XX - O Fogo no campo
À hora
determinada vieram os dois, padrinho e afilhado, buscar D. Maria e sua família,
segundo haviam tratado: era pouco depois de ave-maria, e já se encontrava pelas
ruas grande multidão de famílias, de ranchos de pessoas que se dirigiam uns
para o Campo e outros para a Lapa, onde, como é sabido, também se festejava o
Divino. Leonardo caminhava parecendo completamente alheio ao que se passava em
roda dele; tropeçava e abalroava nos que encontrava; uma idéia única roía-lhe o
miolo; se lhe perguntassem que idéia era essa, talvez mesmo o não soubesse
dizer. Chegaram enfim mais depressa do que supusera o barbeiro, porque o
Leonardo parecia naquela noite ter asas nos pés, tão rapidamente caminhara e
obrigara o padrinho a caminhar com ele.
D.
Maria estava já pronta e os esperava com algumas outras pessoas com quem também
tratara ir de companhia, e em um momento puseram-se a caminho. Formavam todos
um grande rancho acompanhado por não pequeno número de negras e negrinhas
escravas e crias de D. Maria, que levavam cestos com comida e esteiras. D.
Maria deu o braço ao compadre, e o mesmo fizeram as outras senhoras aos demais
cavalheiros. Por gracejo D. Maria fez com que o Leonardo desse o braço a sua
sobrinha; ele aceitou a incumbência com gosto, mas não sem ficar alguma coisa
atrapalhado, e deu na pobre menina alguns encontrões, embaraçado por não saber
se lhe daria a esquerda ou a direita; finalmente acertou, e deu-lhe a esquerda,
ficando ele do lado da parede. Ofereceu-lhe o braço, porém Luisinha (tratemo-la
desde já por seu nome) pareceu não entender o oferecimento ou não dar fé dele.
Contentou-se pois o Leonardo em caminhar ao seu lado.
Assim
chegaram ao Campo, que estava cheio de gente. Nesse tempo ainda se não usavam
as barracas de bonecos, de sortes, de raridades e de teatros, como hoje:
usavam-se apenas algumas que serviam de casas de pasto. Depois de passarem por
diante delas, D. Maria e a sua gente se dirigiram para o Império. Luisinha
estava atônita no meio de todo aquele movimento, diante daquele espetáculo que
via pela primeira vez, pois era verdade o que dissera D. Maria: no tempo de seu
pai raras ou nenhumas vezes saía de casa. Assim, sem o saber, parava algumas
vezes embasbacada a olhar para qualquer coisa, e o Leonardo muitas vezes via-se
forçado a puxar-lhe pelo braço para obrigá-la a prosseguir.
Chegaram
ao Império, que era nesse tempo quase defronte da igreja de Sant’Ana, no lugar
agora ocupado por uma das extremidades do quartel de Fuzileiros. Todos sabem o
que é o Império, e por isso o não descreveremos. Lá estava na sua cadeira o
imperador, que o leitor já viu passeando pela rua no meio de seus foliões.
Luisinha, vendo-o, pôs-se nas pontas dos pés, esticou o pescoço, e encarou-o
por muito tempo estática e absorta. O Leonardo vendo isto sentiu um não sei quê
por dentro contra o menino que atraía a atenção de Luisinha, e passou-lhe pela
mente o desejo louco de voltar atrás seis ou sete anos de sua existência, e ser
também imperador do Divino.
Nas
escadas do Império fazia-se leilão como ainda hoje, divertindo-se muito o povo
ali apinhado com as graçolas pesadas do pregoeiro. Estiveram aí algum tempo
entretidos os nossos conhecidos, e foram depois procurar no meio do Campo um
lugar onde pudessem fazer alto para cear e ver o fogo. Acharam-no, não sem
alguma dificuldade, pois que muitas outras famílias se haviam adiantado e
tomado as melhores posições. Grande parte do Campo estava já coberta daqueles
ranchos sentados em esteiras, ceando, conversando, cantando modinhas ao som de
guitarra e viola. Fazia gosto passear por entre eles, e ouvir aqui a anedota
que contava um conviva de bom gosto, ali a modinha cantada naquele tom
apaixonadamente poético que faz uma das nossas raras originalidades, apreciar
aquele movimento e animação que geralmente reinavam. Era essa a parte
(permitam-nos a expressão) verdadeiramente divertida do divertimento.
Os
nossos conhecidos sentaram-se com os outros em roda de suas esteiras, e
começaram a cear. Leonardo, apesar das emoções novas que experimentava desde
certo tempo, e principalmente naquela noite, nem por isso perdeu o apetite, e
esqueceu-se por algum tempo de sua companheira para cuidar unicamente do seu
prato. No melhor da ceia foram interrompidos pelo ronco de um foguete que
subia: era o fogo que começava. Luisinha estremeceu, ergueu a cabeça, e pela
primeira vez deixou ouvir sua voz, exclamando extasiada ao ver cair as lágrimas
inflamadas do foguete que aclaravam todo o Campo:
— Olhe,
olhe, olhe!...
Alguns
dos circunstantes desataram a rir; o Leonardo deu o cavaco com aquelas risadas,
e as achou muito fora de tempo. Felizmente Luisinha estava por tal maneira
extasiada, que não deu atenção a coisa alguma, e enquanto duraram os foguetes
não tirou os olhos do céu.
Aos
foguetes seguiram-se, como sabem os leitores, as rodas. Nessa ocasião o êxtase
da menina passou a frenesi; aplaudia com entusiasmo, erguia o pescoço por cima
das cabeças da multidão, tinha desejos de ter duas ou três varas de comprido
para ver tudo a seu gosto. Sem saber como, unia-se ao Leonardo, firmava-se com
as mãos sobre os seus ombros para se poder sustentar mais tempo nas pontas dos
pés, falava-lhe e comunicava-lhe a sua admiração! O contentamento acabou por
familiarizá-la completamente com ele. Quando se atacou a lua, a sua admiração
foi tão grande que, querendo firmar-se nos ombros de Leonardo, deu-lhe quase um
abraço pelas costas. O Leonardo estremeceu por dentro, e pediu ao céu que a lua
fosse eterna; virando o rosto, viu sobre seus ombros aquela cabeça de menina
iluminada pelo clarão pálido do misto que ardia, e ficou também por sua vez
extasiado; pareceu-lhe então o rosto mais lindo que jamais vira, e admirou-se
profundamente de que tivesse podido alguma vez rir-se dela e achá-la feia.
Acabado
o fogo, tudo se pôs em andamento, levantaram-se as esteiras, espalhou-se o
povo. D. Maria e sua gente puseram-se também em marcha para casa, guardando a
mesma disposição com que tinham vindo. Desta vez porém Luisinha e Leonardo, não
é dizer que vieram de braço, como este último tinha querido quando foram para o
Campo, foram mais adiante do que isso, vieram de mãos dadas muito familiar e
ingenuamente. Este ingenuamente não sabemos se se poderá com razão aplicar ao
Leonardo. Conversaram por todo o caminho como se fossem dois conhecidos muito
antigos, dois irmãos de infância, e tão distraídos iam que passaram à porta da
casa sem parar, e já estavam muito adiante quando os sios de D. Maria os
fizeram voltar. A despedida foi alegre para todos e tristíssima para os dois.
Entretanto, como sempre que se despedia, o compadre prometeu voltar, e isso
serviu de algum alívio, especialmente ao Leonardo, que tomara tudo o que se
acabava de passar mais em grosso.
XXI - Contrariedades
Cremos,
pelo que temos referido, que para nenhum dos leitores será ainda duvidoso que
chegara ao Leonardo a hora de pagar o tributo de que ninguém escapa neste
mundo, ainda que para alguns seja ele fácil e leve, e para outros pesado e
custoso: o rapaz amava. É escusado dizer a quem.
Como é
que a sobrinha de D. Maria, que a principio tanto desafiara a sua hilaridade
por esquisita e feia, lhe viera depois a inspirar amor, é isso segredo do
coração do rapaz que nos não é dado penetrar: o fato é que ele a amava, e isto
nos basta. Convém lembrar que se pela sorte de um pai se pode augurar a de um
filho, o Leonardo em matéria de amor não prometia decerto grande fortuna. E com
efeito, logo depois da noite do fogo no Campo, em que as coisas começavam a
tomar vulto, principiou a roda a desandar-lhe em quase todos os sentidos.
Luisinha, uma vez extinto o entusiasmo que, suscitado pelas emoções que
experimentara na noite do fogo, a acordara da sua apatia, voltara de novo ao
seu antigo estado: e, como de tudo esquecida, na primeira visita que o barbeiro
e o Leonardo fizeram a D. Maria depois desses acontecimentos, nem para este
último levantara os olhos; conservara-se de cabeça baixa e olhos no chão.
Ora,
para quem, como o Leonardo, levara depois daquela feliz noite a construir esses
castelos de extravagante arquitetura com que sonhamos nos dias felizes do
primeiro amor, isso foi já uma contrariedade sem nome; quando se viu assim
tratado quase desatou a chorar; só o conteve o receio de não poder depois
justificar o seu pranto com qualquer pretexto. A este primeiro movimento
sucedeu-lhe um momento de calma, e depois cresceu-lhe por dentro uma chama de
raiva, e esteve a ponto de chegar-se para a menina, desenterrar-lhe o queixo do
peito, e chamá-la quatro ou cinco vezes de estúrdia e feia. Afinal cismou um
pouco e murmurou um-que me importa!-que pretendia ser desprezo, e que não era
senão despeito.
À
primeira visita depois da noite do fogo seguiram-se muitas outras em que as
coisas se passaram pouco mais ou menos do mesmo modo.
Um novo
sucesso veio porém um dia dar outra cor e andamento aos sucessos; foi o
encontro dos dois, padrinho e afilhado, em casa de D. Maria com uma personagem
estranha a ambos. Era um conhecido de D. Maria que havia há pouco chegado de
uma viagem à Bahia. Figure o leitor um homenzinho nascido em dias de maio, de
pouco mais ou menos trinta e cinco anos de idade, magro, narigudo, de olhar
vivo e penetrante, vestido de calção e meias pretas, sapatos de fivela, capote
e chapéu armado, e terá idéia do físico do Sr. José Manuel, o recém-chegado. Quanto
ao moral, se os sinais físicos não falham, quem olhasse para a cara do Sr. José
Manuel assinava-lhe logo um lugar distinto na família dos velhacos de quilate.
E quem tal fizesse não se enganava de modo algum; o homem era o que parecia
ser. Se tinha alguma virtude, era a de não enganar pela cara. Entre todas as
suas qualidades possuía uma que infelizmente caracterizava naquele tempo, e
talvez que ainda hoje, positiva e claramente o fluminense, era a maledicência.
José Manuel era uma crônica viva, porém crônica escandalosa, não só de todos os
seus conhecidos e amigos, e das famílias destes, mas ainda dos conhecidos e
amigos dos seus amigos e conhecidos e de suas famílias.
Debaixo
do mais fútil pretexto tomava a palavra, e enfiava um discurso de duas horas
sobre a vida de fulano ou de beltrano.
Por
exemplo, conversando-se sobre qualquer objeto acontecia falar-se em D.
Francisca Brites.
—
Conheci muito D. Francisca Brites, atalhava imediatamente o incansável falador;
era mulher de João Brites, filho bastardo do capitão Sanches; em tempo de
casada diziam suas coisas dela, e a culpa tinha Pedro d’Aguiar, sujeito que não
gozava de boa nota, principalmente depois que se meteu aí n’alhada de um
testamento falso que atribuíram ao Lourenço da Cunha que, em abono da verdade,
era bem capaz disso, pois era sujeito de mãos limpas. Foi até ele quem furtou
de casa a filha de D. Úrsula, que foi moça de Francisco Borges, a quem deixou
para seguir a Pedro Antunes, que por sinal lhe deu bem má vida. E também ela
não devia esperar outra coisa dele, porque homem que se atreveu a fazer o que
ele fez a três filhas que tinha, é capaz de tudo. Chegou a pôr pela porta fora
com um pau as pobres moças depois de as ter espancado desapiedadamente.
Entretanto uma delas foi bem feliz: achou aí um capitão de navio que tratou
dela; as outras não, coitadas...
—
Infelizes por quê? acudia por acaso algum dos circunstantes; elas casaram...
—
Casaram, sim, é verdade, retorquia ele tomando novo fôlego, porém com que
marido? Um tomava moafas de todo o tamanho, o outro gastou tudo quanto tinha no
jogo. Conheci-os a ambos muito bem...
E por
aí prosseguia e internava-se a perder de vista pela geração toda dos dois
maridos, e era capaz de gastar nesse trabalho horas inteiras.
Desde o
primeiro dia que o padrinho e o afilhado encontraram-se com José Manuel em casa
de D. Maria, nenhum dos dois lhe ficou por certo querendo muito bem, e este não
querer bem foi crescendo de dia em dia, especialmente pela parte do Leonardo. E
o caso é que ele tinha razão; foi o instinto que o avisou de que ali havia um
inimigo. Tão exagerados eram os afagos de José Manuel para com D. Maria, e
tanto repartia ele esses afagos com Luisinha, que bem claro se deixou ver que
havia neles fim oculto. Afinal o negócio aclarou-se. D. Maria era, como
dissemos, rica e velha; não tinha outro herdeiro senão sua sobrinha; se
morresse D. Maria, Luisinha ficaria arranjada, e como era muito criança e
mostrava ser muito simples, era uma esposa conveniente a qualquer esperto que
se achasse, como José Manuel, em disponibilidade; este pois fazia a corte à
velha com intenções na sobrinha. Quando Leonardo, esclarecido pela sagacidade
do padrinho, entrou no conhecimento destas coisas, ficou fora de si, e a idéia
mais pacífica que teve foi que podia mui bem, quando fosse visitar D. Maria,
munir-se de uma das navalhas mais afiadas de seu padrinho, e na primeira
ocasião oportuna fazer de um só golpe em dois o pescoço de José Manuel. Porém
teve de aplacar-se e ceder às admoestações do padrinho, que sabia de todos os
seus sentimentos, e que os aprovava.
XXII - Aliança
Se
Leonardo se afligira do modo que acabamos de ver pelo contratempo que lhe
sobreviera com o aparecimento e com as disposições de José Manuel, o padrinho
não se incomodava menos com isso: vendo que o afilhado se fazia homem, e tendo
decididamente abortado aquele seu gigantesco plano de mandá-lo a Coimbra,
enxergava na sobrinha de D. Maria um meio de vida excelente para o seu rapaz.
Verdade é que se lembrava de que D. Maria podia com muito justa razão, se as
coisas continuassem do mesmo modo, quando chegasse o momento do desfecho das
coisas, recusar sua sobrinha a um rapaz que não se ocupava em coisa alguma, e
que não tinha futuro. Por este motivo muitas vezes instava com o afilhado para
que ensaiasse na cara de algum freguês tolo entrar no ofício; porém este
recusava-se obstinadamente. A comadre, quando alguma vez aparecia por casa do
barbeiro, não cessava de insistir no seu antigo projeto de fazer o rapaz entrar
para a Conceição. Uma ocasião em que nisso falou diante dele, custou-lhe a
história uma forte sarabanda: o rapaz tomara gosto à vida de vadio, e por
princípio algum queria deixá-la. E se em outras ocasiões estava ele desse
humor, agora depois dos últimos acontecimentos, quando o amor e o ciúme lhe
ocupavam a alma, não queria ouvir falar em semelhantes coisas; acreditava que a
sua melhor ocupação devia consistir em dar cabo do rival que se lhe antepusera.
No meio
de tudo isto pior era que José Manuel parecia adiantar-se cada vez mais; astuto
como era, insinuava-se destramente no animo de D. Maria, e a cativava com
atenções de toda a sorte. O compadre começou a banzar sobre o caso, e um dia
veio-lhe uma idéia: era preciso pôr a comadre ao corrente do que se passava, e
interessá-la no negócio; ela era bem capaz, se quisesse, de arcar com José
Manuel, e pô-lo fora de combate; gozava boa fama de ter jeito para essas
coisas. Com efeito mandou chamar a comadre e expôs-lhe tudo.
— Sim!
respondeu ela ao ouvir a narração; o caso é este? pois está de cor o tal
sujeito: hei de mostrar-lhe para quanto presto. Já hoje mesmo vou visitar a D.
Maria.
Mal
sabia José Manuel que tormenta se levantava contra ele. Há muito percebera ele
que Leonardo e seu padrinho o não podiam tragar, e mesmo que tinham segundas
tenções a respeito de Luisinha, porém nunca lhe passara pela mente que seria
mister lutar com eles. Em breve teve de ver que se enganava. A comadre foi,
como prometera, à casa de D. Maria, e achando lá José Manuel procurou fazer-se
ostensivamente muito sua camarada, ainda que baixinho, e de vez em quando
soltava perto de D. Maria algumas indiretas contra ele.
Quando
José Manuel acabava de contar uma história com todos os detalhes costumados
sobre a vida deste ou daquele, a comadre murmurava, por exemplo:
— Que
língua! safa...
E com
estas e outras ia pondo em relevo, sem parecer que tinha tal intenção, o caráter
do adversário.
Além da
qualidade de maldizente, José Manuel mentia com um descaro como raras vezes se
encontra. D. Maria, amiga de novidades, e além disso muito crédula, comungava
perfeitamente quanta peta lhe queria ele embutir. Uma das suas histórias mais
comuns era a que ele intitulava-O naufrágio dos potes.-Acontecera-lhe na sua
última viagem à Bahia, e ele a contava pelo modo seguinte:
—Estávamos
quase a chegar ao ancoradouro; viajava ao lado do meu navio um enorme peru
carregado unicamente de potes. De repente arma-se um temporal, que parecia vir
o mundo abaixo; o vento era tão forte, que do mar, apesar da escuridão, viam-se
contradançar no espaço as telhas arrancadas da cidade alta. Afinal quando já
parecia tudo sossegado e começava a limpar o tempo, veio uma onda tão forte e
em tal direção, que as duas embarcações esbarraram com toda a força uma contra
a outra. Já muito maltratadas pelo temporal que acabavam de suportar, não
puderam mais resistir, e abriram-se ambas de meio a meio: o navio vazou toda a
sua carga e passageiros, e o peru toda a sua carregação de potes; ficou o mar
coalhado deles, em tão grande quantidade os havia! Os marinheiros e outros
passageiros trataram de agarrar-se a tábuas, caixões e outros objetos para se
salvarem; porém o único que se escapou fui eu, e isso devo à feliz lembrança
que tive; do pedaço do navio em que tinha ficado dei um salto sobre o pote que
boiava mais perto. Com o meu peso o pote mergulhou, e enchendo-se d’água
desapareceu debaixo de meus pés; porém isto não teve lugar antes que eu,
percebendo o que ia acontecer, não saltasse imediatamente deste pote para
outro. A este outro e a todos os mais aconteceu a mesma coisa, porém servi-me
do mesmo meio, e assim, como a força das ondas os impelia para a praia, vim de
pote em pote até à terra sem o menor acidente!"
Como
esta contava José Manuel milhares de histórias.
Foi
também isso um tema de que se serviu a comadre para o desconceituar no ânimo de
D. Maria, sempre, é verdade, muito sorrateiramente.
Veremos
quais foram os resultados que alcançaram o compadre e o Leonardo com a aliança
formada com a comadre contra o concorrente à Luisinha.
XXIII - Declaração
Enquanto
a comadre dispunha seu plano de ataque contra José Manuel, Leonardo ardia em
ciúmes, em raiva, e nada havia que o consolasse em seu desespero, nem mesmo as
promessas de bom resultado que lhe faziam o padrinho e a madrinha. O pobre
rapaz via sempre diante de si a detestável figura de seu rival a
desconcertar-lhe todos os planos, a desvanecer-lhe todas as esperanças. Nas
horas de sossego entregava-se às vezes à construção imaginária de magníficos
castelos, castelos de nuvens, é verdade, porém que lhe pareciam por instantes
os mais sólidos do mundo; de repente surdia-lhe de um canto o terrível José
Manuel com as bochechas inchadas ; e soprando sobre a construção , a arrasava
num volver d’olhos.
Entretanto
o que havia de notável é que Luisinha, causa de tantas tormentas, ignorava
tudo, e a tudo continuava indiferente. Leonardo veio a entender, depois de
muito meditar, que isto constituía um dos principais defeitos de sua posição;
se a comadre e o compadre conseguissem derrotar a José Manuel, e pô-lo em
estado de não poder mais entrar em combate, quem poderia dizer que o triunfo
era completo? Não havia ainda uma segunda campanha a dar contra a indiferença
de Luisinha? Daqui concluiu ele que era mister ir já rompendo fogo por esse
lado; e como lhe pareceu o de mais importância, não quis confiar a nenhum dos
aliados o seu ataque, e decidiu-se a dá-lo em pessoa. Devia começar, como o
sabe de cor e salteado a maioria dos leitores, que é sem dúvida nenhuma muito
entendida na matéria, por uma declaração em forma.
Mas em
amor, assim como em tudo, a primeira saída é o mais difícil. Todas as vezes que
esta idéia vinha à cabeça do pobre rapaz, passava-lhe uma nuvem escura por
diante dos olhos e banhava-se-lhe o corpo em suor. Muitas semanas levou a
compor, a estudar o que havia de dizer a Luisinha quando aparecesse o momento
decisivo. Achava com facilidade milhares de idéias brilhantes; porém mal tinha
assentado em que diria isto ou aquilo, e já isto e aquilo lhe não parecia bom.
Por várias vezes tivera ocasião favorável para desempenhar a sua tarefa, pois
estivera a sós com Luisinha; porém nessas ocasiões nada havia que pudesse
vencer um tremor de pernas que se apoderava dele, e que não lhe permitia
levantar-se do lugar onde estava, e um engasgo que lhe sobrevinha, e que o
impedia de articular uma só palavra. Enfim, depois de muitas lutas consigo
mesmo para vencer o acanhamento, tomou um dia a resolução de acabar com o medo,
e dizer-lhe a primeira coisa que lhe viesse à boca.
Luisinha
estava no vão de uma janela a espiar para a rua pela rótula; Leonardo
aproximou-se tremendo, pé ante pé, parou e ficou imóvel como uma estátua atrás
dela que, entretida para fora, de nada tinha dado fé. Esteve assim por longo
tempo calculando se devia falar em pé ou se devia ajoelhar-se. Depois fez um
movimento como se quisesse tocar no ombro de Luisinha, mas retirou depressa a
mão. Pareceu-lhe que por aí não ia bem; quis antes puxar-lhe pelo vestido, e ia
já levantando a mão quando também se arrependeu. Durante todos estes movimentos
o pobre rapaz suava a não poder mais. Enfim, um incidente veio tirá-lo da
dificuldade. Ouvindo passos no corredor, entendeu que alguém se aproximava, e
tomado de terror por se ver apanhado naquela posição, deu repentinamente dois
passos para trás, e soltou um-ah!-muito engasgado. Luisinha, voltando-se, deu
com ele diante de si, e recuando espremeu-se de costas contra a rótula;
veio-lhe também outro-ah!-porém não lhe passou da garganta, e conseguiu apenas
fazer uma careta.
A bulha
dos passos cessou sem que ninguém chegasse à sala; os dois levaram algum tempo
naquela mesma posição, até que o Leonardo, por um supremo esforço, rompeu o
silêncio e com voz trêmula e em tom o mais sem graça que se possa imaginar
perguntou desenxabidamente:
— A
senhora... sabe... uma coisa?
E
riu-se com uma risada forçada, pálida e tola.
Luisinha
não respondeu. Ele repetiu no mesmo tom:
—
Então... a senhora... sabe ou... não sabe?
E
tornou a rir-se do mesmo modo. Luisinha conservou-se muda.
— A
senhora bem sabe... é porque não quer dizer...
Nada de
resposta.
— Se a
senhora não ficasse zangada... eu dizia...
Silêncio.
— Está
bom... eu digo sempre... mas a senhora fica ou não fica zangada?
Luisinha
fez um gesto de quem estava impacientada.
— Pois
então eu digo... a senhora não sabe... eu... eu lhe quero... muito bem.
Luisinha
fez-se cor de uma cereja; e fazendo meia volta à direita, foi dando as costas
ao Leonardo e caminhando pelo corredor. Era tempo, pois alguém se aproximava.
Leonardo
viu-a ir-se, um pouco estupefato pela resposta que ela lhe dera, porém não de
todo descontente: seu olhar de amante percebera que o que se acabava de passar
não tinha sido totalmente desagradável a Luisinha.
Quando
ela desapareceu, soltou o rapaz um suspiro de desabafo e assentou-se, pois se
achava tão fatigado como se tivesse acabado de lutar braço a braço com um
gigante.
SEGUNDA PARTE
I - A Comadre em exercício
Os
leitores devem estar lembrados de que o nosso antigo conhecido, de quem por algum
tempo nos temos esquecido, o Leonardo-Pataca, apertara-se em laços amorosos com
a filha da comadre, e que com ela vivia em santa e honesta paz. Pois este viver
santo e honesto deu em tempo oportuno o seu resultado. Chiquinha (era este o
nome da filha da comadre) achou-se de esperanças e pronta a dar à luz. Já vêem
os leitores que a raça dos Leonardos não se há de extinguir com facilidade.
Leonardo-Pataca não perdia por modo algum aqueles hábitos de ternura com que
sempre o conhecemos, e nas atuais circunstâncias, quando ele via às portas da
vida um fruto do seu derradeiro amor, crescia-lhe n’alma aquela violenta chama
do costume; o pobre homem ardia todo por dentro e por fora, e desfazia-se em
carinhos para com sua companheira.
Chegou
finalmente o dia de aparecer o desejado resultado: ao amanhecer manifestara os
primeiros sintomas. Leonardo levantou logo uma poeira em casa: andava de dentro
para fora pretendendo fazer mil coisas, e sem fazer coisa alguma, atrapalhado e
tonto. Mandou chamar a comadre, que pronta acudiu ao chamado, e começaram-se a
arranjar os preparativos. Talvez alguns leitores tenham idéia do mundo infinito
de arranjos que naquele tempo se punha em giro em semelhantes ocasiões. A
primeira coisa a que o Leonardo-Pataca providenciou foi que se mandassem dar as
nove badaladas no sino grande da Sé. Esta prática só costumava ter lugar quando
a parturiente se achava em perigo, porém ele quis prevenir tudo a tempos e a
horas. Mandou-se depois pedir à vizinha, pois por um descuido imperdoável não havia
em casa, um ramo de palha benta; a comadre trouxe um par de bentinhos da
Senhora do Monte do Carmo que tinham grande reputação de milagrosos, e o lançou
ao pescoço da Chiquinha. Pôs a palha benta ao lado da cabeceira; na sala
improvisou-se um oratório com uma toalha, um copo com arruda e uma imagem de
Nossa Senhora da Conceição de louça, enfeitada com cordões de ouro. Chiquinha,
para nada esquecer das regras estabelecidas, amarrou à cabeça um lenço branco,
meteu-se embaixo dos lençóis, e começou a rezar ao santo de sua devoção. A
comadre assentou-se aos pés da cama em uma banquinha, e desunhava também em um
grande rosário, observando entretanto a Chiquinha, e interrompendo-se a cada
instante para dar ordens ao Leonardo-Pataca, e responder ao que fora do quarto
se dizia.
Leonardo-Pataca,
depois de tudo arranjado, quando viu que a única coisa que restava era esperar
a natureza, como dizia a comadre, pôs-se em menores, quero dizer, despiu os
calções e o colete, ficou em ceroulas e chinelas, amarrou à cabeça, segundo um
antigo costume, um lenço encarnado, e pôs-se a passear na sala de um lado para
outro, com uma cara de fazer dó: parecia que era ele e não Chiquinha quem se
achava com dores de parto. De vez em quando parava à porta do quarto que se
achava cerrada, lançava para dentro um olhar de curiosidade e medo, e abanando
a cabeça murmurava:
— Não
sirvo para isto... estas coisas não se dão com o meu gênio... Estou a tremer
como se fosse o negócio comigo...
E
realmente a cada gemido forte que partia do quarto o homem estremecia e
fazia-se de mil cores.
Dentro
do quarto a comadre exortava a padecente, pouco mais ou menos nestes termos:
— Não
vos façais de criança, menina... isso não é nada... é um pau por um olho... Não
tarda aí um Bendito, e estais já livre. Estas coisas na minha mão andam
depressa. Verdade seja que é o primeiro, e isto causa seu medo, mas não é coisa
que valha estares agora tão desanimada; é preciso também ajudar a natureza.
"Faze da tua parte que eu te ajudarei!" São palavras de Jesus Cristo.
A
padecente estava porém a morrer de susto: nem se moveu à exortação da comadre.
Entretanto o tempo ia passando, e a pobre rapariga a sofrer; já lhe tinha a
comadre arranjado de um modo diverso os bentinhos no peito, já tinha inclinado
mais sobre a cama a palma benta, e ainda nada de novo. O Leonardo-Pataca
começava a impacientar-se; de vez em quando chegava à porta do quarto, e
perguntava com voz esmorecida:
—
Então?...
—
Compadre, respondia a comadre, já lhe disse que não é bom a quem está neste
estado estar ouvindo voz de homem: esteja calado e espere lá.
Continuava
o tempo a passar: a comadre saiu do quarto e veio acender uma nova vela benta a
Nossa Senhora, e depois de uma breve oração voltou ao seu posto. Tirou então do
bolso da saia uma fita azul comprida e passou-a em roda da cintura da
Chiquinha; era uma medida de Nossa Senhora do Parto. Depois disse com ar de
triunfo:
— Ora
agora vamos a ver, porque isto já não vai do meu agrado... Mas a culpa também é
sua, menina, já lhe disse que é preciso ajudar a natureza.
Passou-se
ainda algum tempo. De repente a comadre gritou para fora:
— Ó
compadre, dê cá lá uma garrafa...
O
Leonardo-Pataca obedeceu prontamente. Ouviu-se então dentro do quarto o som que
produziria uma boca humana a soprar com toda a força dentro de alguma coisa.
Era Chiquinha que por ordem da comadre soprava a morrer de cansaço dentro da
garrafa que esta mandara vir.
— Com
força, menina, com bem força, e Nossa Senhora não desampara os fiéis. Animo,
ânimo; isto o mais que sucede é uma vez por ano. Desde que nossa mãe Eva comeu
aquela maldita fruta ficamos nós sujeitas a isto. "Eu multiplicarei os
trabalhos de teu parto." São palavras de Jesus Cristo!
Já se
vê que a comadre era forte em história sagrada.
Ao
Leonardo-Pataca tremiam-lhe cá fora tanto as pernas, que não pudera mais
continuar no passeio, e achava-se sentado a um canto com os dedos nos ouvidos.
—
Soprai, menina, continuava sempre dentro a comadre, soprai com Nossa Senhora,
soprai com S. João Batista, soprai com os Apóstolos Pedro e Paulo, soprai com
os Anjos e Serafins da Corte Celeste, com todos os Santos do paraíso, soprai
com o Padre, com o Filho e com o Espírito Santo.
Houve
finalmente um instante de silêncio, que foi interrompido pelo choro de uma
criança.
— Ora
lá vai o mau tempo, exclamou a comadre; bem dizia eu que isto não era mais do
que um pau por um olho... Ah! Sr. compadre, chegue, que é agora a sua vez,
venha ver a sua pecurrucha...
— É uma
pecurrucha!... exclamou o Leonardo-Pataca fora de si; ora isto é de bom agouro,
porque com o outro que saiu macho não fui feliz.
Recendeu
então pela casa um agradável cheiro de alfazema; a comadre veio à sala, apagou
as velas que estavam acesas a Nossa Senhora; foi depois desatar a fita da
cintura da Chiquinha e tirar-lhe do pescoço os bentinhos.
A
recém-nascida, enfraldada, encueirada, encinteirada, entoucada e com um molho
de figas e meias-luas, signos de Salomão e outros preservativos de maus-olhados
presos ao cinteiro, passava das mãos de Chiquinha para as do Leonardo-Pataca,
que não cabia em si de contentamento; era uma formosa criancinha, em tudo o
oposto de seu irmão paterno o nosso amigo Leonardo, mansa e risonha.
O
Leonardo-Pataca recorreu imediatamente à folhinha para ver que nome trazia a
menina; porém como este lhe não agradasse, travou logo com Chiquinha uma
questão a respeito do nome que se lhe devia dar.
A
comadre aproveitou-se disso para dar conta dos últimos arranjos, e depois
envergou a mantilha e saiu para acudir a outras necessitadas.
II - Trama
Como
esta cena que acabamos de pintar tinha a comadre muitas outras todos os dias,
porque era uma das parteiras mais procuradas da cidade; gozava grande reputação
de muito entendida, e ainda nos casos mais graves era sempre a escolhida com os
seus milagrosos bentinhos, a palma benta, a medida de Nossa Senhora, a garrafa
soprada, e com a invocação de todas as legiões de santos, de serafins e de
anjos livrava-se ela dos maiores apertos. E ninguém lhe fosse dar regras, que
as não ouvia, nem do físico-mor, se nisso se metesse: era só olhar para uma
mulher de esperanças, e dizia-lhe logo sem grande trabalho o sexo, o tamanho do
filho que trazia nas entranhas, e com uma pontualidade miraculosa o dia e hora
em que teria de ver-se desembaraçada; até às vezes, por certos sinais que só
ela conhecia, chegava a dizer qual seria o gênio e as inclinações do ente que
ia ver a luz. Já se vê que esta vida era trabalhosa e demandava sérios
cuidados; porém a comadre dispunha de uma grande soma de atividade; e, apesar
de gastar muito tempo nos deveres do ofício e na igreja, sempre lhe sobrara
algum para empregar em outras coisas. Como dissemos, ela havia tomado a peito a
causa dos amores de Leonardo com Luisinha, e jurara pôr José Manuel, o novo
candidato, fora da chapa.
Começou
pois a ocupar o seu tempo disponível nesse grave negócio, e movia uma intriga
surdíssima e constante contra o rival de seu afilhado. Gozando da intimidade e
do crédito de D. Maria, não perdia junto dela ocasião de desconceituar José
Manuel, o que era-lhe tanto mais fácil quanto ele prestava-se a isso, e D.
Maria, de espírito demandista e chicaneiro, dava o cavaco por um mexerico. Eis
aqui uma das que ela armou ao adversário.
Todos
sabem nesta cidade onde é o Oratório de Pedra; mas o que todos talvez não
saibam é para que serviu ele em outros tempos. Sem dúvida naquele oratório
havia a imagem de algum santo, e o povo devoto ia ali rezar? Exatamente. Mas
por que é que hoje não continua essa prática, por que apenas se conserva sobre
a parede aquela espécie de guarita de pedra, sem imagem alguma, sem luz à
noite, e diante da qual passam todos irreverentemente sem tirar o chapéu e
curvar o joelho? Primeiro que tudo extinguiu-se isso pela razão por que se
extinguiram muitas coisas boas daquele bom tempo; começaram todos a
aborrecer-se de achá-las boas, e acabaram com elas. Depois houve a respeito do
Oratório de Pedra muito boas razões policiais para que ele deixasse de ser o
que era.
O
leitor, que sem dúvida sabe muito bem de quanto eram nossos pais crentes,
devotos e tementes a Deus, se admirará talvez de ler que houve razões policiais
para a extinção de um oratório. Entretanto é isso uma verdade, e se fosse ainda
vivo o nosso amigo Vidigal, de quem já tivemos ocasião de falar em alguns
capítulos desta historieta, poderia dizer quanto garoto pilhou em flagrante
delito, ali mesmo aos pés do oratório, ajoelhado, contrito e beato.
Quando
passava a via-sacra e que se acendia a lâmpada do oratório, o pai de família
que morava ali pelas vizinhanças tomava o capote, chamava toda a gente de casa,
filhos, filhas, escravos e crias, e iam fazer oração ajoelhando-se entre o povo
diante do oratório. Mas se acontecia que o incauto devoto se esquecia da filha
mais velha que se ajoelhava um pouco mais atrás e embebido em suas orações não
estava alerta, sucedia-lhe às vezes voltar para casa com a família dizimada: a
menina aproveitava-se do ensejo, e sorrateiramente escapava-se em companhia de
um devoto que se ajoelhara ali perto, embrulhado no seu capote, e que inda há
dois minutos todos tinham visto entregue fervorosamente às suas súplicas a
Deus.
Aquilo
era a execução do plano concertado na véspera ao cair de ave-marias, através
dos postigos da rótula. Outras vezes, quando estavam todos os circunstantes
entregues à devoção, e que a ladainha entoada a compasso enchia aquele circuito
de contrição, ouvia-se um grito agudo e doloroso que interrompia o hino;
corriam todos para o lugar donde partira, e achavam um homem estendido no chão
com uma ou duas facadas.
Não
levamos ainda em conta as inocentes caçoadas que a todo instante faziam os
gaiatos. Eis aqui pois por que, além de outros motivos, dissemos que tinham
havido razões policiais para que se acabasse com as piedosas práticas do
Oratório de Pedra.
No
tempo em que se passavam as cenas que temos narrado ainda o Oratório de Pedra
estava no galarim. Um ou dois dias depois do nascimento do segundo filho de
Leonardo-Pataca correu pela cidade a notícia de um grande escândalo que se
passara nesse lugar clássico dos escandalos: uma moça, que vivia em companhia
de sua mãe, velha, rica e devota, indo com ela rezar junto ao Oratório, na
ocasião da passagem da via-sacra, fugira, tendo levado consigo um pé de meia
preta contendo uma boa porção de peças de ouro. Falava-se muito no caso, não
porque fosse naquele tempo coisa de estranhar-se, mas porque havia um mistério
no sucesso: ninguém sabia com quem tinha fugido a moça.
D.
Maria, como todos, estava ansiosa por ver deslindada a questão, quando lhe
apareceu em casa a comadre que a vinha visitar.
D.
Maria estava sentada na sua banquinha, tendo diante de si uma enorme almofada
de renda carregada com seis ou sete dúzias de bilros, e esmerava-se em fazer um
largo pegamento. A seu lado, sentada em uma esteira, cercada por uma porção de
negrinhas, crias de D. Maria, estava Luisinha também ocupada em fazer renda.
Quando
a comadre entrou, D. Maria largou imediatamente a almofada do colo, tirou do
nariz e pôs na testa um par de óculos de aros de prata com que trabalhava, e
começou logo por tocar no caso que a preocupava. A comadre fez sinal que
mandasse retirar Luisinha e as mais crianças; e a conversa caminhou livremente.
— Então
que me diz, senhora, da desgraça da pobre velha? Criar a gente uma rapariga com
todo o carinho, e no fim ter aquela recompensa!... no meu tempo não se viam
coisas destas...
— Que
quer, senhora? respondeu a comadre; pois foi ali, nas barbas de todos. Não
havia um instante que ela havia chegado com a velha, e que se tinham todas duas
ajoelhado ao pé de mim...
— Ao pé
da comadre? Pois a comadre estava lá?...
—
Estava... que antes não estivesse...
— Mas o
diabo, senhora, acrescentou D. Maria, é ninguém saber quem foi o maldito que
fugiu com ela...
A
comadre interrompeu, dando uma risadinha sardônica.
— Tenho
perguntado a todos, e ninguém sabe dizer-me.
— É
porque todos estavam cegos...
— Como?
— Mas
não o estava eu, por mal de meus pecados, que antes estivesse...
— Pois
viu e sabe com quem foi... disse D. Maria, remexendo-se de prazer em cima da banquinha.
A idéia
de poder saber de uma novidade que todos ignoravam encheu-a de contentamento.
— Mas
então quem foi, vamos; quero saber quem foi o ladrão da moça e do dinheiro...
— Só
lhe direi, respondeu a comadre depois de alguma hesitação, se me prometerdes
guardar todo o segredo, que o caso é muito sério.
— Ora
bem sabe que eu... é o mesmo que cair num poço.
Apesar
de estarem sós, a comadre inclinou-se ao ouvido de D. Maria, e disse-lhe o mais
baixinho que pôde:
— Foi o
nosso grande camarada... a boa peça do José Manuel...
— O que
é que diz, comadre?
— Vi,
respondeu esta, arregalando com dois dedos os olhos, com estes que a terra há
de comer... Se eles estavam ao pé de mim... D. Maria ficou por algum tempo muda
deestupefação.