CAP. XVI - O SARAU
‘Um
sarau é o bocado mais delicioso que temos, de telhado abaixo. Em um sarau todo
o mundo tem que fazer. O diplomata ajusta, com um copo de champanha na mão, os
mais intrincados negócios; todos murmuram e não há quem deixe de ser murmurado.
O velho lembra-se dos minuetes e das cantigas do seu tempo, e o moço goza todos
os regalos da sua época; as moças são no sarau como as estrelas no céu; estão
no seu elemento; aqui uma, cantando suave cavatina, eleva-se vaidosa nas asas
dos aplausos, por entre os quais surde, às vezes, um bravíssimo inopinado, que
solta de lá da sala do jogo o parceiro que acaba de ganhar sua partida do
écarté mesmo na ocasião em que a moça se espicha completamente, desafinando um
sustenido; daí a pouco vão outras pelo braço de seus pares, se deslizando pela
sala e marchando em seu passeio, mais a compasso que qualquer de nossos
batalhões da Guarda Nacional, ao mesmo tempo que conversam sempre sobre objetos
inocentes que movem olhaduras e risadinhas apreciáveis. Outras criticam de uma
gorducha vovó, que ensaca nos bolsos meia bandeja de doces que vieram para o
chá, e que ela leva aos pequenos que, diz, lhe ficaram em casa. Ali vê-se um
ataviado dândi que dirige mil finezas a uma senhora idosa, tendo os olhos
pregados na sinhá, que senta-se ao lado. Finalmente, no sarau não é essencial
ter cabeça nem boca, porque, para alguns e regra, durante ele, pensar pelos pés
e falar pelos olhos.
E o
mais é que nós estamos num sarau: inúmeros batéis conduziram da corte para a
ilha de... senhoras e senhores, recomendáveis por caráter e qualidade: alegre,
numerosa e escolhida sociedade enche a grande casa, que brilha e mostra em toda
a parte borbulhar o prazer e o bom gosto.
Entre
todas essas elegantes e agradáveis moças, que com aturado empenho se esforçam
por ver qual delas vence em graças, encantos e donaires, certo que sobrepuja a
travessa Moreninha, princesa daquela festa.
Hábil
menina é ela! Nunca seu amor-próprio produziu com tanto estudo seu toucador e,
contudo, dir-se-ia que o gênio da simplicidade a penteara e vestira. Enquanto
as outras moças haviam esgotado a paciência de seus cabeleireiros, posto em
tributo toda a habilidade das modistas da rua do Ouvidor e coberto seus colos
com as mais ricas e preciosas jóias, d. Carolina dividiu seus cabelos em duas
tranças, que deixou cair pela costa; não quis adornar o pescoço com seu adereço
de brilhantes nem com seu lindo colar de esmeraldas; vestiu um finíssimo, mas
simples vestido de garça, que até pecava contra a moda reinante, por não ser
sobejamente comprido. Vindo assim aparecer na sala, arrebatou todas as vistas e
atenções.
Porém,
se um atento observador a estudasse, descobriria que ela adrede se mostrava
assim, para ostentar as longas e ondeadas madeixas negras, em belo contraste
com a alvura de seu vestido branco, e para mostrar, todo nu, o elevado colo de
alabastro, que tanto a aformoseava, e que seu pecado contra a moda reinante não
era senão um meio sutil de que se aproveitara para deixar ver o pezinho mais
bem feito e mais pequeno que se pode imaginar.
Sobre
ela estão conversando agora mesmo Fabrício e Leopoldo; terminaram sem dúvida a
sua prática; não importa. Vamos ouvi -los.
— Está
na verdade encantadora!... repetiu pela quarta vez aquele.
—
Danças com ela? perguntou Leopoldo.
— Não,
já estava engajada para doze quadrilhas.
— Oh!
Lá vai ter com ela o nosso Augusto. Vamos apreciá-lo.
Os dois
estudantes aproximaram-se de Augusto, que acabava de rogar à linda Moreninha a
mercê da terceira quadrilha.
— Leva
de tábua, disse Fabrício ao ouvido de Leopoldo; é a mesma que eu lhe havia
pedido.
Mas a
jovenzinha pensou um momento antes de responder ao pretendente; olhou para
Fabrício e com particular mover de lábios pareceu mostrar-se descontente;
depois riu-se e respondeu a Augusto:
— Com
muito prazer.
— Mas
minha senhora, disse Fabrício, vermelho de despeito e aturdido com um beliscão
que lhe dera Leopoldo; há cinco minutos que já estava engajada até á duodécima.
— E
verdade, tornou d. Carolina; e agora só acabo de ratificar uma promessa; o sr.
Augusto poderá dizer se ontem pediu-me ou não a terceira contradança.
—
Juro... balbuciou Augusto.
—
Basta! acudiu Fabrício interrompendo-o; é inútil qualquer juramento de homem,
depois das palavras de uma senhora.
Fabrício
e Leopoldo retiraram-se; d. Carolina, que tinha iludido o primeiro, vendo
brilhar o prazer na face de Augusto, e temendo que daquela ocorrência tirasse
este alguma explicação lisonjeira demais, quis aplicar um corretivo e,
erguendo-se, tomou o braço de Augusto. Aproveitando o passeio, disse:
—
Agradeço-lhe a condescendência com que ia tomar parte na minha mentira... foi
necessário que eu praticasse assim; quero antes dançar com qualquer, do que com
aquele seu amigo.
—
Ofendeu-a, minha senhora?
— Certo
que não, mas diz-me coisas que não quero saber.
— Meu
Deus! É um crime que também eu tenho estado bem perto de cometer!
— Pois
bem, foi esta a única razão.
— Mas
eu temo perder a minha contradança... alguns momentos mais e serei réu como
Fabrício.
— A
culpa será de seus lábios.
— Antes
dos seus olhos, minha senhora.
—
Cuidado, sr. Augusto! Lembre-se da contradança!
— Pois
será preciso dizer que a detesto?...
— Basta
não dizer que me ama.
— Ë não
dizer o que sinto; eu não sei mentir. Ainda há pouco ia jurar falso...
— Nas
palavras de um anjo ou de uma...
—
Acabe.
—
Tentaçãozinha.
—
Perdeu a terceira contradança.
—
Misericórdia! Eu não falei em amor!...
Neste
momento a orquestra assinalou o começo do sarau. E preciso antecipar que nos
não vamos dar ao trabalho de descrever este; é um sarau como todos os outros,
basta dizer o seguinte:
Os
velhos lembraram-se do passado, os moços aproveitaram o presente, ninguém
cuidou do futuro. Os solteiros fizeram por lembrar-se do casamento, os casados
trabalharam por esquecer-se dele. Os homens jogaram, falaram em política e
requestaram as moças; as senhoras ouviram finezas, trataram de modas e
criticaram desapiedadamente umas às outras. As filhas deram carreirinhas ao som
da música, as mães, já idosas, receberam cumprimentos por amor daquelas e as
avós, por não terem que fazer nem que ouvir, levaram todo o tempo a endireitar
as toucas e a comer doces. Tudo esteve debaixo destas regras gerais; só basta
dar conta das seguintes particularidades:
D.
Carolina sempre dançou a terceira contradança com Augusto, mas, para isso, foi
preciso que a sra. d. Ana empenhasse todo o seu valimento; a tirana princesinha
da festa esteve realmente desapiedada. e não quis passear com o estudante.
.A
interessante d. Violante fez o diabo a quatro: tomou doze sorvetes, comeu
pão-de-ló como nenhuma, tocou em todos os doces, obrigou alguns moços a tomá-la
por par, e até dançou uma valsa corrupio.
Augusto
apaixonou-se por seis senhoras com quem dançou; o rapaz é incorrigível. E assim
tudo mais.
Agora
são quatro horas da manhã; o sarau está terminado, os convidados vão
retirando-se e nós, entrando no toilette, vamos ouvir quatro belas conhecidas
nossas, que conversam com ardor e fogo.
— É
possível?!… exclamou d. Quinquina, dirigindo-se à sua mana; pois é verdade que
esse sr. Augusto lhe fez uma declaração de amor?...
— Como
quer que lhe diga, maninha!... Asseverou que meus olhos pretos davam à sua alma
mais luz do que aos seus olhos todos os candelabros da sala nesta noite, e
mesmo do que o sol nos dias mais brilhantes… palavras dele.
— Que
insolente!… tornou d. Quinquina, ele mesmo, que me jurou ser a mais bela a seus
olhos e a mais cara ao seu coração, porque meus cabelos eram fios de ouro e a
cor das minhas faces o rubor de um belo amanhecer!... Palavras dele.
— Que
atrevido!… bradou d. Clementina; o próprio que afirmou ser-lhe impossível viver
sem alentar-se com a esperança de possuir-me, porque eu sabia ferir corações
com minhas vistas e curar profundas mágoas com meus sorrisos!... Palavras dele.
— Oh!
Que moço abominável, disse, por sua vez, d. Gabriela; e ousou dizer-me que me
amava com tão subida paixão que, se fora por mim amado e pudesse desejar e
pedir algum extremo, não me pediria como a outras, para beijar-me a face,
porque das virgens do céu somente se beijam os pés, e de joelho! Palavras dele.
— Mas
isto é um insulto feito a todas nós!
— Como
se estará ele rindo!
— Qual!
Se ele está apaixonado... Apaixonado?... E por quem?...
— Por
nós quatro... talvez por outras mais: ele pensa assim.
— Que
maldito brasileiro com alma de mouro!...
— E
havemos de ficar assim?...
— Não,
acudiu d. Joaninha: vamos ter com ele, desmascaremo-lo.
— Isto
é nada para quem não tem vergonha!...
— Pois
troquemos os papéis: finjamos que estávamos tratadas para desafiar-lhe os
requebros, e... ridicularizemo-lo como for possível.
—
Sim... obriguemo-lo a dizer qual de nós é a mais bonita; cada uma lhe pedirá um
anel de seus cabelos... uma prenda... uma lembrança... ponhamo-lo doido.
— Muito
bem pensado! Vamos!
— Deus
nos livre!... A vista de tanta gente!...
—
Então, quando e aonde?
— Uma
idéia... seja a zombaria completa: escreva-se uma carta anônima, convidando-o
para estar ao romper do dia na gruta.
—
Bravo! Então escreva...
— Eu,
não, escreva você...
— Deus
me defenda! ... escreva d. Gabriela, que tem boa letra...
—
Então, nenhuma escreve? Pois tiremos por sorte.
A idéia
foi recebida com aprovação e a sorte destinou para secretária d. Clementina,
que tirando de seu álbum um lápis uma tira de papel, escreveu sem hesitar:
"Senhor:
— Uma jovem que vos ama e que de vós escutou palavras de ternura tem um segredo
a confiar-vos: ao ralar da aurora a encontrareis no banco de relva da gruta;
sede circunspecto e vereis a quem, por meia hora ainda, quer ser apenas — Uma
incógnita".
— Bem,
disse d. Quinquina, eu me encarrego de fazer-lhe receber a carta. Saiamos.
As
quatro moças iam sair, quando um suspiro as suspendeu; mais alguém estava no
toilette. D. Joaninha, medrosa de que uma testemunha tivesse presenciado a cena
que se acabava de passar, voltou-se para o fundo do gabinete e o susto logo se
dissipou.
— Vejam
como ela dorme! ... disse.
Com
efeito, recostada em uma cadeira de braços, d. Carolina estava profundamente
adormecida.
A
Moreninha se mostrava, na verdade, encantadora no mole descuido de seu dormir,
e à mercê de um doce resfolegar, os desejos se agitavam entre seus seios; seu
pezinho bem à mostra, suas tranças dobradas no colo, seus lábios entreabertos e
como por costume amoldados àquele sorrir cheio de malícia e de encanto que já
lhe conhecemos e, finalmente, suas pálpebras cerradas e coroadas por bastos e
negros supercílios, a tornavam mais feiticeira que nunca.
D.
Clementina não pôde resistir a tantas graças: correu para ela… dois rostos
angélicos se aproximaram... quatro lábios cor-de-rosa se tocaram e este toque
fez acordar d. Carolina.
Um
beijo tinha despertado um anjo, se é que o anjo realmente dormia.
Cap. XVII - Foram buscar lã e saíram tosquiadas
Se
houve alguém que quisesse servir a d. Quinquina, ou se foi ela mesma quem pôs a
carta anônima no bolso da jaqueta de Augusto, é coisa que pouco interesse dá; o
certo é que o estudante, indo tirar o lenço para assoar-se, achou o
interessante escritinho; então correu logo para um lugar solitário, e só depois
de devorar o convite sem assinatura, foi que lembrou-se que ainda não se havia
assoado e que o pingo estava cai não cai na ponta do nariz; enfim, ainda com o
lenço acudiu a tempo, e depois entendeu que, para melhor decidir o que lhe
cumpria fazer naquela conjuntura, deveria avivar o cérebro, sorvendo uma boa
pitada de rapé; portanto, lançou a mão ao segundo bolso de sua jaqueta, e eis
que lhe sai com a caixa do bom Princesa um outro escritinho como o primeiro.
—
Bravo! exclamou o nosso estudante; temíveis mãozinhas seriam estas, se se
dessem ao exercício, não de encher, mas de vazar as algibeiras da gente.
E sem
mais dizer, abriu e leu o escrito.
"Senhor:
— Uma moça, que nem é bonita nem namorada, mas que quer interessar-se por vós,
entende dever prevenir-vos que no banco de relva da gruta não achareis ao
amanhecer uma incógnita, porém quatro conhecidas, que pretendem zombar de vós,
porque esta mesma noite jurastes amar a cada uma delas cm particular. Não procureis
adivinhar quem vos escreve, porque apesar de vossa amiga será por agora — Uma
incógnita".
— Muito
bonito! Muito bonito!... disse Augusto, beijando o bilhete; estou exatamente
representando um papel de romance! Mas quem sabe se ainda acharei mais cartas?...
E nisso
pensando, foi correndo um por um todos os bolsos de seus vestidos, sem esquecer
o do relógio; e até passou os dedos pela sua basta cabeleira, presumindo que
talvez introduzissem algum no enorme canudo de cabelos que lhe escondia as
orelhas.
Porém
nada mais havia; também duas cartas tão curiosas já eram de sobra em uma só
noite.
O
estudante pensou no conteúdo de ambas, e ainda reflexionava se lhe cumpria
fugir ou aceitar um certame com quatro moças, que ele adivinhava quais eram,
quando a primeira rosa da aurora se desabriu no horizonte. Augusto correu para
a gruta encantada.
Chegando
ao pé, foi de mansinho se aproximando, sentiu rumor e ouviu que alguém dizia em
tom baixo:
— Oh!
Se ele vier!
— Ei-lo
aqui, minhas belas senhoras, exclamou o estudante, que entendeu não lhes dever
nunca dar tempo a tomarem a ofensiva; eis-me aqui!...
As
moças, que estavam todas sentadinhas no banco de relva, como quatro pombas
rolas enfileiradas no mesmo galho, ergueram-se sobressaltadas ao ver entrar
inopinadamente o estudante; era isso mesmo o que ele queria, pois continuou:
— As
senhoras vêem que acudi de pronto ao honroso convite e que me entusiasmo vendo
quatro auroras em lugar de uma só. Belo amanhecer é este, sem dúvida… mas,
exposto ao fogo abrasador de oito olhos brilhantes… eu me sinto arder... juro
que tenho sede... Eis ali uma fonte... Mas, meu Deus, é a fonte encantada que
descobre os segredos de quem está conosco!... Bem! Bem! Melhor… uma gota desta
linfa de fadas!...
— O que
é que ele está dizendo, mana? exclamou d. Quinquina, apontando para Augusto,
que tinha entre os lábios o copo de prata.
— É
preciso decidir-nos a começar, disse d. Gabriela.
—
Principie você, disse d. Joaninha.
— Eu
não! comece você.
— Eu
não, que sou a mais moça.
Então o
estudante, que tinha acabado de esgotar o seu copo d’água, voltou-se para elas,
e dando a seu rosto uma expressão animada e às suas palavras estudado acento:
—
Começo eu, minhas senhoras, disse, e começo por dizer-vos que aquela fonte é
realmente encantada; sim, eu tenho, à mercê de sua água, adivinhado belos
segredos: escutai vós Perdoai e consenti que vos trate assim, enquanto vos
falar inspirado por um poder sobrenatural. Vós viestes aqui para maltratar-me e
zombar de mim, por haver amado a todas vós numa só noite; que ingratidão!... Eu
vos poderia perguntar como o poeta: Assim se paga a um coração amante?! Mas,
desgraçadamente, a fada que preside àquela fonte, quer mais alguma coisa ainda,
e me dá uma cruel missão! Ordena-me que eu diga a cada uma de vós, em
particular, algum segredo do fundo de vossos corações, para melhor provar os
seus encantamentos. Pois bem, é preciso obedecer; qual de vós quer ser a
primeira?...
Eu não
ouso falar alto, porque pelo jardim talvez estejam passeando alguns profanos.
Qual de vós quer ser a primeira?...
Nenhuma
se moveu.
— Será
preciso que eu escolha? continuou o tagarela. Escolherei... lluminai-me, boa
fada! Quem será?... Será… a sra. d. Gabriela?
— Eu?!
respondeu a menina, recuando.
— A
senhora mesma, disse Augusto, trazendo-a pela mão para junto da fonte; vinde,
senhora, para bem perto do lugar encantado; agora silêncio... ouvi.
— Ele
está mangando conosco, murmurou d. Clementina.
Augusto
já estava falando em voz baixa a d. Gabriela.
— Vós,
senhora, ainda não amastes a pessoa alguma; para vós amor não existe: é um
sonho apenas, e só olhais como real a galanteria; vós queríeis zombar de mim,
porque vos protestei os mesmos sentimentos que havia protestado a mais três
companheiras vossas, e todavia, estais incursa em igual delito, pois só por
cartas vos correspondeis com cinco mancebos.
—
Senhor!...
— Oh!
Não vos impacienteis; quereis provas?... Há quatro dias, uma vendedeira de
empadas, que se encarrega de vossas cartas, enganou-se na entrega de duas; trocou-as
e deu, se bem se lembra a fada, a de lacre azul ao sr. Juca e a de lacre verde
ao sr. Joãozinho.
— Ora…
ora, senhor! Quem lhe contou essas invenções?
— A
fada! E fez mais ainda. Vós não achareis em vosso álbum o escrito desesperado
do sr. Joãozinho, que vos foi entregue no momento de vossa partida para esta
ilha; sou eu que o tenho, a fada mo deu há pouco com sua mão invisível.
—
Impossível! balbuciou d. Gabriela, recorrendo ao seu álbum.
Ela não
podia encontrar o escrito.
— Sr.
Augusto, disse então, toda vergonha e acanhamento, eu lhe rogo que me dê esse
papel.
— Pois
não quereis ouvir mais nada!...
— Basta
o que tenho ouvido e que não posso bem compreender; mas dê-me o que lhe pedi.
— Daqui
a pouco, senhora, na hora de minha partida para a corte, porém com uma
condição.
— Pode
dizê-la.
— Sois
sobremaneira delicada, senhora; este excesso vos deve ser nocivo; quereis
fazer-me o obséquio de ir descansar e dar-me a honra de aceitar a minha mão até
à porta da gruta?...
— Com
muito prazer.
Então
os dois se dirigiram para fora; passando junto das três companheiras, d.
Gabriela pôde apenas dizer-lhes:
— Até
logo.
Chegando
à porta, Augusto falou já em outro tom:
— Minha
senhora, espero que me faça a justiça de crer que fico extremamente penalizado
por não poder dilatar por mais tempo a glória de acompanhá-la; mas sabe o que
ainda tenho de fazer.
—
Obrigada, respondeu d. Gabriela, não poupe as outras.
Não é
possível bem descrever a admiração das três.
Augusto
chegou-se a d. Quinquina, e tomando-lhe a mão disse:
— Minha
senhora, é chegada a vossa vez.
D.
Quinquina deixou-se levar para junto da fonte; as moças tinham perdido toda a
força; o que diante delas se passava pedia uma explicação que não estava ao seu
alcance dar. Augusto começou:
—
Senhora, eu poderia dizer-vos, pelo que me conta a boa fada, que vós sois como
as outras de vossa idade, tão volúveis como eu; mas para tal saber não
precisava eu beber da água encantada; podia também gastar meia hora em falar do
vosso galanteio com um tenente da Guarda Nacional, por nome Gusmão...
—
Senhor!...
— Por
nome Gusmão, que leva o seu despotismo amoroso a ponto de exigir que não
valseis, que não tomeis sorvetes, que não deis dominus tetum quando ao pé de
vós espirrar algum moço e que não vos riais quando ele estiver sério,
— Quem
lhe disse isto, senhor?...
— A
fada, senhora; e ainda me disse mais: por exemplo, contou-me que no baile desta
noite, passeando com um velho militar, vós recebestes da mão dele um lindo
cravo e a seus olhos o escondestes, com gesto apaixonado, no palpitante seio;
mas daí a um quarto de hora essa mesma flor, tão ternamente aceita, deveria ir
parar ao bolso de um belo jovem, chamado Lúcio, se acaso não fosse roubada pela
fada que preside esta fonte.
— Eu
não entendo nada do que o senhor está dizendo… isso não é comigo.
— Eu me
explico: o sr. Lúcio viu ser dado e recebido o presente, e fingindo-se zeloso,
vos pediu esse cravo, muito notável porque, além da flor aberta, havia sete
flores em botão. Ora, dizei, não é verdade? Pois o sr. Lúcio queria esse cravo,
mas vós não lho podíeis dar, porque o velho militar não tirava os olhos de vós;
ora, conversando com o sr. Lúcio, acordastes ambos que ele iria esperar um
instante no jardim e que um pequeno escravo, por nome Tobias, lhe levaria a
flor; e como o tal Tobias ainda não conhecia o sr. Lúcio, este lhe daria por
senha as seguintes palavras — sete botões — não foi assim?
D.
Quinquina guardou silêncio, porque tudo era verdade; ela estava cor de nácar.
Augusto prosseguiu:
— Isto
se passou estando vós na grande varanda, sentados em um banco e com as costas
voltadas para uma janela da sala do jogo; ora, a fada esteve recostada a essa
janela, ouviu quanto dissestes e como lhe é dado tomar todas as figuras, tomou
a do moço, foi ao jardim, e quando viu o Tobias, disse — sete botões; e o cravo
foi logo da fada e é agora meu; ei-lo aqui!...
— Isto
é uma invenção; eu não conheço essa flor.
— Bem
então consentireis que eu a traga esta manhã no meu peito?... Se não
confessais, eu a mostrarei... O senhor coronel ainda se não retirou e...
—
Perdoe-me, balbuciou, enfim, d. Quinquina, deixando cair uma lágrima na mão de
Augusto. Dê-me esse maldito cravo.
— Eu
vo-lo darei na hora de minha partida, senhora; porém, ouvi mais.
—
Basta.
— Pois
bem, basta; mas eu vejo que vossa face está umedecida; seria uma lágrima se o
relento da noite não molhasse também a rosa. Quereis descansar sem dúvida;
poderei gozar o prazer de conduzir-vos até à porta da gruta?...
— Sim,
senhor.
Duas
guerreiras tinham sido batidas; só a curiosidade retinha as outras; Augusto se
chegou para elas e falou a d. Clementina:
— Agora
vós, senhora.
Ela
deixou-se levar pela mão até junto da fonte, e o estudante começou:
—
Quereis fatos de anteontem ou da noite passada, senhora?
Eu não
entendo o que o senhor quer dizer.
—
Pergunto, senhora, se vos dá gosto que eu vos repita o que convosco se passou,
quando tomáveis um sorvete ao lado de um jovem de cabelos negros... o que
convosco conversou o meu colega Filipe, quando tomáveis chá?
— Eu
não preciso saber mais nada disso.
— Então
dir-vos-ei o que mais vos interessa; sossegarei mesmo os vossos cuidados e os
de sr. Filipe, a respeito da perda de certo objeto...
— Sr.
Augusto!
—
Senhora, foi a fada desta misteriosa fonte quem vos roubou um precioso embrulho
que continha uma trança de vossos cabelos e que deveria ser achado embaixo da
quarta roseira da rua que vai ter
— Sr.
Augusto!
—
Senhora, foi a fada desta misteriosa fonte quem vos roubou um precioso embrulho
que continha uma trança de vossos cabelos e que deveria ser achado embaixo da
quarta roseira da rua que vai ter ao caramanchão; e essa trança pára hoje em
minhas mãos, ei-la aqui...
— Oh!
Dê-ma.
— Não
preferis antes que eu a entregue ao feliz para quem a destináveis?
— Não,
eu lhe peço que ma dê.
— Eu
estou pronto a obedecer-vos, senhora, mas só na hora de minha partida. Vós
quatro queríeis zombar de mim, e não concebo até onde iria a vossa vingança;
preciso de reféns que assegurem a paz entre nós, estes são os meus; quereis
saber mais alguma coisa?
— Eu já
sei que o senhor sabe demais!
—
Então...
Quer,
como às duas primeiras, oferecer-me a mão e obrigar-me a desamparar o campo?
Venceu, senhor, e sou eu que lhe peço que me acompanheis até à porta da gruta.
— Eu
estou pronto, senhora, para servir-vos em tudo.
Só
restava d. Joaninha: era a vez dela.
— Eu
vos deixei para o fim, disse Augusto, porque a vós é que eu mais admiro, porque
vós sois exatamente a única dentre elas que tem amado melhor e que mais infeliz
tem sido; eu vos explicarei isto. Sois, todavia, um pouco excessiva em
exigências.
— Que
quer dizer, sr. Augusto?
— Que
quereis muito, quando ordenais a um estudante que vos escreva quatro vezes por
semana, pelo menos; que passe defronte de vossa casa quatro vezes por dia; que
vá a miúdo ao teatro e aos bailes que freqüentais, e até que não fume charutos
de Havana, nem de Manilha, por ser falta de patriotismo.
Quem
lhe disse isso, senhor?
— A
fada, senhora, que sabe que amais a um moço, a quem dais a honra de chamar
querido primo.
— E uma
vil traição!
—
Exatamente diz o mesmo a nossa boa fada, e ainda mais, senhora, quer que eu vos
aconselhe a que desprezeis esse jovem infiel, que não sabe pagar o vosso amor:
eu poderia dar-vos provas...
— Não
as tenho eu bastantes, exclamou d. Joaninha com sentimento, quando lhe ouço
repetir o que deveria ser sabido dele e de mim somente?
Augusto
ia falar; ela o interrompeu.
—
Senhor, eu agradeço o benefício que recebi; o senhor quis zombar de mim, como das
outras, mas não o fez; ao contrário, atalhou em princípio uma grande
enfermidade, que, talvez, fosse daqui a pouco tempo incurável! Eu galanteio
também às vezes, porém sei amar ao extremo. Adeus, senhor! Eu posso apenas
agradecer-Lhe, dizendo que tenho tanta confiança na sua discrição e no seu
caráter, que nem mesmo lhe recomendo o cuidado do meu segredo.
D.
Joaninha ia deixar a gruta, e Augusto lhe ofereceu o braço.
—
Agradecida, disse ela; permita que eu entre sé em casa. Augusto ficou sé.
Esteve alguns momentos lembrando-se da cena que acabava de ter lugar;
finalmente disse, soltando uma risada:
—
Vieram buscar lã e saíram tosquiadas!
E já
estava para pôr o pé fora da gruta, quando uma voz branda e sonora o suspendeu,
dizendo:
—
Agora, sr. Augusto, é chegada a sua vez...