Capítulo VII - Conclui-se
que o Reino de Cristo é espiritual e temporal juntamente.
Recolhendo tudo o que tão largamente temos disputado
(que foi necessário ser tão largamente) e reduzindo a concórdia quanto pode ser
as opiniões de todos os Doutores, posto que alguns pareçam entre si contrários,
diremos por última conclusão que o Império de Cristo é juntamente espiritual e
temporal, e que, segundo estas duas jurdições, ambas supremas, se compõem; a
coroa de Cristo, Sacerdote Supremo, e outra coroa de universal Senhor e
Legislador in temporalibus, segundo a qual se chama propriamente Supremo Rei.
Este é o Reino universal que Daniel veio dar ao Filho
do Homem (que é Cristo), e este o Reino que Nabucodonosor também tinha visto
encher o Mundo, posto que não viu nem lhe foi mostrado a quem se havia de dar.
Este é o que viu mais distintamente que todos Zacarias na sua terceira visão;
porque Nabucodonosor viu somente o Reino e sua grandeza, Daniel viu o Reino e a
pessoa que o havia de dominar, e Zacarias viu o Reino e a pessoa, e o número e
distinção das coroas. Torno a repetir o texto e suponho a história, pois fica
contada no I Livro
Para maior inteligência desta matéria havemos de
supor que, deste tempo da Lei da Natureza, andou sempre o morgado temporal
unido com o sacerdócio, e um e outro vinculado aos primogênitos. Estas eram
aquelas bênçãos tão celebradas e tão pleiteadas que os Patriarcas davam a seus
filhos, como foi a que Abraão deu a seu primogênito Isaac, e a que Isaac quis
também dar a seu primogênito Esaú, e por indústria de Rabeca foi dada a Jacob.
Conforme a este direito de sucessão, havia de dar também Jacob a seu
primogênito Ruben a mesma bênção, mas, em castigo da irreverência que tinha
cometido contra o tálamo de seu pai, foi privado dela, como lhe disse o mesmo
Jacob: Ruben, primogenitus meus, tu fortitudo mea et principum doloris mei,
prior in donis major in imperio, effusus es sicut aqua; non crescas, quia
ascendisti cubile patris tui et maculasti stratum ejus.
Desde este tempo se dividiram estas duas dignidades
que haviam de estar juntas no morgado ou maioria de um só império (major in
império) e o reino e o sacerdócio, que havia de andar encabeçado no primogênito
de Ruben, se repartiu em dois filhos do mesmo Jacob, que foram Judá e Levi,
ficando em Judá a benção do reino, e em Levi a do sacerdócio, como depois se
cumpriu, porque na instituicão do Tabernáculo, que precedeu ao Templo, foi
ungido por sumo sacerdote Arão, que era do tribo de Levi, e na instituição do
reino, depois de o perder Saul, foi ungido por rei de Israel David, que era do
tribo de Judá.
Nestas duas descendências de Arão do tribo de Levi e
de David do tribo de Judá, se conservou sempre o reino e sacerdócio, até que a
tiara e a coroa, ou estas duas coroas, se uniram outra vez em Cristo, Supremo
Sacerdote e Supremo Rei, e de ambos se compõe o império (assim o natural como o
figurativo) que Ruben tinha perdido, prior in donis, rnajor in imperio. Daqui
se entende maravilhosamente o mistério da ascendência e primogenitores de
Cristo, os quais, como consta do I capítulo de S. Mateus e do III de S. Lucas,
foram reis e sacerdotes, unindo-se por verdadeira geração no sangue santíssimo
de Cristo e sua mãe o tribo real de Judá e o sacerdotal de Levi, como
gravemente notou e expressamente disse S. Agostinho no livro II de Consensu
Evangelisarum, capítulo II. Cum autem evidenter dicat Apostolus Paulus: ex
semine David secundum carnem Christum, ipsam quoque Mariam de stirpe David a
liquam consanguinitatem duxisse dubitare utique non debemus. Cujus feminae
quoniam nec sacerdotale genus tacotur, insinuante Luca, quod cognata ejus esset
Elisabeth, quam dicit de filiabus Aaron. Firmissime tenendum est carnem Christi
ex utroque genere propagatam, et regum et sacerdotum, in quibus personis apud
illum populum Hebraeorum etiam mystica unctio figurabutur...
De maneira que ordenou a Providência Divina que na
geração e ascendência de Cristo se tecesse o tribo sacerdotal de Levi com o
tribo real de Judá, e que a tela de que se havia de vestir o Verbo, quando se
desposou com a natureza humana, fosse lavada de coroas e de tiaras, para que
visse o Mundo que, ainda a título de geração natural, era ele o herdeiro
legítimo do reino e do sacerdócio, como direito descendente daqueles sacerdotes
e daqueles reis que só eram feitos por Deus; o qual mistério (para maior
propriedade e majestade dele) se observou até nos escritores da mesma
genealogia de Cristo, porque dos quatro animais do carro de Ezequiel que
significam os quatro evangelistas, a S. Mateus, que escreveu a geração real,
pertence o homem, que é o rei dos animais; e a S. Lucas, que escreveu a geração
sacerdotal, pertence o boi, que é o animal do sacrifício, como, depois de S.
Jerônimo e S. Gregório Papa, notam comumente todos os Doutores.
O nome de Cristo e de Messias, com que o mesmo Senhor
foi chamado e conhecido, antes e depois de vir ao Mundo, foram duas firmas ou
assinados públicos de um e outro império sacerdotal e real, temporal e
espiritual, entre si unidos. Porque Messias, que é nome hebreu, e Cristo, que é
nome grego, ambos têm a mesma significação, como diz S. João no capítulo I; e
referindo as palavras de S. André a S. Pedro: Invenimus Messiam (quod est
interpretatum Christus) e esta foi uma das erudições em que a Samaritana se
mostrou tão letrada: Scio quia Messias venit, qui dicitur Christus. Um e outro
nome, assim o de Cristo como o de Messias, quer dizer ungido, e chama-se Cristo
ungido, porque foi ungido por Rei e Sacerdote Supremo.
Três ofícios achamos na Escritura Sagrada, que se
davam com a cerimônia da unção: o de rei, como ungido, e chama-se Cristo
ungido, porque foi ungido Arão, e o de Profeta, como foi ungido Eliseu, e com
todas estas unções foi ungido Cristo. Da unção de profeta já dissemos no
capítulo VII do I Livro. A de Rei e a de Sacerdote Supremo, que eram as duas
maiores, são aquelas por que Cristo principalmente se chama ungido, não porque
fosse ungido com aquela cerimônia exterior com que os reis e sacerdotes eram
ungidos por mãos dos homens, senão pela unção interior, com que o mesmo Deus o
ungiu na união da divindade com a humanidade, como acima dizíamos.
E agora poremos aqui as autoridades dos Padres, que para
este lugar reservamos: S. Agostinho no livro e capítulo pouco antes citado:
Firmissime tenendum est carnem Christi ex utroque genere propagatam et regum et
sacerdotum, in quibus personis illum populum Hebraeorum etiam mystica unctio
figurabutur, id est. chrisma, und e Christi nomen elucet tanto ante etiam illa
evidentissima significatione praenuntiatum
Resolve-se quando começou este Império de Cristo e
propõe-se acerca dele uma grande dificuldade.
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