Sermão de 1639.
Misit servos suos vocare invitatos nuptias
I
É
semelhante o reino do céu a um homem rei. — Vou repetindo e construindo o texto
do Evangelho, palavra por palavra. Tende advertência e fazei memória de todas,
porque têm mistério, e todas nos hão de servir. — É semelhante o reino do céu —
diz Cristo, Redentor nosso — a um homem rei, o qual fez as bodas a seu filho.
Chegado o dia, mandou a seus criados que fossem chamar os convidados para o
banquete, e eles não quiseram vir. Tornou, contudo, a mandar outros criados com
outro recado nesta forma: — Dizei-lhes que venham, porque o banquete está
aparelhado e o gasto feito, as reses e as aves mortas, e tudo preparado. — Os
convidados, porém, não fizeram caso desta segunda instância: uns se foram para
a sua lavoura, outros para a sua negociação, e alguns houve tão descomedidos,
que prenderam os mesmos criados, e, depois de muitas afrontas, os mataram.
Irou-se o rei, como era justo, mandou os seus exércitos a que fossem castigar
aqueles rebeldes, com ordem que não só matassem os homicidas, mas pusessem fogo
a toda a cidade, e a queimassem. Executado assim, voltou-se o rei para os
criados e disse: — O banquete está aparelhado; e pois os convidados não foram
dignos, ide às saídas das ruas, e trazei quantos achardes. — Foram, e ajuntando
quantos encontraram, maus e bons, todos trouxeram e introduziram, com que os
lugares do convite ficaram cheios. Então o rei entrou em pessoa na sala para os
ver à mesa, e como notasse que entre eles estava um sem vestidura de bodas,
estranhou-lhe a descortesia, dizendo: Amigo, como entraste aqui tão
indecentemente vestido? — O homem emudeceu, e o rei mandou a seus ministros
que, atado de pés e mãos, o lançassem fora e o levassem a um cárcere
subterrâneo e escuro, chamado trevas exteriores. Ali não haverá — conclui
Cristo — senão choro e ranger de dentes, porque os chamados são muitos, e os
escolhidos poucos.
Esta é, letra por letra, a história ou parábola do
Evangelho, para cuja inteligência convém saber quem é o rei, quem o filho,
quais as bodas, qual o banquete, quem os convidados que vieram, quem os que não
quiseram vir, e quem os criados que os foram chamar. O rei é o Eterno Padre; o
filho é o Verbo, segunda Pessoa da Santíssima Trindade; as bodas são a
Encarnação do mesmo Filho de Deus, que se desposou com a natureza humana; o
banquete é a glória e bem-aventurança do céu, que por meio deste mistério se
nos franqueou; os convidados que vieram são os que se salvam; os que não
quiseram vir, os que se condenam; e os criados, finalmente que os chamaram são
os pregadores. Suposto pois que este é o ofício e esta a obrigação do pregador,
esta será também hoje a matéria do sermão. Misit
servos suos vocare ad nuptias (Mt. 22,3). Manda-me Deus, senhores, que vos
chame para o banquete da glória, e assim o farei. Mas quando vejo nesta mesma
parábola que, chamados uma e outra vez os convidados, não quiseram vir, que
razões vos posso eu alegar, ou de que meios me posso valer para vos persuadir o
que tantos pregadores e escolhidos por Deus não persuadiram? Toda a minha
confiança trago posta na virtude e eficácia do Evangelho; e assim vos não direi
outra coisa, senão o que ele diz, e já ouvistes. Ponderarei somente as suas
palavras, e ponderá-las-ei todas, sem deixar nenhuma, e para quanto disser e
provar não alegarei outra escritura, nem do Velho nem do Novo Testamento, mais
que o mesmo Evangelho. Se vos parece assunto novo e dificultoso, por isso mesmo
me deveis ajudar a pedir mais graça hoje, que noutras ocasiões. Ave Maria.
II
Misit servos
suos vocare invitatos ad nuptias. Chamar os convidados para o banquete da
glória é assunto que tomei ou me mandou tomar o Evangelho. E não sendo este
banquete senão o do Santíssimo Sacramento, o que com repetida memória de todos
os meses celebra hoje a vossa piedade, para que me deis atenção, sem desgosto
nem escrúpulo, sabei que o mesmo Evangelho vos há de livrar dele, e com
propriedade e mistério até agora não ouvido, nem de vós esperado.
Entrando, pois, na parábola que referi, a primeira
coisa que ela supõe para fundamento do muito que encerra e nos há de ensinar, é
que todos os que estamos presentes somos convidados para o banquete da glória.
Para prova desta suposição, diz o texto que, chegado o dia das bodas, mandou o
rei alguns dos seus criados que fossem chamar os convidados para o banquete: Misit servos suos vocare invitatos ad
nuptias (Mt. 22,3). E como estes não quisessem vir, em vez de se mostrar
ofendido como homem e como rei: Homini regi, para mostrar que debaixo desta
metáfora era Deus, tornou a mandá-los chamar, não pelos mesmos, senão por
outros criados: Misit alios servos.
Quem fossem estes criados, assim os primeiros como os segundos, declaram com
excelente propriedade Orígenes, S. Jerônimo e Santo Tomás. Os primeiros dizem
que foram os profetas, os segundos os apóstolos. Os profetas foram os
primeiros, porque primeiro chamaram os convidados na lei escrita; e os
apóstolos foram os segundos, porque, vindo depois dos profetas, também chamaram
os convidados na lei da graça. Daqui se segue, com a mesma propriedade, que os
convidados para o banquete da glória, antes de virem os apóstolos e os
profetas, já estavam convidados. Antes dos profetas já estavam convidados,
porque dos primeiros criados diz o texto: Misit
servos suos vocare invitatos; e antes dos apóstolos também estavam
convidados, porque aos segundos criados disse o rei: Dicite invitatis. Pois, se já estavam convidados antes de haver
apóstolos nem profetas, e nem os apóstolos nem os profetas foram os que os
convidaram, senão os que somente os chamaram, quem os convidou? Não há dúvida
que quem os convidou foi o mesmo rei, pai do príncipe desposado, que é Deus.
Mas quando? Alguns dizem que foram convidados ab aeterno, quando Deus
predestinou os homens para a glória. Mas isto não pode ser, porque convidar e
ser convidado supõe notícia recíproca, e os homens não podiam ser convidados
quando ainda não eram destinados ou predestinados. Logo, se antes dos apóstolos
e dos profetas já estavam convidados, quando os convidou Deus? Convidou-os em
Adão, quando lhe revelou que não só o criara a ele e a todos seus descendentes
para o paraíso da terra nesta vida, senão para a glória do céu na outra. Nem a
verdade, ordem e conseqüência da parábola se pode concordar doutro modo com a
verdadeira teologia. Em suma, que desde o princípio do mundo e desde Adão,
assim como depois todos pecamos nele, assim todos somos convidados nele para o
banquete da glória, porque o fim, para que todos nascemos e somos criados, é
para servir a Deus na vida, e o gozarmos na eternidade.
Suposta esta primeira verdade tão manifesta no nosso
Evangelho, e suposto também que os sucessores dos apóstolos e profetas, que
foram chamar os convidados, são os pregadores, o que a mim me toca hoje — como
dizia — é chamar-vos também para o banquete, e persuadir-vos que vos não
escuseis ou condeneis em o não querer aceitar. Mas, se o banquete é da glória,
que posso eu dizer da grandeza, da magnificência e do sumo gosto e gostos que
Deus tem aparelhado nela para os que forem dignos de a gozar? Dos profetas e
apóstolos que chamaram os convidados para o banquete da glória, só dois a
viram. Um a viu de longe, estando na terra, que foi Isaías; e outro a viu de
perto, sendo levado ao céu, que foi S. Paulo. E que é o que disseram um e outro
do que lá viram? O que disseram ambos conformemente é que se não pode dizer,
porque os bens e felicidades daquela pátria bem-aventurada são tão diversos
destes nossos, a que falsamente damos o mesmo nome, que excedem sem proporção
nem medida a capacidade de todos nossos sentidos e a esfera natural de todas
nossas potências. Pois, se o mais alumiado nas coisas da bem-aventurança entre
os profetas, qual foi Isaías, e o mais alumiado e experimentado nelas entre os
apóstolos, qual foi S. Paulo, não sabem dizer nada do que viram, que posso eu
dizer do que não vi, nem mereço ver? Mais ainda. Quando os primeiros criados do
rei, que eram os profetas, foram chamar os convidados, diz o texto que eles não
quiseram vir: Nolebant venire (Mt.
22,3); e quando os segundos criados, que eram os apóstolos, os chamaram, também
diz que não fizeram caso disso: Illi
autem neglexerunt (lbid. 5). Pois, se chamados com toda a eloqüência dos
profetas, e com toda a eficácia dos apóstolos se não persuadiram, que
argumentos, ou que demonstrações vos posso eu fazer, para que entendais o que
eles não entenderam, para que queirais o que eles não quiseram, para que
estimeis o que eles desprezaram, e para que procureis e trabalheis por alcançar
o que eles, uma e outra vez rogados, não admitiram.
III
Esta é a razão, fiéis, porque hoje me despedi de
todas as outras Escrituras, e só com o Evangelho, nua e secamente considerado,
quero fazer prova da vossa fé e da sua graça. Em todas as outras Escrituras
apenas se acham divididas três coisas, as quais Cristo, Senhor nosso, pôs
juntas neste Evangelho, para com elas nos ensinar a fazer inteiro e cabal
conceito da glória a que nos tem convidado. Propõe-nos esta glória em metáfora
de banquete, em que até os mais grosseiros sentidos são agudos, e as três
circunstâncias notáveis que nele pondera, e quer que ponderemos, são estas.
Primeira: quem o fez? Segunda: para quem se fez? Terceira: quanto custou a
fazê-lo?
O rei que fez este banquete da glória: Qui fecit nuptias, é Deus. Assim o
entendem concordemente todos os Padres e expositores, e se é Deus o que o fez: Qui fecit, quais serão as delícias
incompreensíveis daquela mesa celestial e divina, a qual fez e colocou diante
de si o mesmo Deus, não só para última ostentação de sua majestade e grandeza,
mas para fazer eternamente bem-aventurados a todos os que se assentarem a ela?
Tudo o que se pode imaginar e encarecer se encerra na significação daquela
imensa palavra: Qui fecit. O que o
fez é a infinita Sabedoria, o que o fez é a infinita onipotência, o que o fez é
a infinita liberalidade e o infinito amor. Vede, que será o que fez? Os
filósofos, que não tinham fé, pelas coisas que se vêem neste mundo inferior,
entenderam que o autor delas era Deus. Nós, que temos fé, havemos de argumentar
às avessas, e porque sabemos que o autor das coisas do céu, que não vemos, é
Deus, daí havemos de argüir quais elas serão. Mas não é isto o que pondero;
mais alto é o fundo do nosso texto.
Simile est
regnum caelorum homini regi, qui fecit nuptias filio suo (Mt. 22, 2): É
semelhante o reino do céu a um homem rei, que fez as bodas a seu filho. — Este
homem rei, como dissemos ao princípio, é Deus Padre, que fez as bodas a seu
filho, quando o desposou e uniu com a natureza humana. Pois, se é Deus Padre,
por que se chama rei homem: Homini regi?
Que se chame rei, para significar a soberania de sua majestade e a grandeza de
seu poder, bem está; mas rei homem, parece impropriedade, porque o Padre
Eterno, ainda que fez homem a seu Filho, ele nem se fez, nem é homem. Diga logo
a parábola: semelhante é o reino do céu a um rei, e não a um rei homem, pois
não é homem o rei de que fala. E se quer distinguir este rei dos outros reis,
diga: a um rei Deus, e não a um rei homem: Homini
regi. Assim havia de ser se a parábola não fora do banquete da glória. Mas
porque é do banquete da glória, sendo o Eterno Padre Deus, e não homem,
chama-se contudo homem, e não Deus, porque na magnificência deste banquete,
para que fosse mais magnífico, não obrou Deus como Deus, senão como homem. Ora
vede. O homem, quando se quer mostrar magnífico e grandioso, faz quanto pode;
porém Deus, ainda que quisesse fazer quanto pode, não pode. A razão que a nós
nos basta, deixadas outras, é muito clara, porque, como Deus é onipotente, por
mais que faça, sempre lhe fica poder para fazer mais. E se pudesse fazer quanto
pode, esgotar-se-ia a onipotência, e, não sendo onipotente, deixaria de ser
Deus. Este é pois o modo com que Deus obra em todas as outras coisas, em que
sempre faz menos do que pode, e pode mais do que faz. Porém no banquete da glória,
como se obrara como homem, faz tudo o que pode, e não pode mais. Por quê?
Porque se dá a gostar e a gozar a si mesmo. A glória imensa do mesmo Deus, que
só ele compreende, em que consiste? Consiste em se ver, em se amar, em se gozar
a si mesmo. Pois esse mesmo Deus, e esse mesmo sumo bem, que Deus vê, é o que
nós vemos, esse mesmo que Deus ama é o que nós amamos, e esse mesmo que Deus
goza é o que nós gozamos na glória, porque a sua mesa e a nossa é a mesma. E
isto é o que fez este rei Deus, como se fora rei homem: Homini regi, qui fecit.
Dirá, contudo, alguém que não basta isto só para Deus
obrar como homem na magnificência da glória, porque os homens, quando se querem
ostentar magníficos, não só fazem tudo o que podem, senão mais do que podem.
Vemos que os reis homens, depois de despender seus tesouros, ou os reconhecer
menores que sua magnificência, carregam de tributos sobre tributos os povos,
para assim igualar à ostentação de sua grandeza. E os homens que não são reis
também fazem o mesmo, e por isso nas festas de um dia se empenham para toda a
vida, e deserdam e empobrecem toda a sua descendência. Logo, para Deus obrar
como homem na magnificência do banquete da glória, não só havia de fazer quanto
pode, senão mais do que pode. Assim é, e assim o faz Deus, se bem se considera.
Obra Deus tanto como homem no banquete da glória, que não só faz tudo o que
pode, senão também mais do que pode, porque faz que gozemos nela o que ele não
pode fazer. Deus pode fazer criaturas, e essas mais e mais perfeitas infinitamente;
pode fazer mais e melhores mundos, pode fazer mais e melhores céus; mas
fazer-se a si mesmo, ou outros como ele é, não pode, porque nem ele se fez a
si. E isto que Deus não fez nem pode fazer, faz que nós o gozemos no banquete
da glória, sendo o mesmo Deus a primeira e a principal iguaria daquela mesa
divina. No nosso texto o temos.
Quando o rei mandou a segunda vez chamar os
convidados, a forma do recado foi que viessem às bodas, porque o banquete
estava preparado: Ecce prandium meum
paravi: venite ad nuptias. E suposta esta distinção das bodas enquanto
bodas e enquanto banquete, é muito para reparar que as bodas diz o texto que as
fez o rei: Qui fecit nuptias filio suo;
porém o banquete, não diz o rei que o fez, senão que o preparou: Ecce prandium meum paravi. Pois, por que
não diz também que fez o banquete, assim como diz que fez as bodas? Porque as
bodas fê-las Deus; o banquete não o fez: preparou-o somente. As bodas
significam a Encarnação do Verbo, o banquete significa a glória dos bem-aventurados;
e a Encarnação do Verbo fê-la Deus porque fez a humanidade e a união
hipostática; porém a glória dos bem-aventurados não a fez, porque o objeto da
glória, e o que os bem-aventurados nela gozam, é o mesmo Deus, e Deus nem se
fez, nem se pode fazer. Mas este mesmo banquete da glória, que não diz que fez,
diz altíssima e propriissimamente que o preparou, porque, elevando
sobrenaturalmente o entendimento com que o vemos, com este, que se chama lume
da glória, o prepara e nos faz capazes de o gozar. De sorte que o banquete da
glória é um composto de tudo o que Deus pode fazer, e de mais do que pode. Da
parte do objeto, que é Deus visto e gozado, é mais do que Deus pode fazer,
porque Deus não se pode fazer a si mesmo, e da parte do sujeito, que é o bem-aventurado
que vê e goza a Deus, é tudo o que Deus pode, porque não pode Deus fazer mais
que elevar a criatura a que o veja e goze, assim como ele é; e por este modo se
verifica que no banquete da glória faz Deus, como se fosse homem, não só tudo o
que pode fazer, senão mais do que pode.
E que mais fazem os homens quando se querem mostrar
magníficos? Se lhes não basta para isso o que têm de seu, pedem emprestado o
que não têm, e com o seu e o emprestado suprem a magnificência da obra. Isto
fazem ultimamente os homens, e isto é o que também fez Deus, como se obrasse
como homem: Homini regi. O homem, com
os olhos da alma, que são espirituais, se forem elevados, pode ver a Deus; mas
com os olhos do corpo, em que não é possível tal elevação, não o pode ver; e que
fez Deus para que o homem não só com a alma, mas também com o corpo, o gozasse
inteiramente no banquete da glória? O que fez Deus foi pedir emprestado à
natureza humana o corpo que não tinha, e unindo, por este modo inefável, a
divindade com a humanidade, o mesmo banquete da glória, que tem por objeto a
Deus, ficou não só divino, mas divino e humano juntamente: divino, para
beatificar o homem na alma, e humano, para o beatificar no corpo. É pensamento
altíssimo de S. Cipriano: Deus homo
factus est, ut homo haberet in Deo unde fieret plene beatus: in anima videndo
divinitatem, in corpore videndo humanitatem. Sendo o homem composto de alma
e corpo, se somente visse a Deus com os olhos da alma, ficaria beatificado como
de meias, e não inteiramente; e como se Deus fizera a consideração de Epicteto:
— Hoc inter epulandum considera, duos
tibi excipiendos convivas, corpus et animam — vendo que em cada homem se
haviam de assentar à sua mesa dois convidados, um que é a alma, outro que é o
corpo, para que um e outro recebesse o gosto, e tivesse a satisfação
proporcionada à sua capacidade. A este fim, diz Cipriano, tomou Deus a natureza
humana, e se vestiu do corpo que não tinha, fazendo-se homem, para que o homem,
gozando no mesmo Deus a vista da divindade, com os olhos da alma, e a vista da
humanidade, com os do corpo, fosse inteiramente bem-aventurado: Ut homo haberet in deo unde fieret plene
beatus. Aos anjos, que são puros espíritos, basta-lhes, para ser
inteiramente bem-aventurados, ver a divindade de Deus; porém ao homem, que é
composto de espírito e corpo, não lhe bastava: por isso, pois, não lhe bastando
também a Deus, para nos fazer inteiramente bem-aventurados no banquete na
glória, a natureza divina que tinha, tomou emprestado da natureza humana o que
lhe faltava, e deste modo encheu as medidas, ou a imensidade, de sua
magnificência, obrando não só como Deus, senão também como homem: Homini regi, qui fecit.
IV
Declarada a grandeza da glória por parte de quem a
fez, segue-se a segunda consideração, e maior ainda — se pode ser maior — em
que vejamos e ponderemos para quem se fez. Naquela considerou-se o autor da
obra, que é o Pai; nesta considerou-se o motivo, que é o Filho; Fecit nuptias Filio suo. Mas quem poderá
declarar bastantemente a excelência infinita deste soberano motivo, que só o
mesmo Pai compreende? Os mais sublimes entendimentos, quando querem rastear de
algum modo a realeza do banquete da glória, do que vemos e experimentamos na
terra conjecturam o que será no céu. Na terra pôs Deus a mesa aos homens, e é
coisa tão digna de agradecimento como de admiração, que, de seis dias em que
criou o mundo, empregasse os três maiores e mais fecundos só em prover esta
mesa. Tudo quanto nada no mar, tudo quanto voa no ar, tudo quanto nasce ou
pasce na terra, são os simples que produziu a natureza, para que deles
compusesse e temperasse a arte, o sustento e regalo do homem. As espécies que
se contêm debaixo destes quatro gêneros vastíssimos, tão várias na formosura
tão esquisitas nos sabores e infinitas no número, excedem sem limite a
capacidade do gosto e dos outros sentidos. E que discurso há, que não pasme na
consideração do poder, magnificência e grandeza com que mais parece quis Deus
enfastiar o apetite humano com a superfluidade da mesa, que fartar a necessidade
com a abundância? Daqui faz três ilações Santo Agostinho, comparando lugar com
lugar, tempo com tempo, e pessoas com pessoas: Si tanto facis nobis in carcere, quid ages in pelatio? Si tanta solatia
in hac die lachrymarum, quanta conferes in die nuptiarum? Quid dabit iis, quos
praedestinavit ad vitam, qui haec dedit etiam iis, quos praedestinavit ad
mortem? Se Deus fez tantas delícias para o desterro e para o cárcere, que
será para a pátria e para o palácio? Se assim nos sustenta e regala no tempo
das lágrimas, que será no dia das bodas? Se tudo isto criou também para os
inimigos, que hão de arder no inferno, que será para os amigos, que o hão de
gozar no céu? — Esta é a diferença que pondera, e o argumento e conjectura que
faz Santo Agostinho. Mas, com licença de seu alto entendimento, ou sem ela, o
excesso que se argúi do nosso texto é infinitamente maior. Não faz comparação
de lugar a lugar, nem de tempo a tempo, nem de estado a estado, nem de pessoas
a pessoas, ainda que sejam tão indignas umas, como os precitos: Quos praedestinavit ad mortem — e tão
dignas outras, como os predestinados: Quos
praedestinavit ad vitam. Mas, abstraindo de toda a comparação -porque a não
há — diz que será o banquete qual deve ser o das bodas do Filho: Qui fecit nuptias Filio suo. Considere
quem o puder ou souber considerar, quanta é a sua grandeza e dignidade do
Filho, cujas bodas se festejam, tão infinito, tão imenso e tão Deus como o
próprio Pai, e daqui forme o conceito de qual será o banquete, porque toda a
outra conseqüência e conjectura feita de uns homens a outros homens, por mais
amigos, por mais amados, por mais cheios de graça, por mais santos e por mais
dignos que sejam os que se hão de assentar àquela soberana mesa, é
infinitamente desigual à sua magnificência.
Haverá, porém, quem cuide — e fundado no nosso mesmo
Evangelho - que a grandeza e magnificência da mesa da glória não se há de medir
com a dignidade do Filho, senão com a dignidade dos convidados. Assim o disse o
mesmo rei, quando eles não quiseram vir: Sed
qui invitati erant, non fuerunt digni. Não lhes chamou ingratos,
descorteses e descomedidos, como mereciam; o que somente disse é que não foram
dignos. E quem são os dignos ou indignos do banquete da glória? Os dignos são
os que têm merecimentos de boas obras, e os indignos os que os não têm. Não se
segue daqui que os que não foram dignos de vir ao banquete também não tinham
sido dignos de ser chamados a ele, porque a dignidade que faz dignos de ser
chamados funda-se na excelência da natureza racional, capaz de ser elevada a
ver a Deus; e a dignidade que faz dignos de o ver e gozar na glória funda-se na
disposição da vontade e merecimento das boas obras. E daqui vem que, sendo o
banquete o mesmo, uns o gozam mais, outros menos, segundo a maior ou menor dignidade,
isto é, segundo o maior ou menor merecimento com que se fazem dignos. Logo, se
a porção ou graus da glória — que Deus não quis que alcançássemos, senão a
título de prêmio — se mede ou há de medir no céu pelos merecimentos desta vida,
e o merecimento humano, por grande e heróico que seja, sempre é curto e
limitado, a mesma sentença do rei, com que diz que os convidados não foram
dignos, não só se lhes nega a eles a dignidade, mas também diminui ao banquete,
porque, medido com os merecimentos, ainda dos dignos, e muito dignos, sempre
será limitado.
Bem se inferia assim, se Deus fizera o banquete para
nós por amor de nós; mas o Evangelho nega a conseqüência, e prova o contrário,
porque diz que o não fez o rei para os convidados por amor dos convidados,
senão para os convidados por amor do Filho: Fecit
nuptias Filio suo. Dizei-me: quando nasce ou se desposa um príncipe
primogênito, não se fazem festas reais com a maior grandeza, com a maior
majestade, com o maior aparato e empenho que é possível? Sim. E esse empenho e
aparato das festas reais, com quem se mede? Com o merecimento do povo, que as
há de ver e gozar, ou com o merecimento e grandeza do príncipe, por quem se
fazem? Claro está que com o merecimento e grandeza do príncipe. Pois o mesmo se
passa no banquete do céu. A grandeza da glória e bem-aventurança que havemos de
gozar não se mede pela estreiteza dos nossos merecimentos, que são limitados,
senão pelos merecimentos e dignidade do príncipe, que é infinita. Os
merecimentos nossos, fundados nos seus, só servem de ter melhor lugar no
banquete, assim como cá nas festas uns têm lugar mais alto, outros mais baixo.
Porém o ver e gozar absolutamente, ou a grandeza do que se vê e se goza, não se
mede pelos nossos merecimentos, senão pelos de Cristo, porque se não foram os
merecimentos de Cristo, que é a causa de nossa predestinação, a ninguém se dera
a glória.
Considerai agora qual é a grandeza infinita do
príncipe desposado nas bodas, e daí podereis inferir qual será a magnificência
do banquete feito para elas. Assim o declarou com majestosa energia o mesmo
rei. No recado que deu aos segundos criados, disse: Ecce prandium meum paravi: venite ad nuptias (Mt. 22, 4). Notai que
não disse está preparado o banquete, vinde ao banquete, senão: está preparado o
banquete, vinde às bodas. E por quê? Porque as mesmas bodas, por serem de quem
eram, eram as que mais encareciam qual havia de ser o banquete. Como se
dissera: Já uma vez não quisestes vir ao banquete, sem dúvida porque não tendes
entendido qual ele é. E para que vos arrependais de não ter querido, e venhais
com tanta ambição como vontade, adverti e considerai qual será o banquete, pois
é feito para as bodas de meu Filho: Venite
ad nuptias. Se o banquete fora feito para vós, então o podereis estimar
menos; mas sendo feito para o Filho do Rei, e havendo vós de assentar à mesa
com ele, como vos podeis escusar? Assim concluiu com mais alta e mais adequada
consideração que as primeiras, o mesmo Santo Agostinho: Ubi erit unicus ejus, ibi erunt et illi: haeredes quidem Dei,
cohaeredes autem Christi. Já não argumenta Agostinho da terra para o céu,
nem dentro do mesmo céu com o merecimento e dignidade dos que Deus escolheu
para a glória, nem com a graça e amor com que os escolheu. Não diz que os
convidados se assentaram à mesa com os patriarcas, apóstolos e mártires, que
tanto padeceram e mereceram, nem com os anjos e arcanjos, e as outras
hierarquias supremas dos espíritos bem-aventurados, nem, finalmente, que terão
lugar com a mesma Mãe de Deus, senão com o Filho: Ubi erit unicus ejus, ibi erunt et illi — porque este é só o
argumento cabal, e esta a medida adequada da magnificência do banquete. Por
isso ajunta, com nova e canônica confirmação, que o gozaremos não só como
herdeiros de Deus, senão como co-herdeiros de Cristo: Haeredes quidem Dei, cohaeredes autem Christi. Faz muita diferença
Agostinho, e considera grande vantagem em entrarmos no banquete da glória, mais
como co-herdeiros de Cristo que como herdeiros de Deus. E por que razão? Não
por outra – que não pode ser outra — senão pela que ponderamos em todo este
discurso. Porque entrar ao banquete como herdeiros de Deus, declara somente a
magnificência de ser feito por Deus; porém entrar como co-herdeiros de Cristo,
acrescenta a vantagem não só de ser feito por Deus, mas por Deus e para seu
Filho: Qui fecit nuptias Filio suo.
V
E se estas duas considerações ainda não chegam a nos
persuadir de todo, passemos à terceira e última, de que se não pode passar. Na
primeira vimos o autor, na segunda o motivo, nesta veremos o preço. Na
primeira, o autor onipotente que fez o banquete; na segunda, o motivo imenso
por que se fez; nesta terceira, o preço infinito que custou o fazer-se. E se a
primeira consideração foi incompreensivelmente grande, e a segunda ainda maior,
esta é tão superior a toda a admiração e encarecimento, que quase excede a fé.
Dirá — e com muita razão -a fé, que a quem pode tudo, não lhe pode custar nada
fazer o que pode. Que podia logo custar ao Onipotente fazer este banquete? O
mesmo Onipotente, que é o rei que o fez, o disse. Vendo que os convidados se
escusavam, mandou-lhes declarar os gastos que tinha feito, com este segundo
recado: Tauri mei et altilia occisa sunt,
et omnia parata: venite ad nuptias (Mt. 22, 4): Dizei-lhes que venham,
porque as reses e as aves já estão mortas, e tudo aparelhado. — Pois, para o
banquete da glória matou-se alguma coisa? Sim, e não menos que o Filho de Deus.
Se Cristo não morrera, nenhum Filho de Adão podia entrar na glória, porque no
paraíso da terra perdemos o direito que tínhamos ao do céu, e pela gula de um
bocado ficamos excluídos do banquete. Morreu pois Cristo, e derramou o preço
infinito de seu sangue, e este preço infinito foi o custo que se fez para de
novo se comprar e preparar o que por tão pouco se tinha perdido. Pesai agora,
se podeis, o preço daquela morte, e contai as gotas daquele sangue, cada uma
das quais vale mais que infinitos mundos, e então podereis rastear de algum
modo o valor incompreensível do que com ele se comprou. Este mundo, que tanto
nos leva os olhos e os corações, e tantas coisas tem deleitáveis, dignas do
poder e liberalidade de seu Autor, não custou a Deus mais que um aceno de sua
vontade. E se quisera fabricar outro mundo mais precioso, em que a terra fora
ouro, o mar e os rios prata, as areias pérolas, os penhascos diamantes, as
plantas esmeraldas, as flores rubis e safiras, e os frutos e seus sabores
proporcionados a esta riqueza e delícia, com outro aceno da mesma vontade, e
sem mais tempo que um instante, o pudera criar de nada. Qual será logo o preço
daquele bem, ou suma de bens que a este mesmo Deus, tão justo como poderoso,
não custou menos que a morte e sangue de seu Filho? Mas ponderemos as palavras
do Pai, que todas estão cheias de profundos mistérios, com que mais se declara
este.
Tauri mei et
altilia occisa sunt; diz primeiramente o rei que estão mortas as reses e as
aves para o banquete. E que reses e aves são estas? Já se sabe que na parábola
são o que são, e no fundo dela o que significam. Sendo, pois, o significado de
umas e outras Cristo morto, como dizem todos os intérpretes, as reses, que são
animais da terra, significam a humanidade de Cristo, e as aves, que são do céu,
a divindade. E posto que a divindade seja imortal, de ambas se diz, contudo,
que estão mortas: Tauri mei et altilia
occisa sunt — porque, como a natureza humana e a divina estão unidas em um
suposto, não só morre Cristo enquanto homem, mas também é verdadeiro dizer que
morreu Deus. E não deve passar sem reparo o modo e distinção advertida, com que
o rei falou neste caso, porque às reses chama suas, e às aves não: Tauri mei et altilia. Pois se o rei é
Deus, Senhor de tudo, por que chama suas as reses, e não as aves? Pela mesma
razão que temos dito. Sobre a humanidade de Cristo tem Deus domínio; sobre a
divindade não tem nem pode ter domínio, porque é o mesmo Deus: e como as reses,
no composto inefável de Cristo, significam o que tem de humano, e as aves o que
tem de divino, por isso o rei, que significa e representa a Deus, às reses
chama suas, e às aves não: Tauri mei et
altilia. Como se nos dissesse: o humano que há em Cristo é meu, o divino
não é meu: sou eu. Finalmente a palavra occisa sunt, que significa não qualquer
morte, mas violenta, posto que própria para as reses e aves do banquete, também
a disse o rei com particular mistério e energia, porque tal foi a morte de seu
Filho, com que Deus nos preparou o banquete dá glória. Não morte natural que
bastara — mas violenta, e não com o sangue congelado nas veias, mas derramado
delas. No mesmo texto temos o caso, e toda a história dele singularmente
descrita.
Quando o rei mandou segundo recado aos convidados,
alguns deles foram tão insolentes e furiosos que não só não quiseram vir, mas
prenderam os criados do rei, e lhes fizeram muitas afrontas, e por fim os
mataram: Reliqui vero tenuerunt servos
ejus, et contumeliis affectos occiderunt. Os criados que levavam este
segundo recado, já dissemos que eram os apóstolos. Os convidados que os
prenderam, afrontaram e mataram, não há dúvida que foram os cidadãos de
Jerusalém, os quais não só tiraram a vida a alguns dele, senão também ao
Apóstolo dos apóstolos, que foi o mesmo Cristo, e de quem particularmente fala
o texto. Prova-se por muitos princípios. Primeiro porque Cristo foi próprio e
particular apóstolo do povo de Israel, como ele mesmo disse (Mt. 15,24). Segundo,
porque o rei que mandou os recados era o Padre Eterno, e Cristo foi
imediatamente mandado pelo Padre, como os outros apóstolos imediatamente por
Cristo. Terceiro, porque de Cristo se verifica com toda a propriedade o ser
preso, o ser afrontado com muitas injúrias, e o ser cruelmente morto: Tenuerunt servos ejus, et contumeliis
affectos occiderunt. Nem faz contra isto o nome de servo: servos ejus,
porque, não obstante que alguns teólogos tiveram para si que Cristo, ainda em
respeito de Deus, se não podia chamar servo, é certo que, enquanto homem,
verdadeira e propriamente foi servo de Deus, e assim se pode e deve chamar,
como, depois de Santo Tomás, prova douta e difusamente o Padre Soares.
Finalmente, para que conste com toda a evidência que
o nosso texto fala literalmente da morte de Cristo, vai por diante a história,
e diz que, sabendo o rei o que aqueles homicidas tinham feito, mandou seus
exércitos a que os fossem castigar, e não só os mataram e destruíram, mas
também arrasaram e queimaram a sua cidade: Missis
exercitibus suis, perdidit homicidas illos, et civitatem illorum succendit (Mt.
22, 7). E que exércitos mandados por Deus — que é o rei — e que cidade assolada
e abrasada foi esta? São Jerônimo: Per
hos exercitus Romanos intelligimus sub duce Vespasiano et Tito, qui occisis
Judaeae populis, preavaricatricem incenderunt civitatem: Estes exércitos —
diz São Jerônimo — foram os dos romanos, governados por Vespasiano e Tito, os
quais, destruídos e mortos os povos de Judéia, assolaram e queimaram a cidade
de Jerusalém, em pena do pecado da morte de Cristo. — O mesmo Senhor, indo a
morrer, e muitas vezes antes, lho tinha assim profetizado. E porque esta morte
tão violenta, padecida em Jerusalém, foi a que no mesmo ponto abriu as portas
do céu, e este o preço infinito que se suspendeu para o banquete da glória, por
isso o rei mandou dizer aos convidados, que já os gastos estavam feitos, e as
reses e aves mortas: Tauri mei et altilia
occisa sunt.
Mas aqui se deve notar uma diferença admirável entre
o primeiro recado e o segundo. No primeiro recado só mandou o rei que fossem
chamar os convidados: Misit servos suos
vocare invitatos ad nuptias. No segundo recado não só os mandou chamar, mas
acrescentou que já o banquete estava aparelhado e o gasto feito: Dicite invitatis: ecce prandium meum paravi,
tauri mei et altilia occisa sunt, et omnia parata. Pois, se os primeiros
criados não levaram este recado, por que o levaram os segundos? E se estes
haviam de dizer, e disseram, que já estava aparelhado o banquete, os primeiros,
por que não disseram o mesmo? Porque nem o podiam dizer com verdade, nem o rei
lhes podia mandar que o dissessem. Os primeiros criados, como vimos, foram os
profetas; os segundos os apóstolos. Os profetas foram antes da Encarnação e
morte de Cristo; os apóstolos foram depois de sua morte; e como por meio da
morte de Cristo se abriu o céu, que estava fechado, e se preparou o banquete,
que até então só estava prometido, por isso os primeiros criados não disseram
nem podiam dizer que estava preparado o banquete, e os segundos sim; e por isso
os que mereceram a glória na lei antiga, iam esperar ao limbo, e os que a
merecem agora na lei da graça, entram logo a gozá-la.
E para que não fique sem ponderação a última cláusula
do recado, o que nele disse o rei é que tudo estava aparelhado: Et omnia parata. Tudo, disse, porque
tudo o que o homem pode querer e tudo o que Deus pode dar se compreende no
banquete da glória. Mas não é isto o que pondero. O em que reparo é que tendo
dito no princípio: Ecce prandium meum
paravi, torne a repetir no fim: Et omnia parata. Se tinha dito que já
estava aparelhado o seu banquete, por que torna a dizer que está aparelhado
tudo? Porque antes da última cláusula fez menção do que estava morto para o
mesmo banquete, e antes da primeira não; e para vir em conhecimento do que é ou
pode ser o banquete da glória, não se forma tão grande conceito de dizer Deus
que é seu: Prandium meum, quanto de
se entender que custou a morte de Deus: Tauri
mei et altilia occisa sunt. Por isso acrescentou depois: Et omnia parata, porque muito mais se
encarece a grandeza do banquete por custar o que custou, do que por ser de quem
é. É de Deus, e custou a morte de Deus: logo muito mais se engrandece pelo
preço que pelo autor, porque Deus que o fez, como onipotente, pode fazer mais e
menos; mas o mesmo Deus, que o pagou como justo, não pode dar menos pelo que
vale mais. Oh! Deus, sempre incompreensível, mas nunca com tanto excesso como
neste mistério! Sendo o Pai o que fez as bodas, e o Filho o desposado, que
houvesse de morrer o desposado para o Pai fazer o banquete das bodas? Pare a
consideração neste pasmo, pois não pode passar daqui.
VI
Tem-nos mostrado o Evangelho dentro em si mesmo qual
seja a magnificência do banquete da glória, pelo Autor, pelo motivo e pelo
preço dela, tudo infinito: infinito quem a fez, infinito por quem se fez, e
infinito o que custou fazer-se. Mas somos chegados a ponto em que o mesmo
Evangelho parece que nos desfaz tudo o que com ele fizemos até agora. Não
querendo vir os convidados ao primeiro e segundo recado, mandou o rei chamar
outros, e, depois que estiveram assentados à mesa, qui-la honrar o mesmo rei
com a majestade de sua presença: Intravit,
ut videre discumbentes. Não há festa sem desar, e assim aconteceu nesta.
Viu entre os demais um homem que não estava vestido com a decência que convinha
à realeza do banquete, estranhou o atrevimento, e mandou a seus ministros que o
lançassem fora, e, atado de pés e mãos, o levassem ao cárcere. As palavras que
disse o rei foram: Quomodo huc intrasti,
non habens vestem nuptialem? Como entraste aqui sem vestidura nupcial? — A
vestidura nupcial, como declaram todos os Padres e expositores católicos, é a
graça de Deus. Sem graça de Deus, é de fé que ninguém pode entrar no céu: logo
este banquete, de que até agora falamos, não é nem pode ser o banquete da
glória. Mais: a glória e bem-aventurança do céu, de sua própria natureza é
perpétua e eterna, porque doutra sorte não seria bem-aventurança; e quem uma
vez entrou na glória não pode sair nem ser privado dela. Este homem que entrou
e estava assentado à mesa sem vestidura nupcial, foi lançado fora do banquete:
logo este banquete não é o da glória.
Este argumento é tão forte, que só o diviníssimo
Sacramento do Altar nos pode dar a solução deles, tão verdadeira como
admirável, e tão própria deste dia como verdadeira. Respondo que esta mesma
mesa no princípio e na continuação da parábola era o banquete da glória; porém,
no fim da mesma parábola, a que agora chegamos, é o banquete do Sacramento. E
porque à mesa do Santíssimo Sacramento pode haver homens tão atrevidos e
sacrílegos que cheguem com consciência de pecado — o qual só Deus conhece, e os
outros que estão à mesma mesa não — por isso o rei, que é Deus, viu que um dos
que estavam assentados a ela não tinha, como os demais, a vestidura da graça: Et vidit ibi hominem non vestitum veste
nuptiale. Aos que não quiseram vir ao banquete, enquanto banquete da
glória, disse o rei que não eram dignos: Qui
invitati erant, non fuerunt digni — porque ao banquete do céu, que é o da
glória, ninguém pode entrar, senão somente os dignos; porém, no banquete da
terra, que é o Santíssimo Sacramento, bem pode entrar algum que seja indigno; e
por isso o rei, cujos olhos só vêem e penetram as consciências, viu que um dos
que estavam à mesa não trazia vestidura nupcial: Non vestitum veste nuptiale.
A distinção e diferença bem vejo que estão vendo
todos que é muito verdadeira e muito acomodada. Mas também vejo que igualmente
duvidam da suposição dela, e que me estão perguntando como pode, ou podia ser,
que no mesmo dia e na mesma parábola de Cristo, a mesma mesa e o mesmo
banquete, que começou em banquete da glória, acabasse em banquete do
Sacramento? Aqui está o ponto da maior dificuldade. Mas vede como naturalmente
foi assim, nem podia ser de outro modo. O banquete havia de ser ao jantar, que
assim o disse o rei: Ecce prandium meum
paravi. E como os convidados não quiseram vir ao primeiro recado, e foi
necessário ir o segundo, em que houve más respostas, prisões, injúrias e
mortes, com estas dilações, que não se fizeram na mesma corte do rei, senão na
outra cidade que refere o texto, passaram-se as horas do jantar. Depois disto
despachou o rei, e despediu os seus exércitos, para que fossem castigar os
homicidas e queimar a cidade rebelde, em que se gastou muito mais tempo.
Finalmente foram-se chamar outros homens, que viessem substituir os lugares dos
convidados, e estes não se trouxeram de junto ao paço do rei, mas foram-se
buscar, por seu mandado, ao fim da cidade e às saídas das ruas: Ite ad exitus viarum. Nestas
diligências, tantas e tão detençosas, posto que feitas a toda a pressa,
passou-se forçosamente o resto do dia, com que o banquete veio a se fazer à
noite, e já não foi jantar, como estava, determinado, senão ceia. E como foi
ceia, e não jantar, e as iguarias eram as mesmas, por isso também o que era o
banquete da glória se mudou em banquete do Sacramento.
E qual é ou foi a razão desta tão notável mudança? A
razão clara e manifesta é porque entre a bem-aventurança do céu e o Sacramento
na terra, não há outra distinção nem outra diferença de banquete a banquete,
senão ser um de dia, outro de noite; um com luz do sol, outro com luz de
candeia; um com o lume da glória, que é claro, outro com o lume da fé, que é
escuro; um que se goza e se vê, outro que se goza sem se ver. Não é certo que o
mesmo Deus que se goza no céu é o que está no Sacramento? Sim. Não é também
certo que lá se vê esse mesmo Deus, e cá não? Também. Pois essa é só a
diferença que há entre o banquete da glória no céu e o do Sacramento na terra.
A glória é o sacramento com as cortinas corridas; o Sacramento é a glória com
as cortinas cerradas. Lá come-se Deus exposto e descoberto: aqui come-se
coberto e encerrado. Se os que se assentaram hoje a esta mesma mesa, parte
foram cegos e parte não, que diferença havia de haver entre uns e outros? Os
que tivessem olhos haviam de comer e ver o que comiam; os cegos não haviam de
ver o que comiam, mas haviam de comer as mesmas iguarias que os outros. O mesmo
nos sucede a nós, em comparação dos bem-aventurados do céu. Eles comem e vêem,
porque comem de dia: nós comemos e não vemos, porque comemos de noite. É
verdade que ainda que de noite, comemos à luz da candeia, que é o lume da fé;
mas este lume é de tal qualidade, que certifica mas não mostra, porque, se
mostrara o que certifica, já não fora fé.
Quando o rei mandou ir preso o que se assentou à mesa
sem vestidura nupcial, disse que o levassem às trevas exteriores: Mittite eum in tenebras exteriores. E
por que disse nomeadamente às trevas exteriores, ou trevas de fora? Para
significar, como verdadeiramente era, que também dentro na mesma sala, onde se
fazia o banquete, havia trevas. As trevas do cárcere, onde mandava levar o
delinqüente, eram trevas exteriores e de fora; as trevas da sala, onde comiam
os convidados, eram trevas interiores e de dentro. E quem fazia umas e outras
trevas? As trevas do cárcere fazia-as o escuro do lugar; as trevas do banquete
fazia-as o escuro da fé: mas este escuro, ou esta escuridade da fé, tem tal
excelência, que tanto nos assegura a nós da verdade do que não vemos, como a
vista certifica aos bem-aventurados da verdade do que vêem. Para ver os
convidados, diz o texto que entrou o rei: Intravit
rex, ut videret discumbentes. E nota Abulense que o fim e intento desta
entrada foi: Ut laetificaret epulantes,
cum eis praesentiam suam exhiberet: Para alegrar, aos que comiam, com a sua
presença. — Com a sua presença, disse, e não com a sua vista; e disse bem,
porque o que nos alegra e satisfaz no banquete do Sacramento não é a evidência
da vista, senão a certeza da presença. Por isso advertidamente o texto não diz
que entrou o rei para ser visto, senão para ver: Ut videret discumbentes. No banquete do céu os que estão à mesa
vê-nos Deus, e eles vêem a Deus; no banquete do Sacramento, não é a vista
recíproca, senão de uma só das partes: Deus vê-nos a nós, e nós não o vemos a
ele, porque se a fé nos certifica da presença, a mesma fé nos encobre a vista.
Mas, se o rei, como dissemos, é o Eterno Padre, e o
que comemos no banquete do Sacramento é o corpo de Cristo, como se diz que
entrou o Padre neste banquete? Porque não fora igual o banquete do Sacramento
ao banquete da glória, se o Eterno Padre também não entrara nele. Os bem-aventurados
não só vêem uma Pessoa divina, senão todas, porque vêem a Deus como é, e Deus é
um em essência e trino em pessoas. E se no Sacramento só estivera o corpo e
sangue de Cristo, e não a divindade e a Pessoa do Verbo, e as outras Pessoas
divinas, encerrara mais em si o banquete da glória que o do Sacramento. É,
porém, certo e de fé, que tanto encerra em si o Sacramento, quanto a glória de
todos os bem-aventurados e a do mesmo Deus, não ex vi verborum — como falam os teólogos — mas concomitanter. Ainda
que por força das palavras da consagração só esteja no Sacramento o corpo e
sangue de Cristo, como este corpo e sangue está unido à divindade, e a
divindade, não por união, mas por unidade e identidade, é inseparável das
Pessoas divinas, por isso todas as Pessoas divinas estão também no Sacramento,
não como partes essenciais de que o mesmo Sacramento se componha, mas como
partes — se assim se pode chamar — que necessariamente o acompanham e entram
nele. E esta é a verdade e propriedade com que o rei, que é o Padre, se diz que
entrou ao banquete: Intravit rex.
E se o Sacramento, quanto à substância, é o mesmo
banquete que o da glória, quanto à grandeza e magnificência com que se comunica
aos convidados, em tudo é semelhante. No banquete da glória repartem-se as
iguarias sem se partirem, porque Deus é indivisível, e o mesmo se passa no
Sacramento: Non confractus, non divisus,
integer accipitur. No banquete da glória dá-se todo Deus a todos, e todo a
cada um; e no Sacramento tanto recebe um como todos: Sic totum omnibus, quod totum singulis. No banquete da glória, por
mais que cresçam os convidados, não se gastam nem se diminuem os manjares; e no
Sacramento, ainda que sejam muitos os que o recebem, nem por isso se diminui: Sumit unus, sumunt mille, nec samptus
consumitur. No banquete da glória, sendo Deus espírito, não só faz
bem-aventurados os espíritos, senão também os corpos; e no Sacramento,
dando-nos Cristo seu corpo, não só é rejeição dos corpos, senão muito mais dos
espíritos. Ut duplicis substantiae totum
cibaret hominem. No banquete da glória os que vêem a Deus transformam-se no
mesmo Deus; e no Sacramento os que comem a Cristo também se transformam em
Cristo, o qual para isso, sendo Deus, se fez homem: Ut homines Deos faceret factus homo. No banquete da glória enfim,
gostam-se todos os deleites e delícias que manam, como de fonte, da divindade;
e no Sacramento também se gozam e se gostam, porque a doçura e suavidade de
todos se bebe ali na sua própria fonte: In quo spiritualis dulcedo in proprio fonte
gustatur. Assim o diz e ensina o Doutor Angélico, Santo Tomás, de quem são
todos os textos citados, e de quem os tomou e aprovou a Igreja.
VII
De tudo o que fica dito neste discurso, parece que
bastantemente nos tem mostrado o nosso Evangelho que o banquete que havia de
ser jantar veio a ser ceia, e que começando em convite da glória, acabou em
convite do Sacramento. O que agora resta é que todos nos aproveitemos de um e
outro, e que não sejamos tão ingratos a Deus, tão inimigos de nós mesmos, e tão
faltos de entendimento e juízo, como os que uma e outra vez chamados não
quiseram vir. A primeira razão que nos deve animar a todos, é saber que a todos
nos chama e está chamando Deus, e que assim o banquete da glória como o do
Sacramento, para todos os fez e tem aparelhado igualmente, sem reserva nem
exceção de pessoas. Notou S. Pascásio que este mesmo rei da nossa parábola,
quando se diz que fez as bodas a seu filho, chama-se rei homem: Homini regi; porém, depois que tratou do
banquete, nunca mais se chamou homem, porque os reis homens convidam só aos
príncipes e aos grandes; o rei Deus não é assim: a todos convida, a todos
chama, todos quer que se assentem à sua mesa, ou seja no céu a da glória, ou na
terra a do Sacramento.
Depois que os convidados descorteses ao primeiro e
segundo recado não quiseram vir, mandou o mesmo rei buscar outros que
substituíssem os seus lugares, e a instrução que deu aos criados, foi que
saíssem às ruas, e que chamassem para o banquete todos quantos achassem: Ite ad exitus viarum, et quoscumque
inveneritis, vocate ad nuptias. Pois, para a mesa do rei, e em uma
celebridade tão real como a das bodas do príncipe seu primogênito, não se
limitam as qualidades? Não se assinalam os postos? Não se faz menção de títulos
ou estados, nem se distingue quais hão de ser os chamados e quais os excluídos?
Não. Chamai todos os que achardes pelas ruas, porque assim como as ruas são
públicas e comuns a todos, assim quero que o seja a minha mesa: e assim foi.
Diz o texto que os criados ajuntaram todos quantos acharam, maus e bons: Congregaverunt omnes quos invenerunt, malos
et bonos. E destes achados e tirados das ruas, se encheram os lugares do
banquete: Et impletae sunt nuptiae
discumbentium. E que quer dizer bons e maus: malos et bonos? Quer dizer, como explica a glosa e os doutores: Cujuscumque conditionis homines, cujuscumque
gradus, cujuscumque nationis: de qualquer nação, de qualquer condição, de
qualquer estado, de qualquer ofício, de qualquer fortuna. O hebreu e o grego, o
alto e o baixo, o grande e o pequeno, o rico e o pobre, o nobre e o plebeu, o
senhor e o escravo, o branco e o preto, todos, sem diferença nem exclusão. E
notai que antepõe o texto os maus aos bons: malos
et bonos, isto é, os menos nobres aos mais honrados, porque esta é a maior
honra e a maior magnificência da mesa de Deus. Assim o canta ao mesmo Deus no
mesmo banquete quem melhor lhe conhece a condição, que é a sua Igreja: O res mirabilis, manducat Dominum pauper
servus et humilis: Coisa admirável que coma à mesa do Senhor, e ao mesmo
Senhor, o servo, o pobre, o humilde! — Mas se eu tivera licença para mudar um
advérbio, e trocar a ordem a estes versos, não havia de dizer senão assim: Manducat Dominum pauper, servus et humilis?
Haud res mirabilis! Que o servo, o pobre e o humilde se assente à mesa do
Senhor? Não é isto maravilha! — Maravilha seria se o banquete fosse de algum
rei da terra; mas, sendo do Rei do Céu, que criou a todos e morreu por todos,
como havia de distinguir na mesa os que igualou na natureza, no preço e na
graça? Cá fazemos estas distinções, e na outra vida veremos a vaidade delas.
Que confusão será dos grandes ver que o céu é dos pequenos? E que confusão a
dos que têm tantos escravos ver o seu escravo assentado ao banquete da glória,
e que o senhor ficou de fora?
Suposto, pois, que um e outro banquete é para todos,
e Deus nos chama a todos para ambos, não nos descuidemos agora de freqüentar o
banquete da terra, para que o mesmo banquete da terra nos leve ao do céu.
Alberto Magno, tão grande na sabedoria como na piedade, em um excelente livro
que compôs do Santíssimo Sacramento, diz esta notável sentença: Id quod nunc in Sacramenti specie
percipiendo Christum agimus, signum est, qualiter eumdem aliquando secundum
dulcedinem suae deitatis in coelesti beatitudine percipiemus: Quereis saber
se haveis de ir ao céu, e como lá haveis de ser recebido? Olhai se freqüentais
cá o Santíssimo Sacramento, e como o recebeis, porque o modo com que nesta vida
recebemos o corpo de Cristo no Sacramento, é sinal do modo com que na outra
vida receberemos a divindade do mesmo Cristo na glória: Id quod nunc percipiendo Christum agimus, signum est, qualiter eumdem
in beatitudine recipiemus. Que esperança pode ter logo de gozar o banquete
da glória, ou quem despreza esta sagrada mesa, como os primeiros convidados
desprezaram a outra, ou quem chega à mesma mesa com tão pouca disposição e
pureza de consciência, como o que foi lançado dela e levado ao cárcere das
trevas, que é o inferno? Quando o rei deu esta sentença, disse que naquele
lugar escuro e subterrâneo haveria choro e ranger de dentes: Ibi erit fletus et stridor dentium. Onde
se deve muito advertir que dois tormentos, de que só fez menção, um é da boca,
outro dos olhos. No inferno há muitos outros tormentos, e mais terríveis, com
que o fogo e os demônios atormentam os condenados. Por que fez logo menção
somente destes dois, com que os mesmos condenados se atormentam a si mesmos, e
um dos olhos, outro da boca? Porque como o comer a Deus tem por prêmio o ver a
Deus, e a culpa de o comer indecentemente tem por castigo não o ver
eternamente, a culpa de o comer indecentemente aquele miserável foi castigada
na boca, e o castigo de o não ver eternamente foi executado nos olhos. Chorem
eternamente os olhos, pois não hão de ver a Deus enquanto Deus for Deus: Ibi erit fletus. E pois a boca se
atreveu a tocar e comer a Deus como não devera, morder-se também eternamente de
raiva e desesperação com seus próprios dentes: Et stridor dentium.
Daqui inferiu Cristo, Senhor nosso, aquela tremenda
conclusão: Multi enim sunt vocati, pauci
vero electi (Mt. 22,14): porque muitos são os chamados e poucos os
escolhidos. — Mas, se os escolhidos são os que entraram com vestidura nupcial e
ficaram no banquete, e o não escolhido, que entrou indecentemente vestido, foi
um só, como diz o Senhor e infere do sucesso desta mesma parábola que os
chamados são muitos e os escolhidos poucos? Esta dúvida deu já muito em que
entender aos intérpretes, mas tem fácil solução. Porque os chamados não foram
só os que vieram ao banquete, senão também os que não quiseram vir. E como
todos os que vieram e não vieram foram chamados, e ainda dos que vieram um não
foi escolhido, bem se infere que os chamados são muitos e os escolhidos poucos.
Poucos em respeito de todo o número dos chamados, e menos ainda em respeito do
desejo que Cristo tem, e do preço que despendeu para que todos se salvem.
Porém, o que sobretudo faz ao nosso intento, é que todos os chamados que vieram
com vestidura nupcial ao banquete do Sacramento, todos foram escolhidos: pauci
electi. Poucos sim, mas escolhidos todos. E por que razão? Porque o fim dos
chamados é a glória, o pão dos escolhidos é o Sacramento, e todos os que usam
bem do pão dos escolhidos conseguem o fim dos chamados. Não há fim sem meios, e
todos os que se sabem aproveitar deste soberano meio, tão aparelhado e tão
fácil, todos os que freqüentam, com a decência e disposição que convém, a mesa
do Santíssimo Sacramento, todos os que comem e se sustentam do pão dos
escolhidos, que é o banquete de Deus na terra, todos conseguem o fim dos
chamados, que é o do céu.
VIII
Grande consolação por certo, cristãos, para todos os
que assim o fazem, como igual desconsolação também, e afronta e vergonha grande
para os que por interesses ou apetites tão vãos, como são todos os deste mundo,
deixam o banquete divino do Sacramento, e perdem o da glória. Aqueles
descorteses e mal-entendidos, que chamados ao banquete não quiseram vir, diz o
texto que um se foi para a sua lavoura, outro para a sua negociação: Alius in villam suam, alius vero ad
negotiationem suam. Vede o que perderam; e por quê? Que podia granjear um
na sua negociação e outro na sua lavoura, que tivesse comparação com o que
desprezaram: Illi autem neglexerunt?
Chama-nos Deus para o descanso e para estarmos assentados à sua mesa, e nós
antes queremos trabalhar e suar com o mundo, que descansar e regalar com Deus.
Tanto podem conosco as aparências do presente, e tão pouco a fé e esperança do
futuro. De ninguém se podia recear menos esta desatenção, que dos mesmos a quem
o rei mandou chamar. Mandou chamar lavradores, que são os que foram para a sua
lavoura, e mercadores, que são os que foram para a sua negociação. E por que
mais lavradores e mercadores que gente de outro trato ou de outros ofícios?
Porque assim o lavrador como o mercador, são homens que têm por exercício e
profissão acrescentar o cabedal. O lavrador semeia pouco para colher muito; o
mercador compra por menos para vender por mais. E por isso mesmo assim aos
lavradores como aos mercadores os devia trazer à mesa do rei o seu próprio
interesse. Que melhor lavoura que semear na terra e colher no céu? E que maior
mercancia que vender o tempo e comprar a eternidade? Oh! eternidade enjeitada!
Oh! glória desprezada! Oh! céu nem querido nem crido!
Credes vós, que vos chamais
cristãos, credes que há céu? Credes que há glória? Credes que há eternidade?
Dizeis que sim, de que eu duvido. Mas, se é verdade que credes tudo isto que
tenho dito, como o não quereis? Assim o diz o Evangelho, que não quiseram os
que vós imitais: Et nolebant venire.
Se tanto pode convosco a lisonja do presente, e tão pouco a fé do futuro, por
que não considerais no presente esse mesmo presente onde há de vir a parar?
Coisa muito digna de admiração é que dos primeiros e segundos chamados, todos
se escusassem e nenhum quisesse vir, e que os últimos todos viessem e nenhum se
escusasse. Os recados e os criados não eram do mesmo rei, e as bodas as mesmas?
Que homens foram logo estes, de juízos e vontades tão diferentes, que nenhum
repugnou, e todos quiseram vir? Olhai onde o rei os mandou buscar, e onde
estavam quando vieram: Ite ad exitus
viarum: Ide aos fins dos caminhos. Et
quoscum que inveneritis, vocate: e todos os que ali achardes, chamai a
esses. — Sabeis por que não acudimos ao chamado de Cristo? É porque não estamos
nos fins dos caminhos. Os princípios dos caminhos, que cada um toma para a sua
vida, e também os meios deles, são muito enganosos: os fins, e onde vão parar,
esses são os que desenganam. Todas as cidades, e mais as cortes — como esta era
— têm três estradas reais por onde vai o fio da gente, e onde concorrem todas:
a das riquezas, a das honras, a dos deleites. Mas os que se põem com a
consideração ou com os sucessos da mesma vida onde estas estradas vão parar: Ite ad exitus viarum, estes são os que
Deus busca, e estes os que acha: Et
quoscumque inveneritis, vocate.
Também houve outra razão que muito moveu e obrigou as
vontades dos que vieram em último lugar. Quando foram chamados os primeiros uma
e outra vez, ainda o rei se não tinha irado: Iratus est rex; ainda não tinha mostrado o rigor de sua justiça: Perdidit homicidas illos, et civitatem
illorum succendit. E por isso não aceitaram o convite, nem respeitaram o
recado, nem temeram o rei. Porém os outros, que viram a benignidade do rei
trocada em ira, os rebeldes feitos em quartos, e a cidade em cinzas, que viram
arder sem exceção as casas humildes, os palácios soberbos e as torres mais
altas, como lhes não haviam de alumiar os olhos aquelas labaredas, e como lhes
não haviam de abrandar os corações, ainda que fossem de bronze, um tal
incêndio? Alguns, abstraindo da história, e tomando em geral a culpa e o
castigo, reconhecem neste fogo o do inferno, que é o último paradeiro dos que desprezam
o céu. E será bem que os interesses de tão pouco momento, e os gostos tão leves
e tão breves, com os desta vida, se vão lá pagar no inferno eternamente? Pois,
isto é o que querem, sem querer, os que tanto caso fazem do presente, e tão
pouco do futuro, e por lograr o engano do que é — ou não é — não reparam no que
há de ser.
Disse o que querem sem querer, porque bem vejo que lá
dentro nos vossos corações estais dizendo que, se agora não quereis, haveis de
querer depois, e que se agora sois como os primeiros que não quiseram vir,
depois sereis como os últimos que vieram. Este é o engano comum com que o
demônio nos cega e nos vai entretendo, até que nos leva, já perdidos, à
condenação. Pede-nos a vontade agora, e prometemo-la para depois. Deus nos livre
de uma vontade habituada a não querer, porque nunca quer. Olhai o que diz o
texto: Et nolebant venire: E eles não
queriam vir. — Não diz: nolerunt, senão: nolebant:
não diz que não quiseram, senão que não queriam. Se dissera não quiseram,
significava um ato de vontade; mas dizendo não queriam, não significa ato,
senão hábito; e vontade habituada a não querer, nunca quer. Por isso não
quiseram a primeira vez que foram chamados, nem a segunda em que os tornaram a
chamar, e se os chamassem a terceira, também não haviam de querer. Mas se o rei
foi tão bom e tão benigno, que sem embargo de não quererem vir a primeira vez,
os chamou a segunda, por que os não mandou também chamar terceira vez? Este é o
mais tremendo ponto de toda esta matéria. Ninguém se pode converter a Deus sem
Deus o chamar com a sua inspiração e o prevenir com o auxílio de sua graça. E
Deus, ainda que nos chama uma e outra vez, se nós desprezamos a vocação, e não
acudimos a esta, também ele subtrai as suas inspirações, e nos nega justamente os
seus auxílios. E que será da miserável alma destituída dos auxílios de Deus.
Ouvi a S. Gregório Papa: Nemo contemnat,
nedum vocatus excuset, cum voluerit intrare non valeat: Ninguém despreze a
vocação e inspiração divina, porque, se quando é chamado, não quer ir, depois,
ainda que queira, não poderá.
E para que nos desenganemos, e conheçamos todos que
podemos chegar a tal estado, em que totalmente não possamos, ainda que
quiséssemos, confirmemos a verdade desta doutrina de São Gregório com a última
cláusula do nosso Evangelho, que só nos resta por ponderar. Mandou o rei que o
que tinha vindo ao banquete sem vestidura nupcial, atado de pés e mãos, fosse
lançado no cárcere das trevas: Ligatis
manibus et pedibus ejus, mittite eum in tenebras exteriores. E diz o texto
que ouvindo o miserável homem esta sentença, emudeceu, e não disse palavra: At ilIe obmutuit. Este emudecer é o que
mais me assombra e atemoriza. Homem miserável, homem pusilânime, homem inimigo
de ti mesmo e sem juízo, por que não apelas da sentença para o mesmo rei? Não
vês que é tão demente e piedoso, que ainda ofendido te chama amigo: Amice, quomodo huc intrasti. Não vês que
o mesmo dia de tanta celebridade é muito aparelhado para o perdão? Se não tens
com que escusar a tua culpa, por que a não confessas? Por que te não lanças aos
pés do Pai, e lhe pedes misericórdia por amor do Filho, e pela mesma
humanidade, com que se desposou? Nada disto fez o miserável, e nada disto podia
fazer, ainda que quisesse, porque a mesma sentença em pena da sua culpa o
inabilitou para tudo. Nem podia ver, porque estava condenado às trevas; nem se
podia lançar aos pés do rei, porque tinha presos os seus; nem podia bater nos
peitos, porque tinha atadas as mãos; nem podia confessar seu pecado e pedir
perdão, porque tinha emudecida a língua. E isto é o que acontece a quem, assim
como este entrou despido da graça de Deus, chegou a ser despedido dela. Os pés
e mãos da alma, como diz Santo Agostinho, são o entendimento e vontade, de que
se compõe o alvedrio, e este, em faltando a graça de Deus, fica tão atado e
escurecido, que nem tem luz para ver, nem mãos para obrar, nem pés para se
mover, nem língua para dizer: pequei. — Vede se pode haver mais infeliz e mais
tremendo estado, mas justamente merecido. Oh! se Deus quisesse que ao menos nos
fique muito impressa nas almas, por último documento, a culpa, por que este
miserável homem perdeu o uso de todas as potências e movimentos, e até a mesma
fala, com que se pudera remediar de tudo. E qual foi esta culpa? Não foi outra,
senão entrar ao banquete sem vestidura nupcial, isto é, chegar à mesa do
Santíssimo Sacramento não estando em graça. Por isso emudeceu de tal sorte, que
não pôde confessar sua culpa, porque é justo juízo de Deus castigar nas
confissões o que se peca nas comunhões. Já que a boca se atreveu a comungar em
pecado, não tenha língua para confessar seus pecados: At ille obmutuit.
Emudeceu o homem por justo castigo: nós devemos
emudecer de horror e assombro; o Evangelho emudeceu, porque não tem palavra que
não esteja ponderada; e eu também emudeço, porque não tenho mais que dizer. Se
a minha ignorância e tibieza vos não soube chamar para o banquete, como devia,
espero que interiormente o tenha feito a graça e inspirações divinas com tal
eficácia, que freqüentando nesta vida o do Santíssimo Sacramento, mereçamos na
outra alcançar o da glória.
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