Sunday 15 December 2013

Na Estrada de Sintra by Álvaro de Campos (Fernando Pessooa) (in Portuguese)



Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...

Saturday 14 December 2013

"A Reforma da Natureza" by Monteiro Lobato (in Portuguese)

CAPÍTULO 1
A Reforma da Natureza

Quando a guerra da Europa terminou, os ditadores, reis e presidentes cuidaram da discussão da paz. Reuniram-se num campo aberto, sob uma grande barraca de pano, porque já não havia cidades: todas haviam sido arrasadas pêlos bombardeios aéreos. E puseram-se a discutir, mas por mais que discutissem não saía paz nenhuma. Parecia a continuação da guerra, com palavrões em vez de granadas e perdigotos em vez de balas de fuzil.

Foi então que o Rei Carol da Romênia se levantou e disse:

- Meus senhores, a paz não sai porque somos todos aqui representantes de países e cada um de nós puxa a brasa para a sua sardinha. Ora a brasa é uma só e as sardinhas são muitas.

Ainda que discutamos durante um século, não haverá acordo possível. O meio de arrumarmos a situação é convidarmos para esta conferência alguns representantes da humanidade. Só essas criaturas poderão propor uma paz que satisfazendo a toda a humanidade também satisfaça aos povos, porque a humanidade é um todo do qual os povos são as partes.

Ou melhor: a humanidade é uma laranja da qual os povos são os gomos.
       Essas palavras profundamente sábias muito impressionaram àqueles homens. Mas onde encontrar criaturas que representassem a humanidade e não viessem com as mesquinharias das que só representam povos, isto é, gomos da humanidade?

O Rei Carol, depois de cochichar com o General de Gaulle, prosseguiu no seu discurso.

- Só conheço - disse ele - duas criaturas em condições de representar a humanidade, porque são as mais humanas do mundo e também são grandes estadistas.

A pequena república que elas governam sempre nadou na maior felicidade.

            Mussolini, enciumado, levantou o queixo.

- Quem são essas maravilhas!

- Dona Benta e tia Nastácia - respondeu o Rei Carol - as duas respeitáveis matronas que governam o Sítio do Pica-pau Amarelo, lá na América do Sul. Proponho que a Conferência mande buscar as duas maravilhas para que nos ensinem o segredo de bem governar os povos.

- Muito bem! - aprovou o Duque de Windsor, que era o representante dos ingleses. - A Duquesa me leu a história desse maravilhoso pequeno país, um verdadeiro paraíso na terra, e também estou convencido de que unicamente por meio da sabedoria de Dona Benta e do bom-senso de tia Nastácia o mundo poderá ser consertado. No dia em que o nosso planeta ficar inteirinho como é o sítio, não só teremos paz eterna como a mais perfeita felicidade.

Os grandes ditadores e os outros chefes da Europa nada sabiam do sítio. Admiraram-se daquelas palavras e pediram informações. O Duque de Windsor começou a contar, desde o começo, as famosas brincadeiras de Narizinho, Pedrinho e Emília no Pica-pau Amarelo. O interesse foi tanto que pouco depois todos aqueles homens estavam sentados no chão, em redor do Duque, ouvindo as histórias e lembrando-se com saudades do bom tempo em que haviam sido crianças e, em vez de matar gente com canhões e bombas, brincavam na maior alegria de "esconde-esconde" e " chicote-queimado.”

Comoveram-se e aprovaram a proposta do Rei Carol.

Eis explicada a razão do convite a Dona Benta, tia Nastácia e o Visconde de Sabugosa para irem representar a Humanidade e o Bom-Senso na Conferência da Paz de 1945.

Com grande naturalidade Dona Benta aceitou o convite e deliberou seguir com todo o seu pessoalzinho - menos a Emília. Emília recusou-se a partir porque estava com a idéia que lhe veio pela primeira vez quando ouviu a fábula do Reformador da Natureza. Fazia já meses que Dona Benta havia contado essa fábula assim:

O Reformador da Natureza, Américo Pisca-Pisca, tinha o hábito de botar defeito em todas as coisas. O mundo para ele estava errado e a Natureza só fazia tolices.

- Tolices, Américo?

- Pois então?!... Aqui neste pomar você tem a prova disso. Lá está aquela jabuticabeira enorme sustendo frutas pequeninas e mais adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira.

Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas - punha as jabuticabas na aboboreira e as abóboras na jabuticabeira. Não acha que tenho razão?

E assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.

- Mas o melhor - concluiu - é não pensar nisso e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha?

E Américo Pisca-Pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.

Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, inteirinho reformado pelas suas mãos. Que beleza!
De repente, porém, no melhor do sonho, plaf! uma jabuticaba cai do galho bem em cima do seu nariz.

Américo despertou de um pulo. Piscou, piscou. Meditou sobre o caso e afinal reconheceu que o mundo não estava tão mal feito como ele dizia. E lá se foi para casa, refletindo:

- Que espiga! ... Pois não é que se o mundo tivesse sido reformado por mim a primeira vítima teria sido eu mesmo? Eu, Américo Pisca- Pisca, morto pela abóbora por mim posta em lugar da jabuticaba? Hum!... Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está que está tudo muito bom.

E Pisca-Pisca lá continuou a piscar pela vida em fora, mas desde então perdeu a cisma de corrigir a Natureza.

Ao ouvirem Dona Benta contar essa fábula todos concordaram com a moralidade, menos Emília.

- Sempre achei a Natureza errada - disse ela - e depois de ouvir a história do Américo Pisca-Pisca, acho-a mais errada ainda. Pois não é um erro fazer um sujeito pisca-piscar? Para que tanto "pisco"? Tudo que é demais está errado. E quanto mais eu "estudo a Natureza" mais vejo erros. Para que tanto beiço em tia Nastácia? Por que dois chifres na frente das vacas e nenhum atrás? Os inimigos atacam mais por trás do que pela frente. E é tudo assim. Erradíssimo. Eu, se fosse reformar o mundo, deixava tudo um encanto, e começava reformando essa fábula e esse Américo Pisca-Pisca.

A discussão foi longe naquele dia; todos se puseram contra a reforma, mas a teimosa criaturinha não cedeu. Berrou que tudo estava errado e que ela havia de reformar a Natureza.

- Quando, Marquesa? - perguntou ironicamente Narizinho.

- Da primeira vez em que me pilhar aqui sozinha.

Sonnet III by William Shakespeare (in English)



Look in thy glass and tell the face thou viewest
Now is the time that face should form another;
Whose fresh repair if now thou not renewest,
Thou dost beguile the world, unbless some mother.
For where is she so fair whose uneared womb
Disdains the tillage of thy husbandry?
Or who is he so fond will be the tomb
Of his self-love, to stop posterity?
Thou art thy mother's glass and she in thee
Calls back the lovely April of her prime;
So thou through windows of thine age shalt see,
Despite of wrinkles, this thy golden time.
   But if thou live, remembered not to be,
   Die single and thine image dies with thee.

Friday 13 December 2013

"The Hunting Of The Snark an Agony in Eight Fits" by Lewis Carroll (Fit the Second) (in English)



Fit the Second
THE BELLMAN'S SPEECH

     The Bellman himself they all praised to the skies—
          Such a carriage, such ease and such grace!
     Such solemnity, too!  One could see he was wise,
          The moment one looked in his face!

     He had bought a large map representing the sea,
          Without the least vestige of land:
     And the crew were much pleased when they found it to be
          A map they could all understand.

     "What's the good of Mercator's North Poles and Equators,
          Tropics, Zones, and Meridian Lines?"
     So the Bellman would cry: and the crew would reply
          "They are merely conventional signs!

     "Other maps are such shapes, with their islands and capes!
          But we've got our brave Captain to thank:"
     (So the crew would protest) "that he's bought us the best—
          A perfect and absolute blank!"

     This was charming, no doubt; but they shortly found out
          That the Captain they trusted so well
     Had only one notion for crossing the ocean,
          And that was to tingle his bell.

     He was thoughtful and grave—but the orders he gave
          Were enough to bewilder a crew.
     When he cried "Steer to starboard, but keep her head larboard!"
          What on earth was the helmsman to do?

     Then the bowsprit got mixed with the rudder sometimes:
          A thing, as the Bellman remarked,
     That frequently happens in tropical climes,
          When a vessel is, so to speak, "snarked."

     But the principal failing occurred in the sailing,
          And the Bellman, perplexed and distressed,
     Said he had hoped, at least, when the wind blew due East,
          That the ship would not travel due West!

     But the danger was past—they had landed at last,
          With their boxes, portmanteaus, and bags:
     Yet at first sight the crew were not pleased with the view,
          Which consisted of chasms and crags.

     The Bellman perceived that their spirits were low,
          And repeated in musical tone
     Some jokes he had kept for a season of woe—
          But the crew would do nothing but groan.

     He served out some grog with a liberal hand,
          And bade them sit down on the beach:
     And they could not but own that their Captain looked grand,
          As he stood and delivered his speech.

     "Friends, Romans, and countrymen, lend me your ears!"
          (They were all of them fond of quotations:
     So they drank to his health, and they gave him three cheers,
          While he served out additional rations).

     "We have sailed many months, we have sailed many weeks,
          (Four weeks to the month you may mark),
     But never as yet ('tis your Captain who speaks)
          Have we caught the least glimpse of a Snark!

     "We have sailed many weeks, we have sailed many days,
          (Seven days to the week I allow),
     But a Snark, on the which we might lovingly gaze,
          We have never beheld till now!

     "Come, listen, my men, while I tell you again
          The five unmistakable marks
     By which you may know, wheresoever you go,
          The warranted genuine Snarks.

     "Let us take them in order.  The first is the taste,
          Which is meagre and hollow, but crisp:
     Like a coat that is rather too tight in the waist,
          With a flavour of Will-o'-the-wisp.

     "Its habit of getting up late you'll agree
          That it carries too far, when I say
     That it frequently breakfasts at five-o'clock tea,
          And dines on the following day.

     "The third is its slowness in taking a jest.
          Should you happen to venture on one,
     It will sigh like a thing that is deeply distressed:
          And it always looks grave at a pun.

     "The fourth is its fondness for bathing-machines,
          Which is constantly carries about,
     And believes that they add to the beauty of scenes—
          A sentiment open to doubt.

     "The fifth is ambition.  It next will be right
          To describe each particular batch:
     Distinguishing those that have feathers, and bite,
          And those that have whiskers, and scratch.

     "For, although common Snarks do no manner of harm,
          Yet, I feel it my duty to say,
     Some are Boojums—" The Bellman broke off in alarm,
          For the Baker had fainted away.

Thursday 12 December 2013

Amor by Luiz de Camões (in Portuguese)



O amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É um não contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter, com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos mortais corações conformidade
Sendo a si tão contrário o mesmo amor?

"Teu Nome" by Fagundes Varela (in Portuguese)



Na tênue casca de verde arbusto
gravei teu nome, depois parti;
foram-se os anos, foram-se os meses,
Foram-se os dias, acho-me aqui.

Mas, ai! O arbusto se fez tão alto,
teu nome erguendo, que mais não vi!
E nessas letras que aos céus subiam
meus belos sonhos de amor perdi.

Wednesday 11 December 2013

"Ser Mãe" by Coelho Neto (in Portuguese)



Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
o coração! Ser mãe é ter no alheio
lábio que suga, o pedestal do seio,
onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.


Ser mãe é ser um anjo que se libra
sobre um berço dormindo!  É ser anseio,
é ser temeridade, é ser receio,
é ser força que os males equilibra!


Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!


Ser mãe é andar chorando num sorriso! 
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!