III - Derrota
Aquelas
últimas palavras da comadre produziram sobre D. Maria o efeito de um raio: a
velha remexeu-se na banquinha, tomada do maior desapontamento.
— Ora,
comadre, exclamou depois da primeira emoção, esta não lembra ao diabo... por
isso eu sigo a regra antiga de me não fiar em coisa que traz calções... Safa...
que esta pôs-me sal na moleira.
A
comadre, vendo estas boas disposições, aproveitava-se delas para fazer melhor o
seu papel, e respondeu:
— Pois
também o que se havia de esperar de um sujeito como aquele?... um homem que não
abre a boca que não minta... que tem uma língua de Lúcifer?... Quem contasse
com aquilo era mesmo para se perder.
— É
verdade, senhora; nunca vi mentiroso, nem maldizente maior...
Nunca
D. Maria até então tinha encontrado em José Manuel as qualidades que agora
descobria tanto em relevo.
— Se eu
fosse parente da rapariga havia de pôr uma demanda ao tal diabo que o havia de
ensinar... Por isso é que ele me não aparecia por cá há tanto tempo... andava
cuidando nos seus arranjos.
Mal
tinha D. Maria acabado de pronunciar estas últimas palavras quando se ouviu bater
à porta, e a voz de José Manuel pedir licença.
— Aí
está ele... segredo... não quero que se saiba que fui eu, disse a comadre
apressada.
— Ora,
respondeu D. Maria, eu cá para isso sou boa.
José
Manuel entrou. D. Maria, que não costumava guardar o que sentia, recebeu-o
friamente; a comadre porém fez-lhe um rasgado cumprimento.
— Seja
bem aparecido, disse, bons olhos o vejam.
— Tenho
andado aí ocupado com alguns arranjos...
—
Arranjos... disse D. Maria trocando com a comadre um olhar significativo.
José
Manuel, inocente em tudo, ficou pasmo, sem entender o que queria aquilo dizer;
entretanto, segundo o costume, não perdeu ocasião de armar uma peta.
— Sim,
uns arranjos, acrescentou; houve um negócio muito sério em que estive metido, e
que me ia dando bem que fazer; sinto não lhe poder contar, porque é segredo.
A
comadre fez um gesto, como quem queria dizer-aí vem uma peta; D. Maria, porém,
que estava preocupada pela conversa que há pouco tivera, entendeu que José
Manuel se referia ao roubo da moça; e abanando a cabeça, disse por entre os
dentes:
—
Hum... entendo...
A
comadre estremeceu temendo que D. Maria desse com a língua nos dentes, e que a
questão do roubo da moça tivesse de ser averiguada em sua presença; porque
nesse caso seria ela apanhada em flagrante mentira, e estava tudo perdido.
Começou portanto a provocar a José Manuel a que declarasse qual era o negócio
sério em que estivera metido; contava com algumas das petas continuadas, e
assim se desviaria a conversa do ponto que ela não queria ver tratado em sua
presença.
Deixemo-la
nesse empenho lutar com as negaças e fingidos mistérios de José Manuel.
Desde o
dia em que Leonardo fizera a sua declaração amorosa, uma mudança notável se
começou a operar em Luisinha, a cada hora se tornava mais sensível a diferença
tanto do seu físico como do seu moral. Seus contornos começavam a
arredondar-se; seus braços, até aí finos e sempre caídos, engrossavam-se e
tornavam-se mais ágeis; suas faces magras e pálidas, enchiam-se e tomavam essa
cor que só sabe ter o rosto da mulher em certa época da vida; a cabeça, que
trazia habitualmente baixa, erguia-se agora graciosamente; os olhos, até aqui
amortecidos, começavam a despedir lampejos brilhantes; falava, movia-se,
agitava-se.
A ordem
de suas idéias alterava-se também; o seu mundo interior, até então acanhado,
estreito, escuro, despovoado, começava a alargar os horizontes, a iluminar-se,
a povoar-se de milhões de imagens, ora amenas, ora melancólicas, sempre porém
belas.
Até
então indiferente ao que se passava em torno de si, parecia agora participar da
vida, de tudo que a cercava; gastava horas inteiras a contemplar o céu, como se
só agora tivesse reparado que ele era azul e belo, que o sol o iluminava de
dia, que se recamava de estrelas à noite.
Tudo
isto dava em resultado, pelo que diz respeito ao nosso amigo Leonardo, um
aumento considerável de amor; também ele foi o primeiro que deu fé daquelas
mudanças em Luisinha. Entretanto, apesar de lhe crescer o amor nem por isso lhe
nasciam mais esperanças.
Depois
da declaração não se tinha adiantado nem mais uma polegada, e a única coisa
talvez que o alentava, era um certo rubor que súbito subia às faces de Luisinha
quando acontecia (raras vezes) que se encontrassem os olhos dela com os seus. A
soma total destas adições era uma raiva que lhe crescia n’alma, aumentando
todos os dias de intensidade contra José Manuel, a quem em seus cálculos
atribuía todo o seu atraso.
Dadas
estas explicações, voltemos a dar conta do resto da cena que deixamos suspensa.
À força
de instâncias a comadre conseguiu que José Manuel referisse qual o negócio de
alto segredo em que se tinha achado envolvido.
— Pois
bem, disse ele finalmente, se prometem toda a discrição, contarei.
— Ora,
nem tem que recomendar isso.
Com as
negaças e mistérios que tinha guardado até então, José Manuel não fizera mais
do que ganhar tempo para imaginar a mentira que havia de pregar: a comadre
contava com isso.
Ele
começou:
—
Saibam vm.cês que fui um destes dias chamado a palácio...
— Ui!
exclamou a comadre.
— Aí
está o resultado, disse D. Maria; mas não se pagam na outra vida, é mesmo
nesta.
—
Resultado de quê? perguntou José Manuel surpreendido.
— De
nada; continue.
José
Manuel enfiou então tomando por tema aquelas primeiras palavras que lhe tinham
vindo à boca, uma mentira muito sensabor, que nós poupamos aos leitores. Não
foram porém satisfeitas as vistas da comadre, que queria desviar a conversa do
furto da moça.
Terminada
a história, José Manuel começou a instar com D. Maria para que lhe desse
explicação das palavras duvidosas que há pouco havia dito a seu respeito. A
comadre, assim que viu o negócio neste pé, foi tratando de retirar-se, depois
de trocar com D. Maria um olhar que queria dizer:-não me comprometa.
D.
Maria a princípio quis sustentar o segredo; afinal não se pôde conter, e soltou
contra José Manuel uma grande alicantina, dizendo que toda a cidade estava
cheia do horroroso escândalo que ele acabava de cometer roubando uma
filha-família.
O homem
foi às nuvens, e jurou e tresjurou que estava inocente em tudo aquilo. Nada
porém lhe valeu.
D.
Maria foi inflexível.
Protestou
de novo que se ela fosse parenta da moça o Sr. José Manuel se havia de ver em
calças pardas com o negócio; e terminou por dar-lhe a entender que ele era um
homem muito perigoso para ser admitido em uma casa de família.
José
Manuel saiu completamente corrido e cismando em quem poderia ter sido o autor
de semelhante intriga.
Quanto
a D. Maria, ficou muito satisfeita, pois tendo no seu caráter um grande fundo
de honestidade, julgava ter feito uma boa ação rompendo com José Manuel, que
ficara com efeito, como o calculara a comadre, perdendo muito no seu conceito.
IV - O Mestre de reza
Tudo
que ultimamente se passara em casa de D. Maria havia posto a andar à roda a
cabeça de José Manuel; conheceu que tinha ali inimigo, fosse quem fosse, pois
que aquilo não passava certamente de intriga que lhe tinham armado. Restava-lhe
porém saber quem seria esse inimigo; e por mais que desse voltas ao miolo não
atinava com ele. Pelo gênero da intriga conheceu que a causa do que lhe faziam
era seguramente a sua pretensão a respeito de Luisinha, que sem dúvida tinha
sido percebida; começou a suspeitar que tinha de haver-se com um rival. Na roda
que freqüentava a casa de D. Maria ninguém via que lhe parecesse poder estar
nesse caso: passou-lhe muitas vezes pela lembrança o moço Leonardo; porém
achava-o incapaz de se meter nessas coisas.
Assim
são os velhacos!! Quantas vezes estão tocando o inimigo com as mãos, e não o
vêem, e não o sentem!
Partisse
porém donde partisse o golpe que o ferira, o caso é que fora dado certeiro, e a
duas mãos.
D.
Maria, extremosa em suas afeições, como em seus ódios, consentiria com imensa
dificuldade na reabilitação de José Manuel; entretanto ele não esfriou por
isso, e pôs mãos à obra. Por uma singularidade, assim como Leonardo tinha
achado na comadre uma protetora à sua causa, também José Manuel achou um
procurador para a sua.
Vamos
já dizer aos leitores quem era o procurador de José Manuel.
Havia
no tempo em que se passam estas cenas instituições muito curiosas no Rio de
Janeiro; algumas eram notáveis por seu fim, outras por seus meios. Entre essas
uma havia de que ainda em nossa infância tivemos ocasião de ver alguns
destroços, era a instituição dos mestres-de-reza.
O
mestre-de-reza era tão acatado e venerado naquele tempo como o próprio mestre
de escola; além do respeito ordinariamente tributado aos preceptores, dava-se
uma circunstância muito notável, e vem a ser que os mestres-de-reza eram sempre
velhos e cegos. Não eram em grande número, por isso mesmo viviam portanto em
grande atividade, e ganhavam sofrivelmente. Andavam pelas casas a ensinar a
rezar aos filhos, crias e escravos de ambos os sexos.
O
mestre-de-reza não tinha traje especial: vestia-se como todos, e só o que o
distinguia era ver-se-lhe constantemente fora de um dos bolsos o cabo de uma tremenda
palmatória, de que andava armado, compêndio único por onde ensinava a seus
discípulos.
Assim
que entravam para a lição reunia em um semicírculo diante de si todos os
discípulos; puxava do bolso a tremenda férula, colocava-a no chão, encostada à
cadeira onde se achava sentado, e começava o trabalho.
Fazia o
mestre em voz alta o pelo-sinal, pausada e vagarosamente, no que o acompanhavam
em coro todos os discípulos. Quanto a fazerem os sinais era ele quase sempre
logrado, como facilmente se concebe, porém pelo que toca à repetição das
palavras, tão prático estava que, por maior que fosse o número dos discípulos,
percebia no meio do coro que havia faltado esta ou aquela voz, quando alguém se
atrevia a deixar-se ficar calado. Suspendia-se então imediatamente o trabalho,
e o culpado era obsequiado com uma remessa de bolos, que de modo nenhum
desmentiam a reputação de que goza a pancada de cego. Feito isto, recomeçava o
trabalho, voltando-se sempre ao princípio de cada vez que havia um erro ou
falta. Acabado o pelo-sinal, que com as diversas interrupções que
ordinariamente tinha gastava boa meia hora, repetia o mestre sozinho sempre e
em voz alta e compassada a oração que lhe aprazia; repetiam depois o mesmo os
discípulos do primeiro ao último, de um modo que nem era falado nem cantado; já
se sabe, interrompidos a cada erro pela competente remessa de bolos. Depois de
uma oração seguia-se outra, e assim por diante, até terminar a lição pela
ladainha cantada.
Ao sair
recebia o mestre uma pequena espórtula do dono da casa.
D.
Maria, tendo em sua casa um número não pequeno de crias, não se dispensava de
ter, como todos que estavam em suas circunstâncias, o seu mestre-de-reza. Era
este um cego muito afamado pelo seu excessivo rigor para com os discípulos, e
por conseqüência um dos mais procurados; nesse tempo exigia-se antes de tudo
essa qualidade. Tinha também outro mérito: corria a seu respeito a fama de bom
arranjador de casamentos.
Eis aí
o procurador de José Manuel.
José
Manuel já antes o tinha posto de mão, e agora que se viu em perigo recorreu a
ele; expôs-lhe o caso, comunicou-lhe suas intenções, e pediu-lhe a sua
cooperação. Fez-lhe sentir sobretudo que havia um rival a combater, e muito
temível, pois que não era conhecido. O velho começou então a tomar as mais
minuciosas informações, e depois de calcular por algum tempo disse:
— Já
sei com quem me tenho que haver...
— Então
com quem é?... acudiu José Manuel apressado.
— Vá
descansado, não se importe com o resto.
— Mas,
homem, olhe que é preciso muito cuidado; porque, quem quer que é, é fino como
os trezentos...
— Ora
qual... histórias... desses arranjos entendo eu dormindo, e vejo nisso, sendo
cego, melhor do que muitos com seus olhos perfeitos.
— É uma
coisa que me põe à roda o miolo não poder descobrir quem se intromete nos meus
negócios... olhe que a tal entrega do furto da moça foi de mestre.
— Eu
também sou mestre, e veremos quem ensina melhor.
Ficaram
os dois nisto; e o cego pôs mãos à obra.
Devemos
prevenir o leitor que a causa em semelhantes mãos, se não se podia dizer
decididamente ganha, pelo menos ficava arriscada; e o que vale é que do outro
lado estava a comadre.
O velho
começou o seu trabalho em regra; logo na primeira noite que foi dar lição à casa
de D. Maria começou por fazer cair a conversa a respeito do roubo da moça, e
deu a entender que sabia do caso e conhecia perfeitamente quem tinha sido o
autor dele. D. Maria disse também que sabia quem era, e que até o conhecia
muito. O velho sorriu-se, deixando apenas escapar em tom de dúvida um
significativo-Qual...-D. Maria franziu o sobrolho, levantou os óculos e
exclamou:
— Pois
então pensa que eu ando atrasada nestas coisas?... Ora deixe-se... Sei quem
foi, e sei muito e muito bem. É um pedaço de mariola com cara de sonso, que só
me há de morar em casa se eu algum dia for carcereira.
— É
isso tudo, mas a Sra. D. Maria não conhece o homem, digo-lhe eu, que também
ando ao fato deste negócio todo.
— Bem
sei, bem sei... mas olhe que eu também soube de parte muito certa... e não há
nada mais fácil do que ver quem está enganado... Diga lá o senhor quem foi.
— Oh!
não! isso nunca, exclamou apressadamente o velho pondo-se em pé; nada, eu cá
não quebro segredo de ninguém.
D.
Maria remexeu-se toda de aflição; e por mais que instasse nada pôde arrancar do
velho que, para fazer melhor o seu papel, foi-se logo retirando, dando assim a
entender que queria cortar a conversa naquele ponto.
Quando
mais não tivesse conseguido, o velho tinha ao menos lançado a dúvida no
espírito de D. Maria a respeito do fato, que era para ela a pedra de escândalo
contra José Manuel.
V - Transtôrno
Enquanto
todas estas coisas se passavam, um triste sucesso, e da mais alta importância,
veio alterar a vida de Leonardo, ou transtorná-la mesmo: o compadre caiu
gravemente enfermo. A princípio a moléstia pareceu coisa de pouca monta, e a
comadre, que foi a primeira chamada, pretendeu que todo o incômodo
desapareceria dentro de dois dias, tomando o doente alguns banhos de alecrim.
Nada porém se conseguiu com a receita; o mal continuou. Recorreram então a um
boticário conhecido da comadre, que juntara ao seu mister, não sabemos se com
permissão das leis ou sem ela, o mister de médico.
Era um
velho, filho do Porto, que aqui se viera estabelecer há muitos anos, e que
ajuntara no oficio boas patacas. Apenas chegou e viu o doente declarou que em
poucos dias o poria de pé; bastava que ele tomasse umas pílulas que lhe ia
mandar da sua botica: eram um santo remédio, segundo dizia, mas custavam um
bocadinho caro, porém valia a vida de um homem. A comadre quando ouviu falar em
pílulas franziu a testa.
—
Pírolas, disse consigo; então o negócio é sério; e eu, que tenho má fé com
pírolas; ainda não vi uma só pessoa que as tomasse que escapasse.
E
avermelharam-se-lhe imediatamente os olhos.
O
boticário retirou-se levando consigo o Leonardo, que trouxe as pílulas. A
comadre, olhando para elas, abanou a cabeça.
— Ora,
disse, eu pensei que ele lhe mandasse dar alguns banhos; cá por mim com alecrim
havia de pô-lo bom.
A
comadre tinha razão até certo ponto, pois que no fim de três dias, depois de
feitos todos os preparos religiosos, o compadre deu a alma a Deus.
D.
Maria tinha sido chamada nesse mesmo dia, e compareceu com Luisinha e com todo
o seu batalhão de crias; tinham vindo também algumas outras pessoas da
vizinhança.
Estavam
todos sentados em um grande canapé, na varanda, e conversavam muito entretidos
sobre os objetos mais diversos; algumas achavam mesmo na conversação motivo
para boas risadas; de repente abriu-se a porta do quarto, e a comadre saiu de
dentro com o lenço nos olhos, soluçando desabridamente e repetindo em altos
gritos:
— Bem
dizia eu que tinha pouca fé nas pírolas; está para ser o primeiro que eu as
veja tomar e que escape... Coitado do compadre... tão boa criatura... nunca me
constou que fizesse mal a ninguém...
Estas
palavras da comadre foram o sinal de rebate dado à dor dos que se achavam
presentes; desatou tudo a chorar, e cada qual o mais alto que podia. O Leonardo
sofreu um grande choque, e no meio do seu atordoamento encolheu-se em cima do
canapé com a cabeça sobre os joelhos, chegando-se, naturalmente sem o querer,
porque a dor o perturbava, o mais perto possível de Luisinha. Continuaram os
mais no seu coro de pranto dirigidos pela comadre; mas não se contentavam só
com o pranto, soltavam também algumas vezes exclamações em honra do defunto.
—
Sempre foi muito bom vizinho, nunca tive escandalos dele, dizia uma.
Era a
vizinha que augurava mau fim ao Leonardo, e com quem o compadre brigara por
este motivo umas poucas de vezes.
— Boa
alma, dizia D. Maria, boa alma; havia de ser como ele quem quisesse ter boa
alma.
— Eu
que lidei com ele, dizia a comadre, é que sei o que ele valia; era uma alma de
santo num corpo de pecador.
— Bom
amigo...
— E
muito temente a Deus...
Prolongada
esta cena por algum tempo, despediram-se algumas pessoas, outras ficaram ainda.
Foi serenando o pranto, e daí a pouco D. Maria, enxugando ainda os olhos,
explicava detalhadamente a uma outra senhora que se achava junto dela a
história genealógica de cada uma de suas crias que se achavam presentes.
Finalmente
retiraram-se todos, exceto D. Maria, a sua gente e a comadre, que estava desde
que o compadre adoecera tomando conta da casa.
Aproximou-se
a noite; acenderam-se velas junto do defunto; fizeram-se todos os mais arranjos
do costume.
D.
Maria e a comadre começaram a conversar, porém baixinho.
—
Então, senhora, principiou D. Maria, este homem não havia morrer assim sem ter
feito seu testamento; pois ele não havia de querer deixar no mundo o afilhado
ao desamparo para os ausentes se gozarem do que a ele lhe custou tanto
trabalho.
— A
mim, respondeu a comadre, nunca me falou em semelhante coisa; mas enfim, como
isso são lá negócios de segredo... talvez.
— Seria
bom procurar-se; talvez em alguma gaveta por aí se ache; é impossível que o
defunto não dispusesse sua vida; bem vezes lhe aconselhei eu semelhante coisa.
— Tem
razão, D. Maria, eu acho também que deve haver alguma coisa.
E foram
as duas tratar de procurar o testamento nas gavetas de uma grande cômoda que
havia no quarto do defunto. Enquanto nisso se ocupavam, Luisinha e Leonardo
conversavam, ou antes cochichavam, como se diz vulgarmente. O que eles se
diziam não posso dizê-lo ao leitor, porque o não sei; sem dúvida a rapariga
consolava o rapaz da perda que acabava de sofrer na pessoa do seu amado
padrinho.
Finalmente
as duas acharam com efeito um testamento, e ficaram com isso muito satisfeitas.
Voltaram
à varanda e surpreenderam os dois no melhor da sua conversa. A comadre vendo-os
sorriu-se, e D. Maria, fazendo sem dúvida a respeito do que estavam eles
falando o mesmo juízo que nós, disse enternecida:
— Ela
tem muito bom coração!
— E o
dele não é pior, respondeu a comadre.
E
acrescentou com intenção:
—
Estava um bom casal.
— Oh!
senhora, disse D. Maria com ingenuidade, deixe a menina, que ainda é muito
cedo...
—
Também não digo já, mas a seu tempo.
D.
Maria sorriu-se com um sorriso de que a comadre não desgostou. Mudaram de
conversa.
Passou-se
a noite; no outro dia saiu o enterro com todas as formalidades do estilo.
Depois disso tratou-se de resolver uma importante questão: para a companhia de
quem iria o Leonardo? A abertura do testamento feita nesse mesmo dia resolveu a
questão. O compadre havia instituído a Leonardo por seu universal herdeiro. A
comadre informou de semelhante coisa ao Leonardo-Pataca, e este apresentou-se
para tomar conta de seu filho. Não pareceu o rapaz muito satisfeito com a
graça: não sei como veio-lhe à idéia aquele terrível pontapé que o fizera fugir
de casa; além disso raríssimas vezes vira depois disso a seu pai, e estava
completamente desacostumado dele. Não havia porém outro remédio; foi preciso
obedecer e acompanhá-lo para casa, onde encontrou sua pequena irmã, e quem a
pusera no mundo.
O
Leonardo-Pataca começou a cuidar no testamento como homem entendido na matéria,
e em pouco tempo deu volta a tudo aquilo.
Cumpre
notar que se em vida do compadre corriam boatos que pareciam exagerados a
respeito do que ele possuía, quando morreu pôde verse que esses boatos tinham
ainda ficado muito aquém da verdade, pois deixara ele um bom par de mil
cruzados em espécie. Entregues alguns legados de pouca monta, etc. tudo o mais
veio a cair nas mãos do Leonardo-Pataca como herança de seu filho.
Nos
primeiros dias tudo foram flores por casa de Leonardo-Pataca, ainda que, para
falar a verdade, desde a primeira vista não simpatizara muito o moço Leonardo
com a cara do objeto dos novos e últimos cuidados de seu pai.
A
comadre assentou que devia substituir ao compadre no amor pelo afilhado, e
determinou-se a vir morar com ele em casa de Leonardo-Pataca; assim ficava
também reunida à sua filha, e à sua neta. O Leonardo-Pataca, que era
condescendente, esteve pelo caso, e reuniu-se desse modo à família toda.
Tudo
foram flores a princípio, como dissemos; o moço Leonardo e a comadre
continuaram as suas visitas por casa de D. Maria; e digamo-lo já, o rapaz e a
rapariga iam pondo as mangas de fora; verdade seja que José Manuel trabalhava
ajudado do seu cego mestre-de-reza, e não perdia também as esperanças.
Pouco
tempo durou o sossego em casa de Leonardo-Pataca; Chiquinha (tal era o nome da
filha da comadre) começou a embirrar com o seu filho adotivo; este que, como
dissemos, não simpatizara muito com ela, começou uma balbúrdia de todos os
pecados. Todos os dias travavam-se por qualquer ponta, e lá ia tudo pelos ares.
O Leonardo-Pataca e a comadre faziam o papel de conciliadores, mas os dois eram
ambos altanadíssimos, e muitas vezes o conciliador saía mal servido, porque
aquele a quem não dava razão se revoltava contra ele. Se era por exemplo a
comadre, e dava razão a Leonardo, acudia a filha queixando-se de que sua mãe a
abandonava para tomar o partido do afilhado: se pelo contrário dava razão a
Chiquinha, acudia o Leonardo queixando-se de que desgraçado era o filho sem
mãe, pois nunca achava quem lhe desse razão. Outro tanto acontecia ao
Leonardo-Pataca quando se metia a apaziguar os dois.
Os
negócios assim iam mal, pois mais dia menos dia haveria grande barulho em casa.
VI - Pior transtôrno
Um dia
o Leonardo recolhera-se para casa muito mortificado, pois que tendo ido visitar
D. Maria estivera com ela longo tempo sem que Luisinha lhe tivesse aparecido;
de maneira que lhe fora forçoso no fim de algumas horas retirar-se sem vê-la.
Quem já teve um namoro, por menos sério que seja, e que levou um logro destes;
quem se viu obrigado a aturar por muito tempo a conversação de uma velha, tendo
de concordar com ela em tudo e por tudo para não incorrer-lhe no desagrado, só
com o fim de trocar com alguém um olhar rápido, um sorriso disfarçado ou outra
coisa assim, e que por fim de contas nem isso mesmo conseguiu, há de concordar
que o Leonardo tinha toda a razão de estar ardendo com o que lhe sucedera, e o
desculparia de qualquer arrebatamento que na ocasião o acometesse. Há espíritos
porém de tal maneira serrazinas, que se divertem em aumentar a irritação
alheia, e que quanto mais enfiado pilham um infeliz, tanto mais gostam de
atirar-lhe alfinetadas.
Chiquinha,
a amante de Leonardo-Pataca, era de um gênio assim; e depois que moravam todos
juntos, não perdia uma só dessas ocasiões em virtude de antipatia que tinha ao
rapaz, para fustigar de língua ao pobre Leonardo. Este, de um gênio colérico e
pouco acostumado a ser contrariado, ia às nuvens com semelhante coisa; e se em
ocasiões ordinárias em que estava de bom humor eram constantes as brigas em
casa, calcule-se o que não faria nas ocasiões como naquela a que nos referimos,
que estivesse cheio de razões, e então por que motivo! Vendo Chiquinha entrar o
Leonardo pela porta adentro de cara amarrada e sem dar-Deus te salve-a ninguém,
sorriu-se com malignidade e concertou a garganta, dizendo entre dentes:
—
Melhor cara traga o dia de amanhã.
Leonardo,
que percebera o que aquilo queria dizer, fez um gesto arrebatado sentando-se em
uma cadeira, porém com tanta infelicidade, que atirou ao chão uma almofada de
renda que se achava junto dele: com a queda rebentaram-se os fios, e uma porção
de bilros rolou pela casa. Por maior infelicidade ainda a almofada era de
Chiquinha, e Chiquinha tinha grandes ciúmes pela sua almofada. Levantou-se ela
do seu lugar já fervendo de raiva; pôs as mãos nas cadeiras, e balançando a
cabeça à medida que falava, exclamou:
— Ora
dá-se um desaforo de tamanha grandeza?... vir da rua com os seus azeites, todo
esfogueteado, e de propósito, e muito de propósito, fazer-me o que estão vendo,
só para me desfeitear, como se fosse aqui um dono de casa que pudesse
desfeitear a qualquer sem quê nem para quê!...
Leonardo
ouviu tudo sem interromper, procurando sopear a raiva; e enquanto Chiquinha
tomava fôlego, respondeu com voz trêmula e entre cortada:
— Não
se meta com a minha vida, porque eu também não me importo com a sua; se estou com
os azeites...
— Ah!
bom côvado e meio! atalhou Chiquinha, ah! bordo da nau!... ah! major
Vidigal!...
— Já
lhe disse...
— Qual
já lhe disse, nem meio já lhe disse!... namorado sem ventura...
Estas
palavras fizeram o efeito de uma faísca em um barril de pólvora. Avançou o
Leonardo para Chiquinha com os punhos cerrados e espumando de cólera.
— Se me
diz mais meia palavra... perco-lhe o respeito... eu nunca lhe dei confiança; e
apesar de ser a senhora lá o quer que é de meu pai... perco-lhe o respeito...
— Você
sempre mostra que tem raça de saloio, disse Chiquinha empertigando-se e sem
recuar um passo.
O
Leonardo-Pataca, que estava no interior da casa, acudiu apressado ao barulho, e
veio achar os dois ainda em atitude hostil; vendo o filho quase não quase a
desfeitear o adorado objeto de seus derradeiros afetos, não trepidou em
desbaratar com ele.
—
Pedaço de mariola... pensas que isto aqui é como a casa de teu padrinho donde
saíste... quero aqui muito respeito a todos... do contrário... se já uma vez te
dei um pontapé que te fiz andar muitos anos por fora, dou-te agora outro que te
ponha longe daqui para sempre...
— Nunca
pensei, interrompeu Chiquinha dirigindo-se ao Leonardo-Pataca, querendo afear
mais o caso; nunca pensei que na sua companhia se viesse a sofrer semelhante
coisa...
— Não
faças caso, menina, isto é um pedaço de mariola a quem hei de ensinar; por
causa de ninguém dou-lhe eu uma rodada, se não por tua causa...
— Por
causa dela!... atalhou o rapaz; tinha que ver! há de lhe dar bom pago; tão bom
como a cigana...
— Mas
nunca lhe hei de dar, acudiu Chiquinha enfurecida com este insulto; nunca lhe
hei de dar o que lhe deu tua mãe...
Com
isto o Leonardo-Pataca descoroçoou completamente, que dilúvio de amargas
recordações não fizeram tão poucas palavras cair sobre sua cabeça!
—
Espera, maltrapilho, espera que te ensino, exclamou vermelho de cólera; espera
que te ensino...
E
entrando repentinamente no quarto da sala, saiu de lá armado com o espadim do
uniforme, e investiu para o filho. Convém dizer que o espadim ia embainhado.
— Não
se ponha a perder por minha causa, exclamou Chiquinha agarrando-o pela camisola
de chita com que ele estava vestido.
Era
inútil porém o medo de Chiquinha, porque o rapaz, vendo que o negócio ia-se
tornando feio, tendo-lhe ficado um terror instintivo do pai depois daquele
pontapé que nunca lhe saíra da memória, tinha-se posto ao fresco na rua,
fechando a rótula sobre si.
— Oh!
maroto, disse ainda o Leonardo-Pataca, que te havia desancar...
O
Leonardo que fugia por um lado e a comadre que entrava por outro, pois estivera
ausente durante toda a cena. Apenas foi largando a mantilha e viu os dois
atores que tinham ficado em cena ainda nas posições do último quadro, tratou de
indagar qual fora o drama que se acabava de representar.
— Ora
foi uma das costumadas do afilhado dos seus amores, respondeu Chiquinha, ainda
não sossegada.
— Porém
ia-lhe saindo caro desta vez, acudiu Leonardo-Pataca.
— Pois
deveras, atalhou a comadre indignada; pois deveras o compadre estava armado de
espada para dar no rapaz?
— Olá!
que levava tão duro como osso!
— Mas
então por quê? quantas mortes fez ele de uma vez? onde é que pôs fogo na casa?
Triste coisa é um filho sem mãe!... Aposto que se eu cá estivesse nada havia de
suceder!...
— Sim,
respondeu Chiquinha, porque logo havia de tomar as dores por ele, segundo é seu
costume. Aí está; muitos filhos têm mãe, e entretanto elas servem-lhes para
isto: tomam as dores por outros, e deixam-nos de banda.
— Qual!
histórias! é que tudo leva seu bocado de mau caminho.
— Oh!
senhora! atalhou Leonardo-Pataca, se isto vai assim, não há um momento de
sossego nesta casa; acabada uma, começa outra; o que não há de dizer esta
vizinhança? Olhem que isto aqui é casa de um Oficial de Justiça.
— Mas
enfim, disse a comadre, onde está o rapaz? onde é que o enterraram?
— Saiu
por ali desencabrestado, e tomara que cá não volte.
— Ora
está bonito! Oh! mas isto não pode ser assim; correrem com o rapaz de casa para
fora!... Ele não é nenhum desgraçado, pois sempre tem o que lhe deixou seu
padrinho.
— Essas
e outras é que o puseram a perder.
— Sim,
metam-lhe fumaça de rico na cabeça, e hão de ver no que dá.
—
Coitado, disse lamentando a comadre, aquele nasceu com má sina.
E
tomando de novo a mantilha, saiu com as lágrimas nos olhos em procura de
Leonardo.
Ao sair
escoravam-na à janela três ou quatro vizinhas.
— Então
o que é que fizeram ao moço?
— Que
foi isso, Sra. comadre?
— Ele
passou por aqui pondo dez léguas por hora.
—
Deixe-me, deixe-me, respondeu a comadre, que isto não acaba bem.