Concorrendo no mesmo dia o da Encarnação. Ano de
1655.
Pregado na Misericórdia de Lisboa, às 11 da manhã.
"Sciens quia a Deo
exivit, et ad Deum vadit: Cum dilexisset suos, in finem dilexit eos".
I
No ano presente concorrem
e se ajuntam no mesmo dia os dois maiores mistérios e os dois maiores dias: o
dia da Encarnação do Verbo e o dia da partida do mesmo Verbo Encarnado. O que
dizem os dias e o que declaram as noites. A competição do Amor divino consigo
mesmo e a justa dos gigantes. Argumento do sermão: foi maior o amor de Cristo
no dia da Encarnação ou no dia da partida?
Grande dia! Grande amor!
Depois que o Eterno se fez temporal, também o amor divino tem dias. O
evangelista S. João querendo-nos declarar a grandeza e grandezas do mesmo amor
neste dia, a primeira coisa que ponderou, com tão alto juízo como o seu, foi
ser um dia antes de outro dia: Ante diem
festum Paschae. Tanto pode acrescentar quilates ao amor a reflexão ou
circunstância dos dias! E que farei eu? Dois dias hei de combinar também hoje,
mas não o dia de antes com o dia de depois, senão o dia de depois com o dia de
antes; e não livremente ou por eleição própria e minha, senão por obrigação
forçosa dos mesmos dias. Assim como depois de longo círculo de anos se
encontram e ajuntam dois planetas a fazer uma conjunção magna, assim no ano
presente concorrem e se ajuntam hoje no mesmo dia os dois maiores mistérios e
os dois maiores dias: o dia da Encarnação do Verbo, e o dia da partida do mesmo
Verbo encarnado. O dia da Encarnação do Verbo: Sciens quia a Deo exivit - que foi o princípio com seu amor para
com os homens: cum dilexisset suos -
e a partida do mesmo Verbo encarnado: Et
ad Deum vadit - que foi o fim sem fim do mesmo amor: In finem dilexit eos.
0 real profeta Davi,
antevendo em espírito estes dois dias, diz que o dia de hoje fala com o dia da
Encarnação, e o dia da Encarnação com o dia de hoje, e que ambos se entendem
entre si, e se respondem um ao outro: Dies
diei eructat verbum. Assim explica este famoso texto Santo Agostinho. E se
perguntarmos que é o que falam estes dias, que devem de ser coisas muito dignas
de se ouvir e saber, responde o mesmo Davi que as noites dos mesmos dias nos
dirão e declararão o que eles falam: Dies
diei eructat Verbum, et nox nocti indicat scientiam. Pois as noites, que
são escuras, nos hão de declarar o que dizem os dias? Sim. Porque os mistérios
do dia de hoje, e do dia da Encarnação, ambos se celebraram nas noites dos
mesmos dias. Tanto silêncio e reverência era devido à majestade de tão divinos
mistérios! Os do dia da Encarnação de noite: Cum quietum silentium contineret omnia, et nox in suo cursu medium iter
haberet - e os do dia de hoje também de noite: Et coena facta. As luzes a que se há de ver toda esta famosa
representação são as da fé; os lugares, um cenáculo grande em Jerusalém, e uma
casa humilde, mas real, em Nazaré. E a questão ou problema, qual será? Se foi
maior o amor de Cristo no dia da Encarnação ou no dia de hoje.
Posto, pois, um dia
defronte do outro dia, e um mistério à vista de outro mistério, e um amor
competindo com outro amor, é certo que nunca o amor divino se viu em mais
glorioso teatro, pois sai a competir consigo mesmo. Nas outras comparações do
amor divino com o amor dos homens, ou seja com o amor dos irmãos, ou com o amor
dos pais, ou com o amor dos filhos, ou com o amor dos esposos, ou com o amor
dos amigos - que deve ser o maior de todos ainda que saia vencedor o amor de
Cristo, sempre fica agravado na vitória, porque entra afrontado na competência.
Só hoje, se vencer, será vencedor glorioso, porque tem competidor igual, e se
vencerá a si mesmo. Quando Davi saiu a desafio com o gigante, mediu-lhe o
gigante com os olhos a estatura, e, posto que não duvidava da vitória, na
desigualdade de tão inferior combatente teve por injuriosa a batalha. Do mesmo
modo, e com mais verdade, Cristo. Quando o seu amor se compara com outro amor,
compete o gigante com Davi; mas quando se compara o amor de Cristo com o amor
do mesmo Cristo, como fazemos hoje, é competir o gigante com o gigante. Assim o
disse ou cantou o mesmo Davi: Exultavit
ut gigas ad currendam viam. Entrou Cristo na estacada como gigante. E que
fez? Justou consigo mesmo. A primeira carreira foi do céu para a terra: A summo caelo egressio ejus; a segunda
carreira foi da terra para o céu: Et
occursus ejus usque ad summum ejus: e neste encontro se cerrou a justa, e
se quebraram as lanças um e outro amor. É em verso de Davi o mesmo que diz a
prosa do nosso Evangelho. A primeira carreira: A summo caelo egressio ejus - foi no dia da Encarnação, quando o
Verbo saiu do Padre: a Deo exivit; a
segunda carreira: Et occursus ejus usque ad summum ejus - foi no dia de
hoje, quando o mesmo Verbo tornou para o Padre: Et ad Deum vadit. Na primeira carreira, amor: Cum dilexisset suos; e na segunda também amor: In finem dilexit eos. O dilexisset
e o dilexit distingue os dias: o dilexisset declara um amor, e o dilexit outro; mas nem juntos, nem
divididos sinalam a vitória, nem resolvem qual foi maior. Esta famosa decisão
entre os maiores combatentes que jamais se viram, havemos de ver hoje.
Assistir-nos-á com a graça quem foi presente em um e outro dia, e quem teve a
maior parte em um e outro mistério, que foi a Mãe do mesmo amor: Mater pulchrae dilectionis. Mas como
invocaremos seu favor e patrocínio? Com as mesmas palavras com que também hoje
a invocou o anjo: Ave gratia plena.
II
O amor de Cristo quanto à
substância e quanto aos efeitos. Os extremos do amor de Cristo no dia da
Encarnação e no dia da partida. Comparando-se os efeitos Deuses dois dias,
afirma o autor que maiores foram os extremos do dia da partida que os do dia da
Encarnação.
Cum dilexisset, dilexit.
Nestas palavras - como dizia - deixou o
Evangelista indecisa a nossa questão, porque não disse: como amasse mais amou
menos, nem como amasse menos amou mais, senão como amasse amou. Distinguiu
somente os tempos, e pelos tempos o amor, sem preferência porém, ou vantagem
nem do amor passado ao presente, nem do presente ao passado. Falou S. João como
divino teólogo, e não só como quem tecia a história, mas como quem compunha o
panegírico do amor de Cristo. Quanto à substância do amor, Cristo, Senhor
nosso, tanto nos amou no dia da Encarnação, como no dia de hoje, e em todos os
dias da sua vida, porque o seu amor é amor perfeito, e não fora seu, se assim
não fora. O amor dos homens, ou míngua,ou cresce, ou pára; o de Cristo nem pode
minguar, nem crescer, nem parar, porque é, foi, e será sempre amor perfeito, e
por isso sempre o mesmo, e sem alteração nem mudança. Ama Cristo enquanto
homem, como ama enquanto Deus. Perguntam os teólogos: como ama Deus a uns mais
e a outros menos, se o seu amor - o qual se não distingue da sua essência - é
sempre um só e o mesmo, infinito, simplicíssimo e imutável? E respondem que a
diferença ou desigualdade não está no amor, senão nos efeitos, porque a uns
sujeitos faz Deus maiores bens que a outros. Os homens amamos os objetos pelo
bem que tem: Deus ama-os pelo bem que lhes faz. E assim como julgamos a maioria
do amor de Deus belos efeitos, assim havemos de julgar também a do amor de
Cristo. Este é o fundamento sólido e certo sobre que excitamos a nossa questão,
e estes os termos de igual certeza, com que a havemos de resolver. Nem daqui
deve inferir ou cuidar a rudeza do nosso entendimento que seria menos afetuoso,
ou menos amoroso, este modo de amar de Cristo, porque assim como em Deus o fazer
o bem se chama amor efetivo, e o querê-lo fazer amor afetivo, assim no amor de
Cristo os afetos foram a causa dos efeitos que veremos, e os efeitos a
demonstração dos afetos.
Vindo, pois, aos efeitos e
demonstrações de um e outro amor no dia de hoje e no dia da Encarnação, parece
que assim no número, como no modo, os esteve medindo e proporcionando o mesmo
amor, que neles se quis igualar e vencer. O Concílio Niceno, no Símbolo da Fé,
ponderando o amor de Cristo na Encarnação, reduz os efeitos dele a dois
extremos: descer do céu e fazer-se homem: Qui propter nos homines, et propter
nostram salutem descendit de caelis. Et
incarnatus est ex Maria Virgine, et homo facctus est. Isto diz o Espírito
Santo no Concílio, falando do dia da Encarnação. E falando do dia de hoje, que
é o que diz e pondera o mesmo Espírito Santo no Evangelho? Outros dois efeitos
e outros dois extremos: lavar os pés aos homens, e deixar-se no Santíssimo
Sacramento: Et coena facta, coepit lavare
pedes discipulorum. Supostos de uma e outra parte este par de extremos, uns
e outros não só admiráveis mas estupendos, comparando-se o amor de Cristo, e
competindo-se em uns e outros, que diremos ou que podemos dizer? Sem temeridade
nem temor, digo e afirmo que maiores foram os extremos do dia de hoje que os do
dia da Encarnação. E por quê? Porque, se no dia da Encarnação foi grande
extremo de amor descer Deus do céu à terra: Descendit de coelis - muito maior
extremo foi no dia de hoje lavar Cristo os pés aos homens: Coepit lavare pedes
discipulorum. E se foi grande extremo de amor no dia da Encarnação fazer-se
Deus homem: Et homo factus est -
muito maior extremo foi no dia de hoje deixar Cristo seu corpo no Sacramento
para que o comessem os homens, como fez na Ceia: Et coena facta. - Estes serão os dois pontos do nosso discurso, em
que ele descobrirá muito mais do que aparece no que está dito.
III
Estranheza da exclamação de Jacó quando viu em
sonhos aquela famosa escada que chegava da terra até o céu, pela qual subiam e
desciam anjos. Como se há de entender o dito de Davi, quando afirma que Deus
tinha feito o homem pouco menor que os anjos. O estupendo prodígio que fez Deus
por amor de el-rei Ezequias em benefício de sua saúde, e o prodígio da
Encarnação.
Tão grande e tão prodigiosa coisa foi descer Deus
em Pessoa do céu à terra que, visto de muito longe este mistério, não só
causava admiração e espanto ao entendimento, mas horror e assombro à mesma fé.
Viu Jacó em sonhos aquela famosa escada que chegava da terra até o céu, pela
qual subiam e desciam anjos, encostado e inclinado Deus no alto dela, e,
assombrado do que via, acordou com um grito, dizendo: Terribilis est locus iste (Gen. 28, 17)! Ó que terrível, ó que
temeroso lugar! - De vários modos se costuma ponderar a estranheza deste dito.
Eu só noto que nem a vista podia causar horror, nem a novidade espanto. O que
só poderia causar horror a Jacó era ver que os que subiam e desciam fossem
somente anjos, e que nem ele, que estava no baixo da escada, subisse, nem Deus,
que estava no alto, descesse, com que se demonstrava uma grande separação entre
Deus e o homem, como aquela de que disse Abraão ao avarento: Inter nos et vos chaos magnum firmatum est.
E posto que hoje esta apreensão seria para nós de grande horror, porque sabemos
o contrário, naquele tempo nem podia causar horror pela vista, nem espanto pela
novidade, como dizia, porque tudo o que Jacó viu, e tudo o que mostrava
significar o que via, era o mesmo que ele e os demais supunham. Até o tempo de
Jacó, e ainda depois, no tempo da lei escrita, nunca Deus prometeu aos homens o
céu, senão tudo prêmios da terra. E daqui nasceu aquela parêmia ou provérbio: Caelum caeli Domino; terram autem dedit
Filiis hominum: que o céu era para Deus, e a terra para os homens. Logo não
se podia assombrar nem espantar Jacó de que ele, sendo homem, e estando na
terra, não subisse pela escada, e, muito menos, de que Deus, sendo Deus, e
estando no céu, não descesse. Pois, se Jacó não tinha que admirar nem que
estranhar no seu sonho, de que acordou com tanto horror e tão notável assombro?
Acordou assombrado Jacó, não do que vira, senão do
que na mesma visão Deus lhe revelara.Revelou Deus a Jacó que naquela escada era
significado o mistério altíssimo da Encarnação do Verbo, e que para ele, Jacó,
os outros homens poderem subir ao céu, ele, Deus, havia de descer do céu à
terra: Qui propter nos homines, et
propter nostram salutem descendit de caelis. E vendo Jacó que a majestade
suprema de Deus, deixando do modo que o podia deixar o trono do empíreo, havia
de descer em pessoa do céu à terra, a revelação desta estupenda novidade, que
nunca entrou na imaginação humana, lhe causou no mesmo sono tal horror e
assombro, que acordou tremendo e gritando: Terribilis
est locus iste! Duas coisas viu Jacó no que viu, que muito e com muita
razão lhe assombraram, não a vista, senão o entendimento. E quais foram? A
primeira que, sendo a escada para descer Deus, a descida era muito maior que a
escada. Pois a descida maior que a escada? Sim. Porque a escada chegava da
terra ao céu, que é distância limitada, e a descida era de Deus ao homem, que é
distância infinita. E vendo unir dois extremos infinitamente distantes, quem,
ainda estando muito em si, não ficaria atônito e assombrado? A segunda causa, e
não menor, do mesmo assombro, foi que por meio da Encarnação do Verbo, assim
revelada a Jacó, vinha a conseguir muito mais o menor anjo do que a soberba de
Lúcifer tinha afetado. Porque Lúcifer quis ser igual a Deus, e fazendo-se Deus
homem, ficava Deus por este lado sendo inferior ao menor anjo. Este foi o
grande mistério - diz Santo Agostinho - por que os anjos da escada uns desciam,
outros subiam. Como Deus estava no alto da escada, e Jacó ao pé dela, os anjos
que ficavam da parte de Deus desciam, e os que ficavam da parte de Jacó subiam,
e este subir e descer não era ato ou movimento da vontade dos mesmos anjos,
senão ordem e constituição da sua própria natureza. Os da parte superior da
escada, onde estava Deus, desciam, porque todos os anjos são muito inferiores a
Deus; e os da parte inferior, onde estava Jacó, subiam, porque estes mesmos são
muito superiores ao homem. E como os anjos são superiores ao homem, e Deus não
havia de tomar a natureza angélica, senão a humana, isto era o que assombrava a
Jacó, e lhe parecia coisa terrível: que Deus houvesse de descer, e abater-se
tanto, que ficasse por esta parte muito inferior a qualquer anjo.
Lá disse Davi que Deus tinha feito ao homem pouco
menor que os anjos: Minuisti eum paulo
minus ab angelis (Sl 8, 6). Mas isto se entende no domínio, e não na
natureza, porque deu Deus a Adão o senhorio e império de todos os animais da
terra, do mar e do ar, como logo declarou o mesmo profeta: Minuisti eum paulo minus ab angelis; gloria et honore coronasti eum; et
constituisti eum super opera manuum tuarum. Omnia subjecisti sub pedibus ejus,
oves et boves, insuper et pecora campi, volucres caeli, et pisces maris. De
maneira que no domínio e uso de todas as coisas criadas para serviço seu nos
três elementos, é o homem pouco menor que os anjos; porém, no ser e nobreza
natural, não só quanto à parte do barro, em que aparentamos com os brutos,
senão ainda quanto à parte espiritual da alma e suas potências, em que imitamos
a natureza angélica, não é o homem pouco menor, senão muito menor e muito
inferior a qualquer anjo, e tanto quanto for de mais superior hierarquia. A
escada de Jacó tinha nove degraus, que são as nove ordens de criaturas
racionais que há entre Deus e o homem, as quais por outro nome chamamos nove
coros dos anjos, e todos estes degraus desceu Deus, e os deixou e passou por
eles, para se unir com a natureza humana, que jazia em Jacó, abaixo de todos.
É o que ponderou S. Paulo naquelas palavras: Nusquam angelos apprehendit, sed semen
Abrahae apprehendit, cujo fundo e energia não acho tão declarada nos
expositores como ele pede. Dizem que nusquam é o mesmo que nunquam ou
nequaquam, mas nusquam não é simples negação, nem advérbio de tempo, senão de
lugar, e propriamente quer dizer: em nenhuma parte. Pois, por que diz S. Paulo
que não tomou Deus a natureza angélica em nenhuma parte, nusquam? Porque tinha
Deus nove partes em que a tomar: três na primeira hierarquia, três na segunda e
três na terceira. E essa foi a maravilha do mistério da Encarnação, que por
tomar Deus a natureza humana, deixasse em tantas partes a angélica. Na primeira
hierarquia deixou serafins, querubins, tronos; na segunda deixou potestades,
principados, dominações; na terceira deixou virtudes, arcanjos, anjos; e no
homem, que era o décimo, último e ínfimo lugar, onde jazia Jacó, ali tomou a
nossa natureza caída, para a levantar, e enferma, para lhe dar saúde, que foi o
fim para que tanto se abateu e desceu. Estando el-rei Ezequias mortalmente
enfermo, prometeu-lhe o profeta Isaías a vida em nome de Deus; e em testemunho
de que a promessa era divina, deu-lhe, por sinal no céu, que o sol tornaria
atrás dez linhas, ou dez degraus, e assim sucedeu: Et reversus est sol decem lineis per gradus quos descenderat. E por
que tornou o sol atrás dez linhas, ou dez degraus, e não onze, ou nove, senão
dez, nem mais nem menos sinaladamente? Porque naquele prodígio, verdadeiramente
grande, se significava outro maior, que era o da Encarnação do Verbo, na qual,
assim como o sol, estando no zênite - que não podia ser de outra sorte - tornou
atrás dez linhas, até se pôr nos horizontes da terra, assim Deus, desde o mais
alto de sua majestade infinita, desceu outras dez linhas até se pôr na última e
ínfima da natureza humana, e assim como fez aquele estupendo prodígio por amor
de Ezequias, e em benefício da sua saúde, assim obrou o da Encarnação muito
mais estupendo, por amor dos homens e para saúde dos homens: Qui propter nos homines, et propter nostram
salutem descendit de caelis, et incarnatus est.
IV
O pasmo e o horror dos
discípulos de Cristo no Cenáculo. O assombro de Jacó e a reverência de Pedro.
Quando se fez Deus homem e quando se fez servo? As duas metáforas ou
comparações de São Paulo. Por que diz o apóstolo do terceiro céu que quando
Cristo se fez servo não cuidou nem teve para si que a sua divindade não era
sua?
Isto é o que neste dia se
obrou em Nazaré. Mudemos agora a cena, e ponhamo-nos no Cenáculo de Jerusalém,
e veremos com quanta maior razão se pode dizer daquele lugar: Terribilis est locus iste! Despe-se
Cristo das roupas exteriores, cinge-se com uma toalha, deita água em uma bacia
com suas próprias mãos: entende-se destas ações, que quer lavar os pés aos
discípulos. E qual foi, com esta vista, o assombro, o pasmo, o horror com que
as mesmas paredes do Cenáculo parece que tremiam? Não estava aqui Jacó, mas
estava Pedro, o qual mais fora de si que no Tabor, exclamou, dizendo: Domine, tu mihi lavas pedes (Jo 13, 6)?
Vós, Senhor, a mim lavar os pés? - Eternamente não consentirei tal coisa: Non lavabis mihi pedes in aeternum (Jo
13, 8). Já neste primeiro movimento se vê quanto vai de dia a dia, e de
mistério a mistério. Comparai-me a S. Pedro com Jacó. Jacó, depois que viu a
escada, e que Deus havia de descer por ela, desejava sumamente que descesse, e
enquanto tardava a vir, lhe parecia uma eternidade: Donec veniret desiderium collium aeternorum. Pelo contrário, Pedro,
vendo que Cristo lhe quer lavar os pés, não sofre nem consente em tal ação,
antes diz resolutamente que a não consentirá por toda a eternidade: Non lavabis
mihi pedes in aeternum. - Se isto era amor e reverência de Cristo em Pedro,
também Jacó o reverenciava e arnava muito. Pois, se Jacó deseja que Deus desça
e se abata a se fazer homem, por que não consente Pedro que se abata a lhe lavar
os pés? Por isso mesmo. Porque tanto vai de um abatimento a outro abatimento.
Encarnar Deus, era fazer-se homem; lavar os pés aos homens era fazer-se servo;
encarnar era vestir-se da nossa humanidade; fazer-se servo dos homens era
despir-se da sua divindade.
Não me atrevera a dizer
tanto se S. Paulo o não tivera dito, e ainda muito mais. É passo muitas vezes
ouvido, mas que terá que explicar até o fim do mundo: Qui cum in forma Dei esset, non rapinam arbitratus est esse se aequalem
Deo, sed semetipsum exinanivit formam servi accipiens, in similitudinem hominum
factus, et habitu inventus ut homo. Quer dizer: que sendo o Verbo Eterno
igual ao Padre em tudo, se fez, e se desfez. Se fez porque, sendo Deus, se fez
homem: ln similitudinem hominum factus,
et habitu inventus ut homo; e se desfez porque, sendo Deus e homem, se fez
servo, e, fazendo-se servo, se desfez e aniquilou a si mesmo: Exinanivit semetipsum, formam servi
accipiens. Agora pergunto: quando se fez Deus homem, e quando se fez servo?
Fez-se homem na Encarnação, e fez-se servo no lavatório dos pés. Logo, na
Encarnação se fez e no lavatório se desfez. Muitos autores entendem todo este
texto só da Encarnação, e que o fazer-se Deus homem foi juntamente fazer-se
servo. Mas esta interpretação é imprópria, por não dizer injuriosa à natureza
humana. O ser homem é indiferente, ou para ser servo ou para ser senhor; e
Cristo, enquanto homem, não só foi Senhor, senão grande Senhor. Assim o disse o
anjo no mesmo dia da Encarnação, anunciando que, enquanto Deus, seria Filho do
Altíssimo, e, enquanto homem, herdeiro do cetro de seu pai Davi. Nesta
suposição falou sempre o mesmo Cristo: Non
est servus major domino suo. Si me persecuti sunt, et vos persequentur; e
hoje, depois do mesmo ato do lavatório: Vos
vocatis me Magister et Domine, et bene dicitis: sum etenim. Nem encontram,
antes confirmam esta distinção as mesmas palavras de São Paulo, as quais dizem
que tomou o Senhor a forma de servo, não fazendo-se, senão feito homem: Formam servi accipiens, in similitudinem
hominum factus - porque, feito homem na Encarnação, tomou a forma de servo,
lavando os pés aos homens. Expressa e esquisitamente Dioniso Alexandrino: Jesus Christus, Dominus et Deus apostolorum,
cum accipisset ,formam servi, surgit a coena, et ponit vestimenta sua, et
linteo praecinxit se: haec est forma servi. A baixeza do servo não é obra
ou injúria da natureza, senão da fortuna. A natureza a todos os homens fez
iguais: a fortuna é a que fez os altos, os baixos e os baixíssimos, quais são os
servos. E esta foi a fineza do amor de Cristo hoje sobre a do dia e obra da
Encarnação. Quando se fez homem tomou as condições da natureza; quando se fez
servo e lavou os pés aos homens, tomou as baixezas da fortuna. Aquilo foi
fazer-se, e isto desfazer-se: Exinanivit
semetipsum, formam servi accipiens.
Com duas comparações ou
metáforas, declara S. Paulo este fazer-se e desfazer-se: com metáfora da roupa
que se veste e se despe, e com metáfora do vaso que se enche e se vaza. Com
metáfora da roupa que se veste e se despe: Habitu
inventus ut homo; com metáfora do vaso que se enche e vaza: Exinanivit semetipsum e ambas as
metáforas parece que as tomou S. Paulo do mesmo ato do lavatório em que
estamos. . A da roupa enquanto se despe: Ponit
vestimenta sua - e a do vaso enquanto se vaza: Mittit aquam in pelvim. E por que usou S. Paulo destas duas
metáforas e destas duas comparações? Porque só com elas podia mostrar a
diferença deste ato e deste dia ao ato e ao dia da Encarnação. No dia e ato da
Encarnação, fazendo-se Deus homem, Deus vestiu-se da humanidade, porque a uniu
a si, e se cobriu com ela; e a humanidade, que era um vaso de barro pequeno e
estreito, ficou cheia de Deus, porque Deus a encheu com toda a imensidade de
seu ser: Quia ín ipso inhabitat omnis
plenitudo divinitatis corporaliter. E, sendo isto o que se fez no dia da
Encarnação, tudo isto - quanto à vista dos olhos humanos - se desfez no dia e
no ato de hoje. Porque, lançando-se Cristo aos pés dos homens, e tais homens, e
fazendo-se servo seu, e servo em ministério tão vil e tão abatido, parece que
Deus se despira outra vez da humanidade de que estava vestido, desunindo-se
dela, e que a mesma humanidade, que estava cheia de Deus, perdida a união com a
divindade, ficara totalmente vazia: Exinanivtt
semetipsum, formam servi accipiens. E foi isto assim como parece? Não. Mas,
posto que a humanidade de Cristo por este ato não perdeu a união com a
divindade, nem deixou de estar tão cheia de Deus como dantes estava,
abaixar-se, porém, e pôr-se em estado tão abatido, que o parecesse ou pudesse
parecer aos homens, foi uma diferença tão notável e tão estupenda, que só o
mesmo S. Paulo a pode ponderar e encarecer. Agora entra o mais profundo
pensamento das suas palavras.
Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum
exinanivit, formam serv accipiens (Flp 2, 6 s). O fazer-se Cristo servo,
sendo Deus - diz S.Paulo - não foi porque cuidasse ou tivesse para si o mesmo
Cristo que a sua divindade não era sua, senão alheia, como se a tivesse roubado
ao Padre. Pois Cristo podia cuidar nem ter para si que a sua divindade não era
sua? Claro está que não podia ter para si uma coisa tão contrária à verdade,
nem cuidar o que era tão alheio de todo o pensamento. Por que diz logo o
Apóstolo do terceiro céu que, quando Cristo se fez servo, não cuidou nem teve
para si que a sua divindade não era sua? Porque foi tal ato o de Cristo se
abater aos pés dos homens, que podiam os mesmos homens cuidar que Cristo o
cuidara assim. Homem que tanto se abate, ou não é Deus, ou, se foi Deus alguma
hora, tem deixado de o ser, ou, se ainda é Deus, deve de cuidar sem dúvida que
o não é, porque, sendo Deus, e tendo para si que é Deus, não se podia abater a
coisa tão baixa. E como o ato foi alheio de quem o fazia, que os homens podiam
entrar em tal pensamento, que, ou cuidassem que Cristo não era Deus, ou
cuidassem que o mesmo Cristo cuidou que o não era, por isso pondera e adverte
S. Paulo primeiro que tudo que, quando Cristo se abateu à baixeza de servo, não
foi porque cuidasse ou tivesse para si que não era Deus: Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum
exinanivit, formam servi accipiens.É o que também advertiu e ponderou o
nosso evangelista, na prefação com que entrou a narrar este mesmo ato. Por isso
disse que, quando o Senhor começou a lavar os pés dos discípulos, sabia que era
Deus, e que nas mesmas mãos com que lhes lavava os pés, tinha o poder de tudo: Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit,
et quia omnia dedit ei Pater in manus, caepit lavare pedes discipolorum. Crendo
pois S. Pedro firmissimamente esta verdade - que por isso disse: Domine, tu mihi? que muito é que, sendo
aquele grande piloto, que nunca perdeu o tino nas maiores tempestades, e se
atreveu a caminhar a pé sobre as mesmas ondas do mar, agora areasse e se
afogasse em tão pouca água, como a daquela bacia, e não pudesse tomar pé na
profundidade imensa de tão tremendo mistério?
V
Que importa que Pedro diga
tu mihi, se de si conhece pouco, e de Cristo nada? Se S. Pedro antes desse dia
foi capaz de entender perfeitamente o mistério da Encarnação, como agora não
estava ainda capacitado para entender o mistério do lavatório dos pés? Por que
Deus não é humilde, nem pode ser humilde? A voz dos dois abismos. Cristo na
Encarnação fez-se homem, e no lavar os pés aos homens fez-se não homem. Cristo
aos pés de Judas. No Cenáculo de Jerusalém, os dois degraus ou dois estados
mais abaixo do não ser.
Sossegou Cristo o assombro
e resistência de S. Pedro. Mas como? Quod
ego facio, tu nescis modo, scies autem postea (Jo 13, 7): Pedro, o que eu
agora faço, tu não o sabes nem o entendes, mas sabê-lo-ás depois. - Depois,
Senhor? E quando? Quando vires no céu, revestido de sua própria majestade, o
mesmo que agora vês meio despido e cingido com este pano servil. - Neste sentido
entendem o scies autem postea, Santo Agostinho, S. Crisóstomo, Beda, Ruperto,
Teofilato, Eutímio. E com razão. Assim como as semelhanças se não podem
conhecer senão de perto, assim as distâncias não se podem medir senão de longe.
- Que importa que digas tu mihi, se de ti conheces pouco, e de mim nada? Quando
vires o tudo que sou, então entenderás o muito que faço. Se falas pelo que
viste no Tabor, este é o excesso que se havia de cumprir em Jerusalém, de que
Moisés e Elias, mais assombrados do que tu, falavam. Agora deixa-te lavar, sob
pena de me não veres eternamente, nem chegares a saber o que estás vendo e não
sabes: Quod ego facio, tu nescis modo.
Assim disse com graves e
temerosas palavras o Senhor, e se dissera o mesmo a outro apóstolo, não me admirara
tanto, mas a S. Pedro? Isto é o que me admira muito, e muito mais na memória e
concurso dos dois dias em que estamos. Perguntou Cristo noutra ocasião aos
discípulos, que também estavam juntos: Quem
dicunt homines esse Filium hominis (Mt 16, 13)? Quem dizem os homens que é
o Filho do homem? - Os outros referiram vários ditos, porém S. Pedro respondeu:
Tu es Christus, Filius Dei vivi ( Mt
16, 16 ): Vós, Senhor, sois Cristo, Filho de Deus vivo. - Ajuntai agora esta
resposta de S. Pedro com a pergunta de Cristo, e vereis como o príncipe dos
Apóstolos, em tão poucas palavras, compreendeu e resumiu todo o mistério da
Encarnação: Filium hominis: Filius Dei
vivi. No Filium e no Filius compreendeu as duas gerações, uma
eterna e outra temporal; no hominis e no Dei
vivi compreendeu as duas naturezas, divina e humana; e no tu es,
compreendeu a união hipostática, com que uma indissoluvelmente se uniu à outra.
Pois, se S. Pedro antes deste dia, estando na terra, foi capaz de entender e
saber tão perfeitamente o mistério da Encarnação, como agora, com muito mais
tempo e estudo da escola de Cristo, não estava ainda com suficiente capacidade
para entender e penetrar o mistério do lavatório dos pés: Quod ego facio, tu nescis? E se pela confissão do mesmo mistério da
Encarnação se deram ao mesmo Pedro as chaves do céu, como se lhe reserva para o
céu a ciência do que estava vendo e admirando Scies autem postea? Aqui vereis quanto maior profundidade de
mistérios e de amor se encerra na ação tremenda de Cristo se prostrar aos pés
dos homens, do que no mesmo mistério altíssimo de Deus se fazer homem. A alteza
do primeiro com luz do céu pode-a alcançar na terra um pescador: a profundidade
deste segundo não a pode sondar em tão pouca água o maior apóstolo. A alteza do
mistério da Encarnação revelou-a o Padre, que está no céu, a Pedro estando na
terra. Caro et sanguis non revelavit
tibi, sed Pater meus, qui in caelis est; mas a profundidade do lavatório
dos pés não a revelará ao mesmo Pedro o Filho, senão quando o Filho e Pedro
ambos estiverem no céu: Scies autem postea.
Parece-me que S. Paulo
falou com o espírito de S. Pedro, quando disse: Neque altitudo, neque profundam poterit nos separare a charitate
Christi. Esta caridade de Cristo, conforme dizem os intérpretes, ou se pode
entender do amor com que nos amamos a Cristo, ou do amor com que Cristo nos ama
a nós, e neste segundo sentido diz S. Paulo que nem a alteza nem o profundo
pode fazer que Cristo nos não amasse, porque na alteza da Encarnação, sendo
Deus, nos amou fazendo-se homem, e no profundo do lavatório dos pés, sendo já
homem, nos amou pondo-se aos pés dos homens. Mas o eloqüentíssimo apóstolo,
depois de por o alto, então pos o profundo: Neque
altitudo, neque profundum - porque mais pondera e mais encarece o amor de
Cristo o profundo do lavatório, onde se abateu aos pés dos homens, que o alto
da Encarnação, donde desceu a ser homem.
Isto é o que eu sou
obrigado a ponderar nesta profundíssima ação; mas, quando Cristo diz a Pedro: Quod ego facio, tu nescis - onde Pedro
não sabe entender, quem saberá falar? À vista, contudo, da sua ignorância, me
atreverei eu a dizer as minhas, mas no concurso e comparação somente de um dia
com outro dia. O que todos encarecem no dia da Encarnação é humilhar-se Deus a
se fazer homem, mas é certo que este ato não foi de humildade; o lavar Cristo
os pés dos homens, sim, é a maior humildade de todas. E por que não foi
humildade o fazer-se Deus homem? Porque Deus não é humilde, nem pode ser
humilde. Humildade essencialmente é o conhecimento da própria dependência, da
própria imperfeição e da própria miséria, e, sendo Deus suma independência,
suma perfeição e suma felicidade, nem e nem pode ser humilde. Como dizem logo
todos os santos que Deus se humilhou neste grande ato? Porque se humilhou por
humilhação, e não por humildade. De el-rei Acab disse Deus ao profeta: Nonne vidisti humiliatum Achab (3 Rs 21,
29)? Não viste humilhado a Acab? - E Acab não era humilde, nem tinha humildade,
mas estava naquele caso humilhado não por humildade, senão por humilhação. A
este modo - mas por modo diviníssimo e santíssimo - se humilhou também Deus
quando se fez homem, porque até então nem era nem podia ser humilde. Porém, no
primeiro instante da Encarnação, ou no segundo depois de encarnado - como
querem outros teólogos - então começou também a ser humilde, e sumamente
humilde, como hoje mostrou mais que nunca. Onde se deve notar que este grande
extremo de humildade, depois da humilhação de se fazer homem, não só foi
conseqüência do novo estado, senão obrigação. Porque se Deus, antes de ser
humilde, se humilhou tanto que se abateu a ser homem, segue-se que, depois de
ser humilde, tinha obrigação de se humilhar muito mais. Obrigado, pois, Deus a
se humilhar mais do que se tinha humilhado, que havia de fazer? Só lhe restava
o que hoje fez. Ajoelha-se diante dos homens, e lava-lhes os pés com suas
próprias mãos, porque, só prostrado aos pés dos homens, se podia humilhar mais
do que se tinha humilhado fazendo-se homem.
Esta conseqüência, como
forçosa, a que a humilhação do primeiro mistério obrigou e empenhou a Cristo
para a humildade do segundo, reconheceu profeticamente Davi, quando disse: Abyssus abyssum invocat ( Sl 41 , 8 ):
que um abismo chama outro abismo. - Abismo já sabeis que é um pego imenso e
profundíssimo, como aquele de que fala a Escritura na primeira criação dos
elementos: Et tenebrae erant super faciem
abyssi. E que dois abismos foram estes, em que o primeiro chamou pelo
segundo? Não dissemos ao princípio que o dia da Encarnação se falava com o dia
de hoje: Dies diei eructat verbum?
Pois, quando estes dois dias se falaram, então chamou o mistério da Encarnação
pelo mistério do lavatório dos pés, e estes foram os dois abismos. O primeiro
abismo foi a Encarnação do Verbo, porque, fazendo-se Deus homem, se abismou e
sumiu de tal sorte a divindade na natureza humana, que desapareceu totalmente,
e por isso, estando dentro nela, não aparecia. O segundo abismo foi o lavatório
dos pés, porque, tendo-se Cristo sumido na Encarnação, enquanto Deus, lançado
depois aos pés dos homens, também se sumiu ali, enquanto homem. O mesmo Cristo
o disse: Ego sum vermis, et non homo;
opprobrium hominum, et abjectio plebis (Sl 21, 7): Eu sou um bichinho da
terra, e não sou homem, porque sou o opróbrio dos homens, e o abjeto da plebe.
- E quem é esta plebe, e quem é este abjeto? A plebe eram os apóstolos, por
natureza, por geração e por ofício plebe, porque eram uns pobres pescadores; e
o abjeto desta plebe era Cristo posto a seus pés e lavando-lhos, porque não
pode haver ato mais abjeto e vil, e mais inferior à mesma plebe, que
ajoelhar-se diante dela e lavar-lhe os pés. A água era somente a de uma bacia,
mas o abismo da ação era tão profundo que nele se abismou e sumiu de tal sorte
Cristo, ainda enquanto homem, que já não parecia nem aparecia nele sinal do que
era, senão uma negação do que tinha sido: Non
homo: um não homem. Muito mais se desfez logo Cristo sem comparação, e
muito mais fez o seu amor no ato do lavatório dos pés que na obra da
Encarnação, porque na Encarnação fez-se homem, no lavar os pés aos homens
fez-se não homem: Non homo.
E se assim se sumiu Cristo
lavando os pés a Pedro e aos outros discípulos, que direi eu, ou que posso
imaginar, quando o vejo prostrado aos pés de Judas? Aqui se somem também até os
entendimentos dos serafins, e emudecem de pasmo as línguas dos anjos. - Se
Pedro, Senhor, vos disse assombrado: Tu
mihi: Vós a mim? - com quanto maior assombro vos podemos nós dizer - Tu
Judae: Vós a Judas? A Judas, aquele traidor endemoninhado, de quem diz S. João:
Cum diabolus jam misisset in cor ut
traderet eum Judas? A Judas, aquele precito infernal e maior de todos os
precitos, do qual vós mesmo dissestes: Bonum
erat ei, si natus non fuisset homo ille? Não quero outra ponderação que
estas vossas mesmas palavras. - Diz Cristo que em Judas era melhor o não ser
que o ser, e não se pudera mais encarecer, nem a ínfima miséria de Judas, nem o
ínfimo abatimento de Cristo posto a seus pés. Eu bem sei as sutilezas com que a
filosofia disputa se em Judas e em qualquer outro condenado fora melhor o não
ser que o ser; mas, onde temos uma conclusão absoluta de Cristo, não valem nada
as argúcias dos filósofos. Salomão faz três classes de homens: os vivos, os
mortos e os que não nasceram; e só na consideração dos males temporais desta
vida antepõe os mortos aos vivos, e os que não nasceram a uns e outros. Que
diria se fizera a comparação com os males eternos que esperavam a Judas, e com
o pecado em que estava obstinado, que é o maior de todos os males? Por todas as
razões era melhor em Judas o não ser que o ser. E que se pusesse Cristo aos pés
de um homem, cujo ser era pior que o não ser? Do ser, qualquer que seja, ao não
ser, há infinita distância; e sendo esta distância infinita, hoje se viram no
Cenáculo de Jerusalém dois degraus, ou dois estados mais abaixo do não ser. O
primeiro em Judas, que estava mais abaixo do não ser, porque lhe fora melhor
não ser que ser; e o segundo em Cristo que, estando Judas mais abaixo do não
ser, ele estava aos pés de Judas. Medi agora, começando de Deus, a baixeza em
que esta posto o Filho do mesmo Deus, por amor dos homens. Abaixo de Deus, com
infinita distância, está todo o criado; abaixo de todo o criado, com distância
também infinita, está o não ser; abaixo do não ser está Judas, e abaixo de
Judas está Cristo. Tanta diferença vai de Deus no dia da Encarnação feito
homem, a Cristo no dia de hoje, posto aos pés de tal homem! Aquele foi o cum dilexisset, este é o in
finem dilexit.
VI
O Sacramento do Altar e o
mistério da Encarnação. Se Cristo, Senhor nosso, se chamou Jesus, como diz o
profeta Isaías que o Filho que nascesse de uma Virgem se havia de chamar
Emanuel? No caso em que Adão não pecasse, se havia de encarnar Deus?
Tarde chego, sacramentado
Senhor, à comparação desse sacrossanto e diviníssimo mistério com o mistério de
vossa Encarnação, também diviníssimo; mas esse mesmo trono de majestade, em que
vos vemos e adoramos, ou vos adoramos sem vos ver, nos está publicando os
triunfos de vosso amor neste dia, em que por ser o último de vossa visível
presença, vos deixastes conosco. Seja esta a primeira prova.
Profetizando Isaías o
mistério da Encarnação do Verbo com palavras mais expressas e circunstâncias
mais singulares que todos os outros profetas, disse que uma Virgem conceberia e
pariria um Filho, o qual se chamaria Emanuel: Ecce Virgo concipiet, et pariet Filium, et vocabitur nomen ejus
Emmanuel (Is 7, 14). Nesta última palavra reparam muito os pouco versados
na frase da Escritura. Cristo, Senhor nosso, não se chamou Emanuel, chamou-se
Jesus: como diz logo o profeta que o Filho que nascesse de uma Virgem se havia
de chamar Emanuel? Mas este reparo, como digo, é por ignorância da frase
hebréia. Na língua hebraica, assim como as coisas se chamam palavras: verba,
assim o chamar-se significa ser, e isso quer dizer vocabitur. Da mesma frase
usou o anjo, no mesmo dia e mistério da Encarnação, anunciando à Virgem que o
que de suas puríssimas entranhas havia de nascer se chamaria Filho do
Altíssimo: Filius Altissimi vocabitur
(Lc 1, 32) - sendo assim que Cristo, por humildade, não se chamava Filho do
Altíssimo, senão: Filius hominis:
Filho do homem. Mas falaram por esta frase, assim o profeta como o anjo no
mesmo caso, porque vocabitur quer dizer será. Suposto, pois, que o chamar- se
significa ser, e o nome se toma pelo significado, que quis significar o profeta
quando disse que o Filho que nasceria de uma Virgem se havia de chamar Emanuel?
Emanuel quer dizer: Nobiscum Deus:
Deus conosco, e isto é o que anunciou e prometeu Isaías nesta famosa profecia,
dando por nova aos homens, tão admirável como certa, que aquele mesmo Deus,
cuja majestade se conservou sempre tão retirada e longe de nós, sem jamais se
abalar nem sair do céu, agora se havia de humanar tanto, que se fizesse homem,
e descesse à terra para nela morar e estar conosco: Nobiscum Deus.
Disse, sem se abalar
jamais nem sair do céu, porque quando se diz nas Escrituras que Deus formou o
barro de Adão, e que desceu a impedir a fábrica de Babel, e que apareceu a
Moisés na sarça, e lhe deu a lei no Monte Sinai, e outras ações semelhantes, os
que obravam visivelmente estas coisas - segundo o mais provável sentir dos
doutos - eram anjos que representavam a Deus, e não o mesmo Deus em pessoa. Por
isso Deus naquele tempo dizia: Caelum
mihi sedes est. E Davi contava e cantava por grande maravilha que, estando
Deus tão alto, se dignasse de olhar cá para baixo e por os olhos na terra: Quis sicut Dominus Deus noster, qui in altis
habitat, et humilia respicit in caelo et in terra? Porém, como o amor não
se contenta de longes, e sofre mal ausências, pode tanto o amor dos homens com
Deus que o trouxe do céu à terra, e o fez homem, não tanto para nos remir e
salvar - como muitos cuidam - quanto pelo desejo que tinha e pelo gosto que
havia de ter de estar conosco: Nobiscum
Deus.
É celebérrima questão
entre os teólogos, no caso em que Adão não pecasse, se havia de encarnar Deus?
Santo Tomás e a sua escola dizem que não. Scoto, com a sua, afirma que sim.
Distingo e concordo ambas as opiniões. Porque Adão pecou, encarnou Deus em carne
passível, porque era mais proporcionado à culpa, e mais conveniente à
satisfação o padecer e morrer. Porém, se Adão não pecara, havia de encarnar
contudo Deus, mas em carne impassível, porque onde não havia culpa, não era
necessária a pena, e fazia-se homem no tal caso, não para satisfação do nosso
pecado, senão para satisfação do seu amor. Não é esta distinção minha, senão do
mesmo Concílio Niceno: Qui propter nos
homines, et propter nostram salutem incarnatus est: Encarnou Deus por amor
de nós e por amor de nossa saúde. - Onde se vê claramente que o mistério da
Encarnação teve dois motivos distintos: um motivo o remédio, e outro motivo o
amor, mas o amor primeiro que o remédio. De sorte que, se o remédio não fora
necessário, pelo motivo só do amor dos homens havia de encarnar Deus, porque
esse foi o primeiro motivo, e o primário: Qui
propter nos homines. Íeis visitar um amigo, soubestes no caminho que estava
ferido, e visitastes-lo como amigo e como ferido, mas com tal pressuposto, que,
se não estivera ferido, só por amigo o havíeis de visitar, que este foi o vosso
primeiro intento. O mesmo sucedeu no mistério da Encarnação, ao qual Zacarias
chamou visita de Deus: Visitavit nos,
oriens ex alto. O primeiro decreto de Deus se fazer homem, antes da previsão
do pecado, foi unicamente o amor dos homens, e para morar e estar com eles,
como já então dizia: Deliciae meae esse
cum filiis hominum. Aconteceu depois o pecado de Adão, e a ferida mortal do
gênero humano, com que ao motivo do amor se ajuntou o motivo do remédio, e
Deus, que só nos havia de visitar por amigo, nos visitou também por feridos. Propter nos homines, et propter nostram
salutem. E assim como ao outro amigo na visita que só fazia por amor e por
gosto, lhe acresceu a dor e a pena, assim Deus, que havia de vir homem
impassível, veio passível. Em suma, que o intento e fim da Encarnação, como
dizia, não foi tanto para Deus nos remir e salvar, que foi o segundo motivo,
quanto para satisfazer a seu amor e estar conosco, que foi o primeiro; e por
isso Isaías, que com tanta expressão de circunstâncias revelou os arcanos da
Encarnação do Verbo, podendo dizer que o Filho que havia de nascer da Virgem se
chamaria Jesus, que quer dizer Salvador, não disse senão que se chamaria
Emanuel, que quer dizer Deus conosco, porque o principal motivo de Deus se
fazer homem não foi tanto o remédio de salvar os homens, quanto o amor e desejo
de estar com eles: Nobiscum Deus.
No comments:
Post a Comment