Thursday, 20 February 2025

Thursday's Serial: “A Moreninha” by Dr. Joaquim Manoel de Macedo (in Portuguese) - IX

 

CAP. XIV - PEDILÚVIO SENTIMENTAL

Ria-se, jogava-se, brincava-se: todos se haviam já esquecido da pobre Paula. Na verdade também que, por ter a ama de d. Carolina tomado seu copo de vinho a mais, não era justo que tantas moças e moços, em boa disposição de brincar, e umas poucas velhas determinadas a maçar meio mundo, ficassem a noite inteira pensando na carraspana da rapariga. E, além disso, quatro semidoutores já haviam pronunciado favorável prognóstico; como, pois, se arrojaria Paula a morrer contra a ordem expressa dos quatro hipocratíssimos senhores?...

Era por isso que todos brincavam alegremente, menos o sr. Keblerc que, diante de meia dúzia de garrafas vazias, roncava prodigiosamente: grande alemão para roncar!... Era uma escala inteira que ele solfejava com bemóis, bequadros e sustenidos!

Dir-se-ia que entoava um hino… a Baco.

Os rapazes estavam nos seus gerais; a princípio, como era seu velho costume haviam festejado, cumprimentado e aplaudido as senhoras idosas que se achavam na sala, principalmente aquelas que tinham trazido consigo moças; mas, passada meia hora, adeus etiquetas e cerimônias!... Estabeleceu-se um cordão sanitário entre a velhice e a mocidade; a sra. d. Ana achou a ocasião oportuna para ir dar ordens para o chá; d. Violante ocupou-se em desenvolver a um velho roceiro os meios mais adequados para se preencher o deficit provável do Brasil para o ano financeiro de 44 a 45, sem aumentar os direitos de importação, nem criar impostos, abolindo-se, pelo contrário, a décima urbana. Já se vê que d. Violante tinha casas na cidade. Restavam quatro senhoras, que julgaram a propósito jogar o embarque, que na verdade as divertia muito, com o episódio do ás galar o sete; havia, enfim, outra mesa em que alguns senhores, viúvos, casados e velhos pais perdiam ou ganhavam dinheiro no écarté, jogo muito bonito e muito variado, que nos vieram ensinar os senhores franceses, grandes inventores, sem dúvida!...

A rapaziada empregava melhor o seu tempo: também jogava, mas na sua roda não havia nem mesa, nem cartas, nem dados. O seu jogo tinha um diretor que, exceção de regra entre os mais, não podia ter menos de cinqüenta anos: era um homem de estatura muito menos que a ordinária, tinha o rosto muito vermelho, cabelos e barbas ruivos, gordo, de pernas arqueadas, ajuntando ao ridículo de sua figura muito espírito; não estava bem senão entre rapazes. por felicidade deles sempre se encontra desses. Tal o diretor da roda dos moços. O sr. Batista (este o seu nome) era fértil em jogos; quando um aborrecia, vinha logo outro melhor. Já se havia jogado o do toucador e o do enfermo. O terceiro agradou tanto, que se repetia pela duodécima vez, com aplauso geral, principalmente das moças: era, sem mais nem menos, o jogo da palhinha.

Caso célebre!... Já se viu que coincidência!... Ora expliquem. se são capazes... Tem-se jogado a palhinha doze vezes e em todas elas tem a sorte feito com que Filipe abrace d. Clementina e Fabrício d. Joaninha! E sempre, no fim de cada jogo, qualquer das duas recua um passo, como se pouca vontade houvesse nelas de dar o abraço, e fazendo-se coradinha, exclama:

— Quantos abraços!... Pois outra vez?...

— Eu já não dei ainda agora?... Ora isto!...

Entre os rapazes, porém, há um que não está absolutamente satisfeito: é Augusto. Será porque no tal jogo da palhinha tem por vezes ficado viúvo?... Não! Ele esperava isso como castigo da sua inconstância. A causa é outra: a alma da ilha de... não está na sala! Augusto vê o jogo ir indo o seu caminho muito sem ordem; não se rasgou ainda nenhum lenço, Filipe ainda não gritou com a dor de nenhum beliscão, tudo se faz em regra e muito direito; a travessa, a inquieta, a buliçosa, a tentaçãozinha não está aí: d. Carolina está ausente!...

Com efeito, Augusto, sem amar d. Carolina (ele assim o pensa) já faz dela idéia absolutamente diversa da que fazia ainda há poucas horas: agora, segundo ele, a interessante Moreninha é, na verdade, travessa, mas a cada travessura ajunta tanta graça, que tudo se lhe perdoa. D. Carolina é o prazer em ebulição; se é inquieta e buliçosa, está em sê-lo a sua maior graça: aquele rosto moreno, vivo e delicado, aquele corpinho, ligeiro como a abelha, perderia metade do que vale se não estivesse em contínua agitação. O beija-flor nunca se mostra tão belo como quando se pendura na mais tênue flor e voeja nos ares; d. Carolina é como um beija-flor completo.

Neste momento a sra. d. Ana entrou na sala, e depois dirigindo-se à grande varanda da frente, sentou-se defronte do jardim. Batista acabava de dar fim ao jogo da palhinha e começava novo: Augusto pediu que o dispensassem e foi ter com a dona da casa.

— Não joga mais, sr. Augusto? disse ela.

— Por ora não, minha senhora.

— Parece-me pouco alegre.

— Ao contrário… estou satisfeitíssimo.

— Oh! O seu rosto mostra não sentir o que dizem seus lábios; se aqui lhe falta alguma coisa...

— Na verdade que aqui não está tudo, minha senhora.

— Então que falta?

— A sra. d. Carolina!

A boa senhora riu-se com satisfação. Seu orgulho de avó acabava de ser incensado: era tocar-lhe no fraco.

— Gosta de minha neta, sr. Augusto?

— É a delicada borboleta deste jardim, respondeu ele, mostrando as flores.

— Vá buscá-la, disse a sra. d. Ana, apontando para dentro.

— Minha senhora, tanta honra!

— O amigo de meu neto deve merecer minha confiança: esta casa é dos meus amigos e também dos dele. Carolina está, sem dúvida, no quarto de Paula; vá vê-la e consiga arrancá-la de junto da sua ama.

A sra. d. Ana levou Augusto pela mão até o corredor e depois o empurrou brandamente.

— Vá, disse ela, e receba isso como a mais franca prova de minha estima para com o amigo de meu neto.

Augusto não esperou ouvir nova ordem: endireitou para o quarto de Paula, com presteza e alegria. A porta estava cerrada; abriu sem ruído e parou no limiar.

Três pessoas havia nesse quarto: Paula, deitada e abatida sob o peso de sua sofrível mona, era um objeto triste e talvez ridículo, se não padecesse; a segunda era uma escrava que acabava de depor junto do leito a bacia em que Paula deveria tomar o pedilúvio recomendado, objeto indiferente; a terceira era uma menina de quinze anos, que desprezava a sala, em que borbulhava o prazer, pelo quarto em que padecia uma pobre mulher; este objetivo era nobre...

D. Carolina e a escrava tinham as costas voltadas para a porta e por isso não viam Augusto: Paula olhava, mas não via, ou antes não sabia o que via.

— Anda, Tomásia, dá-lhe o escalda-pés! disse d. Carolina.

Pela sua voz conhecia-se que tinha chorado.

A escrava abaixou-se e puxou os pés da pobre Paula; depois, pondo a mão n’água, tirou~a de repente, e sacudindo-a:

— Está fervendo!… disse.

— Não está fervendo, respondeu a menina; deve ser bem quente, assim disseram os moços.

A escrava tornou a pôr a mão e de novo retirou-a com presteza tal, que bateu com os pés de Paula contra a bacia.

— Estonteada!... Sai... Afasta-te, exclamou d. Carolina, arregaçando as mangas de seu lindo vestido.

A escrava não obedeceu.

— Afasta-te daí, disse a menina em tom imperioso; e depois abaixou-se no lugar da escrava, tomou os pés de sua ama, apertou-os contra o peito, chorando, e começou a banhá-los.

Belo espetáculo era o ver essa menina delicada, curvada aos pés de uma rude mulher, banhando-os com sossego, mergulhando suas mãos tão finas, tão lindas, nessa mesma água que fizera lançar um grito de dor à escrava, quando aí tocara de leve com as suas, tão grosseiras e calejadas!... Os últimos vislumbres das impressões desagradáveis que ela causara a Augusto, de todo se esvaíram. Acabou-se a criança estouvada… ficou em seu lugar o anjo de candura.

O sensível estudante viu as mãozinhas tão delicadas da piedosa menina já roxas, e adivinhou que ela estava engolindo suas dores para não gemer; por isso não pôde suster-se e, adiantando-se, disse:

— Perdoe, minha senhora.

— Oh!... O senhor estava aí?

E tenho testemunhado tudo!

A menina abaixou os olhos, confusa, e apontando para a doente, disse:

— Ela me deu de mamar.

— Mas nem por isso deve a senhora condenar suas lindas mãos a serem queimadas, quando algum dos muitos escravos que a cercam poderia encarregar-se do trabalho em que a vi tão piedosamente ocupada.

— Nenhum o fará com jeito.

— Experimente.

— Mas a quem encarregarei?

— A mim, minha senhora.

— O senhor falava de meus escravos...

— Pois nem para escravo eu presto?

— Senhor!

E nisto o estudante abaixou-se e tomou os pés de Paula, enquanto d. Carolina, junto dele, o olhava com ternura.

Quando Augusto julgou que era tempo de terminar, a jovenzinha recebeu os pés de sua ama e os envolveu na toalha que tinha nos braços.

— Agora deixemo-la descansar, disse o moço.

— Ela corre algum risco?…perguntou a menina.

— Afirmo que acordará amanhã perfeitamente boa.

— Obrigada!

— Quer dar-me a honra de acompanhá-la até à sala? disse Augusto, oferecendo a sua mão direita à bela Moreninha.

Ela não respondeu, mas olhou. com gratidão, aceitando o braço do mancebo, deixou o quarto de Paula.

 

 

CAP. XV - UM DIA EM QUATRO PALAVRAS

Ao romper do dia de Sant’Ana estavam todos na ilha de... descansando nos braços do sono: era isso muito natural,depois de uma noite como a da véspera, em que tanto se havia brincado.

Com efeito, os jogos de prendas tinham-se prolongado excessivamente. A chegada de d. Carolina e Augusto lhes deu ainda dobrada viveza e fogo. A bonita Moreninha tornou-se mais travessa do que nunca; mil vezes barulhenta, perturbava a ordem dos jogos de modo que era preciso começar de novo o que já estava no fim; outras tantas rebelde, não cumpria certos castigos que lhe impunham, não deu um só beijo e aquele que atreveu-se a abraçá-la, teve em recompensa um beliscão.

Finalmente, ouviu-se a voz de vamos dormir, e cada qual tratou de fazer por consegui-lo.

O último que se deitou foi Augusto e ignora-se por que saiu de luz na mão, a passear pelo jardim, quando todos se achavam acomodados; de volta do seu passeio noturno, atirou-se entre Fabrício e Leopoldo e imediatamente adormeceu. Os estudantes dormiram juntos.

São seis horas da manhã e todos dormem ainda a sono solto. Um autor pode entrar em toda a parte e, pois... não, não, alto lá! No gabinete das moças... Não senhor; no dos rapazes, ainda bem. A porta está aberta. Eis os quatro estudantes estirados numa larga esteira; e como roncam!... Mas que faz o nosso Augusto? Ri-se, murmura frases imperceptíveis, suspira... Então que é isso?... Dá um beijo em Fabrício; acorda espantado e ainda por cima empurra cruelmente o mesmo a quem acaba de beijar...

Oh, beleza! Oh, inexplicável poder de um rosto bonito que, não contente com as zombarias que faz ao homem que vela, o ilude e ainda zomba dele dormindo!

Estava o nosso estudante sonhando que certa pessoa, de quem ele tivera até aborrecimento e que agora começava com olhos travessos a fazer-lhe cócegas no coração, vinha terna e amorosamente despertá-lo; que ele fingira continuar a dormir e ela se sentara à sua cabeceira~ que, traquinas como sempre, em vez de chamá-lo queria rir-se acordando-o pouco a pouco; que para isso aproximava seu rosto do dele, e, assoprando-lhe os lábios, ria-se ao ver as contrações que produzia a titilação causada pelo sopro; que ele, ao sentir tão perto dos seus os lindos lábios dela, estava ardentemente desejoso de furtar-lhe um beijo, mas que temia vê-la fugir ao menor movimento; que finalmente, não podendo mais resistir aos seus férvidos beijos, assentara de, quando se aproximasse o belo rosto, ir de um salto colher o voluptuoso beijo naquela boquinha de botão de rosa; que o rosto chegou à distância de meio palmo e... (aqui parou o sonho e principiou a realidade) e ele deu um salto mas, em lugar de pregar um beijo nos lábios de d. Carolina, foi com toda a força e estouvamento bater com os beiços e nariz contra a testa de Fabrício; depois, como se o colega tivesse culpa de tal infelicidade, deu-lhe dois empurrões dizendo:

— Sai-te daí, peste! ... Ora, quando eu sonhava com um anjo, acordo-me nos braços de Satanás!...

Corra-se, porém, um véu sobre quanto se passou até que se levantaram do almoço. A sociedade se dividiu logo depois em grupos. Uns conversavam, outros jogavam, dois velhos ferraram-se no gamão, as moças espalharam-se pelo jardim e os quatros estudantes tiveram a péssima lembrança de formar uma mesa de voltarete.

E apesar do poder da cachaça do jogo, de cada vez que qualquer deles dava cartas, ficava na mesa um lugar vazio, e junto do arco da varanda, que olhava para o jardim, colocava-se uma sentinela. Já se vê que o voltarete não podia seguir marcha muito regular. Augusto, por exemplo, distraía-se com freqüência tal, que às vezes passava com basto e espadilha, e era codilhado todas as mãos que jogava de feito. A Moreninha já fazia travessuras muito especiais no coração do estudante; e ele, que se acusava de haver sido injusto para com ela, agora a observava com cuidado e prazer, para em compensação render-lhe toda justiça. D. Carolina brilhava jardim e, mais que as outras, por graças e encantos que todos sentiam e que ninguém poderia bem descrever; confessava-se que não era bela, mas jurava-se que era encantadora; alguém queria que ela tivesse maiores olhos, porém não havia quem resistisse à viveza de seus olhares; os que mais apaixonados fossem da doce melancolia de certos semblantes em que a languidez dos olhos e a brandura de custosos risos estão exprimindo amor ardente e sentimentalismo, concordariam por força que no lindo rosto moreno de d. Carolina nada iria melhor do que o prazer que nele transluz e o sorriso engraçado e picante que de ordinário enfeita seus lábios; além disto, sempre em brincadeira, guerreia com todos e em interessante contradição consigo mesma, ela a um tempo solta um ai e uma risada, graceja, fazendo-se de grave, fala, jurando não dizer palavra, apresenta-se escondendo-se, sempre quer jamais querendo.

Nunca também se havia mostrado a Moreninha tão jovial e feiticeira, mas para isso boas razões havia: esse era o dia dos anos da sua boa avó e a pobre Paula, sua estimada amada ama, estava completamente restabelecida.

Eis uma deliciosa invasão!... Dez moças entram de repente na varanda e num momento dado tudo se confunde e amotina; d. Carolina atira no meio da mesa do voltarete uma mão cheia de flores, e enquanto Filipe faz tenção de dirigir-lhe um discurso admoestador, ela furta-lhe a espadilha e voa para tornar a aparecer logo depois. E impossível continuar assim: dá-se por acabado o jogo e a Moreninha, à custa de um único sorriso, faz as pazes com o irmão.

— Parabéns, sra. d. Joaquina, disse Augusto; já triunfou de uma de suas rivais!

— Como?... perguntou ela.

— Ora, que esta minha prima nunca entende as figuras do sr. Augusto, acudiu d. Carolina; explique-se, sr. doutor.

Sua prima, minha senhora, a aurora e a rosa disputam sobre qual primará na viveza da cor, e eu vejo que ela tem presa no cabelo uma das duas rivais.

Eu o encarrego com prazer da guarda fiel desta minha competidora... seja o seu carcereiro! disse d. Quinquina, querendo tirar uma linda rosa do cabelo, para oferecê-la a Augusto.

— Oh! Minha senhora! Seria um cruel castigo para ela, que se mostra tão vaidosa.

— Pois rejeita?...

— Certo que não; aceito, mas rogo um outro obséquio.

— Qual?

— Que por ora lhe conceda seus cabelos por homenagem. Pois bem, será satisfeito; eu guardarei a sua rosa.

— Mas cuidado, não haja quem liberte a bela cativa! disse Leopoldo.

— Protesto que a hei de furtar, acrescentou d. Carolina.

— Desafio-lhe a isso! respondeu a prima.

Então começou uma luta de ardis e cuidados entre a Moreninha e d. Quinquina. Aquela já tinha debalde esgotado quantos estratagemas lhe pôde sugerir seu fértil espírito, e enfim, fingindo-se fatigada, veio sossegadamente conversar junto de d. Quinquina, que, não menos viva, conservava-se na defensiva.

Depois de uma meia hora de hábil afetação, a menina travessa, com um rápido movimento, fez cair o leque de sua adversária; Leopoldo abaixou-se para levantá-lo e d. Quinquina, um instante despercebida, curvou-se também e soltou logo um grito, sentindo a mão da prima sobre a rosa: com a sua foi acudir a esta; houve um conflito entre duas finas mãozinhas, que mutuamente se beliscaram, e em resultado desfolhou-se completamente a rosa.

Morreu a bela cativa! ... Morreu a pobre cativa! ... gritaram as moças.

— D. Carolina está criminosa! disse d. Clementina.

— Vai ao júri, minha senhora!

É verdade, vamos levá-la ao júri.

A idéia foi recebida com aplauso geral: só Filipe se opôs.

Não, não, disse ele. Carolina é muito rebelde, se fosse condenada, não cumpriria a sentença.

— Oh! Maninho! Não diga isso. Você jura obedecer?...

— Eu juro por você.

Tanto pior: era mais um motivo para se tornar perjura. Pois bem, dou a minha palavra, não é suficiente?

— Basta! Basta!

Organizou-se o júri; Fabrício foi encarregado da presidência, um outro moço serviu de escrivão, e cinco moças saíram por sorte para juradas; d. Clementina terá de ser a relatora da sentença. A Augusto declararam suspeito na causa. Filipe foi escolhido para advogado da ré e Leopoldo da autora.

A sessão começou.

Longo fora enumerar tudo o que se passou em duas horas muito agradáveis e por isso muito breves também. Toda a companhia veio tomar parte naquele divertimento improvisado e até, quem o diria?! os dois velhos deixaram o tabuleiro de gamão. Resuma-se alguma coisa.

As testemunhas foram d. Gabriela e uma outra, que deram provas de bastante espírito: o interrogatório de d. Carolina fez rir a quantos o ouviram. O debate dos advogados esteve curioso.

Leopoldo acusou a ré, demonstrando que tinha havido a circunstância agravante da premeditação e que o crime se tornava ainda mais feio, por ser causado pelo ciúme; procurou provar que d. Carolina, cônscia de seus encantos e beleza, queria ser senhora absoluta de todos os corações e até de todos os seres; que ela se enchera de zelos supondo, com razão, que Augusto desse subido valor à rosa, por lhe ser dada por uma moça bela como era a autora e, enfim, que o crime da ré era excessivo, que já na tarde antecedente jurara a perda daquela flor, por desconfiar que o zéfiro brincava mais com ela do que com seus olhos.

Filipe não se deixou ficar atrás. Argumentou dizendo que era impossível decidir que mão tinha dado a morte à bela cativa; que não houvera premeditação, porque a ré não quisera matar, mas sim Libertar; que, se havia crime, só o cometera a autora, por prender uma inocente flor; e que, por último, ainda quando fosse a ré que desfolhara a rosa e mesmo dando-se o propósito de o fazer, dever-se-ia atribuir tal ação à piedade, pois que d. Quinquina a estava matando pouco a pouco com o veneno da inveja, colocando-a tão perto de suas faces, que tanto a venciam em rubor e viço.

As juradas recolheram-se ao boilette e cinco minutos depois voltaram com a sentença, que foi lida por d. Clementina.

O júri declarou d. Carolina criminosa e a condenou a indenizar o dono da rosa com um beijo.

— Para fazer tal, disse a ré, não carecia eu da sentença do júri: tome um beijo, minha prima...

— Não é a mim que o deve dar, respondeu a autora; o dono da rosa é o sr. Augusto.

De rosa fez-se o rosto de d. Carolina.

— O beijo! O beijo! gritaram as juradas. Você deu sua palavra!

Ela hesitou alguns momentos... depois, aproximou-se de Augusto e, com seu sorriso feiticeiro e irresistível nos lábios, disse...

— O senhor me perdoa?...

— Não! Não! Não! clamaram de todos os lados.

Mas a menina parecia contar com o poder de seus lábios, porque, sorrindo-se ainda do mesmo modo, tornou a perguntar com meiguice e ternura:

— Me perdoa?...

— Não! Não!

— Porém, como resistir ao seu sorriso?... Como dizer que não a quem pede como ela?…exclamou Augusto, entusiasmado.

D. Carolina estava, pois, perdoada.

— Agradecida! disse ela com vivo acento de gratidão e estendeu sua destra para Augusto que, não podendo ceder tudo com tão criminoso desinteresse, tomou entre as suas aquela mãozinha de querubim e fez estalar sobre ela o beijo mais gostoso que tinham até então dado seus lábios.

A manhã deste dia foi assim passada e à tarde voltou-se aos preparativos do sarau.

No comments:

Post a Comment