Capítulo VI - Prossegue a mesma matéria, apontam-se os títulos e razões do
Reino temporal de Cristo
O principal fundamento dos que não admitem no Reino
de Cristo o império e domínio temporal, é por não haver título, como eles
dizem, ao qual compita e seja devido aquele domínio; e para que se veja
manifestamente a debilidade deste fundamento e tragamos à nossa sentença os
mesmos autores que em seguimento deles abraçam a contrária, apontaremos e
provaremos aqui, com a maior brevidade que nos for possível, os títulos por que
é devido e compete a Cristo em quanto homem o Império e domínio supremo, não só
espiritual, senão também temporal de todo o Mundo. São estes títulos seis,
todos legítimos e conforme o direito: o primeiro por natureza, o segundo por
herança, o terceiro por doação, o quarto por compra, o quinto por guerra justa,
o sexto por eleição e aceitação de todos os homens, como iremos mostrando pela
mesma ordem.
Primeiramente, é Cristo Rei e universal Monarca do
Mundo por natureza, porque por meio da união da divindade à humanidade, a qual
se inclui essencialmente na natureza de Cristo, sem algum outro concurso ou
condição extrínseca, da parte de Deus nem da parte dos homens, pertence ao
mesmo Cristo em quanto homem o domínio e império universal de tudo o criado, e
por ela fica constituído, ou por ela (sem ninguém o constituir) é Rei e Senhor
e Monarca supremo de todos os reis, de todos os reinos e de todos os impérios
do Mundo. Por isso Cristo no Apocalipse trazia o título de Rex regnum e Dominus
dominantium, escrito, como diz o texto, in femore, que significa a geração humana,
para mostrar que o ser rei de todos os reis e senhor de todos os senhores lhe
convinha e era seu por sua própria natureza. E por isso o nome que lhe puseram
na circuncisão foi de Jesus, que quer dizer salvador, e não o de Cristo, que
quer dizer ungido, porque o ser ungido por Rei e universal Monarca do Mundo não
lhe pertencia por imposição divina ou humana, senão por natureza própria sua,
ou por ser quem era. Salvador por obediência, mas ungido por natureza. E assim
como antigamente se faziam ou consagravam os reis pelo óleo que eram ungidos,
assim a união hipostática em Cristo foi uma verdadeira e própria unção com que
juntamente com o ser e a natureza recebeu o poder e a Monarquia do Mundo.
Este é o único fundamento do Padre Vasques, a quem
geralmente seguiram todos os que depois dele escreveram. Do qual Vasques diz
Salazar que foi o primeiro a quem a Teologia deve os sólidos e verdadeiros
princípios em que fundou o Império temporal de Cristo. E posto que Arriaga, por
não faltar ao costume de impugnar tudo, não reconheceu na unção da união
hipostática mais que a propriedade e energia da metáfora, nós veneramos nela a
autoridade de David, que assim o disse no Salmo XLIV: Unxit te Deus, Deus tuus,
oleo laetitiae pre consortibus tuis e a explicação de S. Agostinho e S.
Gregório Nasianzeno, e de outros grandes Padres que. assim o entenderam. Porei
suas palavras no capítulo seguinte pelas não repetir duas vezes.
O segundo título do Império de Cristo é por herança,
porque, sendo Cristo filho natural de Deus, conforme o texto de S. Paulo — quod
si filius et haeres — lhe pertence a Cristo o título de herdeiro do domínio e
império universal do Mundo, de que Deus é absoluto Senhor. Assim o disse o
mesmo Deus por boca do Profeta Rei: Postula a me et dabo tibi gentes
hæreditatem tuam et possessionem tuam terminos terræ. E S. Paulo, falando
também de Cristo: Quem haeredem universorum per quem fecit et sæcula. E o mesmo
Cristo, na parábola da vinha: Hic est hæres, venite et occidamus eum. E neste
título convêm todos os teólogos acima alegados, como também no seguinte:
É o terceiro título, o de doação, o qual se acha mais
expresso que todos, assim no Velho como no Novo Testamento, no Salmo pouco
antes alegado: Dabo tibi gentes hæreditatem tuam; e no salmo...: Omni subjecisti
sub pedibus ejus; as quais palavras entende S. Paulo de Cristo, no I capítulo
da Epístola aos Hebreus. O Anjo à Senhora, no capítulo II de S. Lucas: Dabit
illi dominus Deus sedem David patris ejus et regnabit in domo Jacob. S. João,
no capítulo III: Sciens quia omnia dedit ei pater in manus. O mesmo Cristo no
capítulo...: Omnia mihi tradita sunt a Patre meo. E no capítulo...: Data est
mihi omnis potestas in cælo et in terra.
O título da compra, que é o quarto, parece que cai
mais imediatamente sobre os homens que sobre o Mundo, mas ao primeiro domínio
se segue necessária e naturalmente o segundo, assim como o que é senhor do
escravo fica juntamente sendo de todos os seus bens. E é conclusão certa na
teologia, e de grande glória não só de Cristo mas nossa, que pelo título da
Redenção não só ficamos vassalos deste soberaníssimo Monarca, senão
verdadeiramente escravos seus, comprados com o preço de seu sangue: empti enim
estis pretio magno: O sexto e último título do Império de Cristo dizíamos que
era por consentimento, aceitação e como eleição de todas as nações do Mundo.
Este título é o mais natural e jurídico entre os homens, em cujas comunidades,
quando querem viver juntos e politicamente, pôs Deus, como autor da natureza, o
poder e jurdição suprema de eleger e nomear príncipe. Assim o tem a comum
sentença de todos os juristas teólogos, e o alcançaram e ensinaram antes deles,
por lume natural, Aristóteles no Livro III das Políticas, e Platão no Diálogo
de Regno e nos livros — De republica. Mas em Cristo parece que não pode ter
1ugar este título porque, sendo o Monarca universal de todo o Mundo e de todos
os homens, era necessário que os mesmos homens conviessem todos este
consentimento, eleição ou aceitação, como acima dizíamos, e este consentimento
comum nunca jamais o houve no Mundo, antes, como dizem alguns teólogos, não é
possível havê-lo. Contudo digo que não faltou ao Império e Monarquia universal
de Cristo este último título do consentimento e aceitação universal dos homens,
como agora mostrarei. E peço licença aos que quiserem ler este discurso para
meditar um pouco mais nele, por ser pensamento novo e matéria até agora não
tratada, à qual é necessário abrir os alicerces e lançar os primeiros e sólidos
fundamentos, prometendo aos que fizerem esta detença não perderão o fruto do
tempo que nela gastarem, pois verão por grandes notícias e não vulgares da
Antigüidade quão certa e concertadamente concorre a novidade e verdade desta
nossa consideração ao maior estabelecimento do Reino de Cristo.
Alberto Pighio (para que de todo não entremos neste
novo caminho sem alguma guia) no Livro V da Hierarchia Ecclesiastica, capítulo
III, arrostando a opinião de muitos e graves autores, os quais têm para si que
Cristo foi legitimo Rei do Reino de Israel, o título em que funda este direito
é o consentimento, aceitação e expectação geral, com que Cristo, verdadeiro
Messias, era esperado de todo aquele povo como seu verdadeiro Rei e Senhor,
prometido aos primeiros Patriarcas da sua nação.
Nec Pilato (diz este autor) nec Caesari ullum
legitimum jus in regnum Judaeorum, sed si cuiquam maxime competiit Christo,
quem semper expectaverunt sibi regem f ore in lege promissum. E para ,prova
desta geral aceitação e consentimento com que todo o povo hebreu tinha recebido
por seu Rei ao prometido Messias, traz o mesmo Alberto Pighio a história do
Livro I dos Macabeus, Capítulo XIV, em que se refere como os Judeus por
consentimento comum elegeram por seu príncipe Simão e seus descendentes com a
cláusula, porém, que o seriam somente até que viesse o Messias, a cujo Reino e
direito não queriam prejudicar. Judæi (diz o texto) consenserunt eum Simonem
esse ducem suum [...] in aeternum, donec surgat propheta fidelis. Sobre as
quais palavras conclui assim o dito autor: Vides omnium Judeorum votis et
expectatione semper expectatum Christum et Messiam in lege promissum, regem
sibi fore; nam ad ejus usque aduentum Simoni atque e jus posteritati regnum
stabilierunt, quod illi adventanti legitimo jure deberi significaverunt, velut
expresse protestantes in ejus praejudcium et injuriam nihl se velle facere.
De maneira que o título com que tão grande teólogo e
jurista defende o direito de Cristo ao Reino de Israel é aquele geral
consentimento, espectação e como eleição com que todo o povo judaico tinha
aceitado como seu verdadeiro Rei o futuro Messias, e como tal o esperava.
Assim explica em próprios termos esta sentença de
Alberto Pighio, Alonço de Mendoça acima citado, cujas palavras quero também
referir aqui, porque não pareça a acomodação da dita sentença levada de algum
modo por nós ao intento em que nos serve: Alii (diz Mendoça, referindo-se a
Pighio) alio titulo Christi regnum ab aduersariis vindicant; nam dicunt ex
consensu et quasi electione populi judaici Christum fuisse illius gentis regem;
nam cum ardentissime Messiam expectarent, et tenacissime crederent regem itsum
futurum temporalem, ideo pblico totius gentis decreto in ipsum sua suffragia
conjecerant et in regem elegerant.
De toda esta sentença assim entendida me não serve
mais que o exemplo e o modo de dizer ou filosofar; e digo que, assim como em
respeito do Reino de Israel, concorreu ou pode concorrer em Cristo o título da
aceitação e como eleição geral daquele povo, pela espectação, desejo e
consentimento comum com que era esperado de todos por seu legítimo, supremo e
verdadeiro Rei, assim concorreu e concorre o mesmo título no Reino e Monarquia
universal de Cristo, em respeito de todo o Mundo e de todos os homens e nações
dele, nos quais houve o mesmo consentimento comum, o mesmo desejo e a mesma
espectação, como logo mostraremos.
Nem impede ou encontra a verdade ou legitimidade
deste título o ser o mesmo Rei Cristo primeiro eleito, ungido, prometido e dado
por Deus, porque todas estas circunstâncias e condições concorrem no exemplo
alegado (o qual não é semelhante se não o mesmo) e o mesmo temos nas eleições
dos dois primeiros reis de Israel, Saul e Daniel, os quais por primeiro foram
ungidos pelo Profeta Samuel por mandado de Deus, e depois novamente aceitos,
aclamados e cada um deles ungido pelo mesmo povo, como consta da História
Sagrada, no I e II Livro dos Reis.
E que em todos os homens e nações do Mundo houvesse
geralmente o mesmo consentimento comum, e o mesmo desejo, e a mesma espectação
acerca do Reino e Monarquia universal de Cristo sobre todos eles, que é o ponto
e suposição em que fundamos este novo título, deixados outros muitos textos de
menor clareza, apontarei somente dois, que se não podiam desejar nem ainda
fingir mais expressos. O primeiro é do capítulo penúltimo do Gênesis, na bênção
que lançou Jacob a seu filho Juda, no qual, falando do Messias prometido, como
entendem uniformemente todos os autores católicos, e antes da vinda de Cristo,
entenderam também sempre todos os Hebreus, diz assim: Non auferetur sceptrum de
Juda et dux de femore ejus, donec veniat qui mittendus est, et ipse erit
expectatio gentium: «Não faltará o cetro de Judá nem príncipe de sua
descendência até que venha o que há-de ser mandado, e este será a espectação
das gentes.» E o Profeta Ageu, no. capítulo II, falando da mesma vinda de
Cristo (como é de fé que falava, porque assim o explicou S. Paulo na Epistola
aos Hebreus, capítulo XII): ...ego commovebo caelum et terram et mare et
aridam; et movebo omnes gentes, et veniet desideratus cunctis gentibus. Daqui a
um pouco (diz Deus) «moverei o céu e a terra, o mar e todo o Mundo, e moverei
todas as gentes e virá o desejado de todas elas»
De sorte que, antes de Cristo vir ao Mundo, não só
era Ele o desejado e esperado do povo de Israel, senão o esperado e desejado de
todos os povos e de todas as gentes, porque todos o esperavam por seu Rei e
natural Senhor, e não só por Rei particular dos Judeus, senão por Monarquia
universal de todas as outras nações e reinos do Mundo. Esta é a razão e o
mistério por que os três reis do Oriente (em que se representavam, como diz a
glossa, as três partes do Mundo até aquele tempo conhecido) sendo gentios,
vieram adorar Cristo e oferecer-lhe tributos.
Sobre a nação daqueles reis, e se eram só de uma ou
de diferentes nações, há variedade entre os Doutores. S. Jerônimo quer que
fossem da Arábia Feliz, outros os fazem da Pérsia, outros da Média, outros da
Etiópia. Eu tenho por mais provável que ao menos parte deles eram de regiões
mais distantes, e verdadeiramente da nossa Índia Oriental, conforme profecia de
David: Reges Tharsis et insula numera offerent, reges Arabum et Saba dona
adducent. Porque aquelas palavras reges Tharsis et insule, conforme a
significação mais recebida, querem dizer reis ultramarinos, o que se não
verifica sem grande impropriedade nos reis da Arábia e Sabeia com respeito da
Palestina.
Mas de qualquer modo que seja, o certo e sem
controvérsia é que todos eram reis gentios. Pois se eram reis gentios, e de
nenhum modo sujeitos ao domínio da república hebréia, que razão ou motivo
tiveram para vir adorar um menino que eles mesmo conheciam e diziam que era Rei
dos Judeus? Ubi est qui natus est rex Judaeorum?
A razão e motivo que tiveram foi (como bem notou
Almaino) porque sabiam e criam que aquele rei dos Judeus novamente nascido não
era rei particular (como os outros reis hebreus) de uma só nação ou de um só
reino, senão Rei, Monarca e Senhor universal de todos os reinos e de todas as
nações, e por isso como o Rei verdadeiro e Senhor universal de todos os reinos
e de todas as nações do Mundo, e por isso como a rei verdadeiramente seu, o
vinham adorar e reconhecer, e render-lhe a devida obediência e vassalagem:
debitam ei seu vero eorum regi et domino prestantes obedientiam.
De sorte que antes de Cristo nascer e aparecer no
Mundo, e quando somente estava profetizado e prometido já às nações do
Universo, não só a hebréia, senão as dos gentios a tinham aceitado e querido, e
por certo modo de eleição segunda e humana escolhido depois de Deus para seu
futuro Rei e Senhor, e como tal o esperavam todos, e era desejada de todos a
sua vinda: Ipse erit expectatio gentium; veniet desideratus cunctis gentibus.
Só vejo que podem reparar com muita razão os doutos,
e argüir contra esta nossa suposição (como argüiu S. Agostinho contra este
último texto) que não podia ser que as nações dos Gentios, e .muito menos todas
elas, esperassem e desejassem o Messias antes da sua vinda; pois antes de
Cristo vir ao Mundo, nem a fé ou a esperança de que havia de vir se tinha anuncia
do ou manifestado às nações dos Gentios, senão somente aos Hebreus.
É tão forçoso e ao parecer tão evidente este
argumento que, vencidos da força dele os maiores intérpretes da Escritura,
excogitavam aos dois textos referidos as explicações que neles se podem ver, as
quais, quando não façam alguma violência aos mesmos textos, ao menos não enchem
o sentido de suas palavras, porque aquele erit expectatio gentium e aquele
veniet desideratus cunctis gentibus verdadeiramente significam própria
espectação e próprio desejo, com que as nações dos Gentios todas (geral e
moralmente falando) ao menos algum tempo esperassem e desejassem a vinda do
prometido e futuro Rei.
Assim é e assim foi, e assim se cumpriu uma e outra
profecia, e assim digo se devem entender ambas em toda a capacidade do seu
sentido próprio e natural. E para que se veja que não era cousa impossível nem
dificultosa ser a vinda do Messias desejada e esperada geralmente de todas as
nações gentílicas, mostrarei aqui os modos e os meios mais prováveis e certos
por onde o conhecimento e esperança do futuro Messias não só podia chegar, mas
com efeito chegou, ou a todas ou a quase todas as nações de todo o que naquele
tempo se chamava Mundo.
O primeiro meio é a tradição continuada desde Adão
até Noé, cujos três filhos, Sem, Cam e Jafet foram os segundos povoadores do
gênero humano, no qual, enquanto se conservou unido, continuou também unida a
mesma tradição, e depois que na Torre de Babel se dividiram os homens e as
línguas, e se começaram novas nações, que encheram o Mundo, também com elas se
espalhou pelo mesmo Mundo aquela noticia e esperança recebida de seus
antepassados, pois é certo que com a mudança das línguas não perderam os homens
a memória nem a ciência.
Este discurso é tão natural que não havia mister
autor. Mas temos para maior confirmação dele o testemunho de S. Pedro
Crisólogo, no Sermão 157, o qual, declarando o meio por onde os magos puderam
entender que a estrela significava o Messias e que este havia de nascer na
Judéia, diz que tinham aprendido e sabido assim por doutrina e tradição de seus
maiores, derivada desde Noé. Non chaldea arte, sed de prisca sanctorum
traditione majorum; erant isti de genere Noe, etc. E o autor do Imperfeito na
humildade, II, sobre S. Mateus, tomando esta tradição mais perto da fonte, e
referindo-se aos tempos de Set, filho terceiro de Adão, depois de Abel, conta
haver ouvido de certo livro escrito com o nome do mesmo Set, o qual se
conservava em uma nação das últimas partes do Oriente, junto ao mar Oceano, e que
neste livro estava descrita a aparição futura daquela estrela, e os dons que se
haviam levar e oferecer ao Rei nascido que ela significava, e que todas estas
notícias se tinham conservado entre os doutos e estudiosos daquela gente por
tradição de pais a filhos. Audivi aliquos (diz ele) referentes de quadam
scriptura, et si non certa tamen non destruente fidem, sed potius delectante,
quoniam erat quaedam gens sita in ipso principio Orientis juxta Oceanum, apud
quos ferebutur quaedam scriptura, irscripta nomine Seth, de apparitura hac
stella, et muneribus ei hujusmodi offerendis, quae per generationes studiorum
hominum patribus referentibus filiis suis habebatur deducta.
Até aqui este autor, chamado o Imperfeito, por deixar
imperfeita e não acabada a obra que comeu, o qual querem muitos que seja S.
João Crisóstomo. E posto que não tem por certo aquele livro, e que só refere a
fama, por ser de tão duvidosa antiguidade, não nega, porém, antes aprova a
tradição do futuro Messias, que entre os Gentios se conservava, e da nova
estrela que havia de anunciar o seu nascimento.
Esta é a opinião comum dos Padres, como se pode, ver
em Orígenes, S. Basílio, S. Cipriano, S. Jerônimo, S. Gregório Nasianzeno,
Teofilato, Eutímio, Ambrósio, S. Máximo, S. Anselmo, Procópio, .S. Tomás e S.
Leão Papa, cujas palavras citaremos depois.
O outro meio por onde os Gentios puderam vir em
conhecimento da vinda e império universal do Messias, que os Judeus esperavam,
foi a grande comunicação que em todas as partes do Mundo tiveram sempre com os
mesmos Gentios, e os mesmos Gentios com os Judeus, entre os quais era tão
vulgar e celebrada aquela esperança, que o nome com que vulgarmente chamavam ao
Messias era o Esperado, ou o que há-de vir, como se vê nos termos que falaram
os discípulos ou embaixadores do Baptista, quando perguntavam a Cristo: Tu es
qui venturus es, an alium expectatamus?
Era Jerusalém antigamente a mais formosa cidade e o
maior império do Mundo situado no meio de todo ele, que por isso se chamava
Umbellicus terrae, e como tal concorriam a ela de todas as partes infinitas
gentes de todas as nações e ainda de todas as cores. Isto é o que tanto
celebrava David naquela cidade em cuja fundação e formosura tinha ele tão
grande parte: Glorosa dicta sunt de te, civitas Dei, Memor ero Rahab, et
Babylonis scientium me. Ecce alienigenæ et Tyrus et populus AEthiopum hi
fuerunt illic. Numquid Sion dicet: Homo et homo natus est in ea, et ipse
fundavit eam Altissimus? Dominus narrabit in scripturis populorum et principum,
horum qui ferunt in ea. Que
gloriosas cousas se contam de ti (diz David) e se escrevem nas escrituras de
todos os povos, ó cidade de Deus! Em ti se acham todas as diferenças de homens,
que isso quer dizer homo et homo, homens de todas as línguas; homens de todas
as cores, homens de todas as nações e partes do Mundo; em ti se acham todos os
homens de África, como são os de Etiópia; em ti os da Ásia, como são os de
Babilônia; em ti os da Europa, como são tantos outros estrangeiros; em ti se
vêem homens brancos, como os Tírios; em ti homens negros, como os Etíopes; em
ti homens de todas as outras cores meãs, como são os asiáticos; e de todas
estas gentes, que é mais, não só freqüentam tuas ruas os do povo, mas também as
passeiam os príncipes — populorum et principum! Mas o que sobretudo é digno de
maior memória, e o que sobretudo te faz gloriosa, ó cidade santa, é que todos
estes, vindo a ti, aprendem o que dantes ignoravam, e sabem o que dantes não
sabiam, porque conhecem a Cristo.
Este é o sentido literal das palavras scientium me;
porque o mesmo Cristo é o que falava neste Salmo por boca de David, como dizem
comumente todos os intérpretes. E se no tempo de David era tão freqüentada a
cidade de Jerusalém de todas as nações do Mundo, que seria no tempo de seu
filho Salomão, depois de edificado o templo, primeira maravilha do mesmo Mundo,
se o mesmo Salomão não fora maior maravilha! Para ver e ouvir estas duas
maravilhas, e muito mais a segunda, diz o Texto Sagrado no III Livro dos Reis,
cap. IV, que vinham de todos os povos e de todos os reis da Terra a Jerusalém
pessoas enviadas por eles (que é certo seriam os maiores sábios dos mesmos
povos e reinos) os quais, depois de ouvirem e admirarem em presença a sabedoria
de Salomão, iam contar e ensinar a suas terras e príncipes o que dele tinham
ouvido e aprendido. Et veniebant de cunctis populis ad audiendam sapientiam
Salomonis, et ab universis regibus terræ qui audiebant sapientiam ejus.
E quem poderá duvidar que um dos principais mistérios
que Salomão ensinava naquela cadeira universal do Mundo era o da fé e esperança
do futuro Messias, filho e descendente seu, e que a maior maravilha que levavam
para contar em suas terras os que tinham ouvido aquele famoso oráculo era que,
sendo tão admirável a sabedoria e grandeza de Salomão, ainda havia de ter o
mesmo Salomão um descendente que fosse mais sábio e maior que ele, plusquam
Salamone! Assim o dizem expressamente neste lugar .., e se conformam com o
exemplo da Rainha de Sabá, que, depois de ouvir a Salomão, foi a primeira que
pregou nesta fé e esperança do Messias no seu Império de Etiópia, e em sinal da
mesma fé introduziu em todo ele a circuncisão, que era uma protestação pública
dos que a professavam.
Mas quando nos faltavam estes testemunhos do
Testamento Velho, bastava um só do nosso para abundantíssima prova das muitas
nações de Gentios que vinham ordinariamente e residiam em Jerusalém, pois só no
dia de Pentecoste, ao som daquele trovão do céu, soubemos que acudiram ao
convento e ouviram a primeira pregação de S. Pedro, quando menos, dezessete
gêneros de homens de línguas e nações diferentes — Partos, Medos, Persas,
Elamitas, Mesopotamios, Judeus, Capadoces, Pontos, Asianos, Frígios, Panfílios,
Egipcios, Africanos, Cirenos, Romanos, Cretenses, Arabes e outros convertidos
das gentilidades, que chamavam com nome geral prosélitos, que quer dizer novos,
assim como hoje os judeus convertidos à Fé de Cristo se chamam cristãos-novos .
Et quomodo nos ( diziam todos estes no cap. II dos Atos dos Apóstolos)
audivimus unusquisqe linguam nostram in qua nati sumus? Parthi et Medi, et
AElamitæ, et qui habitant Mesopotamiam, Judaeam et Cappadociam, Pontum et
Asiam, Phrygiam et Pamphiliam, et AEgyptum et partes Liyæ, quæ est circa
Cyrenen, et advene Romani; Judaei quoque et proselyti, Cretes et Arabes,
audivimus eos loquentes nostris linguis magnalia Dei. Onde se deve muito
advertir que, quando isto aconteceu, já a. cidade de Jerusalém e o povo e
república dos Hebreus estava quase arruinada, e não conservava a quarta parte
da grandeza a que nos tempos de sua maior opulência tinha chegado. E se agora
era tão freqüentada de nações estrangeiras, que seria nos tempos passados?
Mas se importou muito para se estender a notícia do
Messias por todo o Mundo a comunicação que os Gentios tinham com os Judeus em
suas próprias terras, muito mais ajudou e adiantou a mesma notícia a muito
maior comunicação e freqüência que os mesmos Judeus tinham e continuaram sempre
nas terras dos Gentios, desde que nasceu e começou no Mundo a nação hebréia,
que foi em Abraão, primeiro tronco e pai de toda ela. Revelou Deus por três
vezes sucessivamente a Abraão, Isaac e Jacob a vinda do Messias,
prometendo-lhes que em sua descendência seriam abençoadas todas as nações do
Mundo: Benedicentur in semine tuo omnes gentes terrae; e no mesmo tempo pôs a
Providência divina aqueles três Patriarcas em diferentes nações e províncias: a
Abraão em Canaã, a Isaac em Gerara, a Jacob em Mesopotâmia, para que fossem
três pregadores daquele primeiro Evangelho, ou como três evangelistas que anunciassem
às gentes a boa nova da mercê grande que Deus tinha ,prometido fazer a todas. E
porque ao numero dos três Evangelhos não faltasse o primeiro, permitiu a mesma
Providência que por extraordinários caminhos fosse José levado ao Egito, e que
aí por mandado do rei, como diz David, pusesse escola de sua sabedoria, onde
tivesse por ouvintes todos os príncipes e sábios egiptianos: Ut erudiret
principes ejus sicut semetipsum, et senes ejus prudentiam doceret. Assim trouxe
Deus naquele tempo pelo Mundo estas quatro testemunhas de suas promessas de
reino em reino e de nação em nação, como notou o mesmo Profeta: Et
pertransierunt de gente in gentem, et de regno ad populum alterum.
Ajuntou depois disto a fome em Egito os doze irmãos,
filhos de Jacob e cabeças dos tribos; entraram livres, continuaram cativos,
saíram vencedores. Mas no tempo daquele comprido cativeiro Não havia casa no
Egito em que o cativo não fosse mestre do senhor. As maravilhas que depois
viram nos Egípcios é certo que acrescentariam fé às esperanças dos Hebreus,
porventura até aquele tempo mal cridas, e já pode ser que a crueldade de Faraó,
como a de Herodes, se não fundasse tanto no receio de sua multidão que no medo
de suas profecias.
Passados, enfim, à Terra de Promissão, onde
permaneceram até verem o cumprimento delas em Cristo, concorreram e floresceram
no mesmo tempo os quatro impérios ou monarquias dos Assírios, dos Persas, dos
Gregos e dos Romanos, que senhoreavam o Mundo, e com todas elas tiveram grande
comunicação os Hebreus, e algumas vezes mais estreita do que quiseram.
Todas as histórias sagradas estão cheias de
embaixadas, de confederações, de entradas, de guerras, de pazes, de presentes e
de outros tratos e correspondências políticas, que passaram entre as quatro
nações imperantes e o reino ou povo hebreu. Com os Assírios notemos de
Ezequias, de Acáz, de Oseas, de Joaquim e do sacerdote Eliacim, gue concorreram
com Berodac, com Salmanasar, com Ful, com Nabucodonosor e com Baltasar, como
consta do IV Livro dos Reis e da história de Judite. Com os Persas, em tempo de
Jeconias, de Zorobadel, de Esdras, de Neemias, que concorreram com Ciro, com
Dario e com Assuero, como consta do I e II Livro de Esdras e da História de
Ester. Com os Gregos, em tempo do Sumo Sacerdote Jado, de Matatias, de Judas
Macabeu, de Simão e Jónatas, que concorreram com Alexandre Magno, com os dois
Antíocos, com Demétrio, Heliodoro, Ptolemeu e Trifon, como consta do I e II
Livro dos Macabeus.
Finalmente, com os Romanos, em tempo de Judas
Macabeu, de Simão e Jónatas, que concorreram com diversos cônsules de Roma, de
que se nomeia na Escritura Sagrada somente Lúcio, como consta das mesmas
capitulações feitas entre uma e outra nação, mandadas pelos Romanos à Judéia,
escritas em tábuas de bronze, como lemos nos mesmos Livros dos Macabeus.
E não só com estes quatro estendidíssimos impérios,
mas com todas as nações do Mundo, tiveram muito particular trato e comunicação
os Judeus, concorrendo Deus para este fim com disposições de mui particular
providência. A primeira foi dar-lhes muitos filhos e pouca terra. Prometeu Deus
a Abraão que multiplicaria sua descendência como o pó da terra e como as
estrelas do céu, e foi assim que de doze netos de Abraão se formaram os tribos
e destes cresceu e se multiplicou a mais numerosa nação que jamais houve no
Mundo de um só sangue. A terra, porém, que Deus deu e repartiu aos doze tribos
para sua habitação foi a terra chamada de Promissão, cuja largura e
comprimento, tomada em sua maior extensão, não chegava a oitenta léguas da nossa
medida. E a razão desta providência foi para que, crescendo e multiplicando-se
a nação hebréia, e não cabendo nos estreitos limites da sua própria terra, se
espalhasse e estendesse por todas as nações do Mundo, e levasse a elas a
primeira luz da fé de Deus e da esperança de Cristo: e este é o mistério ou a
energia de primeiro se haverem de multiplicar como pó e depois como estrelas,
para que o alumiassem no meio das trevas em que todo estava.
Com o mesmo fim ordenou a sabedoria e justiça divina
que os maiores e mais gerais castigos daquela nação fossem desterros e
cativeiros, com que eram levados e transmigrados a terras e regiões estranhas
cousa poucas vezes vista em nações inteiras, para que por este meio ficassem
castigados os Judeus, e juntamente instruídos e alumiados os Gentios. Assim
lemos no cap. VIII dos Atos dos Apóstolos que se levantou uma grande
perseguição na igreja de Jerusalém, por ocasião da qual se dividiram e
espalharam os Cristãos por todas as regiões e terras de Judéia e Samaria: Facta
est in illa die persecutio magna in ecclesia, quae erat Jerosolymis, et omnes
dispersi sunt per regiones Judae et Samariae:. E notam comumente os Padres e
expositores que ordenou ou permitiu a Providência divina este desterro ou
dispersão geral de todos os cristãos de Jerusalém pelas cidades e lugares
daquelas províncias, para que, juntamente com eles assim espalhados ou semeados
por aquelas terras, se plantasse nelas a Fé e depois, por este meio tão natural
e ao parecer não pretendido, ficasse tão crescida e arreigada.
O primeiro e principal desterro e cativeiro, não
falando no do Egito, de que já dissemos, foi o de Salmanasar, no tempo de
El-Rei Oseas , como adiante largamente contaremos, no qual foram levados os dez
tribos desde Judéia até as terras dos Medos e dos Assírios, que estavam bem no
coração de toda a Ásia; e posto que o maior corpo daquela gente teve o sucesso
que depois se verá, é certo, como escreve Paulo Orósio, Severo Sulpício e
outros autores latinos e hebreus, que muitos deles se dividiram por todas as
terras orientais daquela vastíssima parte do Mundo, penetrando até as
províncias de que então nem muitos anos depois houve notícia, de que é bom
exemplo a China, onde em nossos tempos depois de 2300 anos, como escreve o
Padre Trigantio nas suas Relações da China, se achavam judeus daquela
transmigração com todos os sinais dela.
O segundo foi no tempo de Nabucodonosor, em que os
dois tribos que haviam ficado foram também cativos, em tempo de El-Rei Joaquim,
e levados a Babilônia. E destes temos o testemunho da Sagrada Escritura no cap.
XVI do Livro de Estér, que, sendo aquele império dividido em 127 províncias, em
todas elas e em todas suas cidades estavam espalhados os Judeus, e com eles a
fé do verdadeiro Deus, que professavam, como se vê nas palavras do edicto de
El-Rei Assuero ou Artaxerxes, com que mandou revogar a sentença de morte, que
por malícia e vingança de um mau e soberbo privado — Aman — contra a mesma
nação se tinha mandado executar. Nos autem (diz o edicto) a pessimo mortalium
Judaeos neci destinatos, in nulla penitus culpa reperimus, sed e contrario
justis utentes legibus, et filios altissimi et maximi semperque viventis Dei,
cujus beneficio et patribus nostris et nobis regnum est traditum, et usque
hodie custoditur. Nas quais palavras, cheias todas de fé, conhecimento, honra e
sujeição ao verdadeiro Deus que os Judeus adoravam, se vê claramente quão
grande fruto faziam com sua presença nas terras onde estavam cativos e
desterrados, Não só entre a gente popular mas nos maiores ministros e
príncipes, e nos mesmos imperadores supremos, qual era Assuero ou Artaxerxes
que firmou aquele edicto.
E aqui se entenderá o mistério com que um dos anjos
custódios da nação hebréia, que falava com o Profeta Daniel (como se lê no cap.
X de suas visões), orando ele apertadamente pela liberdade do povo, lhe deu por
causa da dilação daquele despacho a resistência que fizera por muitos dias
diante de Deus o Anjo Custódio do reino dos Persas, onde os mesmos Hebreus
estavam cativos. Princeps autem regni Persarum restitit mihi viginti et uno
diebus. E a razão desta resistência, como neste lugar notam todos os
expositores modernos, era o grande proveito espiritual que os gentios persas
conseguiam com a presença e comunicação dos Judeus, pela fé e conhecimento das
cousas divinas que de sua conversação e doutrina (ainda sem particular estudo)
se lhes pregavam.
Nem se deve passar em silêncio a cobiça natural dos
Judeus, ou desejo de adquirir riquezas, e o gênio indústria e inclinação tão
particular que teve sempre esta nação ao comércio e mercancia, como filhos
alfim daquele pai que, comprando e vendendo, fez sua fortuna, e com tão pouco
cabedal como uma escudela de lentilhas soube adquirir por indústria o que lhe
tinha negado a natureza, e fazer-se patrão e senhor do maior morgado do Mundo.
Desta inclinação dos Judeus se serviu a Providência
divina para os levar suavemente às terras e regiões mais remotas, e os
introduzir e misturar com todas as nações, metendo-lhes em casa, sem uns nem
outros o pretenderem, as drogas do Céu entre as mercadorias da Terra. Cuidava
Benjamim que só levava trigo no seu saco, e levava nele o trigo e mais o cálix
de José. Assim saíam de Judéia os mercadores, e nos fardos de mercadoria que
levavam, metia também a sua o Salvador do Mundo, que era esse o nome de José no
Egito: Vocabit eum lingua egyptiaca Salvatorem Mundi. E já pode ser (se o
pensamento me não engana) que fosse este o intento de Deus naquela lei do cap.
XXIII do Deuteronômio: Non fænerabis fratri tuo ad usuram [...] sed alieno, na
qual se permitia (posto que não se justificava) para com as nações
estrangeiras, para que esta maior liberdade ou impunidade de adquirir ou
multiplicar fazenda fora de sua pátria os convidasse a sair dela e os
arrebatasse voluntariamente às terras estranhas onde com eles se transplantasse
a verdadeira fé, que era droga naquele tempo que só nascia em Judéia.
E que seria se a este título justificasse Deus as
usuras que permitia aos Hebreus nas outras nações, como direitos ou gabelas
daquela mercadoria? Não me atreverei a o afirmar assim, mas sei que não é cousa
nova em Deus, quando quer passar a religião de um reino a outros, meter neles a
Fé às costas do interesse. Quando os deuses de Tróia passaram a Itália,
Anquises levava os deuses na mão, e Eneias levava às costas a Anquises. Os
pregadores levam a Fé aos reinos estranhos, e o comércio leva às costas os
pregadores.
E em quantas províncias achou o Evangelho fechadas as
portas e, depois que o comércio bateu a elas, as teve abertas e francas? O
primeiro rei de Portugal que se intitulou rei do comércio da Etiopia, Arábia,
Pérsia e dia foi o que introduziu a Fé na Índia, na Pérsia, na Arábia e na
Etiópia. Se não houvesse mercadores que fossem buscar a umas e outras Índias os
tesouros da terra, quem havia de passar lá os pregadores que levam os do Céu?
Os pregadores levam o Evangelho, e o comércio leva os pregadores. S. Tomé, que
levou do Brasil à Índia o Evangelho, quando não havia comércio, houve de
caminhar (como é tradição) por cima das ondas, porque não teve quem o levasse;
e o segundo Apóstolo do Oriente, querendo pregar na China, traçou que o
pregador entrasse como negociante, para que a Fé tivesse lugar como mercadoria.
Assim começou Deus a espalhar o conhecimento de sua
Fé pelo Mundo, e assim deu princípio àquele admirável comércio em que depois,
tomando de nós o que tínhamos na Terra, nos enriqueceu com o que trazia do Céu.
Naaman Siro trouxe de Damasco as suas azêmolas com
carga de ricos presentes para oferecer a Eliseu e levou-as carregadas de terra
de Israel, porque era santa aquela terra. Assim entravam os negociantes hebreus
em Judéia ricos e acrescentados com as drogas mais preciosas de todo o Mundo, e
o que principalmente levavam de Judéia para o mesmo Mundo, se não era a terra
de Israel, era urna droga que só se dava então naquela terra, que era a Fé e
conhecimento de Deus. Isto levaram as frotas celebradas del-Rei Salomão quando
navegavam a terras de Ofir, ou fosse Ofir a Índia, ou fosse a América, ou
fosse, como muitos querem, a nossa Espanha, império famosíssimo já naquela
idade ,pela riqueza e opulência de suas minas Isto vinha buscar a cobiça, e
aquilo vinha trazer a Providência, sendo certo então o que depois vimos nas
frotas das nossas Índias, que muito mais ricas iam do que voltavam. Quando
voltavam, traziam ouro, prata, pérolas, diamantes, rubis; quando iam, levavam a
Fé de Cristo, a esperança do Céu, as verdades do Evangelho, os sacramentos, a
graça, a salvação.
De maneira que o comércio, os desterros e a
estreiteza da terra própria foram as três ocasiões principais por que os Judeus
se saíam e Deus os derramava por todas as terras e nações do Mundo. Josefo, no
Livro XI de suas Antiguidades, diz que a nação hebréia tinha cheia toda a
redondeza da Terra: orbem terrarum replevit. E Filo Hebreu, naquele memorial ou
livro que intitula De Legatione ad Caium, diz que a maior parte de todas as
ilhas e terras firmes maritimas e mediterraneas da Asia, da África e da Europa
eram habitadas de Judeus: Itaque si exorat mea Patria tuam clementiam præpter
ipsam, alias civitatis demereberis plurimas, sitas in diversis orbis tractibus,
Asia, Europa, Africa, insulares, maritimas, mediterraneas.
E se estes dois autores, posto que tão alegados e
seguidos de todos os que escrevem, por serem da mesma nação, parecerem a alguém
suspeitosos e dignos de menos crédito, saiba que os mesmos testemunhos se leram
nas Escrituras Sagradas ainda com palavras mais universais e de maior
encarecimento. No edito que passou Assuero para que morressem todos os Judeus
sujeitos às terras de seu Império, diz assim a Relação ou Relatório de suas
culpas: In toto orbe terrarum populum esse dispersum, qui novis uteretur
legibus, et contra omnium gentium consuetudinem faciens, regnum jussa
contemneret, et universarum concordiam natonum sua dissensione violaret. Quod
cum didicissemus, videntes unam gentem rebellem adversus omne hominum genus
perversis uti legibus, nostrisque jussionibus contraire, et turbare subjectarum
nobis provinciarum pacem atque concordiam, jussimas etc., nas quais palavras se
diz votada e expressamente que o povo hebreu naquele tempo estava espalhado por
todo o Mundo:In toto orbe terrarum populum esse dispersum; e que com a novidade
de suas leis perturbavam a paz de todas as gentes e de todas as nações:omnium
gentiam et universarum nationum; e que desobedeciam os mandados dos reis e eram
rebeldes contra todo o gênero humano: adversus omne genus humanum. E estas
culpas assim relatadas que vêm a ser senão um testemunho público e autêntico de
tudo o que imos provando? Porque não só consta delas estarem os Judeus
espalhados por todo o Mundo, mas se mostra também com a mesma clareza que os
efeitos dessa dispersão era ser pública e notória a todas as nações e reis e a
todo o gênero humano a nova lei e nova Fé diferente de todas as outras que os
mesmos Judeus professavam.
No I capítulo dos Atos dos Apóstolos temos outro
testemunho sagrado igualmente universal e por termos, se pode ser ainda mais
notáveis: Erant autem in Hierusalem habitantes judaei viri religiosi ex omni
natione quæ sub caelo: «Havia em Jerusalém (diz S. Lucas) muitos judeus
moradores da mesma cidade, homens religiosos de todas as nações que cobre o
céu;» para cuja inteligência se deve supor que todos os hebreus que viviam
longe de Judéia em diferentes nações, reinos ou cidades populosas tinham em
Jerusalém suas sinagogas particulares e distintas, as quais sinagogas não eram
propriamente igrejas como as nossas (porque o templo era um só e comum a todos,
nem podia ser mais que um conforme a lei), mas eram umas casas grandes e
públicas, onde se ajuntavam principalmente aos sábados, e ali se tinham as
pregações, os conselhos, as disputas, e todas as outras conferências das cousas
espirituais ou eclesiásticas, como se conta no capítulo XVII dos Atos o fazia
ou costumava fazer S. Paulo: Secundum consuetudinem autem Paulus introivit ad
eos, et per sabbata tria disserebat eis de Scripturis. E no capítulo VI do
mesmo livro se faz expressa menção das sinagogas diferentes que dizíamos:
Surrexuntur autem quidam de Synagoga, quae appellatur libertínorum, et
Cirenensium et Alexandrinorum, et eorum qui erant a Cilicia et Asia; mas no
qual texto, como advertiu S. Crisóstomo e outros Doutores, não se há-de
entender que uma só sinagoga fosse dos Libertinos, Cirenenses, Cilicianos,
Asiáticos e Alexandrinos, senão que cada uma das comunidades dos Judeus
pertencentes a estas províncias tinham a sua sinagoga própria, separada e
particular. Era Jerusalém naquele tempo (e muito mais antes daquele tempo) a
corte dos rei, a universidade das letras, o assento dos tribunais, e sobretudo
era a cabeça da Igreja da Lei Velha, como hoje é Roma da Nova, à qual estavam
sujeitos todos os Judeus e professores da mesma Fé, ainda que vivessem em
outros reinos, como se vê das provisões de S. Paulo, as quais ele foi buscar a
Jerusalém contra os Judeus de Damasco, que era terra de gentios sujeitos a
El-Rei Arctas, e assim como todos os reinos e repúblicas da Cristandade têm
seus embaixadores, agentes requerentes e igrejas particulares em Roma, e ainda
hospitais da mesma nação, assim e muito mais se observava o mesmo uso entre os
Judeus, gente por natureza tenacíssima dos seus costumes e ritos.
E era tanto o número destas sinagogas em Jerusalém,
que quando ultimamente foi destruída aquela cega cidade por Tito e Vespasiano,
se acharam nela, como refere Lorino, quatrocentas e oitenta sinagogas. cada uma
de diferente nação, província, reino corte ou povo notáve1 onde houvesse tanto
número de Judeus que só ó que deles assistiam em Jerusalém pudessem formar
corpo e comunidade distinta.
Daqui se tira o novo e eficaz argumento de quão
espalhados e multiplicados estavam os Judeus por todas as partes do Mundo. E
estes eram aqueles a quem S. Pedro, no Sermão de dia de Pentecoste, chamou
judeus de longe: Vobis enim est repromisio et filiis vestris et omnibus qui
longe sunt
Vivendo pois os Judeus tão misturados e travados com
todas as nações dos gentios, desta companhia se lhes pegara, como dizíamos, o
conhecimento da Fé de Deus e esperança de Cristo, e não só pelo trato,
comunicação e exemplo, senão também por indústria e estudo particular de alguns
judeus mais zelosos, os quais com desejo de aumentar a sua religião e o culto
do verdadeiro Deus, ensinavam e afeiçoavam a ela os gentios.
Desta verdade temos em prova (que não é só suspeita
ou conjectura nossa) o testemunho e autoridade do mesmo Cristo no capítulo
XXIII de S. Mateus, onde, repreendendo a hipocrisia dos escribas e fariseus,
diz assim: circuitis mare et aridam, ut faciatis unum proselytum: et cum fuerit
factus, facitis eum filium gehennæ duplo quam vos. «Cercais o mar e a terra
para converter um gentio à Fé, e depois que está convertido, ensinai-lhes tais
doutrinas que o fazeis mais filho do Inferno do que vós sois.» Na qual sentença
de Cristo se vê principalmente como os Judeus rodeavam mar e terra, isto é,
peregrinavam e navegavam por todas as terras e mares do Mundo, e juntamente se
prova que com estas suas peregrinações e navegações levavam pelo mesmo Mundo a
Fé do verdadeiro Deus, e o davam a conhecer aos Gentios, dos quais convertiam
alguns; e finalmente que Não se fazia isto acaso e por ocasião do trato, se não
por zelo e cuidado particular da Religião, posto que depois a viciavam os
escribas e fariseus do tempo de Cristo com a má doutrina e exemplo que lhes
ensinavam; nem faltavam em diversas partes do Mundo padrões desta mesma
verdade, levantados entre as gentes mais políticas e celebradas da Gentilidade.
Tal era aquele altar que S. Paulo achou em Atenas, consagrado ao Deus não
conhecido — Ignoto Deo — o qual Deus não conhecido, como logo lhes declarou o
mesmo Apóstolo, era o verdadeiro Deus, criador do Céu e da Terra.
Destes altares havia outros, como escreve o Cardeal
Barónio, na Arábia, nas Gálias, na nossa Espanha e em outras províncias nobres
da Ásia e da Europa, e que estes monumentos de Religião e este conhecimento de
Deus não conhecido se tivesse derivado aos Gentios da doutrina e trato com os
Judeus, provam-no agudamente alguns autores, com o mesmo título de não
conhecido. Porque os deuses dos Gentios eram conhecidos pelos seus nomes
particulares de Júpiter, Saturno, Marte; mas o Deus dos Judeus não era
conhecido de nome, porque lhes estava proibido tomarem na boca o nome de Deus,
e por isso se chamava Inefável, isto é, nome que se não podia falar nem dizer.
Vere tu es Deus abconditus, Deus absconditus et Salvator — dizia Isaías a Deus,
aludindo a esta proibição: «Verdadeiramente, Senhor, vós seis um Deus
escondido, mas Deus que escondido e desconhecido salvais.» E Josefo, no Livro II
de suas Antiguidades, vindo a tratar do nome de Deus, passou-o em silêncio e
disse que lhe não era lícito pronunciá-lo: De quo mihi dicere non est fas.
Conheciam, porém, os Gentios, ensinados pelos Judeus,
que este Deus desconhecido a quem não sabiam o nome era o Deus que criara todas
as cousas, e este foi o mistério daquela erudita ignorância, com que,
descrevendo Ovídio a criação do Mundo, não o nomeou nem determinou o Deus que o
criara, dizendo-o só absoluta e incertamente: Quisquis fuit ille deorum «quem
quer que foi o Deus» que o criou.
Mas nesta mesma incerteza com que falou no Deus
criador do Mundo, este poeta declarou ser ele o Deus que adoravam os Judeus, ao
qual os Gentios chamavam Deus incerto, porque não tinha nome particular com que
fosse conhecido e se distinguisse dos outros deuses. Assim o disse Claudiano,
também poeta latino e gentio, chamando aos Judeus os adoradores de Deus
incerto: Cultrix incerti Judæa Dei. E estes foram os primeiros rudimentos da Fé
que os Judeus semearam entre os Gentios, introduzindo-se o verdadeiro Deus nas
outras nações e andando nelas como disfarçado, conhecido debaixo do nome de
incógnito, e crido com o sobrenome de incerto.
E para que concluamos este discurso com uma
advertência em tal matéria digna de muito reparo, no capítulo XXXII do
Deuteronômio diz Moisés que, quando Deus, na confusão da Torre de Babel,
dividiu a todos os filhos de Adão em diversas nações e línguas, fez aquela
divisão conforme o número dos filhos de Israel, respondendo a cada um deles uma
nação: Quando dividebut Altissimus gentes, quando separabat filios Adam,
Constituit terminos populorum juxta numerum filiorum Israel. No qual número
alude Moisés aos filhos de Israel, que entraram no Egito, ·os quais consta do
capítulo X do mesmo livro e do capítulo XLVIII dos Gênesis, que foram setenta
almas: Omnes animæ domus Jacob, quae ingressæ sunt in AEgyptum, fuere
septuaginta. Assim entendem este lugar todos os Padres e intérpretes, os quais
também concordam em que as línguas e nações em que Deus dividiu os homens (como
se colhe do capítulo X do Gênesis, em que se referem as famílias dos
descendentes de Noé) foram setenta e duas. Destas, se se tirarem a hebréia e
egípcia, que já estavam unidas e se comunicavam, ficam pontualmente setenta.
Agora pergunto: E que mistério ou que intento teve a
Providência Divina em igualar o número de todas as nações ao dos primeiros
hebreus e não em outro tempo ou ocasião, senão quando a primeira vez se
ajuntaram com os Gentios? O mistério e razão desta providência foi sem dúvida
porque tinha Deus destinado aos Judeus para mestres da Fé dos Gentios naquela
primeira Igreja. E era conveniente e necessário para este soberano fim que
fossem tantos os mestres quantas eram as nações.
Temos a confirmação deste pensamento na mesma
Providência Divina, que sempre é semelhante a si mesma em casos semelhantes.
Tratou Cristo de dispor a pregação do Evangelho e conversão do Mundo, e, depois
de nomeados os doze Apóstolos, em correspondência também dos doze filhos de
Jacob e dos doze tribos de Israel, elegeu sinaladamente setenta e dois. E dois
discípulos, como escreve S. Lucas no capítulo X, que mandou diante de si:
...designavit Dominus et alios septuginta duos et misit illos binos ante faciem
suam, in omnem civitatem et locum, quo erat ipse venturus. E se buscarmos nos
expositores sagrados o mistério e proporção deste número, responde S. Jerônimo,
e com ele a sentença comum dos intérpretes, que foram setenta e dois estes
novos precursores e embaixadores de Cristo, por serem outras tantas (como
dizíamos) as nações do Mundo, que o Senhor, por meio da sua pregação e
doutrina, queria trazer (como trouxe) ao conhecimento da Fé. De maneira que,
assim como Cristo, no princípio da Lei da Graça, igualou o número dos seus
discípulos ao das nações e gentes do Mundo, para que levassem por todo ele o
conhecimento de Deus e a nova de que o Messias era já vindo, assim Deus, no
princípio da Lei Escrita, mediu o número dos filhos de Israel, que são os
Hebreus, com o de todas as outras nações e gentes do mesmo Mundo, porque eles
eram os que haviam de levar e semear entre todas elas o conhecimento do
verdadeiro Deus. E a nova e promessa de que o Messias havia de vir é explicação
admirável de outros setenta e dois intérpretes da divina palavra, os quais, em lugar
de — juxta numerum filiorum Israel — tresladaram — juxta numerum Angelorum Dei
»— , chamando neste lugar aos filhos de Israel anjos ou embaixadores de Deus,
porque esse era o fim e ofício para que foram destinados a todas as nações e
tomados e repartidos conforme o número delas.
O terceiro meio de providência particular com que
pôde chegar facilmente e chegou naquele tempo aos Gentios o conhecimento da fé
e esperança de Cristo, foram as Escrituras Sagradas. O primeiro livro que viu o
Mundo foi o Pentateuco, de Moisés, e não faltam grandes conjecturas para se
crer que Moisés foi aquele prodigioso Mercúrio a quem os Antigos celebraram com
o nome de Trimegisto. Este livro foi o que fez aos Caldeus mestres da Ásia, aos
Egípcios da África e aos Gregos da Europa. Com razão chamou Clemente
Alexandrino a Platão o Moisés de Atenas — Moyses Atlicus — porque de Moisés
foram tirados todos aqueles lumes que deram a Platão em suas obras nome de
divino. Deste rústico, que assim lhe chamou Aristóteles, tomou este soberbo e
ingrato filósofo a sabedoria mais sublime que o fez o maior da Grécia. Aos
livros de Moisés se seguiram os outros sagrados; os dos Profetas, que são entre
todos quase os últimos, ainda vencem em Antigüidade os mais antigos filósofos e
escritores gentios. Tempore nostrorum prophetarum (diz S. Agostinho) philosophi
gentium nondum erant. E como só estes livros havia no Mundo, só estes se liam
em todo ele, dispondo-o assim a Providência, que tudo governa, para que mais se
estendessem por toda a parte e fossem mais celebradas suas notícias.
Não lhes podia suceder então às Escrituras divinas o
que depois lhes aconteceu com Jerônimo, quando as deixou pela suavidade de
Túlio, porque ainda não tinha gostado sua doçura. Elas só eram o estudo dos
sábios, elas o entretenimento dos curiosos, elas o desvelo dos entendidos. Esse
foi um dos mistérios de Deus, em as fazer escuras, para que, tendo sempre que
entender, fossem uma e muitas vezes lidas.
Quem quiser saber facilmente quão estudadas eram dos
Gentios as Escrituras, leia com atenção os livros dos seus filósofos, dos seus
historiadores e ainda dos seus poetas, e verá o que delas tomaram, delas
imitaram e sobre elas fingiram; verá quanto as não largavam das mãos. «Tudo o
que compôs o estilo dos vossos escritores — dizia Tertuliano aos Gentios — a
substância, a matéria, a origem, a ordem, as histórias das gentes e das cidades
insignes, e ainda as mesmas cidades e algumas das gentes; as causas e memórias
do que escreveram e até a forma das letras e imagens dos caracteres, e os
vossos mesmos deuses (e não digo nisto mais senão menos) os vossos templos, os
vossos oráculos, os vossos sacrifícios, tudo vencem em muitos séculos de
Antigüidade os livros de nossas profecias, e tudo foi tomado do tesouro das
escrituras judaicas, que são também as nossas: Omnes itaque substâncias
omnesque materias, origines, ordines, venas veterani cujusque styli vestri,
gentes etiam plurasque et urbes insignes, historiarum causas et memoriarum ,
ipsas denique effigies literarum indices custodesque rerum, et (puto adhuc
minus dicimus) ipsos, inquam, Deos vestros, ipsa templa, et oracula, et sacra
unius interim prophetae scrinium, sæculis vincit, in quo videtur thesaurus
collocatus totius Judaici Sacramenti, et inde etiam nostri... Até aqui Tertuliano.
É certo que, se os versados nas divinas Escrituras
considerassem diligentemente a matéria delas e a traça e harmonia com que foram
ditadas pelo Espírito Santo, achariam facilmente que não só foram escritas pela
lei e observância dos Hebreus, senão também para lição e estudo de todas as
outras nações; porque, sendo um só o Povo de Deus, e os autores que escreveram
aqueles livros todos do mesmo Povo, a que outro fim se faz neles tão freqüente
memória de todas as outras nações do Mundo e seus sucessos? Assim temos os
Cananeus, os Amorreus, os Fereses, os Eveus, os Eteus, os Jebuseus, os
Filisteus; assim os Ismaelitas, os Amonitas, os Moabitas, os Madianitas, os
Gabaonitas, os Amalecitas; assim os Assírios, os Medos, os Caldeus, os Persas,
Sírios, os Tírios, os Sidónios, os Egípcios, os Etíopes, os Gregos, os
Macedônios, os Romanos. E não havia antes de Cristo província conhecida ou
cidade de grande nome no Mundo, de cujos sucessos se não achasse alguma memória
no Testamento Velho, assim dos passados nas histórias, como dos futuros nas
profecias.
Não falo já de Daniel, que falou universalmente de
todos os maiores impérios; mas só em nove capítulos de Isaías lemos
sinaladamente as profecias de onze nações diferentes, chamadas cada urna por
seu nome a ouvir a sentença e a saber da boca de Deus o que lhe estava por vir.
E que nação destas haveria que não lesse com grande atenção e cuidado os
oráculos daquele famoso profeta, onde estavam conhecendo seus nomes e lendo as
fortunas? Bastava só para mover a curiosidade universal de todas as gentes à
lição dos livros Sagrados, serem só eles os que revelaram e descobriram o Mundo
o segredo de seu primeiro princípio, tão ignorado entre todos os sábios, a
origem das línguas, o nascimento das nações, a divisão das terras, a ordem e
cronologia dos tempos, do que tudo houvera perpétua ignorância nos homens, se
não estivera revelado nas Escrituras.
Mas quando nenhum destes tesouros houvera depositado
e encerrado nelas, falando somente do que pertence à história, que livros se
escreveram jamais, não digo dos que professam verdade, mas dos fingidos e
fabulosos, que igualem em grandeza e variedade de casos admiráveis a menor
parte ou sombra do que se refere nas histórias sagradas?
Narraverunt mihi iniqui fabulationes, sed non ut lex
tua, dizia Daniel, e mais ainda não tinha sido o que depois dele se escreveu.
Que gigantes fabulosos filhos da terra se atreveram a edificar uma torre como a
de Babel, nem arrimaram escadas ao céu, sem pôr monte sobre monte, como a de
Jacob? Que metamorfoses ou transformações fingiram como a de Nabucodonosor,
convertido em bruto, a da mulher de Lot em estátua, a da vara de Moisés em
serpente, comendo serpentes, e depois de serpente convertida outra vez em vara?
Descreveram as fábulas o dilúvio, mas não tiveram
fantasia para meter todo o Mundo em uma arca, nem confiança para o salvar nela.
Qual poeta se impôs ou traçou jamais uma comédia como a de Job, uma tragédia
como a de Aman, uma novela ou enredo como a de José? Em que teatro dos Gentios
se representaram aparências de tanto artifício como um paraíso terreal sumido
no meio do Mundo, um Enoc desaparecido ,de repente, um Datão e Abiron tragados
da terra, e um Elias voando pelos ares em um carro de quatro cavalos, o carro,
as rodas e os cavalos tudo de fogo? Que semelhança tiveram aquelas máquinas que
se levantaram com nome de maravilhas do Mundo com a portentosa grandeza das que
lemos nas Escrituras? Que estátua como a de Nabuco, que carroça como a de
Ezequiel, que coluna como a do Deserto, que jardins como os de Assuero, que
palácio encantado como o templo de Salomão, edificado de seus fundamentos sem
nele se ouvir o golpe de martelo? Um pavilhão que de dia cobria do sol
seiscentas mil famílias, uma tocha que de noite as alumiava, já dissemos que se
chamava coluna.
Que disse a Gentilidade da cítara de Orfeu, que se
iguale com a harpa de David, de que fugira o Inferno? Que disse das respostas
duvidosas do seu Apolo, que se pareça com os oráculos sempre certos do
propiciatório? Que disse das vozes de Eudimião, também ouvidas da Lua, que não
exceda uma só voz de Josué, obedecida da Lua e do mesmo Sol? O caduceu tão
celebrado do seu Mercúrio que comparação teve com os poderes da vara de Moisés,
que dividia os mares, parava os rios, fazia caminhar os montes? Onde se lê tal
agravo de onipotência como no tenente daquela vara em quem foi culpa tirar
fontes de um penhasco com dois golpes, porque o podia fazer com uma palavra?
Não digo nada dos documentas da Escritura, porquanto
trato do doce e não do útil, só do que leva o apetite e não do que move a
razão. Que se podia inventar de maior pasmo aos ouvidos, que ouvir falar um
jumento com Balaão e uma serpente com Eva? Que se podia fingir de maior lisonja
e admiração ao gosto, que comer em uma iguaria todos os banquetes e gostar em
um só maná todos os sabores? Que se podia imaginar de maior suspensão e
assombro à vista, que ver o monstro marinho engolir a Jonas, ver levá-lo
consigo ao fundo e desaparecer, e ver dali a três dias surgir a baleia,
desembarcá-lo a fera vivo nas praias de Nínive?
Como estes são os prodígios que se encontram a cada
página nos Livros Sagrados. Mas que direi das façanhas e cavalarias que, ainda
conhecidas por falsas, deleitam e suspendem tanto a curiosidade dos homens? Que
desafio como o de David, com uma funda e um cajado contra o gigante coberto de
ferro? Que batalha como a de Gedeão, só com trombetas e luzes em cântaros de
barro? Que bateria como a dos muros de Jericó, derrubados com os instrumentos
dos músicos do templo! Que emboscada como a de Abimelec em que os bosques e as
sombras caminhavam juntamente e os soldados com eles? Que vitória como a de
Jónatas, em que um só capitão com um só soldado, pôs em fugida e desbarato o
exército inumerável dos Filisteus? Que triunfo como o da galharda Judite,
quando entrou pelas portas de Betúlia com a cabeça de Olofernes, em que degolou
de um golpe todo aquele seu exército?
Mas passando nós a encontros de maiores forças em que
pelejaram os braços e não a indústria, que Hércules Tebano como Sansão, aquele
que, atado sete vezes, de uma só rompeu as cordas e nervos como se foram teias
de aranha; aquele que, preso dentro da cidade de Gaza, quebrou com as mãos os
ferrolhos e lançou às costas as portas; aquele que, levado ao templo dos
Filistinos, lançou a mão direita e esquerda a duas colunas, dando com o templo
em terra, sepultou debaixo dele todos os idólatras; aquele que, com uma
queixada de um jumento, matou, em campo aberto, mil de seus inimigos e ainda
matara mais, se não fugiram todos?
Teve sede Sansão, cansado de matar, e, arrancando um
dente da mesma queixada, fez brotar dela uma fonte. Assim obedecem os elementos
a quem assim triunfa dos homens. Todas estas forças tinha este bizarro mancebo
em sete cabelos, porque dedicou todos a Deus, desde seu nascimento.
Segundo Sansão, foi Sangar capitão do mesmo povo
depois de juiz, e juiz depois de lavrador, mas lavrador que, fazendo montante
do arado, matou com ele em um dia seiscentos filisteus, e deixou semeando com
seus corpos o campo que andava lavrando. Fique à trombeta da fama Josué,
vencedor de trinta e um reis, e o fortíssimo Macabeu, restaurador vítima da sua
pátria. Paremos no valente Eleásaro, que, metendo-se intrepidamente com a
espada debaixo de um elefante armado, primeiro foi matador de sua sepultura, e
depois ficou ali não sei se diga morto, se mortalmente oprimido do peso de
tamanha vitória.
Mas deixando a guerra, o sangue e o estrondo das
armas, que história tão admirável como a da casta Susana? Que sacrifício tão
lastimoso como o da filha de Jepta, e tão venturoso como o de Isaac posto já
sobre o altar, e de entre a lenha e a espada escapando vivo? Que caso tão bem
tecido como o de Moisés infante, já entregue à fúria do Nilo na barquinha ou
naufrágio de vimes, tomando posto nos braços da Princesa do Egito, encomendado
com maior ventura à própria mãe para que o criassem a seus peitos? Que
maravilha como a da sarça verde e sem arder no meio das chamas, a dos meninos
de Babilônia tomando fresco na fornalha, a de Daniel comendo e não comido no
lago dos leões, e a da serpente do Deserto dando vida aos mordidos só com
olharem para ela? Que prudência como a de Salomão em mandar partir o menino
para conhecer a mãe verdadeira? Que engenho como o de Jacob em meter as cores
pelos olhos das mães, para pintar os cordeiros antes de nascerem? Que indústria
como a de Daniel em semear de noite o templo de cinza, para mostrar de dia nas
pegadas dos sacerdotes e seus filhos que eles e não o ídolo eram os que comiam
as ofertas? Que subtilezas de Estado tão bem entendidas como as dos Livros dos
Reis, que como as de David com Saul e as de Cusai com Aquitofel?
Tudo nas divinas Escrituras é divino, tudo raro, tudo
maravilhoso, e fora matéria imensa de prosseguir e impossível de compreender
querer levar por diante os princípios deste não intentado discurso.
Bastem estes poucos exemplos, mais aludidos que
contados, para que deles possa entender o leitor (que é o que só lhe
pretendemos persuadir) quão fraca seria a todas as nações dos Gentios a lição
dos Livros Sagrados quando chegassem a suas mãos, e como este foi o altíssimo
conselho da Providência Divina, no estilo e disposição das escrituras do
Testamento Velho (tão diversas nesta parte das do Testamento Novo) temperando a
alteza e majestade de seus mistérios com o sabor de tantas verdades gostosas e
com a variedade de tantas maravilhas tão novas e tão notáveis, para que,
convidados com o cevo da curiosidade os que ainda não deviam àqueles livros
outros melhores respeitos, aprendessem por eles a Fé de Deus e juntamente as
esperanças de Cristo.
E quão impossível cousa seja poderem ler os Gentios
as Escrituras Sagradas, sem beberem daquelas fontes esta esperança, vê-se clara
e naturalmente da matéria das mesmas Escrituras, que, como todas, foram
ordenadas à vinda de Cristo, e de Cristo em quanto Rei e Senhor do Mundo,
apenas se acha cláusula em muitas delas que não esteja anunciando esta vinda e
este Reino.
Três partes da Escritura, disse Cristo aos discípulos
que falavam mais particularmente na sua vinda ao Mundo: os Profetas, os Salmos
e os livros de Moisés: Necesse est impleri omnia quae scripta sunt in lege
Moysi et prophetis et psalmis de me. E deixando à parte os lugares mais escuros
(que esses não os entendiam os Gentios sem intérprete) como se viu no eunuco da
rainha Cândaces, de Etiópia (se bem havia muitos hebreus, como dissemos, entre
os Gentios, a quem estes podiam perguntar a interpretação quando quisessem) o
cap. 2, o 9, o II, o 35, o 52, o 53, o 54, o 65 e o 66 de Isaías, e muitos
outros de todos os Profetas, que homem os podia ler com juízo e entendimento,
ainda que fosse sem fé, que não visse e conhecesse que era prometido naquelas
palavras um Rei futuro, e não Rei como os que costumava ver no Mundo, de uma só
ou algumas nações, senão de todas as gentes e reinos do Universo? E quando
todas as outras profecias tivessem alguma escuridade que eles não pudessem
entender ou interpretar por si mesmos, os dois textos de Daniel, fundamentais
desta nossa História, em que o Reino universal daquele futuro Monarca está
expresso e declarado com palavras tão vulgares e tão significativas, e com
termos que Não admitem outro sentido nem interpretação, que gentio havia de
haver, por bárbaro e ignorante que fosse, que não fizesse conceito do que
diziam?
Mas basta ao nosso intento que o fizessem os doutos e
os entendidos. Nos Salmos de David, como ele era a quem tão de perto tocava
aquela felicidade e a quem particularmente estava prometida, é cousa
maravilhosa a freqüência com que está repetido, a clareza com que está
apregoado e a pompa e majestade de palavras com que está engrandecido o Reino
de Cristo. O Salmo II, o Salmo IX, o Salmo XLI, o Salmo XLV, XLVI e XLVII, o
Salmo LVIII, LXVII e LXXXVIII, o Salmo XCII, XCV, XCVI, XCVII, o Salmo CII,
todos estes catorze salmos têm por principal assunto o Império do Messias.
E porque não duvidassem os Gentios que eles, as suas
terras e as suas coroas, eram as que haviam de ser sujeitas a este grande
Império, vinte nove vezes lhes repete e inculca o mesmo Daniel esta gloriosa
sujeição, falando com eles nomeadamente, e não por termos enigmáticos ou
metafísicos, senão clara e distintamente pelo seu próprio nome de Gentios. Que
gentio podia haver tão rude, tão alheio do lume da razão e tão gentio, que
lendo no Salmo II: Dabo tibi gentes hæreditatem tuam et possessionem tuam ter
minos terræ; e no Salmo XXI: Adorabunt in conspectu ejus universæ familiæ
gentium, quoniam Domini est regnum; e no Salmo XCVIII: Dominus in Sion magnus,
et excelsus super omnes populos; e no Salmo XCV: [Dicite] in gentibus quia
Dominus regnavit, etenim correxit orbem terrae; e no Salmo LXXI: Adorabunt eum
omes reges terræ, omnes gentes servient ei; que gentio, digo, podia ler estes
textos ou ouvir estes pregões tão expressos e declarados do domínio daquele
futuro Rei sobre todos os Reis e nações do Mundo, que, se não cresse aquela Fé,
ao menos não conhecesse aquela esperança?
Deixo de ponderar mais lugares de David, porque o
faremos muitas vezes, em toda esta História. Finalmente, os livros de Moisés (que
era a 3.a alegação de Cristo), posto que sejam principalmente históricos e não
proféticos, não só têm por ocasião da mesma história muitas profecias e
promessas desta esperança, mas tão dirigidas e encaminhadas todas as nações,
nomeadamente dos mesmos Gentios, que não podiam deixar de ser lidas deles com
grande advertência e recebidos com grande aplauso. No capítulo XII, do Gênesis,
a primeira vez que Deus apareceu a Abraão e o mandou sair da pátria, lhe
prometeu que seriam abendiçoadas nele todas as nações da terra: In te
benedicentur universæ cognationes terræ; e no capítulo XVIII torna a referir
Deus esta mesma promessa: ...cum benedicendae sint in illo omnes nationes
terræ; e no capítulo XXII, em prêmio da resolução e obediência com que Abraão
não duvidou de sacrificar seu filho, lhe promete Deus terceira vez a mesma
bênção, com declaração que não seria na sua pessoa, senão na de um seu
descendente: Benedicentur in semine tuo omnes gentes terrae. A qual promessa
tornou Deus a ratifica quarta e quinta vez em Isaac, filho, e em Jacob, neto do
mesmo Abraão, sempre pelas mesmas palavras. Em Isaac no capítulo XXVI:
Benedicertur in semsa tuo omnes gentes terræ; e em Jacob, no capítulo XXVIII:
Benedicentur in semine tuo cuntae tribus terræ; finalmente, no capítulo XLIX do
mesmo livro dos Gênesis está o famoso texto já referido um dos dois em que
fundamos todo este discurso: Non auferetur sceptrum de Juda, donec veniat qui
mittendus est, et ipse erit expectatio gentium.
De sorte que em um só livro de Moisés tinham os
Gentios seis profecias claras e que claramente falavam com eles, nas quais se
lhes prometia por boca de Deus que seriam abendiçoadas em um homem da
descendência de Abraão, que era o esperado Rei e Messias do Mundo. Assim que,
lendo os Gentios como liam as Escrituras, e particularmente os livros de
Moisés, os dos Salmos e os dos Profetas, não podiam deixar de vir em
conhecimento, e tal conhecimento de Cristo, que todos o desejassem e esperassem
todos.
O quarto e último meio e mais imediato da Providência
Divina, com que as nações gentílicas puderam conhecer, e com efeito conheceram,
o prometido Messias, foram muitas revelações particulares daquele mistério com
que Deus em diferentes tempos alumiou por si mesmo a vários homens e mulheres
de toda a Gentilidade. Seja o primeiro exemplo desta luz aquele grande varão
mais conhecido pelo testemunho da paciência que pelo lume da profecia, Job.
Era Job verdadeiramente gentio, idumeu de nação,
natural da terra de Hus, e foi insigne profeta de Cristo, a quem conheceu por
universal Redentor: Et scio quod Redemptor mous vivit; e em quem esperou ver a
Deus vestido de carne: In carne mea videbo deum meum; e esta esperança, como
ele diz, trazia sempre guardada no seio: Reposita est haec spes mea in sinu
meo». Similiter et Job—diz Santo Agostinho— eximius prophetarum, et in carne
mea videbo Deum meum, quod de illo tempore prophetavit quia Christi deitas
habitum nostrae carnis induta est.
Os amigos de Job também eram gentios de outras
províncias vizinhas, e também alumiados da mesma fé e confirmados na mesma
esperança, como consta da mesma história e do que eles disseram nela; e como
todos fossem reis e senhores de suas terras (assim lhes chama o Texto Sagrado
no capítulo I de Tobias) com aquela suprema autoridade e com o conhecimento e
sabedoria que tinham do Céu , já se vê quão ensinados teriam nela a todos seus
vassalos, e quão pública seria entre eles a esperança de Cristo
Balaão (cujo espírito profético é tão vulgar que não
tem necessidade de provas) não só foi gentio, senão mau gentio. Dele diz S.
Máximo: Nemo [...] miretur netivitatem dominicam agnovise Chaldaeos quam
utique, si revelante Deo praenuntiare potuit; potuit Gentilis agnoscere. Este
Balaão, este gentio, (o qual não duvidou de se chamar a si mesmo auditor
sermonum Dei, qui novit doctrinam Altissimi et visionem Omnipotentis vidit)
profetizou claramente de Cristo e de seu império naquele texto,tão celebrado no
capítulo XXIV dos Números: Videbo eum, sed non modo; intuebo, illum, sed non
prope: orietur stella ex Jacob, et consurget virga de Israel, et percutiet
duces Moab, vastabitque omnes filios Seth. Quer dizer: «Vê-lo-ei, mas não
agora; olharei para ele, mas não de perto; nascerá a estrela de Jacob, e
levantar-se-á o ceptro de Israel; vencerá todos os capitães dos Gentios e
sujeitará todas as nações do Mundo.» As quais palavras foram sempre entendidas,
assim pelos Hebreus, como pelos Gentios, de um Rei descendente da casa de
Jacob, que em tempos futuros havia de imperar no Mundo e havia de sujeitar a seu
domínio todas as nações dele.
E digo que não só os Hebreus entendiam assim este
lugar, mas também os Gentios, por ser muito célebre entre eles a notícia deste
oráculo, e muito famosa, ou difamada (como diz S. Leão Papa), a memória desta
profecia, pela qual memória ou notícia (diz o mesmo santo) informados os Reis
Magos, puderam argüir do aparecimento da nova estrela o nascimento do novo Rei:
...ad intelligendam miraculum signi potuerunt Magi etiam de antiquis Baluam
praenuntiationibus commoveri scientes alim esse praedictum et celebri memoria
diffamatam. Notem-se bem estas últimas palavras, de que se ve facilmente quão
notória era no Mundo e quão pública entre os Gentios esta esperança.
Das Sibilas (profetizas também da Gentilidade) diz
assim Xisto Betuleu, nas Anotações que fez sobre o original grego dos oráculos
sibilinos: Sic prarsus sentio Deum totius universitatis opificem et administrum
aeternum, suum votum et totam illam futuram seriem praesertim ad salatem
mortalium spectantem, sicut Israeli per prophetas, ita gentibus per Sibyllas
ostendere voluisse per idem numen fatidicum.
Quer dizer este autor (e o confirma com o que
disseram das Sibilas Lactanio Firmiano e S. Agostinho) que comunicou Deus o
espírito de profecia a estas famosas mulheres, porque, assim como os Hebreus
tiveram os seus Profetas, tivessem também os Gentios os seus, por cujo meio a
uns e outros fossem manifestos os conselhos divinos, principalmente aqueles que
para a salvação universal do Mundo eram necessários, conforme a ordem e disposição
eterna de sua providência.
E se alguém perguntar curiosamente a quem e por cu]a
boca falou Deus mais claramente, se aos Hebreus pelos Profetas, ou aos Gentios
pelas Sibilas, respondo que em muitas cousas particulares, principalmente das
que pertencem a Cristo, falaram com termos de maior clareza as Sibilas do que
os Profetas, como se pode ver facilmente de uns e outros livros. De muitos
lugares e exemplos que pudera trazer desta diferença, porei somente aqui dois,
para que se veja quão fácil era aos Gentios o conhecimento de Cristo pelos
livros ou oráculos das Sibilas, antes quão impossível cousa era lerem eles,
como liam, aqueles livros, e não terem notícia da Messias e da esperança e
promessa de sua vinda, formando ao menos um conceito comum, e conceito de um
Rei e de um Império futuro, debaixo do qual se havia de renovar e restaurar o
Mundo. No fim do Livro II diz a Sibila Eritrea estes versos:
Sed postquam Roma AEgyptum reget imperioque
Fraenabit, summi tum summa potentia regni Regis inextincti mortalibus
exorietur. Rex etenim sanctus veniet, qui totius orbis Omnia sceculorum per
tempora sceptra tenebit.
Não se podia descrever com maior clareza o tempo e
circunstâncias do nascimento de Cristo, a soberania de seu supremo poder e a
Monarquia Universal de seu Reino sobre todos os cetros e coroas do Mundo. Diz
que nasceria este Rei e daria princípio a seu Império quando Roma dominasse e
governasse o Egito; e assim foi, porque depois da vitória de Augusto César, em
que venceu a Marco António e Cleópatra no Egito, e acabou de dominar o Império
Romano, as últimas relíquias de poder em que se conservava o Grego não passaram
mais que doze anos, até o nascimento de Cristo, como consta da... (lacuna do
original)
No Livro VIII (que é o último) tem a mesma Sibila
outros versos mais notáveis do gênero daqueles que os Gregos chamaram
acrósticos, cujo artifício é lerem-se pelas primeiras letras, e formar-se com
elas alguma sentença, nome ou inscrição particular. Os versos, pois, são trinta
e cinco e a sentença é esta: Jesus Christus, Dei filius, servator Crux Jesus
Cristo, Filho de Deus, Salvador cruz.
Estes versos estão em toda a sua propriedade no texto
grego, e não se poderão traduzir na língua latina com o motivo daquelas letras
sem alguma variedade. S. Agostinho, no Livro XVIII De Civitate Dei, cap. XXIII,
diz que a primeira versão que chegou a suas mãos deste acróstico era em versos
mal latinos, e que se não podiam ter em pé: Versibus male latinis et non
stantibus; tão galante é a frase com que o Santo declara o mal falado e mal
medido daqueles versos. Depois diz que o Procônsul Flaviano lhe mostrou outros
mais conformes às leis da gramática e da poesia, os quais copia este naquele
lugar, e nós deixamos de os pôr aqui, porque não guardam a ordem das letras iniciais,
propriedade que falta em muitas outras versões latinas. A de João Bongro,
traduzida por Xisto Betuleu, compreendeu e cumpriu felizmente com todas estas
dificuldades, sem tomar outra licença mais que a de desatar a última letra em
duas, e fazer de um X, C e S. É a seguinte:
Judicii
metuet sudans presagia tellus
Et
Rex ceternus magno descendet Olympo
Sublimis
carnem mundumque ut judicet, omnem.
Unum
suscipient numen pravique bonique
Summum,
supremo cum Sanctis tempore mundi.
Carnifer ille homines judex inquiret in
omnes,
Horrida
terra vias caeli spinceque tenebunt.
Rejicient
simulacta viri, gazamque retostam.
Ille
domus caecas et Ditis claustra refringet.
Sanctior
a mortis jam nexu libera lucem
Turba
hominum cernet, scelerosos flamma piabit
Ultrix
bertetuum: mala quae quicumque patravit
Sontica
suppressitque diu, producent in auras
Deteget
et turbis Deus obsita corda tenebris;
Erumnae
et stridor dentis regnabit ubique;
Ipsum
deficiet solis decus astra colore
Fusco
obducentur, argentea luna peribit,
Insurgent
valles, consident ardua montis,
Luxus
sublimis mortales deseret oras.
Immensos
colles aequabunt marmora campi.
Velivago
nulli cernentur in aequore nautae.
Succendet
terram fulmen, vaga lympha
Solis
arescet ripis, fontesque dehiscent:
Et
tuba de caelo tristis clangore sonabit
Raucisono
mundi clades pereuntis acerbas;
Vastam
terra chaos stygio monstrabit hiatu,
Atque
Dei solio sistetur judicis omnis
Turba
ducum regumque; pluet tum sulphure et igni
Omnibus
extabunt ligni vexilla verendi
Robur
et auxilium populo exoptata fidéli:
Certa
pio generi vita, ast offensa malignis,
Rore
bonos lustrans bisseni fontis ab unda:
Virgaque
qua pecori dat ferrea jura magister
Carminis
auspiciis qui crimina morte piabit
Servator
Rex arternus Deus ipse patescit.
Destes
mesmos versos faz menção Eusébio Cesariense na Vida de Constantino Magno, e
Marco Túlio, que morreu cinquenta anos antes do nascimento de Cristo, no livro
II De Divinatione. O sentido dos versos, em suma, é a vinda de Cristo a julgar
o ,Mundo, com todas as circunstâncias de grandeza, majestade e horror que
pertencem ao aparato e execução do juízo.
O mistério da encarnação está com tanta e maior
clareza no Livro I dos mesmos oráculos das Sibilas:
Tunc ad mortales veniet, mortalibus ipsis
In
terris similis, natus Patris omnipotentis
Corpore
vestitus.
Não
falou com palavras mais claras S. Paulo, quando disse: In similitudinem hominum
factus et habitu inventus ut homo. E mais abaixo se lê a pregação do Baptista,
quase pelas mesmas palavras de S. Mateus:
Verum
cum quaedam vox per deserta locorum
Nuncia
mortales veniet, quae clamet ad omnes
Ut
rectos faciant calles, animosque refurgent
A
vitiis et aqua lustrentur corpora cuncta,
Ut nunquam doincets peccent in jura,
renati...
A
embaixada do Anjo à Virgem com o mesmo nome de Gabriel descreve a Sibila no
Livro VIII por estas palavras:
E
caelo veniens mortales induit artus.
Ac
primum cortpus Gabriel ostendit honestum
Nuncius,
hinc tali affatur sermone puellam:
Accipe,
Virgo, Deum premio intemerata pudico.
Sic
ait: est illam caelestis gratia mo11i
Leniit
afiatu: tum virginitatis amatrix
Perpetuae
magno subito correpta stupore
Atque
metu trepida pressit formidine mentem.
E pelo
mesmo estilo vai prosseguindo a história da encarnação, segundo as leis da história.
E porque não faltasse com todas estas circunstâncias, até o presépio de Belém,
alegria e pasmo dos pastores, aparecimento da estrela e adoração dos Reis. O
nome da Virgem, assim como tinha declarado o do Anjo, diz no mesmo lugar:
Et
brevis egressus Mariae de Virginis alvo
Exorta
est nova lux.
Finalmente,
resumindo todas as obras de Cristo, assim da vida santíssima, como da sua
Paixão, até lhe pôr a coroa (como se esta fora o fim e assunto do seu poema)
conclui com estes versos:
Ergo
ad judicium veniet diciti memor hujus,
Persimilem
formam portans in Virginis alvum,
Collustrans
lympha manibus senioribus (?) omnes
Cuncta
jubens faciet morboque medebitur omni.
Placabit
ventos dicto sternetque profundum
Insanum,
placidis pedibus calcando, fideque,
Ad
virosa genas praedebit sputa prudentes
Verberibusque
sacrum tradet proscindere tergum
[Viriginem
enim castam tradet mortalibus ipse.]
Perque
feret tacitus cotaphos ne forte sciatur
Quis
sit, cujus, mortalibus unde locutum
Venerit,
horrentemque feret de vepre coronam.
Até aqui
a Sibila, compreendendo admiravelmente em tão poucas regras o nascimento
virginal de Cristo, o sacramento do batismo, que instituiu e administrou,
depois que teve (como ele diz) maiores as mãos, o império que exercitou sobre
todas a criaturas, as enfermidades que curou milagrosamente, os mares que pisou
andando placidamente, sobre as ondas, a sujeição com que lhe obedeceram os
ventos, a paciência e humildade com que sofreu ser cuspido, açoitado e
afrontado com mãos sacrílegas em seu próprio rosto, e coroado por escárnio com
coroa de espinhos, dissimulando debaixo de tantas injúrias a grandeza, poder e
majestade de quem era e de quem o mandara ao Mundo.
Tanta como esta é a clareza com que falaram de Cristo
as Sibilas, qual se não acha maior nem ainda igual nos Profetas. Sendo a razão
desta providência (como bem notou Castálio) a rudeza e ignorância das cousas
divinas em que viviam os Gentios, aos quais era necessário se falasse com maior
clareza do que aos Hebreus, nascidos e criados entre os resplandores da Fé e
conhecimento de Deus, tendo também estes ali tantos mestres que os pudessem
alumiar e ensinar, e carecendo aqueles de toda a luz e doutrina.
Se já não foi (como considera o mesmo autor e o prova
com Isaías) que a escuridade dos Profetas, por permissão ou castigo, se
acomodou à cegueira com que os Judeus haviam de negar a Cristo, e a claridade
das Sibilas à fé com que os Gentios o haviam de crer. Nonne (são as palavras de
Castálio) quae de Christo gentibus praedicta sunt ea clariora esse oportuit,
quod Mose et cetera disciplina carebant, quae eis ad Christi lumen quasi
proluceret: ut quod hic durat, id oraculorum perspicuitate compensaretur?
Accedit eo quod (quemadmodum scitur ex Isaia) voluit Deus Judaeis obscuriorem
esse Christi adventum, ut in eum obscurarent alque ita sua, pertinaciae poenas
darent, quod idem de gentibus dicere non licet.
Por meio destes oráculos das Sibilas, que andavam nas
mãos de todos, principalmente dos sábios, como se vê em Platão e Aristóteles,
era tão vulgar e famosa entre os Gentios a esperança daquele novo Rei e da
idade dourada que havia de trazer ao Mundo com seu felicíssimo Reino, quanto a
lemos elegantemente profetizada na IV Égloga de Virgilio, que morreu treze dias
antes do nascimento de Cristo, e cita nela os oráculos da Sibila Cumea: Ultima
Cumaei venit jam carminis aetas, para que entendêssemos que as Sibilas foram as
Musas Sicélides que exercitaram cousas maiores, e que destas fontes bebeu
aqueles levantados espíritos, e não nas de Aganipe ou Hipocrene.
Eusébio Cesareense, no já citado livro da Vida de
Constantino Magno, é de opinião que esta quarta Égloga de Virgílio é toda
alegórica, e que debaixo da metáfora de Asínio, filho de Polion, foi
verdadeiramente escrita e dedicada a Cristo, filho do Eterno Padre, encobrindo
e envolvendo o vigilantíssimo Poeta a verdade desta sua fé e pensamento com as
figuras e metáforas daquele seu Mecenas, para que o não condenasse a
superstição romana como violador da divindade dos deuses. Intelligimus autem
(diz Eusobio) dicta haec manifeste simul et obscure per allegorias prolata iis,
qui carminum horum sensum altius sub conspectum divinitatis Dei scrutantur,
innuere quomodo Poeta, ne quis eorum qui in regio orbe denominabantur, culpare
posset quod contra patrias leges scriberet, et quae jam olim inde a majoribus
de diis credita fuiissent, rejiceret, veritatem occuluerit.
Desta mesma opinião de Eusébio são outros muitos
autores, os quais constantemente se persuadem que o sujeito da IV Égloga
virgiliana não foi outro senão Cristo, conhecido pelos oráculos das Sibilas, e
certo são tão extraordinariamente grandes as cousas que o príncipe dos poetas
diz naquele poema bucólico, que nem ainda do mesmo César se puderam dizer sem
nota de demasiada adulação e indigna de um tão eminente juízo como o de
Virgílio, talhado verdadeiramente para poeta de Cristo.
Quem tiver curiosidade de ver a alegoria de toda a
Égloga aplicada e explicada de Cristo, veja nos Antigos ao mesmo, e dos
Modernos ao P.e Lacerda, e sobre todos (lacuna no original)..... que de versos
de Virgílio teceu e compôs felizmente toda a vida de Cristo As razões mais
fundamentais e sólidas com que se persuade e converte a verdade deste império
temporal de Cristo são as que imediatamente se tiram dos mesmos títulos que
acabamos de declarar. E assim a primeira e mais relevante de todas se funda na
união hipostática com que a humanidade sagrada de Cristo está unida ao Divino
Verbo, posto que esta mais se pode chamar natureza que razão; outra é o
merecimento infinito de Cristo, inseparável a todas as suas ações, pelo qual
lhe eram devidas todas as dignidades e grandezas humanas, sem exclusão de
poder, autoridade e soberania alguma, em conseqüência do qual merecimento se
ajuntou a ele a vontade eficaz divina, que foi o princípio efetivo donde manou
e se derivou a Cristo a comunicação liberalíssima, e como investidora absoluta
desta suprema e universal potestade; assim que as razões fundamentais do
império temporal de Cristo são três: o ser quem é, o seu merecimento e a
vontade divina, que é razão de si mesma.
Estas razões capitais se podem ajudar e revestir de
várias congruências, que facilmente se consideram muito convenientes todas ao
decoro e majestade de Cristo; o qual, como cabeça dos homens que são compostos de
carne e espírito, não era justo que tivesse sobre eles o domínio partido, senão
inteiro, assim sobre as cousas e ações concernentes ao espírito, como as que
pertencem ao corpo; antes, por Cristo ser verdadeiro e inteiro homem, composto
não só de espírito, se não de carne, foi muito conveniente que não só tivesse o
Império espiritual que pertence às almas, se não também o temporal que é
próprio das corpos: ...ut sicut ipse e corpore et spiritu compositus erat, ita
eum (Pater) et regem spirituum et corporum etiam fecerit, ut tam late ipsius
regnum et imperium pateret quam ipsius Dei, como doutamente disse Stuniga,
comentando o capítulo IX, v. 9, do Profeta Zacarias.
Se os Trajanos e outros imperadores e príncipes do
Mundo deram seus impérios e reinos inteiros aos estranhos que adotaram por
filhos, como havemos de crer nem imaginar que desse Deus só uma parte de seu
império e domínio a Cristo, que não só em quanto Deus, se não ainda em quanto
homem, e seu filho natural e verdadeiro e unigênito? Se quis e não pôde (como
em semelhante caso argumentava Agostinho) foi fraqueza; se pôde e não quis, foi
inveja, e um ou outro pensamento fora blasfêmia contra o onipotente amor de tão
divino Pai.
A Adão deu Deus o império universal do Mundo com
sujeição e otediência a todas as criaturas dele, só por ser feito a sua imagem
e semelhança: Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram, ut praesit
piscibus maris, et volatilibus caeli, et bestiis terrae,. Como negaria logo
Deus este mesmo poder, não digo já àquele segundo Adão que veio restaurar as
ruínas do primeiro, senão àquele que é imagem e retrato perfeitíssimo de sua
sustância: Ipse est enim imago Patris et figura substantiae ejus? Haverá quem
se atreva a dizer ou presumir que foi menor o poder de Cristo no Mundo que o de
Adão ou que teve Adão poder que faltasse a Cristo? A carne de Adão que tomou
Cristo não foi de Adão pecador, senão de Adão inocente, porque, como advertiu o
Apóstolo, tomou a carne e não contraiu o pecado. E se Cristo não foi filho de
Adão escravo, se não de Adão senhor, porque não reteria ao menos o que não
perdeu em seu Pai?
A geração de Cristo escrita por S. Mateus começa em
David, e por S. Lucas em Adão; e se, por filho de David, melhor que Salomão lhe
foi devido o cetro de Israel, por filho de Adão, melhor que Caim e Abel, porque
se lhe há-de negar o do Mundo?
Finalmente, é princípio geral e recebido de todos os
teólogos, que se deve conceber e admitir na soberana pessoa de Cristo todos
aqueles atributos de poder, grandeza e majestade, que sem implicação nem
indecência se podem considerar nela, porque todos lhe são infinitamente
devidos; e tão fora está deste perigo o império e domínio temporal que
admitimos em Cristo, que antes da falta dele se podem arguir conhecidos
inconvenientes, e ainda alguma conseqüência indigna e de menos decoro. Porque o
império espiritual de Cristo, por supremo e universal que seja, só tem poder e
jurdição indireta sobre as cousas e ações temporais, enquanto estas se ordenam
ou subordinam ao fim e conservação das espirituais: e no caso ou suposição em
que Cristo somente fosse Rei espiritual, segue-se (como doutamente infere o
Padre Soares) que, se Cristo quisesse mandar a um homem ou a um anjo uma ação
meramente temporal alheia (ainda que fosse para obrar um milagre), que o não
poderia fazer livre e absolutamente a seu arbítrio e sem licença do dono dela
(se comodamente o pudesse fazer de outra sorte): Indignum autem videtur
(conclui o grande Doutor) haec et similia de Christi potestate sentire. Sendo
logo este sentimento indigno do poder e majestade de Cristo e da soberania de
sua pessoa, necessariamente havemos de dizer e confessar, em boa teologia, que
não é somente espiritual o império e domínio que Cristo tem sobre o Mundo, se
não também temporal, e que espiritual e temporalmente lhe são todos os homens e
todas as cousas sujeitas.
E quanto ao reparo da pobreza e desprezo das cousas
temporais que Cristo veio ensinar ao Mundo, nós nos contentaremos com que os
autores deste escrúpulo, por santos e espirituais que sejam, se contentem com o
que se contentou este Monarca temporal do Mundo: imitem a pobreza de Cristo,
pobre no nascimento, pobre na vida, pobre na morte, e pobre sobretudo na
eleição de pais pobres, e não queiram mais pobreza, nem mais exemplo em Cristo.
Muitos há que querem parecer pobres; alguns que o querem ser; mas quem queira
ser e parecer filho de pobres: Quis est hic et laudabimus eum? Só Cristo e quem
tem muito de Cristo.
O domínio universal que Cristo tinha do Mundo era o
que mais subiu de preço os quilates de sua pobreza. Não ter uso das cousas do
Mundo quem não tem ou teve domínio delas, virtude pode ser, mas virtude que
parece fortuna ou necessidade; porém senhor absoluto de tudo quanto há e pode
haver no Mundo, e ter menos uso do mesmo Mundo do que os bichinhos da terra, e
poder dizer com verdade: Vulpes foveas habent et volucres caeli nidos; filius
autem hominis non habet ubi caput reclinet, oh! que pasmo, oh! que exemplo, oh!
que confusão para os homens, ainda os mais desprezadores do Mundo!
Mas replicam a esta resposta os autores da contrária
opinião, e dizem que a pobreza evangélica, de que Cristo professou ser mestre,
não consiste só na mortificação ou temperança do uso das cousas temporais, se
não principalmente na renunciação do domínio delas; logo, no desprezo e
abdicação deste domínio é que devia Cristo dar-nos o exemplo da perfeita
pobreza. E pois é certo que foi Cristo consumadíssimo exemplar de todas as
virtudes, e muito particularmente desta , segue-se que não só não teve o uso das
cousas temporais, se não que também careceu do domínio de todas.
Primeiramente digo que, para Cristo ser perfeitíssimo
mestre e exemplar de todas as virtudes, não era necessário exercitar todos os
atos particulares delas, ainda que os tivesse ensinado. Não era menos mestre
nem menos exemplar Cristo da paciência do que o foi da pobreza, e sendo uma das
mais altas proposições de sua doutrina na matéria do sofrimento, cum te
percusserint in una maxilla, praebe illi et alleram sabemos contudo que, quando
deram a Cristo a bofetada em presença do Pontífice Caifás, não ofereceu o
Senhor a outra face, antes acudiu à calunia de que falsa e sacrilegamente o
argüiam.
Mas deixada esta estrada geral, porque não é nosso
intento divertir o argumento, senão desfazê-lo, digo outra vez que na pobreza
de Cristo, quanto a renunciação do domínio, havia outra razão mais forçosa e
necessária, que era ser este ato incompatível com a natureza e essência do
mesmo Cristo. Porque aquele domínio supremo e universal de todas as cousas fundava-se
imediatamente, como dissemos, na união hipostática, e era não só propriedade
inseparável, senão parte intrínseca dela; e assim como Cristo não podia
renunciar nem abdicar de si a própria natureza, assim (diz o Padre Vasquez) não
podia renunciar nem demitir de si o direito soberano domínio. O que podia só
fazer Cristo era privar-se do uso dele, e assim o fez tão perfeita e
perfeitissimamente como sabemos. Quanto mais qnue ainda no caso em que fora
possível na pessoa de Cristo a renunciação do domínio temporal de todas as
cousas, porventura que era mais conveniente ao mesmo exemplo do Mundo conservar
o domínio sem o uso, que renunciar o uso e mais o domínio; porque Cristo, como
mestre e exemplar da perfeição evangélica, não só devia dar exemplo aos religiosos
que professam renunciar o domínio dos bens temporais senão também aos prelados
e bispos, e ao supremo bispo e supremo prelado, cujo estado, sendo de maior
perfeição, conserva o domínio e administração dos bens e só periga ou pode
perigar na imoderação ou excesso do uso deles. Foi logo convenientíssimo que em
Cristo se ajuntasse o sumo domínio e o sumo desprezo e abstinência das cousas
do Mundo, para que no mesmo exemplar aprendessem os religiosos a mortificação
do uso e os prelados a moderação do domínio.
Finalmente, para que ponhamos o selo à confirmação
desta nossa sentença e acabemos de desfazer as razões ou admirações, como
dizíamos da parte contrária, provemos demonstrativamente a causa pelos efeitos,
a potência pelos atos, a jurdição pelo exercício, e o direito (do modo que pode
ser) pela posse. Temos neste ponto contra nós não só os inimigos, senão também
os amigos. Resolvem os defensores da opinião contrária, e também muitos da
nossa, que Cristo em toda a sua vida, não teve exercício algum do império
temporal, nem em quanto Rei nem em quanto Senhor, porque nem fez ato que fosse
próprio da dignidade real, nem se serviu de cousa alguma do Mundo, como quem
teve só o domínio e senhorio dele. E daqui inferem, não todos mas só os que
impugnam a nossa sentença, que vinha a ser totalmente ocioso este império
temporal que consideramos em Cristo, e por conseguinte nulo, conforme aquele
princípio vulgar da filosofia: Frustra est potentia quae non reducitur ad actum
Mas começando pela forma desta conseqüência, ou colhe
demasiadamente ou nada. Porque tão boa conseqüência é esta: Cristo não teve
exercício de rei, logo não teve poder real; como esta: Cristo não teve
exercício de juiz, logo não teve poder judicial. E nesta segunda conseqüência,
sendo de Fé a premissa, é contra a Fé a conclusão. A premissa é de Fé, porque
lemos no capítulo XII, de S. Lucas, que, pedindo dois irmãos a Cristo que
julgasse certa dúvida que tinham entre si, o Senhor lhes respondeu: Quis me
constituit judicem super vos? E a conclusão é contra a Fé, porque neiga
contraditòriamente o texto de S. Paulo: Pater non judicat quemquam, sed omne
judicium dedit filio, quia filius hominis est. Antes daqui se forma novo
argumento em confirmação da verdade da nossa sentença, porque a potestade judiciária
em Cristo foi conseqüência da dignidade real, como expressamente ensina S.
Tomás na Questão LIX, Art. IV, ad. I: Potestas judicis secuta est in Christo
regiam dignitatem. E a razão desta ordem natural é, posto que o Santo Doutor a
não exprima, porque o ofício de julgar é parte da dignidade de Rei, conforme o
texto de David: Et nunc, Reges, intelligite: erudimini qui judicatis terram.
Por isso o mesmo Cristo, descrevendo o supremo e último ato de juízo em que
há-de sentenciar o Mundo, se chama nomeadamente Rei: Tunc dicet Rex his qui a
dexteris ejus erunt etc. E se é certo e de Fé que Cristo tem esta parte da
jurdição e dignidade real, porque havemos de ser tão estreitos de coração que
lha não concedamos toda?
Os que admitem ou veneram conosco em Cristo o título
e domínio de rei e concedem contudo que não teve exercício dele, dizem muito
douta e conseqüentemente que, ainda que a dignidade e jurdição real em Cristo
não tivesse ato ou exercício algum em sua vida, nem o haja de ter em outro
tempo, nem por isso se deve julgar aquele poder por baldado e ocioso, porque
serve, como falam os filósofos, de ornar e mais aperfeiçoar o sujeito. Bem
assim como na humanidade do mesmo Cristo é certo que houve alguma potência, que
nunca teve nem havia de ter ato (qual é a potência que há nos indivíduos para a
conservação da espécie); e contudo ninguém a nega nem pode negar em Cristo,
porque é perfeição natural da Humanidade.
Persistindo na mesma suposição, se pode também dizer,
não indouta nem indiscretamente, que, ainda que o domínio temporal de Cristo
não teve aqueles atos ou exercício positivo que costuma ter nos reis e
príncipes da terra, teve porém um ato excelentíssimo e um exercício contínuo,
nunca visto até então no Mundo, a que podemos chamar negativo, que foi o não
querer usar Cristo do mesmo domínio. E ter o domínio para poder e não querer
usar dele (que é um ato heróico de humanidade e modéstia, o qual
necessariamente supõe o mesmo domínio) não é tê-lo ocioso, se não mui
gloriosamente exercitado, de maneira que neste sentido (que nem é vulgar nem
violento) podemos dizer que não careceu Cristo do uso do domínio temporal que
nele consideramos, e que o uso que teve daquele domínio foi a privação do mesmo
uso, ou não querer usar dele. E se não, perguntemos a S. Ambrósio para que quis
e mandou Cristo aos Apóstolos que comprassem espadas, ainda que fosse a preço
das mesmas túnicas com que andavam cobertos, se lhes havia de mandar que as
deixassem estar na bainha? e responde o grande Doutor que foi para mostrar Cristo
que se podia defender e vingar de seus inimigos, mas não queria. Para este uso
ou desuso quis Cristo a procuração das espadas, porque muitas vezes o mais
nobre e o mais generoso uso do poder é não querer usar dele. E se aquelas
espadas só para este uso não foram ociosas, porque o seria o domínio de Cristo,
ainda que não tivesse outro uso mais que não querer o poderosíssimo Senhor
usá-lo, para maior exemplo e doutrina nossa? Onde mais bem empregado e aplicado
o domínio, que para poder dizer, depois do maior ato de humildade: Si ergo ego
dominus et magister?
Desta maneira respondem (e podem responder os que
seguem que Cristo não teve exercício algum do império e domínio temporal; porém
nós, ponderando devagar a história evangélica, temos por certo o contrário;
pelo que respondemos negando a suposição, e por última confirmação da nossa
opinião mostraremos, por atos próprios de jurdição e domínio, como foi Cristo
Rei e Senhor temporal do Mundo, não só em ato primo (como diz a frase dos
Teólogos) senão em ato segundo; e não só quanto a jurdicão e domínio, senão
quanto ao uso e exercício dela; não porque pública e continuadamente o
professasse Cristo, como fazem os reis da Terra, mas porque exercitou alguns
atos particulares de império e domínio, que eram próprios só do legítimo Rei e
verdadeiro Senhor do Mundo, como se vê claramente em muitos lugares e exemplos
do Evangelho.
O primeiro seja mandar Cristo, tanto que entrou neste
Mundo, chamar os Reis do Oriente pela estrela, para que o viessem reconhecer e
adorar por Rei. como eles mesmos disseram: Ubi est qui natus est Rex Judaeorum?
Vidimus enim stellam ejus in Oriente et venimus adorare eum.
Item em receber os tributos que lhe ofereceram os
mesmos Reis em reconhecimento da soberania suprema de sua majestade, não só em
quanto Deus, se não em quanto Rei. Nesta conformidade entendem todos os Padres
o mistério das três espécies de ouro, incenso e mirra, que os Reis ofereceram:
o incenso como a Deus, a mirra como a homem, e o ouro como a rei, e assim
cantou Arato, poeta cristão da primeira Igreja, naquele verso que tão bem
pareceu a S. Jerônimo:
Aurum,
thus, myrrham regique hominique Deoque.
E
a Igreja, no Hino da Epifania:
Thus,
myrrham etaurum regium.
E muito
antes David, no Salmo que começa: Deus, judicium tuum Regi da, et justitiam
tuam filio Regis. Este Salmo se entende literalmente do Reino de Cristo,
conforme a explicação de S. Jerónimo, S. Agostinho, S. Ambrósio, e o comum
consenso de todos os Padres e da mesma Igreja; e não só do Reino de Cristo
absolutamente, se não do Reino e Império temporal, como larga e eruditamente
prova Alonço de Mendoça, na sua Relatio Theologica de universali Christi Regno.
E em comprovação deste Reino de Cristo, alega David profeticamente no mesmo
Salmo a adoração e tributos dos Reis do Oriente: Reges Tharsis et insulae
numera offerent, Reges Arabum et Saba dona adducent, et adorabunt eum omnes
Regeç terrae, omnes gentes servient ei.
Finalmente, a entrada dos mesmos reis em Jerusalém,
perguntando publicamente: Ubi est qui natus est Rex? que outra cousa foi, se
não um pregão público e um Real! Real! por Cristo Rei do Mundo, com que o mesmo
Rei se mandou apregoar na praça mais universal de todo ele, que era Jerusalém,
e no meio do mesmo Mundo, que era o lugar onde aquela cidade estava situada?
A mesma publicação fizeram os Anjos nos montes e
campos de Judéia, quando anunciaram aos pastores: Quia natus est vobis hodie
salvator qui est Christus dominus, in civitate David; respondendo·toda a
milícia do Céu: Gloria in altissimis Deo ed in terra paz huminibus! Nas quais
palavras todas não só apregoaram o nascimento e chegada ao Mundo do novo Rei,
mas declararam também por to das as circunstancias de salvador, de ungido por Deus,
de descendente de David, e da paz que trazia consigo, ser ele o Rei prometido
aos Patriarcas e anunciado dos Profetas, que havia de salvar e dominar o Mundo;
da qual publicação foram os mesmos pastores os terceiros pregoeiros, que
divulgaram por toda a parte o que tinham visto, como se colhe claramente do
texto de S. Lucas:Et omnes qui audierunt mirati sunt, et de his quae dicta
erant a pastoribus ad ipsos. Que ato pois mais próprio e positivo de rei, que
mandar-se publicar por tal, nas cortes e aldeias, nas cidades e nos campos, aos
grandes e aos pequenos, com quatro pregões tão públicos e tão notáveis, de
estrelas, de anjos, de reis, de pastores, e receber adorações e tributos dos
mesmos reis, e ultimamente desobrigá-los da palavra que tinham dado a El-Rei
Herodes, como senhor supremo de todos, e mandá-los como súbditos e novos
embaixadores seus, assinalando-lhes o caminho por onde haviam de ir?
Mas passemos do nascimento de Cristo aos dias mais
chegados à sua morte, para que vejamos como, entrando e saindo do Mundo, se
mostrou e publicou Rei e senhor de todo ele
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