De 21 a
24 de Fevereiro, a convite do Papa Francisco, os presidentes das conferências
episcopais de todo o mundo se reuniram no Vaticano para discutir a crise da Fé
e da Igreja, uma crise palpável em todo o mundo após as estarrecedoras
revelações dos abusos perpetrado por clérigos contra menores. A extensão e a
gravidade dos incidentes relatados têm afligido profundamente tanto sacerdotes
quanto leigos, e levou a não poucas pessoas a questionarem a própria fé da
Igreja. Era necessário enviar uma mensagem forte e procurar um novo começo, com
tal de tornar a Igreja novamente verdadeiramente credível como uma luz entre os
povos e como uma força ativa contra os poderes da destruição.
Já que
eu mesmo me encontrava servindo em uma posição de responsabilidade como pastor
da Igreja no momento da eclosão pública da crise e durante seu desenvolvimento,
eu tive que me perguntar – ainda que como emérito já não seja mais diretamente
responsável por essa situação – o que eu podia fazer para contribuir com um
novo começo em retrospecto. Assim, durante o período que vai do anúncio até a
realização da reunião dos Presidentes das Conferências Episcopais, compilei
algumas anotações com as quais creio poder oferecer uma ou duas observações e
ajudar a Igreja nessa hora tão difícil. Tendo entrado em contato com o Secretário
de Estado, Cardeal Parolin e o Santo Padre,
pareceu-me apropriado publicar o texto resultante deste esforço no
“Klerusblatt”.
Meu
trabalho está dividido em três partes. Na primeira, pretendo apresentar
brevemente o contexto societário mais amplo da questão, sem o qual o problema
não pode ser entendido. Eu tento mostrar que na década de 60 ocorreu um evento
excepcional, em uma escala sem precedentes na história. Pode-se dizer que, nos
20 anos decorridos entre 1960 e 1980, os padrões vinculantes relativos à
sexualidade até então entraram em colapso por completo, gerando uma ausência de
normativa que já foi objeto de tentativas laboriosas de compreensão.
Na segunda
parte, pretendo destacar os efeitos dessa situação na formação dos sacerdotes e
na vida dos sacerdotes.
Finalmente,
na terceira parte, gostaria de desenvolver algumas perspectivas para uma
resposta adequada por parte da Igreja.
I
(1) O assunto começa com a
introdução, prescrita e apoiada pelo Estado, de crianças e jovens no tema da
natureza da sexualidade. Na Alemanha, a então ministra da Saúde, Strobel, mandou fazer um filme mostrando tudo o que antes não podia ser exibido
publicamente, incluindo relações sexuais, e que passou a ser exibido com o
propósito de educar os jovens. O que inicialmente se destinava apenas à
educação sexual destes, por conseguinte, foi amplamente aceito como uma opção
viável para o resto da sociedade.
Efeitos
semelhantes foram alcançados pelo “Sexkoffer” publicado pelo governo austríaco. Filmes sexuais e
pornográficos tornaram-se uma ocorrência comum, a ponto de serem exibidos nos
cinemas. Ainda me lembro de ter visto, andando pela cidade de
Regensburg um dia, verdadeiras multidões de pessoas se alinhando em frente a
uma grande sala de cinema, algo que anteriormente só havíamos visto nos tempos
da guerra, quando alguma alocação especial era esperada. Lembro-me também de
ter chegado à cidade na Sexta-feira Santa, no ano de 1970, e de ver todos os
outdoors preenchidos por um grande cartaz de duas pessoas completamente nuas
num abraço apertado.
Entre
as liberdades pelas quais a Revolução de 1968 lutou estava a total liberdade
sexual, uma que não mais possuía normas. A vontade de usar a violência, que
caracterizou esses anos, está fortemente relacionada a esse colapso mental. Na
verdade, os filmes sexuais não eram mais permitidos nos aviões porque poderiam
gerar violência na pequena comunidade de passageiros. E dado que os excessos no
vestuário também provocavam agressão, os diretores das escolas fizeram várias
tentativas de introduzir uma vestimenta escolar que facilitasse um clima de
aprendizado.
Parte
da fisionomia da Revolução de 1968 foi que a pedofilia também foi diagnosticada
como um comportamento aceitável e apropriado.
Para os
jovens da Igreja, mas não apenas para eles, este foi um momento muito difícil
em muitos aspectos. Sempre me perguntei como os jovens nessa situação poderiam
se aproximar do sacerdócio e aceitá-lo com todas as suas ramificações. O
extenso colapso das gerações seguintes de sacerdotes naqueles anos e o grande
número de secularizações foram uma consequência de todos esses
desenvolvimentos.
(2) Ao mesmo tempo,
independentemente destes desenvolvimentos, a teologia moral católica sofreu um
colapso que deixou a Igreja desamparada diante dessas mudanças na sociedade.
Vou tentar delinear brevemente a trajetória que esse desenvolvimento percorreu.
Até o
Concílio Vaticano II, a teologia moral católica era em grande parte baseada na
lei natural, enquanto as Sagradas Escrituras eram citadas apenas para obter
contexto ou justificação. Na luta do Concílio por uma nova compreensão do
Apocalipse, a opção pela lei natural foi amplamente abandonada, e uma teologia
moral baseada inteiramente na Bíblia foi exigida.
Ainda
me lembro como a faculdade jesuíta em Frankfurt treinou o jovem e inteligente
Padre Schüller com o propósito de desenvolver uma moralidade baseada
inteiramente nas Escrituras. A bela dissertação do Padre Bruno Schüller
mostra um primeiro passo para a construção de uma moralidade baseada nas
Escrituras. O sacerdote foi então enviado para os Estados Unidos e voltou,
percebendo que somente com a Bíblia a moralidade não poderia ser expressa
sistematicamente. Então ele tentou uma teologia moral mais pragmática, sem
poder dar uma resposta à crise da moralidade.
Consequentemente,
nada poderia ser considerado um bem absoluto, assim como, por outro lado, coisa
alguma poderia ser considerada fundamentalmente ruim; apenas
juízos de valor relativos. Não havia mais o bom em seu sentido mais absoluto,
apenas o aquilo que era relativamente melhor ou contingente para o momento e as
circunstâncias específicas.
A crise
da justificação e da forma de expor a moral católica alcançou proporções
dramáticas no final dos anos 80 e 90. Em 5 de janeiro de 1989, foi publicada a
“Declaração de Colônia”, assinada por 15 catedráticos católicos de Teologia. O
documento se concentrou em vários pontos da crise da relação entre o magistério
dos bispos e a tarefa da Teologia. As reações a este texto, que em princípio
não passaram do usual nível de protestos, cresceu rapidamente e se tornou um
grito contra o magistério da Igreja e reuniu, clara e visivelmente, o potencial
de um protesto global contra os esperados textos doutrinais de João Paulo II.
(cf. (cf. D. Mieth, Kölner Erklärung, LThK, VI3, p. 196).
O Papa
João Paulo II, que conhecia muito bem e acompanhava de perto a situação em que
a teologia moral se encontrava, encomendou o trabalho de uma encíclica para
tornar as coisas claras novamente. E foi publicada sob o título Veritatis
Splendor no dia 6 de agosto de 1993 e logo gerou reações veementes de vários
teólogos morais. Antes disso, o Catecismo da Igreja Católica (publicado em
1992) já havia apresentado, de maneira persuasiva e sistemática, a moralidade
proclamada pela Igreja.
Nunca
vou esquecer a forma como o então líder teólogo moral alemão, Franz Böckle,
tendo retornado para sua Suíça natal após a aposentadoria, anunciou em relação
à Veritatis Splendor que, se a encíclica determinasse que existem ações que
sempre e em todas as circunstâncias deveriam ser classificados como más, ele
iria rebatê-la com todos os recursos à sua disposição.
Foi
Deus, o Misericordioso, que evitou que este propósito fosse executado, pois
Böckle morreu em 8 de julho de 1991. A encíclica foi publicada em 06 de agosto
de 1993 e efetivamente incluía a determinação de que certas ações jamais podem
ser consideradas boas.
O Papa
estava plenamente consciente da importância dessa decisão e, nessa parte do
texto, consultou novamente os melhores especialistas que não participaram da
edição da encíclica. Ele sabia que não deveria deixar dúvidas sobre o fato de
que a moralidade que busca o equilíbrio de bens deve ter sempre um limite
final. Alguns bens simplesmente não estão sujeitos a concessões.
Há
valores que jamais devem ser abandonados por um valor mais alto e até mesmo
superar a preservação da vida física. Há martírio. Deus é mais. Ele vale mais
que a própria sobrevivência física. Uma vida comprada pela negação de Deus, uma
vida baseada em uma mentira, ao final, não é vida.
O
martírio é a categoria básica da existência cristã. O fato de que o mesmo já
não seja moralmente necessário, como afirma a teoria defendida por Böckle e
muitos outros, demonstra que a própria essência do cristianismo está em jogo
aqui.
Na
teologia moral, no entanto, outra questão tornou-se urgente: a hipótese de que
o Magistério da Igreja deveria ter competência final (“infalibilidade”) apenas
nas questões relativas à fé e já não nas que se referem à moralidade, havia ganhado
ampla aceitação. Dizia-se que estas questões não deveriam cair no âmbito de
decisões infalíveis do magistério da Igreja. Provavelmente há algo de verdade
nesta hipótese e que merece mais discussão, mas há um conjunto mínimo de
questões morais que estão intimamente relacionadas com o princípio fundamental
da fé, o qual deve ser defendido, para que a fé não venha a ser reduzida a uma
teoria e que já não seja reconhecida em seu clamor pela vida concreta.
Tudo
isso nos permite ver o quão fundamentalmente a autoridade da Igreja é
questionada quando se trata de questões de moralidade. Aqueles que negam à
Igreja uma competência no ensinamento definitivo nesta área, forçam-na a
permanecer em silêncio exatamente ali, onde se encontra em jogo a fronteira
entre a verdade e a mentira.
Independentemente
deste assunto, em muitos círculos da teologia moral foi apresentada a tese de
que a Igreja não tem e não pode ter sua própria moralidade. O argumento era que
todas as hipóteses morais teriam seu paralelo em outras religiões e, portanto,
não haveria uma natureza cristã. Mas a questão da natureza da moralidade
bíblica não é respondida pelo fato de que para cada frase singular em algum
lugar da Escritura, podemos encontrar um paralelo em outras religiões. Na
verdade, trata-se do conjunto da moralidade bíblica, que, como tal, é novo e
distinto de suas partes individuais.
A
doutrina moral das Sagradas Escrituras tem a sua forma única de ser predicada
em última instância na sua concreção à imagem de Deus, na fé em um Deus que se
manifestou a Si mesmo em Jesus Cristo e viveu como ser humano. O Decálogo é uma
aplicação para a vida humana da fé bíblica em Deus. A imagem de Deus e da
moralidade se pertence uma a outra e é por isso que resulta na mudança
particular da atitude cristã em relação ao mundo e à vida humana. Além disso, o
cristianismo tem sido descrito desde o início com o termo Hodoš (caminho, em
grego, usado no Novo Testamento para discutir um caminho de progresso).
A fé é
uma travessia e uma forma de vida. Na Igreja antiga, o catecumenato foi criado
como um habitat no qual os aspectos distintos e frescos daquele modo de viver a
vida cristã eram ao mesmo tempo praticados e protegidos, contra uma cultura
cada vez mais desmoralizada. Acredito que mesmo hoje, algo como estas
comunidades de catecumenato sejam necessárias para que a vida cristã possa se
afirmar da maneira que lhe é própria.
II - As reações eclesiais iniciais
(1) O processo há muito
preparado e em andamento para a dissolução do conceito cristão de moralidade
foi marcado, como tentei demonstrar, pelo radicalismo sem precedentes dos anos
1960. Essa dissolução da autoridade moral do ensino da Igreja devia ter um
efeito sobre os diferentes membros da Igreja. No contexto da reunião dos
presidentes das conferências episcopais em todo o mundo com o Papa Francisco, a
questão da vida sacerdotal, assim como a dos seminários, é de particular
interesse. Uma vez que está relacionado ao problema o tema da preparação para o
ministério sacerdotal nos seminários, e, existe de fato uma ampla decomposição
no que diz respeito à anterior forma de preparação dos candidatos.
Em
vários seminários foram estabelecidos grupos homossexuais que agiram mais ou
menos abertamente, o que mudou significativamente o clima que se vivia ali. Em
um seminário no sul da Alemanha, os candidatos ao sacerdócio e ao ministério
leigo de agentes de pastoral viviam juntos. Nas refeições
diárias, os seminaristas e os especialistas em pastoral estavam juntos. Os
casados às vezes estavam com suas esposas e filhos; e às vezes com suas
namoradas. O clima neste seminário não oferecia o apoio necessário para a
preparação adequada para a vocação sacerdotal. A Santa Sé sabia desses
problemas sem ser informada com precisão. Como primeiro passo, foi acordada uma
visita apostólica para os seminários nos Estados Unidos.
Como os
critérios para a seleção e nomeação dos bispos também mudaram depois do
Concílio Vaticano II, a relação dos bispos com seus seminários também tornou-se
muito diferente. Acima de tudo, a “conciliaridade” foi estabelecida como um
critério para a nomeação de novos bispos, o que poderia ser entendido de várias
maneiras.
De
fato, em muitos lugares entendeu-se que as atitudes conciliares se relacionavam
a uma postura crítica ou negativa à tradição que existia até então, e que
precisava ser substituída por uma relação nova e radicalmente aberta com o
mundo. Um bispo, que já havia sido reitor de um seminário, fez os seminaristas
assistirem a filmes pornográficos com a intenção de torná-los resistentes a
condutas contrárias à fé.
Havia –
e não apenas nos Estados Unidos da América – bispos que individualmente
rejeitavam totalmente a tradição católica e buscavam uma nova e moderna
“catolicidade” em suas dioceses. Pode valer a pena mencionar que em muitos
seminários, os estudantes que os viram lendo meus livros eram considerados
inadequados para o sacerdócio. Meus livros estavam escondidos, como se fossem
literatura ruim, e eram lidos apenas debaixo da escrivaninha.
A
visita apostólica afinal não trouxe novas pistas, aparentemente porque vários
poderes juntaram forças para maquiar a verdadeira situação. Uma segunda visita
foi ordenada e permitiu novos dados, mas no final tampouco obteve resultado
algum. No entanto, desde a década de 1970, a situação nos seminários geralmente
melhorou. E, no entanto, apenas casos isolados de um novo fortalecimento das
vocações sacerdotais surgiram, posto que a situação em geral havia tomado outro
rumo.
(2) A questão da pedofilia,
se não me falha a memória, não era crítica até a segunda metade da década de
1980. Entretanto, ele se tornou um assunto público nos Estados Unidos, tanto
assim que os bispos foram a Roma para procurar ajuda e que o direito canônico,
conforme escrito no novo Código (1983), não parecia suficiente para tomar as
medidas necessárias. Na primeira visita, Roma e os canonistas romanos tinham
dificuldades com estas preocupações porque, em sua opinião, a suspensão
temporária do ministério sacerdotal deveria ser suficiente para gerar
purificação e esclarecimento. Isto não podia ser aceito pelos bispos
americanos, porque assim os sacerdotes permaneciam a serviço do bispo e,
portanto, seguiam diretamente associados a ele. Lentamente, foi tomando forma
uma renovação e um aprofundamento na lei criminal do novo Código, construída
deliberadamente e com ligeireza.
Além
disso e no entanto, havia um problema fundamental na percepção do direito
penal. Apenas o chamado “garantismo” (uma espécie de protecionismo processual
ao réu) era considerado uma postura “conciliar”. Isso significa que os direitos
do acusado devem ser garantidos, acima de tudo, até o ponto em que qualquer
tipo de condenação fosse impossibilitada. Como um contrapeso para as opções de
defesa disponíveis para os teólogos acusados e muitas vezes inadequadas, o
direito de defesa dos mesmos usando o “garantismo” estendeu-se a tal ponto que
era quase impossível uma condenação.
Permitam-me
um breve excurso neste momento. À luz da escalada da conduta pedófila, uma
palavra de Jesus novamente nos interpela: ” Se alguém fizer tropeçar um destes
pequeninos que creem em mim, seria melhor que fosse lançado no mar com uma
grande pedra amarrada no pescoço” (Mc 9,42).
A
palavra pequenino, na língua de Jesus, significava aqueles crentes comuns que
podem ver sua fé confundida pela arrogância intelectual daqueles que acreditam
ser inteligentes. Então, aqui Jesus protege o depósito da fé com uma ameaça ou
punição enfática para aqueles que prejudicam estas pessoas.
O uso
moderno da frase não está em si mesmo errado, mas não deve obscurecer o
significado original. Fica claro, contra qualquer garantismo, que não apenas o
direito do acusado é importante e requer uma garantia. Grandes bens como a fé
são igualmente importantes.
Assim,
uma lei canônica equilibrada, que corresponda à totalidade da mensagem de
Jesus, não apenas deve fornecer uma garantia para o acusado, para quem o
respeito é um bem lícito, mas também deve proteger a fé que também é um
importante e lícito bem. Uma lei canônica adequadamente formada deve então
conter uma dupla garantia: a proteção legal do acusado e a proteção legal da
propriedade que está em jogo. Se hoje esta concepção intrinsecamente clara é
apresentada, ela geralmente cai em ouvidos surdos quando se trata da questão da
proteção da fé como um bem legal. Na consciência geral da lei, a fé não parece
mais ter o grau de um bem que requer proteção. Esta é uma situação alarmante
que os pastores da Igreja devem considerar e levar a sério.
Agora
eu gostaria de acrescentar, às breves notas sobre a situação da formação
sacerdotal na época da crise, algumas observações sobre o desenvolvimento do
direito canônico nesta matéria.
Em
princípio, a Congregação para o Clero é responsável por lidar com crimes
cometidos por padres, mas dado que o “garantismo” dominava amplamente a
situação daquela época, eu concordei com o Papa João Paulo II que era
apropriado designar essas ofensas à Congregação para a Doutrina da Fé, sob o
título “Delicta maiora contra fidem”.
Isso
possibilitou a imposição da pena máxima, ou seja, a expulsão do estado
clerical, que não poderia ter sido imposta sob outras disposições legais. Este
não foi um truque para impor a pena máxima, mas uma consequência da importância
da do bem que é a fé para a Igreja. De fato, é importante notar que uma tamanha
má conduta deste tipo por parte de um clérigo, acaba, em última instância,
prejudicando a fé.
Onde a
fé não determina mais as ações do homem tais ofensas se tornam possíveis.
A
severidade da pena, no entanto, também pressupõe uma prova clara da ofensa:
este aspecto da garantia continua em vigor.
Em
outras palavras, para impor a pena máxima legalmente, é necessário um processo
criminal genuíno, mas ambas as dioceses e a Santa Sé estão sobrecarregadas por
esta exigência. Portanto, formulamos um nível mínimo de procedimentos criminais
e deixamos aberta a possibilidade de que a própria Santa Sé assuma o julgamento
quando a diocese ou a administração metropolitana não possam fazê-lo. Em cada
caso, o julgamento deve ser revisado pela Congregação para a Doutrina da Fé
para garantir os direitos do acusado. Finalmente, na quarta feria, estabelecemos uma instância de
recurso para oferecer a possibilidade de o acusado apelar.
Já que
tudo isso ultrapassou as capacidades concretas da Congregação para a Doutrina
da Fé e não havia outra alternativa mais que enfrentar os longos atrasos,
devido à natureza peculiar do assunto, o Papa Francisco decidiu então realizar
mais reformas.
III
(1) O que deve ser feito?
Talvez devêssemos criar outra Igreja para que as coisas funcionem? Bem, essa
experiência já foi feita e já falhou. Somente a obediência e o amor a nosso
Senhor Jesus Cristo pode nos mostrar o caminho, então primeiramente devemos tentar
entender de novo e de dentro (de nós mesmos) o que o Senhor quer e quis de nós.
Em
primeiro lugar, gostaria de sugerir o seguinte: se realmente queremos resumir
muito brevemente o conteúdo da fé, tal como está na Bíblia, teríamos que
fazê-lo dizendo que o Senhor começou uma narrativa de amor com as pessoas e
quer abraçar toda a criação nesta narrativa. A maneira de lutar contra o mal
que nos ameaça e ameaça o mundo todo, só pode residir no nosso ingresso neste
amor em última instância. Esta é a verdadeira força contra o mal, já que o
poder do mal surge da nossa recusa em amar a Deus. Quem se entrega ao amor de
Deus é redimido. Nossa realidade de não-redimidos é consequência de nossa
incapacidade de amar a Deus. Aprender a amar a Deus é, portanto, o caminho da
redenção humana.
Vamos
tentar desenvolver um pouco mais este conteúdo essencial da revelação de Deus.
Podemos assim dizer que o primeiro dom fundamental que a fé nos oferece é a
certeza de que Deus existe. Um mundo sem Deus só pode ser um mundo sem
significado. Caso contrário, de onde tudo viria? Em todo caso, não haveria um
propósito espiritual. De alguma forma, simplesmente está lá e não tem propósito
ou significado algum. Então não há padrões de bem ou mal, e somente o que é
mais forte do que qualquer outra coisa que se possa afirmar e então o poder se
torna o único princípio. A verdade não conta, simplesmente não existe. Somente
se as coisas tiverem uma razão espiritual, elas têm uma intenção e são
concebidas. Somente se existe um Deus Criador que é bom e que quer o bem, a
vida do homem pode então fazer sentido.
Existir
um Deus que seja o criador e a medida de todas as coisas é primeiro e acima de
tudo uma necessidade, mas um Deus que não se expressa em nada aquilo que é, que
não se dá a conhecer, permaneceria como uma presunção e, em consequência, não
poderia determinar a forma do nosso viver. Para que Deus seja
realmente Deus nesta criação deliberada, temos que olhar para Ele para que ele
se expresse de alguma forma. Ele fez de muitas maneiras, mas decisivamente na
vocação de Abraão e deu às pessoas que procuravam a Deus a orientação que nos
leva além de toda expectativa: o próprio Deus se torna criatura, falando como
um homem conosco, seres humanos.
Nesse
sentido, a frase “Deus é”, torna-se ao final uma mensagem verdadeiramente
alegre, precisamente porque Ele é mais do que intelecto porque cria – e é – o
amor para que mais uma vez as pessoas tenham consciência de que esta é a
primeira e mais fundamental tarefa confiada a nós pelo Senhor.
Uma
sociedade sem Deus – uma sociedade que não o conhece e o trata como inexistente
– é uma sociedade que perde sua medida. Em nossos dias, a frase da morte de
Deus foi acunhada. Quando Deus morre em uma sociedade, nos é dito, torna-se
livre. Na realidade, a morte de Deus em uma sociedade também significa o fim da
liberdade porque o que morre é o propósito que provê orientação, já que
desaparece a bússola que nos indica a direção certa e que nos ensina a
distinguir o bem do mal. A sociedade ocidental é uma sociedade na qual Deus
está ausente na esfera pública e não tem nada para oferecer a ela. E essa é a
razão pela qual a sociedade perde cada vez mais sua noção de humanidade. Em
pontos individuais, de repente parece que o que é ruim e destrói o homem se
tornou uma questão de rotina.
Esse é
o caso da pedofilia. Admitiu-se há pouco tempo como algo legítimo, mas se
espalhou mais e mais. E agora percebemos com surpresa que as coisas que estão
acontecendo com nossas crianças e jovens ameaçam destruí-las. O fato de que
isso também pode ser estendido na Igreja e entre os sacerdotes é algo que deve
nos interpelar de maneira particular.
Por que
a pedofilia atingiu tais proporções? No final, a razão é a ausência de Deus.
Nós cristãos e sacerdotes também preferimos não falar de Deus porque esse
discurso não parece ser prático. Após a convulsão da Segunda Guerra Mundial,
nós na Alemanha ainda tínhamos expressamente em nossa Constituição que
estávamos sob a responsabilidade de Deus como um princípio orientador. Meio
século depois, já não era possível incluir a responsabilidade para com Deus
como um princípio orientador na Constituição Europeia. Deus é visto como a
preocupação partidária de um pequeno grupo e não pode mais ser um princípio
orientador para a comunidade como um todo. Esta decisão é refletida na situação
no Ocidente, onde Deus se tornou um assunto particular, destinado a uma pequena
minoria.
Uma
tarefa primordial, que deve resultar das convulsões morais de nosso tempo, é
que novamente comecemos a viver para Deus e sob Ele. Acima de tudo, temos que
aprender mais uma vez a reconhecer Deus como a base de nossa vida. Em vez de
deixá-lo de lado como se fosse uma frase ineficaz. Jamais esquecerei o aviso do
grande teólogo Hans Urs von Balthasar que uma vez me escreveu em um de seus
cartões postais. “Não pressuponha o Deus trino: Pai, Filho e Espírito Santo,
apresente-o!”
De
fato, na Teologia, Deus é sempre tomado como uma questão de rotina, mas na vida
concreta não a pessoa não se relaciona com Ele. O tema de Deus parece tão
irreal, tão alheio às coisas que nos preocupam e entretanto, tudo se torna
diferente quando nós não pressupomos mas apresentamos Deus aos demais. Não
deixando para trás como uma moldura, mas reconhecendo-o como o centro de nossos
pensamentos, palavras e ações.
(2) Deus se tornou homem
para nós. O homem como sua criatura está tão perto de seu coração que se uniu a
si mesmo e, assim, entrou na história humana de maneira muito prática. Ele fala
conosco, vive conosco, sofre conosco e assumiu a morte por nós. Falamos sobre
isso em detalhes em Teologia, com palavras e pensamentos aprendidos, mas é
precisamente assim que corremos o risco de nos tornarmos professores da fé, em
vez de sermos renovados e transformados em mestres pela fé.
Considere
isso com relação à questão central, a celebração da Santa Eucaristia. Nossa
forma de lidar com a Eucaristia só pode gerar preocupação. O Concílio Vaticano
II concentrou-se justamente em devolver este sacramento da presença do corpo e
do sangue de Cristo, da presença da sua pessoa, da sua paixão, morte e
ressurreição, ao centro da vida cristã e à própria existência da Igreja. Em
parte, isso realmente aconteceu e devemos ser gratos ao Senhor por isso.
E ainda
assim uma atitude muito diferente prevalece. O que predomina não é uma nova
reverência pela presença da morte e ressurreição de Cristo, mas uma maneira de
lidar com Ele que destrói a grandeza do Mistério. A queda na participação das
celebrações eucarísticas dominicais mostra quão pouco os cristãos de hoje sabem
apreciar a grandeza do dom que consiste em sua verdadeira Presença. A
Eucaristia tornou-se um mero gesto cerimonial quando se toma por parâmetro que
as boas maneiras exigem que que esta seja oferecida em celebrações familiares
ou às vezes em casamentos e funerais a todos os convidados, simplesmente por
motivos familiares.
A
maneira pela qual as pessoas simplesmente recebem o Santíssimo Sacramento na
comunhão como algo rotineiro mostra que muitos o veem como um gesto puramente
cerimonial. Portanto, quando você pensa sobre a ação que é necessária em
primeiro lugar, é bastante óbvio que não precisamos de outra Igreja com um
design próprio. Em vez disso, precisa-se, em primeiro lugar, alcançar a
renovação da fé na realidade de que Jesus Cristo realmente nos é dado no
Santíssimo Sacramento.
Em
conversas com vítimas de pedofilia, fiquei muito consciente desse primeiro e
fundamental requisito.
Uma
jovem que tinha sido acólita me disse que o capelão, seu superior no culto do
altar, sempre a introduzia ao abuso sexual com estas palavras: “Este é o meu
corpo que será entregue por ti”.
É óbvio
que esta mulher não pode mais ouvir as palavras da consagração sem experimentar
novamente a terrível angústia do abuso. Sim, temos que implorar ao Senhor
urgentemente pelo seu perdão, mas antes de tudo temos que jurar por Ele e pedir
a Ele que nos ensine novamente a entender a grandeza de Seu sofrimento e Seu sacrifício.
E nós temos que fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para proteger o dom
da Santa Eucaristia do abuso.
(3) E finalmente, está o
Mistério da Igreja. A frase com que Romano Guardini, há quase 100 anos,
expressou a esperança alegre dele, e de tantos outros, permanece inesquecível:
“Um evento de importância incalculável começou, a Igreja está despertando nas
almas“
Ele
quis dizer que a igreja não foi experimentada ou vista simplesmente como um
sistema externo que entrou em nossas vidas, como uma espécie de autoridade, mas
tinha começado a ser percebido como presente nos corações das pessoas, não como
algo meramente externo, mas que nos moveu internamente. Quase 50 anos depois, a
repensar esse processo e ver o que vem acontecendo, estou tentado a reverter a
frase: “A Igreja está morrendo nas almas das pessoas.”
De
fato, hoje a Igreja é amplamente vista apenas como um tipo de aparato político.
Fala-se dela quase que exclusivamente em categorias políticas e isso se aplica
até mesmo a bispos que formulam a sua concepção da Igreja do amanhã quase
exclusivamente em termos políticos. A crise, causada por muitos casos de abuso
de clérigos, nos faz olhar para a Igreja como algo quase inaceitável que nós
temos que tomar em nossas mãos e redesenhar. Mas uma Igreja que se constrói a
si mesma não pode constituir esperança alguma.
O
próprio Jesus comparou a Igreja a uma rede de pesca na qual o próprio Deus
separa os bons peixes dos maus. Há também uma parábola da Igreja como um campo
onde o trigo cresce que o próprio Deus semeou com a erva daninha que “um
inimigo” secretamente lançou. Na verdade, a erva daninha no campo de Deus, a
Igreja, é agora demasiado visível e os maus peixes na rede também mostram sua
força. No entanto, o campo ainda é o campo de Deus e a rede é a rede de Deus. E
em todos os tempos não houve apenas má erva daninha ou peixes ruins, mas também
as colheitas de Deus e a boa pesca. Proclamar ambos com ênfase e da mesma forma
não só é uma falsa apologética, mas um serviço necessário à Verdade.
Neste
contexto, é necessário se referir a um texto importante no Apocalipse de João.
O diabo é identificado como o acusador que acusa nossos irmãos diante de Deus
dia e noite. (Apocalipse 12:10). O Apocalipse, em seguida, leva um pensamento que
está no centro da narrativa no livro de Jó (Jó 1 e 2, 10; 42: 7-16). Ali se diz
que o diabo procurou mostrar que a retidão de vida de Jó perante Deus era
meramente externa. E é exatamente isso que o Apocalipse tem a dizer: o diabo
quer provar que não há pessoas corretas, que sua correção só se mostra
externamente. Se alguém pudesse se aproximar, a aparência da justiça cairia
rapidamente.
A
narrativa começa com uma disputa entre Deus e o diabo, na qual Deus se referiu
a Jó como um homem verdadeiramente justo. Agora ele será usado como um exemplo
para provar quem está certo. O diabo pede que todas as suas posses sejam
removidas para ver que nada resta de sua piedade. Deus permite que ele faça
isso, depois do qual Jó age positivamente. Então o demônio pressiona e diz:
“Pele por pele! Sim, tudo que o homem tem dará por sua vida. Agora, porém,
estende a tua mão e toca o seu osso e a sua carne, e verás se não te amaldiçoa
na tua face “(Jó 2,4f).
Então
Deus dá ao demônio um segundo round. Ele também toca a pele de Jó e só lhe é
negado matá-lo. Para os cristãos, é claro que este trabalho, que se coloca
diante de Deus como um exemplo para toda a humanidade, é Jesus Cristo. No
Apocalipse, o drama da humanidade nos é apresentado em toda a sua amplitude.
O Deus
Criador é confrontado com o diabo que fala a toda a humanidade e a toda a
criação. Ele fala não só a Deus, mas acima de tudo ao povo: Veja o que este
Deus fez. Supostamente uma boa criação. Na realidade, Ele é cheio de miséria e
desprazer. O desânimo da criação é, na realidade, o desprezo de Deus. Ele quer
provar que o próprio Deus não é bom e afastar-nos d'Ele.
A
oportunidade da que o Apocalipse nos está falando aqui é óbvia. Hoje, a
acusação contra Deus é, acima de tudo, desprezo de Sua Igreja como algo maligno
em sua totalidade e, portanto, nos desencoraja dela. A ideia de "uma
Igreja melhor", feita por nós mesmos, é na verdade uma proposta do diabo,
com a qual ele quer nos afastar do Deus vivo usando uma lógica enganosa em que
podemos facilmente cair. Não, ainda hoje a Igreja não é feita apenas de peixes
ruins e ervas daninhas. A Igreja de Deus também existe hoje e hoje é o mesmo
instrumento pelo qual Deus nos salva.
É muito
importante opor com toda a verdade as mentiras e meias-verdades do diabo: sim,
há pecado e mal na Igreja, mas ainda hoje há a Santa Igreja, que é
indestrutível. Também hoje há muitas pessoas que humildemente acreditam, sofrem
e amam, em quem o verdadeiro Deus, o Deus amoroso, se mostra a nós. Deus também
tem Suas testemunhas (“mártires”) no mundo hoje. Nós apenas precisamos estar
atentos para conseguir vê-los e ouvi-los.
A
palavra mártir é tirada da lei processual. No julgamento contra o diabo, Jesus
Cristo é o primeiro e verdadeiro testemunho de Deus, o primeiro mártir, que
desde então tem sido seguido por inúmeros outros.
Hoje, a
Igreja é mais do que nunca uma Igreja dos mártires e, portanto, um testemunho
do Deus vivo. Se olharmos em volta e escutarmos com um coração atento, hoje
poderemos encontrar testemunhas por toda parte, especialmente entre as pessoas
comuns, mas também nas altas fileiras da Igreja, que defendem a Deus com suas
vidas e seus sofrimentos. É uma inércia do coração que nos leva a não querer
reconhecê-los. Uma das grandes e essenciais tarefas de nossa evangelização é,
na medida do possível, estabelecer habitats de fé e, acima de tudo,
encontrá-los e reconhecê-los.
Eu moro
em uma casa, em uma pequena comunidade de pessoas que descobrem repetidamente
esses testemunhos do Deus vivo na vida cotidiana e que alegremente me dizem
isso. Ver e encontrar a Igreja viva é uma tarefa maravilhosa que nos fortalece
e que, uma e outra vez, nos faz felizes na nossa fé.
Ao
final de minhas reflexões, gostaria de agradecer ao Papa Francisco por tudo que
ele faz para mostrar-nos sempre a luz de Deus que, mesmo nos dias de hoje,
não desapareceu.
Obrigado,
Santo Padre!
Bento XVI
Tradução:
Fratres in Unun / Henrique Sebastião