Thursday, 6 February 2025

Thursday's Serial: “A Moreninha” by Dr. Joaquim Manoel de Macedo (in Portuguese) - VII

 

CAP. IX - A D. ANA COM SUAS HISTÓRIAS

Finalmente, o bom do estudante que, quando lhe dava para falar, era mais difuso que alguns de nossos deputados novos na discussão do artigo l o dos orçamentos, julgou dever fazer pausa de suspensão; mas a sra. d. Ana, que já tinha-o por vezes interrompido fora de tempo e debalde, não quis tomar a palavra para responder, sem assegurar-se, dirigindo-lhe estas palavras pela ordem:

— Então concluiu, sr. Augusto?...

Sim, minha senhora; e peço-lhe perdão por me haver tornado incômodo, pois fui, sem dúvida, tão minucioso em minha narração que eu mesmo tanto me fatiguei, que vou beber uma gota d’água.

E isto dizendo, foi ao fundo da gruta, e enchendo o copo de prata na bacia de pedra, o esgotou até o fim: quando voltou os olhos, viu que a boa hóspeda estava rindo-se maliciosamente.

— Sabe de que estou rindo?…disse ela.

— Certamente que não o adivinho.

— Pois estava neste momento lembrando-me de uma tradição muito antiga, seguramente fabulosa, mas bem apropositada dessa fonte, e que tem muita relação com a história dos seus amores e com o copo d’água que acaba de beber.

— S.S.a põe em tributo a minha curiosidade...

— Eu o satisfaço com todo o prazer.

A sra. d. Ana principiou:

 

AS LÁGRIMAS DE AMOR

— Eu lhe vou contar a história das lágrimas de amor, tal qual a ouvi à minha avó, que em pequena a aprendeu de um velho gentio que nesta ilha habitava.

Era no tempo em que ainda os portugueses não haviam sido por uma tempestade empurrados para a terra de Santa Cruz. Esta pequena ilha abundava de belas aves e em derredor pescava-se excelente peixe. Uma jovem tamoia, cujo rosto moreno parecia tostado pelo fogo em que ardia-lhe o coração, uma jovem tamoia linda e sensível, tinha por habitação esta rude gruta, onde ainda então não se via a fonte que hoje vemos. Ora, ela, que até aos quinze anos era inocente como a flor, e por isso alegre e folgazona como uma cabritinha nova, começou a fazer-se tímida e depois triste, como o gemido da rola; a causa disto estava no agradável parecer de um mancebo da sua tribo, que diariamente vinha caçar ou pescar à ilha, e vinte vezes já o havia feito sem que de uma só desse fé dos olhares ardentes que lhe dardejava a moça. O nome dele era Aoitin; o nome dela era Ahy. A pobre Ahy, que sempre o seguia, ora lhe apanhava as aves que ele matava, ora lhe buscava as flechas disparadas, e nunca um só sinal de reconhecimento obtinha; quando no fim de seus trabalhos, Aoitin ia adormecer na gruta, ela entrava de manso e com um ramo de palmeira procurava, movendo o ar, refrescar a fronte do guerreiro adormecido. Mas tantos extremos eram tão mal pagos que Ahy de cansada procurou fugir do insensível moço e fazer por esquecê-lo; porém, como era de esperar, nem fugiu-lhe e nem o esqueceu.

Desde então tomou outro partido: chorou. Ou porque a sua dor era tão grande que lhe podia exprimir o amor em lágrimas desde o coração até os olhos, ou porque, selvagem mesmo, ela já tinha compreendido que a grande arma da mulher está no pranto, Ahy chorou.

E também porque nas lágrimas de amor há, como na saudade, uma doce amargura, que é veneno que não mata, por vir sempre temperado com o reativo da esperança, a moça julgou dever separar da dor, que a fazia chorar amargores, a esperança que no pranto lhe adicionava a doçura, e, tendo de exprimir a doçura, Ahy cantou.

Seu canto era triste e selvagem, mas terno canto. Dizem que um velho frade português, ouvindo-o por tradição ao depois de muitos anos, o traduziu para a nossa língua e fez dele uma balada, a qual minha neta canta.

Todos os dias, ao romper da aurora, a pobre Ahy subia ao rochedo, que serve de teto a esta gruta, e esperava a piroga de Aoitin. Mal a avistava ao longe, chorava e cantava horas inteiras, sem descanso, até que se partia o bárbaro que nunca dela dera fé, nem mesmo quando, dormindo na gruta, o canto soava sobre a sua cabeça.

Mas Ahy era tão formosa e sua voz tão sonora e terna, que o mesmo que não pôde vencer do insensível moço, pôde do bruto rochedo: com efeito, seu canto havia amolecido a rocha e as suas lágrimas a traspassaram.

E o mancebo vinha sempre e sempre, e ela cantava e chorava e nunca ele a atendia.

Uma vez, e já então o rochedo estava todo traspassado pelas lágrimas da virgem selvagem, uma vez veio Aoitin e, como das outras, não olhou para Ahy, nem lhe escutou as sentidas cantigas; entregou-se a seus prazeres e, quando se sentiu fatigado, entrou na gruta e adormeceu num leito de verde relva; mas, ao tempo que em mais sossego dormia, duas gotas das lágrimas de amor, que tinham passado através do rochedo, caíram-lhe sobre as pálpebras, que lhe cerravam os olhos. Aoitin despertou; e tomando suas flechas, correu para o mar, mas, saltando dentro de sua piroga e afastando-se da ilha, ele viu sobre o rochedo a jovem Ahy e disse bem alto:

— Linda moça!

No outro dia ele voltou e já então olhou para a virgem selvagem, mas não ouviu ainda o canto dela; depois de caçar veio, como sempre, adormecer na gruta; e, dessa vez, a gota de lágrimas lhe veio cair no ouvido; e na volta não só admirou a beleza da jovem, como, ouvindo a terna cantiga, disse bem alto:

A voz sonora!

Terceiro dia amanheceu e Aoitin viu e ouviu Ahy, caçou e cansou, veio repousar na gruta e dessa vez a gota de lágrima lhe caiu no lugar do coração e, quando voltava, disse bem alto:

— Sinto amar-te!

Ora, parece que nada mais faltava a Ahy, e que a ela cumpria responder a este último grito de Aoitin, confessando também o seu amor tão antigo; mas a natureza da mulher é a mesma, tanto na selvagem, como na civilizada. A mulher deseja ser amada, fingindo não amar; deseja ser senhora do mesmo de quem é escrava: e pois Ahy nada respondeu; mas riu-se, e suas lágrimas secaram; porém já a esse tempo as muitas que havia derramado tinham dado origem a esta fonte, que ainda hoje existe.

No dia seguinte veio Aoitin, e viu a sua amada, que já não cantava, nem chorava: mesmo antes de abicar à praia, foi clamando:

— Sinto amar-te!

E Ahy não respondeu, e só sorriu-se.

Nada de caça... nada de pesca... já o insensível era escravo e não vivia longe do encanto que o prendia: correu, pois, para a gruta, deitou-se mas não dormiu. Quem ama não dorme; sentiu que em suas veias corria sangue ardente, que seu coração estava em fogo: era a febre do amor... Aoitin teve sede, e a dois passos viu a fonte que manava; correu açodado para o pé dela e, ajuntando as suas mãos, foi bebendo as lágrimas de amor. A cada trago que bebia, um raio de esperança lhe brilhava, e quando a sede foi saciada já estava feliz: a fonte era milagrosa.

As lágrimas de amor, que haviam tido o poder de tornar amante o insensível mancebo, não puderam esconder a sua origem e fizeram com que Aoitin conhecesse que era amado.

Então ele não mais buscou sua piroga. Saindo da gruta, fez um rodeio e foi, de manso, trepando pelo rochedo, até chegar junto de Ahy, que, com os olhos na praia do lado oposto, esperava ver partir o seu amante e ouvir o seu belo grito:

— Sinto amar-te!

Mas de repente ela estremeceu, porque uma mão estava sobre seu ombro; e quando olhou, viu Aoitin, que, sorrindo-se, lhe disse de um tom seguro e terno:

— Tu me amas!

Ahy não respondeu, mas também não fugiu dos braços de Aoitin, nem ficou devendo o beijo que nesse instante lhe estalou na face.

Desde então foram felizes na vida, e foi numa mesma hora que morreram ambos.

A fonte nunca mais deixou de existir, e há ainda quem acredite que por desconhecido encanto conserva duas grandes virtudes...

Dizem, pois, que quem bebe desta água não sai da nossa ilha sem amar alguém dela e volta, por força, em demanda do objeto amado; e em segundo lugar, querem também alguns que algumas gotas bastam para fazer a quem bebe adivinhar os segredos de amor.

— Terminei aqui a minha história, disse a sra. d. Ana, respirando.

 

— E eu sou capaz de jurar, disse Augusto, que pela terceira vez sinto o ruído de alguém que se retira correndo.

— Pois examine depressa.

Augusto correu à porta e voltou logo depois.

— E então?... perguntou a sra. d. Ana.

— Ninguém, respondeu o estudante.

— E vê alguém no jardim?...

Apenas a sra. d. Carolina, que vai apressadamente para o rochedo.

— Sempre minha neta!...

E eu, minha senhora, tenho que pedir-lhe uma graça.

— Diga.

— Rogo-lhe que, por sua intervenção, me facilite o prazer de ouvir sua linda neta cantar a balada de Ahy, que tanto me interessou com o seu amor.

— Oh! ... Não carece pedir: não a ouve cantar sobre o rochedo?... É a balada.

— Será possível?!

— Adivinhou o seu pensamento.

 

CAP.X - A BALADA DO ROCHEDO

A hóspeda e o estudante deixaram então a gruta e, tomando o do jardim para vencer a altura do rochedo, viram a bela Moreninha em pé e voltada para o mar, com seus cabelos negros divididos em duas tranças que caíam pelas espáduas, e cantando com terna voz o seguinte:

 

I

Eu tenho quinze anos

E sou morena e linda!

Mas amo e não me amam

E tenho amor ainda.

E por tão triste amar,

Aqui venho chorar.

 

II

O riso de meus lábios

Há muito que murchou;

Aquele que eu adoro

Ah! Foi quem matou;

Ao riso, que morreu,

O pranto sucedeu.

 

III

O fogo de meus olhos

De todo se acabou,

Aquele que eu adoro

Foi quem o apagou:

Onde houve fogo tanto

Agora corre o pranto.

 

IV

A face cor de jambo

Enfim se descorou,

Aquele que eu adoro

Ah! Foi quem a desbotou:

A face tão rosada

De pranto está lavada!

 

V

O coração tão puro

Já sabe o que é amor,

Aquele que eu adoro

Ah! Só me dá rigor:

O coração no entanto

Desfaz o amor em pranto.

 

VI

Diurno aqui se mostra

Aquele que eu adoro;

E nunca ele me vê,

E sempre o vejo e choro;

Por paga a tal paixão

Só lágrimas me dão!

 

VII

Aquele que eu adoro

E qual rio que corre,

Sem ver a flor pendente

Que ti margem murcha e morre:

Eu sou u pobre flor

Que vou murchar de amor.

 

VIII

São horas de raiar

O sol dos olhos meus,

Mau sol! Queima a florzinha

Que adora os olhos seus:

Tempo é do sol raiar

E é tempo de chorar.

 

IX

Lá vem sua piroga

Cortando leve os mares,

Lá vem uma esperança

Que sempre dá pesares:

Lá vem o meu encanto,

Que sempre causa pranto.

 

X

Enfim abica a praia,

Enfim salta apressado.

Garboso como o cervo

Que salta alto valado:

Quando há de ele cá vir

Só pra me ver sorrir?

 

XI

Lá corre em busca de aves

A selva que lhe é cara,

Ligeiro como a seta

Que do arco seu dispara:

Quando há de ele correr

Somente para me ver.

 

XII

Lá vem do feliz bosque

Cansado de caçar,

Qual beija-flor que cansa

De mil flores a beijar:

Quando há de ele, cansado,

Descansar a meu lado?

 

XIII

Lá entra para a gruta,

E cai na rude cama,

Qual flor de belas cores,

Que cai do pé na grama:

Quando há de nesse leito

Dormir junto a meu peito?

 

XIV

Lá súbito desperta,

E na piroga embarca,

Qual sol que, se ocultando,

O fim do dia marca:

Quando hei de este sol ver

Não mais desaparecer?

 

XV

Lá voa na piroga,

Que o rasto deixa aos mares,

Qual sonho que se esvai

E deixa após pesares:

Quando há de ele cá vir

Pra nunca mais fugir?...

 

XVI

Oh bárbaro! Tu part e~s

E nem sequer me olhaste?

Amor tão delicado

Em outra já achaste?

Oh bárbaro! responde,

Amor como este, aonde?

 

XVII

Somente pra teus beijos

Te guardo a boca para;

Em que lábios tu podes

Achar maior doçura?...

Meus lábios, murchareis,

Seus beijos não tereis!

 

XVIII

Meu colo alevantado

Não vale teus abraços?...

Que colo há mais formoso,

Mais digno de teus braços?

ingrato! Morrerei...

E não te abraçarei.

 

XIX

Meus seios entonados

Não podem ter valia?

Desprezas as delícias

Que neles te of’recia?

Pois hão de os seios puros

Murcharem prematuros?

 

XX

Não sabes que me chamam

A bela do deserto?...

Empurras para longe

O bem que te está perto?...

Só pagas com rigor

As lágrimas de amor?...

 

XXI

Ingrato! Ingrato! foge...

E aqui não tornes mais,

Que, sempre que tornares,

‘Terás de ouvir meus ais:

E ouvir queixas de amor,

E ver pranto de dor.1...

 

XXII

E, se amanhã vieres,

Em pé na rocha dura

‘Starei cantando aos ares

A mal paga ternura...

Cantando me ouviras,

Chorando me acharás!...

 

 

Cap. XI - Travessuras de d. Carolina

Mas ela não pára: o movimento é a sua vida; esteve no jardim e em toda a parte; cantou sobre o rochedo e ei-la outra vez no jardim!

Infatigável, apenas suas faces se coraram com o rubor da agitação. Travessa menina!... Porém ela tempera todas as travessuras com tanta viveza, graça e espírito, que menos valera se não fizera o que faz. Não há um só, entre todos, de cuja alma não se tenham esvaído as idéias desfavoráveis que à primeira vista produzira o gênio inquieto de d. Carolina. O mesmo Augusto não pôde resistir à vivacidade da menina. Encontrando Leopoldo, disseram duas palavras sobre ela.

— Então, como a achas agora?... disse Leopoldo, apontando para a irmã de Filipe.

— Interessante, espirituosa e capaz de levar a glória ao mais destro casuísta. Olha, Fabrício vê-se doido com ela.

— Só isto?...

— Acho-a bonita.

— Nada mais?...

— Tem voz muito agradável.

— É tudo o que pensas?...

— Tem a boca mais engraçada que se pode imaginar.

— Só?...

— Só?...

— Que mais?

— É tão ligeira como um juramento de mulher.

— Dize tudo de uma vez.

— Pois que queres mais que eu diga?

— Que a amas!... Que dás o cavaco por ela.

— Amá-la? Não faltava mais nada! Amo-a como amo as outras.., isto sim.

— Pois meu amigo, todos nós estamos derrotados: o diabinho da menina nos tem posto o coração em retalhos. Se, de novo, se fizer a saúde que hoje fizemos, todos, à exceção de Felipe, pronunciarão a letra C.

— Também Fabrício?

— Ora! Esse está doente... perdido... doido enfim! E ela?

— Zomba de todos nós; cada cumprimento que lhe endereçamos paga ela com uma resposta que não tem troco e que nos racha de meio a meio. Tu ainda lhe não disseste nada?

— Coisas vãs... e palavras da tarifa.

— E ela?

— Palavras da tarifa… e coisas vãs.

— Tanto melhor para mim.

— Pois é opinião geral que ela te prefere a todos nós.

— E pior para ela, mas... adeus! O meu lindo par se levanta do banco de relva em que descansava, vou tomar-lhe o braço; tenho-me singularmente divertido: a bela senhora é filósofa! ... Faze idéia! Já leu Mary de Wollstonecraft e, como esta defende o direito das mulheres, agastou-se comigo, porque lhe pedi uma comenda para quando fosse ministra de Estado, e a patente de cirurgião de exército, no caso de chegar a ser general; mas, enfim, fez as pazes, pois lhe prometi que, apenas me formasse, trabalharia para encartar-me na Assembléia Provincial e lá, em lugar das maçadas de pontes, estradas e canais, promoveria a discussão de uma mensagem ao Governo Geral, em prol dos tais direitos das mulheres; além de que... Mas... tu bem vês que ela me está chamando; adeus!...

No entanto d. Carolina continuava a cativar todos os olhares e atenções; tinham notado, é verdade, que ela estivera alguns momentos recostada à efígie da Esperança, triste e pensativa. Fabrício jurava mesmo que a vira enxugar uma lágrima, mas logo depois, lhe desaparecera completamente a menor aparência de tristeza, tornou a brilhar o prazer em ebulição.

Todos tinham tido seu quinhão, maior ou menor, segundo os merecimentos de cada um, nas graças maliciosas da menina. Ninguém havia escapado: Fabrício era a vítima predileta, porque também fora ele o único que se atreveu a travar luta com ela.

Finalmente d. Carolina acabava de entrar outra vez no jardim, depois de ter cantado sua balada. De todos os lados soavam-lhe os parabéns, mas ela escapou a eles, correndo para junto de uma roseira toda corada por suas belas e rubras flores.

Fabrício, que ainda não estava suficientemente castigado e que, além disso, começava a gostar seu tantum da Moreninha, dirigiu-se com d. Joaninha para o lado em que ela se achava.

— É decididamente o que eu pensava, disse Fabrício, quando se viu ao pé de d. Carolina; e dirigindo-se a d. Joaninha: sim... sua bela prima ama as rosas, exclusivamente.

— Conforme as ocasiões e circunstâncias, respondeu a menina.

— Poderia eu merecer a honra de uma explicação? perguntou Fabrício.

Com toda a justiça e, continuou d. Carolina rindo-se, tanto mais que foi a V.S.a que me dirigi. Eu queria dizer que entre um beijo de frade ou um cravo defunto e uma rosa, não hesito em preferir a última.

Fabrício fingiu não entender a alusão e continuou:

— Todavia não é sempre bem pensada semelhante preferência; a rosa é como a beleza: encanta, mas espinha! V.S.a o sabe, não é assim?

— Perfeitamente, mas também não ignoro que a rosa só espinha quando se defende de alguma mão impertinente que vem perturbar a paz de que goza; V. S.a o sabe, não é assim?

— Oh! Então a sra. d. Carolina foi bem imprudente em quebrar o pé dessa rosa com que brinca, expondo assim seus delicados dedos: e bem cruel também em fazê-la murchar de inveja, tendo-a defronte de seu formoso semblante.

— Pela minha vida, meu caro senhor! Nunca vi pedir uma rosa com tanta graça: quer servir-se dela?

— Seria a mais apetecível glória...

— Pois aqui a tem... Querido primo, nada de ciúmes.

E Fabrício, recebendo o belo presente, em vez de olhar para a mão que o dava, atentava em êxtase o rosto moreno e o sorrir malicioso de d. Carolina. Ao momento de se encontrar a mão que dava e a que recebia, Fabrício sentiu que lhe apertavam os dedos; seu primeiro pensamento foi acreditar que era amado, mas logo se lhe apagou esse raio de vaidade, pois que ele retirou vivamente a mão, exclamando involuntariamente:

— Ai! Feri-me!...

Era que a travessa lhe havia apertado os dedos contra os espinhos da rosa. Mas a flor tinha caído na relva: Fabrício,já menos desconcertado, a levantou com presteza; e encarando a irmã de Filipe, disse-lhe em tom meio vingativo:

— Foi um combate sanguinolento, mas ganhei o prêmio da vitória!

— Pois feriu-se?… perguntou d. Carolina, chegando-se com fingido cuidado para ele.

— Nada foi, minha senhora: comprei uma rosa por algumas gotas de sangue... Valeu a pena.

— Maldita rosa! exclamou a Moreninha, teatralmente... Maldita rosa! Eu te amaldiçôo!

E dando um piparote na inocente flor, a desfolhou completamente: não ficou na mão de Fabrício mais que o verde cálice. D. Carolina correu para junto de sua digna avó, e o pobre estudante ficou desconcertado.

E esta! murmurou ele enfim.

— Foi muito bem-feito! disse d. Joaninha, cheia de zelos e dando-lhe um beliscão que o fez ir às nuvens.

— Perdão, minha senhora... seja pelo amor de Deus! exclamou Fabrício, que se via batido por todos os lados.

No entanto começava a declinar a tarde. Uma voz reuniu todas as senhoras e senhores em um só ponto; servia-se o café num belo caramanchão, mas como fosse ele pouco espaçoso para conter tão numerosa sociedade, aí só se abrigaram as senhoras, enquanto os homens se conservaram da parte de fora.

Escravas decentemente vestidas ofereciam chávenas de café fora do caramanchão e, apesar disso, d. Carolina se dirigiu com uma para Fabrício, que praticava com Augusto.

— Eu quero fazer as pazes, sr. Fabrício; vejo que deve estar muito agastado comigo e venho trazer-lhe uma chávena de café temperado pela minha mão.

Fabrício recuou um passo e colocou-se à ilharga de Augusto; ele desconfiava das tenções da menina, e sua primeira idéia foi esta: o café não tem açúcar.

Então começou entre os dois um duelo de cerimônias, que durou alguns instantes; finalmente, o homem teve de ceder à mulher, Fabrício ia receber a chávena, quando esta estremeceu no pires... D. Carolina, temendo que sobre ele se entornasse o café, recuou um pouco. Fabrício fez outro tanto, e a chávena, ainda mal tomada, tombou e o café derramou-se inopinadamente. Fabrício recuou ainda mais com vivacidade, mas encontrando a raiz de um chorão, que sombreava o caramanchão, perdeu o equilíbrio e caiu redondamente na relva.

Uma gargalhada geral aplaudiu o sucesso.

— Fabrício espichou-se completamente! exclamou Filipe.

O pobre estudante ergueu-se com ligeireza, mas, na verdade, corrido do que acabava de sobrevir-lhe; as risadas continuavam, as terríveis consolações o atormentavam, todas as senhoras tinham saído do caramanchão e riam-se, por sua vez, desapiedadamente. Fabrício daria muito para livrar-se dos apuros em que se achava, quando de repente soltou também a sua risada e exclamou:

— Vivam as calças de Augusto!

Todos olharam. Com efeito, Fabrício tinha encontrado um companheiro na desgraça. Augusto estava de calças brancas, e a maior porção do café entornado havia caído nelas.

Wednesday, 5 February 2025

Wednesday's Good Reading: "Aspiração" by Narcisa Amália (in Portuguese)

 

(A uma menina)

Folga e ri no começo da existência

Borboleta gentil!

 GONÇALVES DIAS

 

Os lampejos azuis de teus olhos

Fazem n'alma brotar a esperança;

Dão venturas, ó meiga criança,

 — Flor celeste no mundo entre abrolhos! —

 

Ora pendes a fronte na cisma,

Fatigada dos jogos, contente,

E mil sonhos, formosa inocente,

Fantasias às cores do prisma;

 

Ora voas ligeira entre clícias

Sacudindo fulgores, anjinho;

E o favônio te envia um carinho,

E as estrelas te ofertam blandícias!...

 

Mas se prende dos fúlgidos cílios

Alva pérola que a face te rora,

De teus lábios, na fala sonora,

Chovem, rolam sublimes idílios!

 

De tua boca na rubra granada

Caem santos mil beijos felizes!

Tuas asas de lindos matizes,

Ah! não rasgues do vício na estrada!