Thursday, 18 April 2019

Thursday's Serial: "História do Futuro" by Fr. António Vieira (in Portuguese) I


Volume I
Capítulo I: Declara-se a primeira parte do titulo desta História, e quão própria é da curiosidade humana a sua matéria.                

Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história. As outras histórias contam as cousas passadas, esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o entendimento. Levanta-se este assunto sobre toda a esfera da capacidade humana, porque Deus, que é a fonte de toda a sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão liberalmente com os homens, e muito mais com o primeiro, sempre reservou para si a ciência dos futuros, como regalia própria da divindade. Como Deus por natureza seja eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de sua eternidade, que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.
                A ciência dos futuros — disse Platão — é a que distingue os deuses dos homens, e daqui lhes veio sem dúvida aquele antiquíssimo apetite de serem como deuses. Aos primeiros homens, a quem Deus tinha infundido todas as ciências, nenhuma lhes faltava senão a dos futuros, e esta lhes prometeu o Demônio com a divindade, quando lhes disse: Eritis sicut Dii, scientes bonum et malum. Mas ainda que experimentaram o engano, não perderam o apetite. Esta foi a herança que nos ficou do Paraíso, este o fruto daquela árvore fatal, bem vedado e mal apetecido, mas por isso mais apetecido, porque vedado.
                Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas deste segredo, ignorando sem moléstia muitas cousas das que são, e afetando impaciente a ciência das que hão de ser. Por este meio veio o Demônio a conseguir que o homem lhe desse falsamente a divindade, que o mesmo demônio com igual falsidade lhe tinha prometido. E senão, pergunto: Quem foi o que introduziu no Mundo, sem algum medo, mas antes com aplauso, a adoração do Demônio? Quem fez que fosse tão freqüentado e consultado o ídolo de Apolo em Delfos? O de Júpiter em Babilônia? O de Juno em Cartago? O de Vênus no Egito? O de Dafne em Antioquia? O de Orfeu em Lesbo? O de Fauno em Itália? O de Hércules em Espanha, e infinitos outros em muitas partes? Não há dúvida que o desejo insaciável que os homens sempre tiveram de saber os futuros, e a falsa opinião dos oráculos com que o Demônio respondia naquelas estátuas, foram os que todo este culto lhe granjearam, sendo certo que, se Deus, vindo ao Mundo, não emudecera (como emudeceu) os oráculos da Gentilidade, grande parte do que hoje é fé, fora ainda idolatria. Tão mal sofreram os homens que Deus reservasse para si a ciência dos futuros, que chegaram a dar às pedras a divindade própria de Deus, só porque Deus fizera própria da divindade esta ciência: antes queriam uma estátua que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos encobria.
                Mas que direi das ciências ou ignorâncias das artes ou superstições que os homens inventaram desde a terra até o céu, levados deste apetite? Sobre os quatro elementos assentaram quatro artes de adivinhar os futuros, que tomaram os nomes dos seus próprios sujeitos: agromancia, que ensina a adivinhar pelas cousas da terra; a hidromancia, pelas da água; a aeromancia, pelas do ar, e a piromancia, pelas do fogo. Tão cegos seus autores no apetite vão daquela curiosidade, que, tendo-se perdido na terra os vestígios de tantas cousas passadas, cuidaram que na água, no ar e no fogo os podiam achar das futuras.
                No mesmo homem descobriram os homens dois livros sempre abertos e patentes, em que lessem ou soletrassem esta ciência. A fisionomia, nas feições do rosto; a quiromancia, nas raias da mão. Em um mapa tão pequeno, tão plano e tão liso como a palma da mão de um homem, inventaram os quiromantes não só linhas e caracteres distintos, senão montes levantados e divididos, e ali descrita a ordem e sucessão da vida e casos dela, os anos, as doenças e os perigos, os casamentos, as guerras, as dignidades, e todos os outros futuros prósperos ou adversos; arte certamente merecedora de ser verdadeira pois punha a nossa fortuna nas nossas mãos.
                Deixo a astrologia judiciária, tão celebrada no nascimento dos príncipes, em que os genetlíacos, sobre o fundamento de uma só hora ou instante da vida, levantam ou figura ou testemunhos a todos os Sucessos dela. Nem quero falar na triste e funesta nicromancia, que, freqüentando os cemitérios e sepulturas no mais escuro e secreto da noite, invoca com deprecações e conjuros as almas dos mortos para saber os futuros dos vivos.
                A este fim excogitaram tantos gêneros de sortilégios, como se na contingência da sorte se houvesse de achar a certeza; a este fim observaram os sonhos como se soubesse mais um homem dormindo do que sabia acordado; a este sentido consultavam as entranhas palpitantes dos animais, como se um bruto morto pudesse ensinar a tantos homens vivos. Com o mesmo apetite pediam respostas às fontes, aos rios, aos bosques e às penhas; com o mesmo inquiriam os cantos e vôos das aves, os mugidos dos animais, as folhas e movimentos das árvores, com o mesmo interpretavam os números, os nomes e as letras, os dias e os fumos, as sombras e as cores e não havia cousa tão baixa e tão miúda por onde os homens não imaginassem que podiam alcançar aquele segredo que Deus não quis que eles soubessem. O ranger da porta, o estalar do vidro, o cintilar da candeia, o topar do pé, o sacudir dos sapatos, tudo notavam como avisos da Providencia e temiam como presságios do futuro. Falo da cegueira e desatino dos tempos passados, por não envergonhar a nobreza da nossa Fé com a superstição dos presentes.
                Finalmente, a investigação deste tão apetecido segredo foi o estudo e disputa dos maiores e mais sinalados filósofos, de Sócrates, de Pitágoras, de Platão, de Aristóteles e do eloqüente Túlio, nos livros mais sublimes e doutos de todas suas obras. Esta era a teologia famosa dos Caldeus; este o grande mistério dos Egípcios; esta em Roma a religião dos áugures; esta em Judéia a seita dos Pitões e Aríolos; esta em Pérsia a ciência e profissão dos Magos; esta enfim do Céu até o Inferno, o maior desvelo dos sábios e maior ânsia e tropeço dos ignorantes; uns injuriando o Céu, e dando trato às estrelas para que digam o que não podem; outros inquietando o Inferno (como dizia Samuel), e tentando os mesmos demônios, para que revelem o que não sabem. Tanto foi em todas as idades do Mundo, e tanto é hoje, na curiosidade humana, o apetite de conhecer o futuro!
                Mas o que mais que tudo encarece a tenacidade deste desejo, é considerar que, enganados tão profundamente os homens pela falsidade e mentira de todas estas artes e seus ministros, não tenha bastado nenhuma experiência, nem haja de bastar já para mais os desenganar e apartar dele: Genus hominum potentibus infidum, sperantibus fallax, quod in civitate nostra, et vetabitur semper et retinebitur, disse Tácito. O mesmo Saul, que desterrou a Pitonisa, a foi buscar e se serviu de sua má arte; e os mesmos que mais severamente negam o crédito às cousas prognosticadas, folgam de ouvir e saber que se prognosticam, sinal certo que não buscam os homens os futuros, porque os achem, senão que vão sempre após eles, porque os amam.
                Para satisfazer, pois, à maior ânsia deste apetite e para correr a cortina aos maiores e mais ocultos segredos deste mistério, pomos hoje no teatro do Mundo esta nossa História, por isso chamada do Futuro. Não escrevemos com Beroso as antiguidades dos Assírios, nem com Xenofonte a dos Persas, nem com Heródoto as dos Egípcios, nem com Josofo a dos Hebreus, nem com Cúrcio a dos Macedônios, nem com Tucídides a dos Gregos, nem com Lívio a dos Romanos, nem com os escritores portugueses as nossas; mas escrevemos sem autor o que nenhum deles escreveu nem pôde escrever. Eles escreveram histórias do passado para os futuros, nós escrevamos a do futuro para os presentes. Impossível pintura parece antes dos originais retratar as cópias, mas isto é o que fará o pincel da nossa História.
                Assim foram retratos de Cristo Abel, Isaac, José, David, antes do Verbo ser homem. O que ignorou o mundo antigo, o que não conheceu o moderno e o que não alcança o presente, é o que se verá com admiração neste prodigioso mapa descrito: cousas e casos que ainda lhes falta muito para terem ser quanto mais Antigüidade.
                A história mais antiga começa no princípio do Mundo; a mais estendida e continuada acaba nos tempos em que foi escrita. Esta nossa começa no tempo em que se escreve, continua por toda a duração do Mundo e acaba com o fim dele. Mede os tempos vindouros antes de virem, conta os sucessos futuros antes de sucederem, e descreve feitos heróicos e famosos, antes de a fama os publicar e de serem feitos.
                O tempo, como o Mundo, tem dois hemisférios: um superior e visível, que é o passado, outro inferior e invisível, que é o futuro. No meio de um e outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o futuro começa. Desde este ponto toma seu princípio a nossa História, a qual nos irá descobrindo as novas regiões e os novos habitadores deste segundo hemisfério do tempo, que são os antípodas do passado. Oh que de cousas grandes e raras haverá que ver neste novo descobrimento!
                Aqueles historiadores que nomeamos e foram os mais célebres do Mundo, escreveram os impérios, as repúblicas, as leis, os conselhos, as resoluções, as conquistas, as batalhas, as vitórias, a grandeza, a opulência e felicidade, a mudança, a declinação, a ruína ou daquelas mesmas nações, ou de outras igualmente poderosas, que com elas contendiam. Nós também havemos de falar de reinos e de impérios, de exércitos e de vitórias, de ruínas de umas nações e exaltações de outras; mas de impérios não já fundados, senão que se hão-de fundar; de vitórias não já vencidas, mas que se hão-de vencer; de nações não já domadas e rendidas, senão que se hão-de render e domar.
                Hão-se de ler nesta História, para exaltação da Fé, para triunfo da Igreja, para glória de Cristo, para felicidade e paz universal do Mundo, altos conselhos, animosas resoluções, religiosas empresas, heróicas façanhas, maravilhosas vitórias, portentosas conquistas, estranhas e espantosas mudanças de estados, de tempos, de gentes, de costumes, de governos, de leis; mas leis novas, governos novos, costumes novos, gentes novas, tempos novos, estados novos, conselhos e resoluções novas, empresas e façanhas novas, conquistas, vitórias, paz, triunfos e felicidades novas; e não só novas, porque são futuras, mas porque não terão semelhança com elas nenhumas das passadas. Ouvirá o Mundo o que nunca viu, lerá o que nunca ouviu, admirará o que nunca leu, e pasmará assombrado do que nunca imaginou. E se as histórias daqueles escritores, sendo de cousas menores antigas e passadas, se leram sempre com gosto, e depois de sabidas se tornaram a ler sem fastio, confiança nos fica para esperar que não será ingrato aos leitores este nosso trabalho, e que será tão deleitosa ao gosto e ao juízo a História do Futuro, quanto é estranho ao papel o assunto e nome dela.
                Mas porque não cuide alguma curiosidade crítica que o nome do futuro não concorda nem se ajusta nem com o título de história, saiba que nos pareceu chamar assim à esta nossa escritura, porque, sendo novo e inaudito o argumento dela, também lhe era devido nome novo e não ouvido.
                Escreveu Moisés a história do princípio e criação do Mundo, ignorada até aquele tempo de quase todos os homens. E com que espírito a escreveu? Respondem todos os Padres e Doutores que com espírito de profecia. Se já no Mundo houve um profeta do passado, porque não haverá um historiador do futuro? Os profetas não chamaram história às suas profecias, porque não guardam nelas estilo nem leis de histórias: não distinguem os tempos, não assinalam os lugares, não individuam as pessoas, não seguem a ordem dos casos e dos sucessos, e quando tudo isto viram e tudo disseram, é envolto em metáforas, disfarçado em figuras, escurecido com enigmas e contado ou cantado em frases próprias do espírito e estilo profético, mais acomodadas à majestade e admiração dos mistérios, que à notícia e inteligência deles.
                Do profeta Isaías, que falou com maior ordem e maior clareza, disseram S. Jerônimo e Santo Agostinho que mais escrevera história que profecia. A sua profecia é o Evangelho fechado; o Evangelho é a sua profecia aberta. E porque nós, em tudo o que escrevemos, determinamos observar religiosa e pontualmente todas as leis da história, seguindo em estilo claro e que todos possam perceber, a ordem e sucessão das cousas, não nua e secamente, senão vestidas e acompanhadas das suas circunstancias; e porque havemos de distinguir tempos e anos, sinalar províncias e cidades, nomear nações e ainda pessoas, (quando o sofrer a matéria), por isso, sem ambição nem injúria de ambos os nomes, chamamos a esta narração História e História do Futuro.
                Sós e solitariamente entramos nela (mais ainda que Noé no meio do dilúvio) sem companheiro nem guia, sem estrela nem farol, sem exemplar nem exemplo. O mar é imenso, as ondas confusas, as nuvens espessas, a noite escuríssima; mas esperamos no Pai dos lumes (a cuja glória e de seu Filho servimos), tirará a salvamento a frágil barquinha: ela com maior ventura que Argos, e nós com maior ousadia que Tífis.
                Antes de abrir as velas ao vento (oh faça Deus que não seja tempestade!), em lugar da benevolência que se costuma pedir aos leitores, só lhes quero pedir justiça. É de direito natural que ninguém seja condenado sem ser ouvido; isto só deseja e pede a todos a nova História do Futuro, com palavras não suas, mas de S. Jerônimo: Legant prius et postea despiciant: «Leiam primeiro, e depois condenem» — assim dizia aquele grande mestre da Igreja, defendendo a sua versão dos sagrados Livros, então perseguida e impugnada, hoje adorada e de fé.

Capítulo II: Segunda parte do titulo desta História; convidam-se os Portugueses à lição dela.   
No capítulo passado falamos com todo o Mundo; neste só com Portugal. Naquele prometemos grandes futuros ao desejo; neste asseguramos breves desejos ao futuro. Nem todos os futuros são para desejar, porque há muitos futuros para temer. «Amanhã serás comigo», disse Samuel a Saul, o profeta ao rei, o morto ao vivo. Oh que temeroso futuro! Caiu Saul desmaiado, e fora melhor cair em si que aos pés do Profeta. Mas era já a véspera do dia da morte; e quem busca o desengano tarde, não se desengana. Outros reis houve, que por não temer os futuros, quiseram antes ignorá-los.

...Cessant oracula Delphis,
Sed siluit postquam reges timuere futura,
Et Superos vetuere loqui...

Disse sem murmuração o satírico que taparam os reis a boca aos deuses, e não queriam consultar os oráculos, por não temer os futuros prósperos e adversos, os felizes e os infelizes. Todos fora felicidade antever, os felizes para a esperança e os infelizes para a cautela.
                O maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é revelar-lhe os futuros; e se não há entre nós os vivos quem faça estas revelações, busque-se entre os sepultados, e achar-se-á. Saul achou a Samuel morto e Baltasar a Daniel vivo, porque um matava os profetas, outro premiava as profecias. Declarou Daniel a Baltasar a escritura fatal da parede, anunciou-lhe intrepidamente que naquela mesma noite havia de perder a vida e o império. E que lhe importou a Daniel esta tão triste interpretação? No mesmo ponto - diz o texto- mandou Baltasar que o vestissem de púrpura e que lhe dessem o anel real, e que fosse reconhecido por Tetrarca de todo o império dos Assírios, que era faze-lo um dos quatro supremos ministros ou governadores da monarquia.
                Só isto fez Baltasar nos instantes que lhe restaram de vida; e premiado assim o profeta, cumpriu-se a profecia e foi morto o rei, digno só por esta ação (se não foram as suas culpas sacrilégios) de que Deus lhe perdoara a vida.
                Se tanto vale o conhecimento de um futuro, ainda que tão infeliz; se tanto prêmio se dá a uma profecia mortal e que tira impérios, que seria se os prometera?
                Não faltou a este merecimento Dario Hidaspes rei dos Persas e dos Medos. Sucedeu vitorioso este príncipe na coroa de Baltasar, e confirmou sempre a Daniel na mercê e lugar em que ele o tinha posto porque assim como profetizou que havia de perder o império o rei dos Assírios, ajuntou também que o havia de ganhar o dos Persas e Medos: Divisum est regnum tuum et datum est Medis et Persis.
                Eu, Portugal, (com quem só falo agora) nem espero o teu agradecimento, nem temo a tua ingratidão. Porque, se me não contas com Daniel entre os vivos, eu me conto com Samuel entre os mortos; se nas letras que interpreto achara desgraças (bem poderá ser que as tenhas), eu te dissera a má fortuna sem receio, assim como te digo a boa sem lisonja. Mas é tal a tua estrela (benignidade de Deus contigo deverá ser), que tudo o que leio de ti são grandezas, tudo que descubro melhoras, tudo o que alcanço felicidades. Isto é o que deves esperar, e isto o que te espera; por isso em nome segundo e mais declarado chamo a esta mesma escritura Esperanças de Portugal, e este é o comento breve de toda a História do Futuro.
                Mas vejo que o mesmo nome de Esperanças de Portugal lhe poderá com razão suspender o gosto, assustar o desejo e embaraçar os mesmos alvoroços em que o tenho metido com estas esperanças: Spes qae differtur, affligit animam, disse a Verdade divina e o sabe e sente bem a experiência e paciência humana: ainda que seja muito segura, muito firme e muito bem fundada a esperança, é um tormento desesperado o esperar.
                Muito seguras eram, e tão seguras como a mesma palavra de Deus (que não pode mentir nem faltar)`, as promessas dos antigos Profetas; mas cansava-se tanto o desejo na paciência de esperar por elas, que vinham a ser fábula do vulgo em Jerusalém as esperanças das profecias. Assim conta esta queixa Isaías no capítulo XXVIII, que pelas ruas e praças da corte se andavam cantando por riso as suas esperanças, e que a volta ou estribilho da cantiga era:

...expecta, reexpecta,
Expecta, reexpecta.
Modicum ibi,
Modicum ibi.

Esperavam, reesperavam e desesperavam aqueles homens, porque em muitas cousas das que lhes prometiam as profecias, primeiro se acabava a vida do que chegasse a esperança. Deixaram os pais em testamento as esperanças aos filhos, os filhos aos netos e nem estes, sendo então as vidas mais compridas, chegavam a ver o cumprimento do que tão longamente tinham esperado. As esperanças da Terra de Promissão deixou-as Abraão a Isaac, Isaac a Jacob e Jacob aos doze Patriarcas; mas todos eles morreram e foram sepultados no Egito. A quem há-de cobrir a terra do Egito, que lhe importam as esperanças da terra de Promissão? No cativeiro de Babilônia pregavam e prometiam os Profetas que Deus havia de levantar mão do castigo e restituir o povo à sua antiga liberdade; e se lhes perguntavam quando, respondiam e afirmavam constantemente que dali a setenta anos.
                Boa esperança para um cativo, ainda que não fosse muito velho. De que me serve a esperança da liberdade, se primeiro se há-de acabar a vida? O mesmo podem argüir os que hoje vivem com estas esperanças, que eu lhas prometo. Grandes são essas esperanças de Portugal; mas quando há-de ver Portugal essas esperanças?
                Ponto é este que depois se há-de tratar muito de propósito, e em que a nossa História há-de empregar todo o quinto livro. Por agora só digo que me não atrevera eu a prometer esperanças, se não foram esperanças breves. Deus na Lei Escrita, como notaram grandes autores, nunca prometeu o Céu expressamente, porque o que se não pode dar logo não se há-de prometer. Prometer o Céu para ir esperar por ele ao Limbo, são promessas em que por então se dá o contrário do que se promete. Tais são as esperanças dilatadas. Se nelas se promete a vida, são morte; se nelas se promete o gosto, são tormento; se nelas se promete o Paraíso, são Inferno.
                O Limbo chamava-se Inferno; e porque? Porque era um lugar onde se esperava tantos anos pelo Paraíso. Não me tenha a minha Pátria por tão cruel, que lhe houvesse de prometer martírios com nome de esperanças. Para se avaliar a esperança, há-se de medir o futuro, e não é este o futuro da minha História.
                São Paulo, aquele filósofo do terceiro Céu, desafiando todas as criaturas, e entre elas os tempos, dividiu os futuros em dois futuros: Neque instantia, neque futura. Um futuro que está longe e outro futuro que está perto; um futuro que há-de vir e outro futuro que já vem; um futuro que muito tempo há-de ser futuro — Neque futura — e outro futuro que brevemente há-de ser presente: Neque instantia.
                Este segundo futuro é o da minha História, e estas as breves e deleitosas esperanças que a Portugal ofereço. Esperanças que hão-de ver os que vivem, ainda que não vivam muitos anos, mas viverão muitos anos os que as virem. Lignum vitae, desiderium veniens, disse no mesmo lugar alegado a mesma Verdade divina.
                Assim como há esperanças que tardam, há esperanças que vem. As esperanças que vem são o pomo da árvore da vida: Lignum vitae desiderium veniens. A virtude maravilhosa daquele pomo era reparar e acrescentar a vida e remoçar aos que o comiam. As esperanças que tardam, tiram a vida; as esperanças que vem, não só não tiram a vida, mas acrescentam os dias e os alentos dela: Spes quae differtur, affligit animam. Lignurn vitae, desiderium veniens.
                Que vida haverá em Portugal tão cansada, que idade tão decrépita, que à vista do cumprimento destas esperanças, não torne atrás os anos para lograr tanto bem? Vivei, vivei, Portugueses, vós os que mereceis viver neste venturoso século! Esperai no Autor de tão estranhas promessas, que quem vos deu as esperanças, vos mostrará o cumprimento delas.
                Não é privilégio este de qualquer profecia, mas daquelas profecias de que se compõe esta História. Sim, porque são mais que profecias. Um profeta houve no Mundo mais que profeta, que foi o grande precursor de Cristo. E por que razão mereceu a singularidade deste nome S. João entre todos os profetas deste Mundo? Porque os outros profetas prometeram a Cristo futuro, mas não o viram, nem o mostraram presente; o Batista prometeu o futuro com a vez, e mostrou o presente com o dedo — Cecinit ad futurum, et adesse monstravit.
                Se houve um profeta que foi mais que profeta, porque não haverá também algumas profecias que sejam mais que profecias? Assim espero eu que o sejam aquelas em que se fundam as minhas esperanças e que, se nos prometem as felicidades futuras, também as hão-de mostrar presentes. Agora as prometem com a voz, depois as mostrarão com o dedo.
                Mas este grande assunto fique para seu lugar. Só digo que quando assim suceder, perderá esta nossa História gloriosamente o nome, e que deixará de ser História do Futuro, porque o será do presente.
                Mas perguntar-me-á porventura alguma emulação estrangeira (que às naturais não respondo): se o império esperado, como se diz no mesmo título, é do Mundo, as esperanças porque não serão também do Mundo, senão só de Portugal? A razão (perdoe o mesmo Mundo) é esta: porque a melhor parte dos venturosos futuros que se esperam, e a mais gloriosa deles, será não só própria da Nação portuguesa, senão única e singularmente sua. Portugal será o assunto, Portugal o centro, Portugal o teatro, Portugal o princípio e fim destas maravilhas; e os instrumentos prodigiosos delas os Portugueses.
                Vê agora, ó Pátria minha, quão agradável te deve ser. e com quanto gosto deves aceitar a oferta que te faço desta nova História, e com que alvoroço e alegria pede a razão e amor natural que leias e consideres nela os seus e os teus futuros. O Grego lê com maior gosto as histórias de Grécia, o Romano as de Roma e o Bárbaro as da sua nação, porque lêem feitos seus e de seus antepassados . E Portugal que com novidade inaudita lerá nesta História os seus e os dos seus vindouros, com quanto maior gosto e contentamento, com quanto maior aplauso e alvoroço será razão que o faca?
                Portentosas foram antigamente aquelas façanhas, ó Portugueses, com que descobristes novos mares e novas terras, e destes a conhecer o Mundo ao mesmo Mundo. Assim como líeis então aquelas vossas histórias, lede agora esta minha, que também é toda vossa. Vós descobristes ao Mundo o que ele era, e eu vos descubro a vós o que haveis de ser. Em nada é segundo e menor este meu descobrimento, senão maior em tudo. Maior cabo, maior esperança, maior império.
                Naqueles ditosos tempos (mas menos ditosos que os futuros) nenhuma cousa se lia no Mundo senão as navegações e conquistas de Portugueses. Esta história era o silêncio de todas as historias. Os inimigos liam nela suas ruínas, os êmulos suas invejas e só Portugal suas glórias. Tal é a História, Portugueses, que vos presente, e por isso na língua vossa. Se se há-de restituir o Mundo à sua primitiva inteireza e natural formosura, não se poderá consertar um corpo tão grande, sem dor nem sentimento dos membros, que estão fora de seu lugar. Alguns gemidos se hão-de ouvir entre vossos aplausos, mas também estes fazem harmonia. Se são dos inimigos, para os inimigos será a dor, para os êmulos a inveja, para os amigos e companheiros o gosto e para vós então a glória, e, entretanto, as esperanças.

Capítulo III: Terceira parte do titulo e divisão de toda a História.             
O que encerra a terceira parte do título desta História só se pode declarar inteiramente com o discurso de toda ela, porque toda se emprega em provar a esperança dum novo império, ao qual, pelas razões que se verão a seu tempo, chamamos quinto. Entretanto, para que a matéria de uma vez se compreenda e saiba o leitor em suma o que lhe prometemos, porei brevemente aqui sua divisão.
                Divide-se a História do Futuro em sete partes ou livros: no primeiro se mostra que há-de haver no Mundo um novo império; no segundo, que império há-de ser; no terceiro, suas grandezas e felicidades; no quarto, os meios por que se há-de introduzir; no quinto, em que terra; no sexto, em que tempo; no sétimo, em que pesca. Estas sete cousas são as que há-de examinar, resolver e provar a nova História que escrevemos do Quinto Império do Mundo.
                Mas porque esta palavra Mundo, nos ambiciosos títulos dos impérios e imperadores, costuma ter maior estrondo na voz que verdade na significação, será bem que digamos neste lugar o que o título da nossa História entende por Mundo.
                Os Faraós do Egito, e também os Ptolemeus que lhes sucederam, de tal maneira mediam a estreiteza de suas terras pela arrogância e inchação de seus vastos pensamentos, que, dominando somente aquela parte não grande da extrema África, que jaz entre os desertos de Numídia e os do Mar Vermelho, não duvidavam intitular-se Josés do Mundo. Essa foi a desigualdade do nome que puseram os Egípcios ao seu restaurador José: Vocavit eum lingua aegyptiaca Salvatorem Mundi. Não lhe chamaram Salvador do Egito, senão do Mundo, como se não houvera mais mundo que o Egito. Imitavam a soberba de seu soberbo Nilo, que, quando sai ao mar, se espraia em sete bocas, como se foram sete rios, sendo um só rio; assim era aquele império, e os demais chamados do Mundo, maiores sempre nas vozes que no corpo e grandeza.
                Do império dos Assírios temos nas divinas letras uma provisão lançada no III capítulo do Profeta Daniel e mandada expedir pelo grande Nabucodonosor, cujo exórdio é este: Nabuchodonosor, rex omnibus populis, gentibus et linguis, qui habitant in universa terra: «Nabucodonosor, rei. a todos os povos, gentes e línguas, que habitam em todo o Mundo. E o mesmo Daniel (que é mais) falando a este rei e acomodando-se aos estilos da sua corte e aos títulos magníficos de sua grandeza, lhe diz assim no mesmo capítulo: Tu es rex qui magnificatus es et invaluisti, et magnitudo tua [...] pervenit usque ad Coelum, et potestas tua usque ad terminos universae terrae. Contudo, se lançarmos os compassos às terras que obedeciam a Nabucodonosor, acharemos que da Ásia então conhecida tinha uma boa parte, da África pouco, da Europa menos e do resto do Mundo nada. Mas bastavam estes três retalhos da terra para a soberba de Nabucodonosor revestir os títulos de seu império com o nome estrondoso de todo o Mundo. Tão grande era a significação dos nomes, e tanto menos 0 que significavam!
                Do império de Assuero (que era o dos Persas) diz o Texto Sagrado no primeiro capítulo da história de Ester, que se estendia da Índia até a Etiópia, obedecendo àquela coroa 127 províncias. Esta era a demarcação das terras e estes os limites do império, mas os títulos não tinham limite. Assim nos consta por um decreto de Dario, que se refere no VI capítulo de Daniel, por estas pomposas palavras, semelhantes em tudo às de Nabuco: Tunc Darius rex scripsit omnibus populis et gentibus et linguis, qui habitant in universa terra: Pax vobis multiplicetur.
                E o mesmo Assuero por outro decreto, no cap. XIII de Ester, não duvidou firmar por sua própria mão, que tinha sujeito ao seu domínio o orbe universo: Cum universum orbem meae ditioni subjugassem. De maneira que os reis persas, por serem senhores de 127 províncias, passaram provisões e decretos a todo o Mundo; mas quem desenrolasse o mapa do Mundo e pusesse sobre ele os pergaminhos destas provisões, veria facilmente que o Mundo, sem demasiado encarecimento, é cento e vinte e sete vezes maior que o império persiano: tão pouco se proporcionava a geografia dos títulos com a medida dos impérios!
                Que direi do império dos Romanos? Os termos que lhe sinalam seus escritores são as raias do Mundo:

Orbem jam totum victor Romanus habebat
Qua mare, qua terra, qua sidus currit utrumque

disse Petrônio; e Cícero, que professava mais verdade que os poetas: Nulla gens est. quae aut ita subacta sit ut vi non extet, aut ita domita ut quiescat, aut ita pacata ut victoria nostra imperioque laetetur. Tal era a opinião que Roma tinha de sua grandeza e tal o estilo que guardava em seus editos: ...exiit edictum à Caesare Augusto ut describeretur universus orbis.
                Mandou Augusto César matricular e: alistar seu império, e dizia o edito: Aliste-se o Mundo. Mas se examinarmos este mundo romano até onde se estendia, acharemos que pelo oriente se fechava com o rio Tigres, pelo ocidente com o mar de Cádis, pelo meio-dia com o Nilo e pelo setentrião com o Danúbio e Reno. Estes limites lhe prescreveu Claudiano, ainda que lhe deu por margens os Orientes:

Subdit Oceanum sceptris, et margine coeli
Clausit opes; quantum distant a Tigride Gades,
Inter se Tanais quantum Nilusque relinquunt.

Deixo o Mogor, o China, o Tártaro e outros domínios bárbaros do nosso tempo, que com a mesma majestade de títulos se chamam imperadores do Mundo, seguindo a antiquíssima arrogância da Ásia, em que o Mundo andou sempre atado aos títulos da monarquia.
                O Mundo do nosso prometido império não é Mundo neste sentido: não prometo mundos, nem impérios titulares, nomes tão alheios da modéstia como da verdade. Bem sei que o império de Alemanha (envelhecidas relíquias, e quase acabadas, do Romano) em muitos textos de um e outro direito se chama império do Mundo; mas também se sabe que os textos podem dar títulos, mas não impérios. No livro sétimo examinaremos os fundamentos deste direito; entretanto, ainda que liberalmente lho concedamos, é certo que os impérios e os reinos não os dá nem os defende a espada da justiça, senão a justiça da espada.
                A Abraão prometeu Deus as terras da Palestina mas conquistou-as a espada de Josué e defendeu-as a de seus sucessores. Estes são os instrumentos humanos de que se serve (ainda quando obra divinamente) a providencia daquele supremo Senhor que o é do Mundo e dos exércitos. Os que querem o ruído e encher de algum modo o vazio destes grandes títulos, dizem que se entende por hipérbole ou exageração, e por aquela figura que os retóricos chamam sinédoque, em que se toma a parte pelo todo. O título desta História não fala por hipérboles nem sinédoques, não chama a um pigmeu gigante nem a um braço homem. O Mundo de que falo é o Mundo, aquele Mundo, e naquele sentido em que disse S. João: ...Mundus per ipsum factus est, et Mundus eum non cognovit. O Mundo que Deus criou, o Mundo que o não conheceu, e o Mundo que o há-de conhecer. Quando o não conheceu, negou-lhe o domínio; quando o conhecer, dar-lhe-á a posse . universum terraram orbem — diz Ortélio — veteres [...] in tres partes divisere: Africam, scilicet, Europam et Asiam, sed in inventa America, eam pro quarta parte nostra aetas adjecit; quintamque expectat sub meridionali cardine jacentem: O Mundo que conheceram os Antigos se dividiu em três partes: África, Europa, Ásia; depois que se descobriu a América, acrescentou-lhe a nossa idade esta quarta parte; espera-se agora a quinta, que é aquela terra incógnita, mas já reconhecida, que chamamos Austral.»
                Este foi o Mundo passado, e este é o Mundo presente, e este será o Mundo futuro; e destes três mundos unidos se formará (que assim o formou Deus) um Mundo inteiro. Este é o sujeito da nossa História, e este o império que prometemos do Mundo. Tudo o que abraça o mar, tudo o que alumia o Sol, tudo o que cobre e rodeia o Sol, será sujeito a este Quinto Império; não por nome ou título fantástico, como todos os que até agora se chamaram impérios do Mundo, senão por domínio e sujeição verdadeira. Todos os reinos se unirão em um centro, todas as cabeças obedecerão a uma suprema cabeça, todas as coroas se rematarão em uma só diadema, e esta será a peanha da cruz de Cristo.
                Resolveu Augusto com o senado pôr limites à grandeza do Império Romano. Duvida Tácito se foi filha esta resolução do receio ou da inveja: Incertum metu, an per invidiam. Temeu César (se foi receio) que um corpo tão enormemente grande não se pudesse animar com um só espírito, não se pudesse governar com uma só cabeça, não se pudesse defender com um só braço; ou não quis (se foi inveja) que viesse depois outro imperador mais venturoso, que trespassasse as balizas do que ele até então conquistara e fosse ou se chamasse maior que Augusto. Tal foi, dizem, o pensamento de Alexandre, o qual, vizinho à morte, repartiu em diferentes sucessores o seu império, para que nenhum lhe pudesse herdar o nome de Magno. Não é nem poderá ser assim no império do Mundo que prometemos; a paz lhe tirará o receio, a união lhe desfará a inveja, e Deus (que é fortuna sem inconstância) lhe conservará a grandeza.
                Aqui acaba o título desta História, e mais claramente do que o dissemos agora o provaremos depois. Entretanto, se aos doutos ocorrem instancias e aos escrupulosos dúvidas, damos por solução de todas a mão onipotente: Ut videant, sciant et recogitent, et intelligant pariter quia manus Domini fecit hoc...

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