo de candura.

O sensível estudante viu as mãozinhas tão delicadas da piedosa menina já roxas, e adivinhou que ela estava engolindo suas dores para não gemer; por isso não pôde suster-se e, adiantando-se, disse:

— Perdoe, minha senhora.

— Oh!... O senhor estava aí?

E tenho testemunhado tudo!

A menina abaixou os olhos, confusa, e apontando para a doente, disse:

— Ela me deu de mamar.

— Mas nem por isso deve a senhora condenar suas lindas mãos a serem queimadas, quando algum dos muitos escravos que a cercam poderia encarregar-se do trabalho em que a vi tão piedosamente ocupada.

— Nenhum o fará com jeito.

— Experimente.

— Mas a quem encarregarei?

— A mim, minha senhora.

— O senhor falava de meus escravos...

— Pois nem para escravo eu presto?

— Senhor!

E nisto o estudante abaixou-se e tomou os pés de Paula, enquanto d. Carolina, junto dele, o olhava com ternura.

Quando Augusto julgou que era tempo de terminar, a jovenzinha recebeu os pés de sua ama e os envolveu na toalha que tinha nos braços.

— Agora deixemo-la descansar, disse o moço.

— Ela corre algum risco?…perguntou a menina.

— Afirmo que acordará amanhã perfeitamente boa.

— Obrigada!

— Quer dar-me a honra de acompanhá-la até à sala? disse Augusto, oferecendo a sua mão direita à bela Moreninha.

Ela não respondeu, mas olhou. com gratidão, aceitando o braço do mancebo, deixou o quarto de Paula.

 

 

CAP. XV - UM DIA EM QUATRO PALAVRAS

Ao romper do dia de Sant’Ana estavam todos na ilha de... descansando nos braços do sono: era isso muito natural,depois de uma noite como a da véspera, em que tanto se havia brincado.

Com efeito, os jogos de prendas tinham-se prolongado excessivamente. A chegada de d. Carolina e Augusto lhes deu ainda dobrada viveza e fogo. A bonita Moreninha tornou-se mais travessa do que nunca; mil vezes barulhenta, perturbava a ordem dos jogos de modo que era preciso começar de novo o que já estava no fim; outras tantas rebelde, não cumpria certos castigos que lhe impunham, não deu um só beijo e aquele que atreveu-se a abraçá-la, teve em recompensa um beliscão.

Finalmente, ouviu-se a voz de vamos dormir, e cada qual tratou de fazer por consegui-lo.

O último que se deitou foi Augusto e ignora-se por que saiu de luz na mão, a passear pelo jardim, quando todos se achavam acomodados; de volta do seu passeio noturno, atirou-se entre Fabrício e Leopoldo e imediatamente adormeceu. Os estudantes dormiram juntos.

São seis horas da manhã e todos dormem ainda a sono solto. Um autor pode entrar em toda a parte e, pois... não, não, alto lá! No gabinete das moças... Não senhor; no dos rapazes, ainda bem. A porta está aberta. Eis os quatro estudantes estirados numa larga esteira; e como roncam!... Mas que faz o nosso Augusto? Ri-se, murmura frases imperceptíveis, suspira... Então que é isso?... Dá um beijo em Fabrício; acorda espantado e ainda por cima empurra cruelmente o mesmo a quem acaba de beijar...

Oh, beleza! Oh, inexplicável poder de um rosto bonito que, não contente com as zombarias que faz ao homem que vela, o ilude e ainda zomba dele dormindo!

Estava o nosso estudante sonhando que certa pessoa, de quem ele tivera até aborrecimento e que agora começava com olhos travessos a fazer-lhe cócegas no coração, vinha terna e amorosamente despertá-lo; que ele fingira continuar a dormir e ela se sentara à sua cabeceira~ que, traquinas como sempre, em vez de chamá-lo queria rir-se acordando-o pouco a pouco; que para isso aproximava seu rosto do dele, e, assoprando-lhe os lábios, ria-se ao ver as contrações que produzia a titilação causada pelo sopro; que ele, ao sentir tão perto dos seus os lindos lábios dela, estava ardentemente desejoso de furtar-lhe um beijo, mas que temia vê-la fugir ao menor movimento; que finalmente, não podendo mais resistir aos seus férvidos beijos, assentara de, quando se aproximasse o belo rosto, ir de um salto colher o voluptuoso beijo naquela boquinha de botão de rosa; que o rosto chegou à distância de meio palmo e... (aqui parou o sonho e principiou a realidade) e ele deu um salto mas, em lugar de pregar um beijo nos lábios de d. Carolina, foi com toda a força e estouvamento bater com os beiços e nariz contra a testa de Fabrício; depois, como se o colega tivesse culpa de tal infelicidade, deu-lhe dois empurrões dizendo:

— Sai-te daí, peste! ... Ora, quando eu sonhava com um anjo, acordo-me nos braços de Satanás!...

Corra-se, porém, um véu sobre quanto se passou até que se levantaram do almoço. A sociedade se dividiu logo depois em grupos. Uns conversavam, outros jogavam, dois velhos ferraram-se no gamão, as moças espalharam-se pelo jardim e os quatros estudantes tiveram a péssima lembrança de formar uma mesa de voltarete.

E apesar do poder da cachaça do jogo, de cada vez que qualquer deles dava cartas, ficava na mesa um lugar vazio, e junto do arco da varanda, que olhava para o jardim, colocava-se uma sentinela. Já se vê que o voltarete não podia seguir marcha muito regular. Augusto, por exemplo, distraía-se com freqüência tal, que às vezes passava com basto e espadilha, e era codilhado todas as mãos que jogava de feito. A Moreninha já fazia travessuras muito especiais no coração do estudante; e ele, que se acusava de haver sido injusto para com ela, agora a observava com cuidado e prazer, para em compensação render-lhe toda justiça. D. Carolina brilhava jardim e, mais que as outras, por graças e encantos que todos sentiam e que ninguém poderia bem descrever; confessava-se que não era bela, mas jurava-se que era encantadora; alguém queria que ela tivesse maiores olhos, porém não havia quem resistisse à viveza de seus olhares; os que mais apaixonados fossem da doce melancolia de certos semblantes em que a languidez dos olhos e a brandura de custosos risos estão exprimindo amor ardente e sentimentalismo, concordariam por força que no lindo rosto moreno de d. Carolina nada iria melhor do que o prazer que nele transluz e o sorriso engraçado e picante que de ordinário enfeita seus lábios; além disto, sempre em brincadeira, guerreia com todos e em interessante contradição consigo mesma, ela a um tempo solta um ai e uma risada, graceja, fazendo-se de grave, fala, jurando não dizer palavra, apresenta-se escondendo-se, sempre quer jamais querendo.

Nunca também se havia mostrado a Moreninha tão jovial e feiticeira, mas para isso boas razões havia: esse era o dia dos anos da sua boa avó e a pobre Paula, sua estimada amada ama, estava completamente restabelecida.

Eis uma deliciosa invasão!... Dez moças entram de repente na varanda e num momento dado tudo se confunde e amotina; d. Carolina atira no meio da mesa do voltarete uma mão cheia de flores, e enquanto Filipe faz tenção de dirigir-lhe um discurso admoestador, ela furta-lhe a espadilha e voa para tornar a aparecer logo depois. E impossível continuar assim: dá-se por acabado o jogo e a Moreninha, à custa de um único sorriso, faz as pazes com o irmão.

— Parabéns, sra. d. Joaquina, disse Augusto; já triunfou de uma de suas rivais!

— Como?... perguntou ela.

— Ora, que esta minha prima nunca entende as figuras do sr. Augusto, acudiu d. Carolina; explique-se, sr. doutor.

Sua prima, minha senhora, a aurora e a rosa disputam sobre qual primará na viveza da cor, e eu vejo que ela tem presa no cabelo uma das duas rivais.

Eu o encarrego com prazer da guarda fiel desta minha competidora... seja o seu carcereiro! disse d. Quinquina, querendo tirar uma linda rosa do cabelo, para oferecê-la a Augusto.

— Oh! Minha senhora! Seria um cruel castigo para ela, que se mostra tão vaidosa.

— Pois rejeita?...

— Certo que não; aceito, mas rogo um outro obséquio.

— Qual?

— Que por ora lhe conceda seus cabelos por homenagem. Pois bem, será satisfeito; eu guardarei a sua rosa.

— Mas cuidado, não haja quem liberte a bela cativa! disse Leopoldo.

— Protesto que a hei de furtar, acrescentou d. Carolina.

— Desafio-lhe a isso! respondeu a prima.

Então começou uma luta de ardis e cuidados entre a Moreninha e d. Quinquina. Aquela já tinha debalde esgotado quantos estratagemas lhe pôde sugerir seu fértil espírito, e enfim, fingindo-se fatigada, veio sossegadamente conversar junto de d. Quinquina, que, não menos viva, conservava-se na defensiva.

Depois de uma meia hora de hábil afetação, a menina travessa, com um rápido movimento, fez cair o leque de sua adversária; Leopoldo abaixou-se para levantá-lo e d. Quinquina, um instante despercebida, curvou-se também e soltou logo um grito, sentindo a mão da prima sobre a rosa: com a sua foi acudir a esta; houve um conflito entre duas finas mãozinhas, que mutuamente se beliscaram, e em resultado desfolhou-se completamente a rosa.

Morreu a bela cativa! ... Morreu a pobre cativa! ... gritaram as moças.

— D. Carolina está criminosa! disse d. Clementina.

— Vai ao júri, minha senhora!

É verdade, vamos levá-la ao júri.

A idéia foi recebida com aplauso geral: só Filipe se opôs.

Não, não, disse ele. Carolina é muito rebelde, se fosse condenada, não cumpriria a sentença.

— Oh! Maninho! Não diga isso. Você jura obedecer?...

— Eu juro por você.

Tanto pior: era mais um motivo para se tornar perjura. Pois bem, dou a minha palavra, não é suficiente?

— Basta! Basta!

Organizou-se o júri; Fabrício foi encarregado da presidência, um outro moço serviu de escrivão, e cinco moças saíram por sorte para juradas; d. Clementina terá de ser a relatora da sentença. A Augusto declararam suspeito na causa. Filipe foi escolhido para advogado da ré e Leopoldo da autora.

A sessão começou.

Longo fora enumerar tudo o que se passou em duas horas muito agradáveis e por isso muito breves também. Toda a companhia veio tomar parte naquele divertimento improvisado e até, quem o diria?! os dois velhos deixaram o tabuleiro de gamão. Resuma-se alguma coisa.

As testemunhas foram d. Gabriela e uma outra, que deram provas de bastante espírito: o interrogatório de d. Carolina fez rir a quantos o ouviram. O debate dos advogados esteve curioso.

Leopoldo acusou a ré, demonstrando que tinha havido a circunstância agravante da premeditação e que o crime se tornava ainda mais feio, por ser causado pelo ciúme; procurou provar que d. Carolina, cônscia de seus encantos e beleza, queria ser senhora absoluta de todos os corações e até de todos os seres; que ela se enchera de zelos supondo, com razão, que Augusto desse subido valor à rosa, por lhe ser dada por uma moça bela como era a autora e, enfim, que o crime da ré era excessivo, que já na tarde antecedente jurara a perda daquela flor, por desconfiar que o zéfiro brincava mais com ela do que com seus olhos.

Filipe não se deixou ficar atrás. Argumentou dizendo que era impossível decidir que mão tinha dado a morte à bela cativa; que não houvera premeditação, porque a ré não quisera matar, mas sim Libertar; que, se havia crime, só o cometera a autora, por prender uma inocente flor; e que, por último, ainda quando fosse a ré que desfolhara a rosa e mesmo dando-se o propósito de o fazer, dever-se-ia atribuir tal ação à piedade, pois que d. Quinquina a estava matando pouco a pouco com o veneno da inveja, colocando-a tão perto de suas faces, que tanto a venciam em rubor e viço.

As juradas recolheram-se ao boilette e cinco minutos depois voltaram com a sentença, que foi lida por d. Clementina.

O júri declarou d. Carolina criminosa e a condenou a indenizar o dono da rosa com um beijo.

— Para fazer tal, disse a ré, não carecia eu da sentença do júri: tome um beijo, minha prima...

— Não é a mim que o deve dar, respondeu a autora; o dono da rosa é o sr. Augusto.

De rosa fez-se o rosto de d. Carolina.

— O beijo! O beijo! gritaram as juradas. Você deu sua palavra!

Ela hesitou alguns momentos... depois, aproximou-se de Augusto e, com seu sorriso feiticeiro e irresistível nos lábios, disse...

— O senhor me perdoa?...

— Não! Não! Não! clamaram de todos os lados.

Mas a menina parecia contar com o poder de seus lábios, porque, sorrindo-se ainda do mesmo modo, tornou a perguntar com meiguice e ternura:

— Me perdoa?...

— Não! Não!

— Porém, como resistir ao seu sorriso?... Como dizer que não a quem pede como ela?…exclamou Augusto, entusiasmado.

D. Carolina estava, pois, perdoada.

— Agradecida! disse ela com vivo acento de gratidão e estendeu sua destra para Augusto que, não podendo ceder tudo com tão criminoso desinteresse, tomou entre as suas aquela mãozinha de querubim e fez estalar sobre ela o beijo mais gostoso que tinham até então dado seus lábios.

A manhã deste dia foi assim passada e à tarde voltou-se aos preparativos do sarau.