Cap. XVIII - Achou quem o tosquiasse
Escutando
aquelas inesperadas palavras que o chamavam para a mesma posição em que ele
tinha colocado as quatro moças, Augusto voltou-se de repente e viu no fundo da
gruta a interessante Moreninha, que enchia o copo de prata.
— Minha
senhora!... balbuciou o estudante confuso.
D.
Carolina respondeu-lhe primeiro com o seu costumado sorriso e depois assim:
— Não
se dirá que um homem zombou impunemente de quatro senhoras; uma outra toma o
cuidado de vingá-las. Sr. estudante, eu também sou adepta ao culto desta fada e
vou invocá-la em meu auxílio.
A
menina travessa bebeu em seguida a estas palavras o seu copo d’água e depois,
imitando o estilo de Augusto que se achava junto dela, disse:
—
Quereis que vos fale do passado, do presente, ou do futuro?
— De
todas essas épocas... ao menos para ouvir por mais tempo os vaticínios e
palavras de tão amável Sibila.
— Pois
então principiemos pelo passado. Oh! Que belas revelações me faz a fada! Sim,
eu estou lendo no livro da vossa vida estou vendo tudo, estou dentro do vosso
espírito e de vosso coração!
— Oh!
Sim, eu juro que isso é verdade, atalhou o estudante. A menina fingiu não
entender a alusão e continuou:
—
Senhor, vós amastes muito cedo… creio… sim, foi na idade de treze anos.
Augusto
recuou um passo; ela prosseguiu:
—
Amastes, sim, a uma menina de sete anos, com quem brincastes à borda do mar.
— E
quem era ela? Como se chamava? perguntou Augusto com fogo, talvez pensando que
d. Carolina estava com efeito adivinhando e podia dizer-lhe o que ele mesmo
ignorava.
Posso
eu sabê-lo? respondeu a Moreninha; a fada só me diz o que se passou em vosso
coração, e vós, por certo, que também não sabeis quem era essa menina e só a
conheceis pelo nome de — minha mulher.
—
Prossiga, minha senhora!
Poderia
eu contar-vos uma longa história de velho moribundo, esmeralda, camafeu, mas
basta de vossa mulher; permiti que vos diga que mostrava ser uma criança
doidinha, que cedo começava a fazer loucuras.
— Que
cruel juízo!
— Oh!
Não vos agasteis; eu a respeito também, em atenção a vós, porém vamos acabar
com o vosso passado. Houve um tempo em que quisestes figurar entre os amigos
como galanteador de damas, e por justo e bem merecido castigo fostes
desgraçado: todas elas zombaram de vós!
E a
menina interrompeu-se, para rir-se da cara que fazia Augusto.
— Ora,
por esta não esperava eu, disse o estudante.
A
primeira jovem que requestastes foi uma moreninha de dezesseis anos, que
jurou-vos gratidão e ternura, e casou-se oito dias depois com um velho de
sessenta anos! Não foi assim?
E a
menina de novo desatou a rir.
— Minha
senhora, de que se ri tanto?
Ora! E
que a fada está me dizendo que ainda em cima os vossos amigos, quando souberam
de tal, deram-vos uma roda de cacholetas!
— Então
a sra. d. Ana lhe contou tudo isso?
—
Juro-vos, senhor, que minha avó não me fala em semelhantes objetos. Consenti
que eu continue. A segunda foi uma jovem coradinha, a quem em uma noite
ouvistes dizer num baile que éreis um pobre menino com quem ela se divertia nas
horas vagas, não foi assim?
—
Prossiga, minha senhora.
— A
terceira foi uma moça pálida, que zombou solenemente, tanto de um primo que
tinha, como de vós. Eis alguns de vossos principais galanteios. Exasperado com
o infeliz resultado deles e vivamente tocado das letras e da música de certo
lundu que se vos cantou, tomastes outro partido e desde então vós pretendeis
fazer-vos passar por borboleta de amor.
—
Borboleta?!... Sim... Sim… lembro-me agora que a senhora passeava pelo jardim.
Já sei de quem foram certas carreirinhas e portanto compreendo que sabeis de
tudo à custa...
— A
custa da fada, senhor, e escuso estender-me mais, porque vós estais bem certo
de que eu devo saber ainda muito.
Sim,
mas diga sempre.
— Não,
antes quero falar-vos do vosso presente.
— Pelo
amor de seus belos olhos, minha senhora, vamos antes ao que eu não sei, vamos
ao meu futuro.
— Sois
sobejamente sôfrego! Não vedes como isso vai contra a boa ordem da narração?
— Mas a
desordem é hoje moda! O belo está no desconcerto; o sublime no que se não
entende; o feio é só o que podemos compreender: isto é, romântico; queira ser
romântica, vamos ao meu futuro.
— Pois
bem, vamos ao vosso futuro. Principiarei, como pretendia fazer, se falasse do
presente de vossa vida, dizendo-vos que vós não sois tão inconstante como
afetais.
—
Misericórdia!
— Mas
que estais a ponto de o ser; digo-vos que perdereis uma certa aposta que
fizestes com três estudantes.
— Como
é isso? Então a senhora sabe...
— A
fada que me revelou isso leu o termo na carteira de quem o guardou.
— A
fada? Sim, a feiticeira o leu... Compreendo.
— Vós
não sois inconstante, porque tendes até hoje cultivado com religioso empenho o
amor de vossa mulher; mas vós o ides ser, porque não longe está o dia em que a
esquecereis por outra.
— A culpa
será dos olhos dessa outra; porém quem sabe?... Desejo que não; contudo, eu já
vos vejo em princípio e temo que ides ao fim; sereis perjuro, tereis de
escrever um romance e perdoai-me se vos desejo este mal: eu quisera que ao pé
de meu irmão, que vos apresentará o termo da aposta, aparecesse a vossos olhos
a mulher traída. Do vosso futuro eis quanto me disse a fada.
— E
disse bastante para me confundir.
—
Quereis que vos fale agora do vosso presente?
— Oh,
se quero! No presente está a minha glória.
—
Ontem, no baile, dissestes palavras de ternura pelo menos a seis senhoras.
— Esta
agora é melhor! E quem o pôde notar?
—
Provavelmente a fada vos observava.
— Então
a fada, a feiticeira fazia isso?
—
Depois do baile puseram-vos duas cartas no bolso.
— Que
mãos delicadas?... Não mo sabe dizer a fada, porém vós viestes para esta gruta
acudindo a um convite, e fingistes adivinhar segredos de corações.
— Não
era verdade: a fada nada vos revelou, e o que dissestes que sabíeis antes e a
fada me disse como.
—
Explique-me, pois, minha senhora.
—
Quando involuntariamente fui causa de vos entornarem café nas calças, vós
fostes mudar de roupa e entrastes para o gabinete das senhoras; lá ouvistes
tudo o que afetastes adivinhar há pouco.
— E
quem me viu entrar?
— A
fada sem dúvida. O cravo de d. Quinquina fostes vós que o recebestes no jardim;
na noite dos jogos de prendas, fostes vós ainda quem, com uma luz na mão,
procurou e achou a trança de cabelos de d. Clementina, embaixo da quarta
roseira da rua que vai para o caramanchão.
— Mas
quem observou o que eu fiz às escondidas e com tanto cuidado?
— A
fada, que, segundo penso, vos tem sempre seguido com os olhos.
— A
fada?!... A feiticeira me segue sempre com os olhos?!... Oh! Como sou feliz!...
A feiticeira é a senhora!
—
Senhor! Sois pouco modesto; que me importariam vossos passos e vossas ações?...
—
Perdão! Perdão!... Eu sou um tresloucado... um incivil... um doido... não sei o
que faço, nem o que digo, mas continue...
—
Basta! Vós duvidastes da fada e por isso eu termino aqui. Não! Não minha
senhora! E preciso dizer-me mais alguma coisa ainda!... Por força a fada lhe
deveria ter revelado! Ela, que adivinha tudo o que está dentro do meu coração,
diga o que ainda se passa nele.
Nada
mais me disse.
— Beba
outro copo d’água...
— Não
julgo necessário. Pois então...
—
Cumpre retirar-me.
— Não é
por certo! Perdoe-me, minha senhora, mas eu devo descobrir todos os meus
segredos a quem conhece tão boa parte deles.
— Eu me
contento com o pouco que sei.
— Ouça
uma só palavra...
— Não
sou curiosa.
— Pois
a senhora...
— Sei
que sou senhora, mas sou exceção de regra; não quero saber.
—
Embora, eu lhe direi ainda contra a vontade...
— E
para isso toma-me a saída?...
— E só
para lhe dizer que eu amo...
— Já
sei, à sua mulher
— Não é
isso: a uma bela moça...
— Ela o
deve ser agora.
Muito
espirituosa...
— Já
ela o era em criança.
— E que
se chama...
— Ah!
espreitam-nos da entrada da gruta!
Augusto
correu a examinar quem era a indiscreta testemunha; não aparecia pessoa alguma;
compreendeu então que fora ainda um meio de que se lembrara d. Carolina para
não deixá-lo concluir sua declaração e, disposto a lançar-se aos pés da menina,
voltou-se já com o nome da bela nos lábios, e...
D.
Carolina tinha desaparecido da gruta.
Cap. XIX - Entremos nos corações
O que é
bom dura pouco. As festas estão acabadas, as nossas belas conhecidas bordam, os
nossos alegres estudantes estão de livro na mão. Mas, pelo que toca a estes,
qual é digam-me, qual o estudante que, depois de uma patuscada de tom, não fica
por oito dias incapaz de compreender a mais insignificante lição? Isto sucede
assim; essa pobre gente vê, por toda a parte e misturando-se com todos os
pensamentos, no livro em que estuda, nas estampas que observa, na dissertação
que escreve, o baile, as moças e os prazeres que apreciou.
O nosso
Augusto, por exemplo, está agora bronco para as lições e impertinente com tudo.
Rafael é quem paga o pato: se o inocente moleque lhe apronta o chá muito cedo, apanha
meia dúzia de bolos, porque quer ir vadiar pelas ruas; se no dia seguinte se
demora só dez minutos, leva dois pescoções, para andar mais ligeiro. Não há,
enfim, coisa alguma que possa contentar o sr. Augusto; está aborrecido da
medicina, tem feito duas gazetas na aula; de ministerial, que era, passou-se
para a oposição; não quer mais ser assinante de periódicos, não há para seus
olhos lugar nenhum bonito no mundo; aborrece a corte, detesta a roça e só gosta
das ilhas.
Deveremos
fazer-lhe uma visita; ele está em seu gabinete e um pouco menos carrancudo,
porque Leopoldo, o seu amigo do coração, o acompanha e tem a paciência de estar
ouvindo pela duodécima vez a narração do que com ele se passou na ilha de...
Segundo
parece, Augusto acaba de relatar o que ocorreu na gruta, entre ele e a bela
Moreninha, porque Leopoldo lhe perguntou:
— E por
onde fugiria ela?...
— Por
uma difícil saída que eu não tinha observado, respondeu Augusto, e que
exatamente se praticava no fundo da gruta.
— Que
diabinho de menina!
—
Quanto mais se tu notasses a graça e malícia com que ela, quando entrei na
sala, me perguntou sossegadamente: "Esteve dormindo na gruta, sr.
Augusto?…"
— Então
ela gostou da tua semideclaração?!
—
Não... não... se ela tivesse gostado, não me fugiria.
— Ora,
é boa! Não devia fazer outra coisa.
Se ela
gostasse de mim!... Mas, por que não me deu um só sinal de ternura?... Também
eu, às vezes tão adiantado, fui desta um tolo, um basbaque! Tremi diante de uma
criança que não tem quinze anos e não soube dizer duas palavras.
— Estás
doido, Augusto, e doido varrido; acredita que d. Carolina foi mais sensível aos
teus cumprimentos que aos de nenhum outro; e se não, dize por que se não deixou
ela dormir, como as outras senhoras, e foi à hora de tua partida passear pela
praia e ver-te embarcar?... Por que ficou ali passeando até desaparecer o teu
batelão?
— Isto
não significa nada.
— Ora,
ature-se um namorado!... Mas venha cá sr. Augusto, então como é isto?... Estás
realmente apaixonado?!
— Quem
te disse semelhante asneira?...
— Há
três dias que não falas senão na irmã de Filipe e...
— Ora
viva! Quero divertir-me… digo-te que a acho feia; não é lá essas coisas; parece
ter mau gênio. Realmente notei-lhe muitos defeitos... sim... mas, às vezes...
Olha, Leopoldo, quando ela fala ou mesmo quando está calada, ainda melhor;
quando ela dança, ou mesmo quando está sentada... ah! ela, rindo-se… e até
mesmo séria... quando ela canta ou toca ou brinca ou corre, com os cabelos à
negligé, ou divididos em belas tranças; quando... Para que dizer mais? Sempre,
Leopoldo, sempre ela é bela, formosa, encantadora, angélica!
Então,
que história é essa? Acabas divinizando a mesma pessoa que, principiando,
chamaste feia?...
— Pois
eu disse que ela era feia? É verdade que eu... no princípio... Mas depois...
Ora, estou com dores de cabeça; este maldito Velpeau!... Que lição temos
amanhã?
—
Tratar-se-á das representações de...
— Temos
maçada! Quem te perguntou por isso agora? Falemos de d. Carolina, do baile,
do...
— Eis aí
outra! Não acabaste de perguntar-me qual era a lição de amanhã?
— Eu?
Pode ser... Esta minha cabeça!...
— Não é
a tua cabeça, Augusto, é o teu coração.
Houve
então um momento de silêncio. Augusto abriu um livro e fechou-o logo; depois
tomou rapé, passeou pelo quarto duas ou três vezes e, finalmente, veio de novo
sentar junto de Leopoldo.
— É
verdade, disse; não é a minha cabeça: a causa está no coração. Leopoldo, tenho
tido pejo de te confessar, porém luto posso mais esconder estes sentimentos que
eu penso que são segredos e que todo o mundo mos lê nos olhos! Leopoldo, aquela
menina que aborreci no primeiro instante, que julguei insuportável e logo
depois espirituosa, que daí a algumas horas comecei a achar bonita, no curto
trato de um dia, ou melhor ainda, em alguns minutos de unia cena de amor e
piedade, em que a vi de joelhos banhando os pés de sua ama, plantou no meu
coração um domínio forte, um sentimento filho da admiração, talvez, mas,
sentimento que é novo para mim, que não sei como o chame, porque o amor é um
nome muito frio para que o pudesse exprimir!... Eu já não me conheço... não sei
onde irá isto parar... Eu amo! Ardo! Morro!
—
Modera-te, Augusto; acalma-te; não é graça; olha que estás vermelho como um
pimentão.
— Oh!
Tudo naquela ilha fatal se assanhou para enfeitiçar-me, tudo, até a própria
mentira.
— E tu
acreditaste muito nessa senhora!…
—
Escuta, Leopoldo: uma vez que com a avó de Filipe conversava na gruta, eu,
fatigado e sequioso, bebi um copo d’água da fonte do rochedo; então, a nossa
boa hóspeda contou-me uma fabulosa e singular tradição daquela fonte. A água
dizia-se milagrosa e quem a bebesse não sairia da ilha sem atuar algum de seus
habitantes. Eis aqui, pois, uma mentira, mais uma mentira que excitou a minha
imaginação; uma mentira que me perseguiu lá dois dias e que me persegue ainda
hoje; uma mentira, enfim, que se transformou em verdade, porque eu bebi daquela
água e não pude deixar a ilha sem amar, e muito, um de seus habitantes...
—
Deveras que isso não deixa de ser interessante. Mas que efeito esperas tu que
provenha de toda essa moxinifada?
— Que
efeito?... O... amor...
—
Amor?... Amor não é efeito, nem causa, nem princípio. nem fim, e é tudo isso ao
mesmo tempo; e uma coisa que... sim... finalmente, para encurtar razões, amor é
o diabo... Dize-me, pois, sinceramente falando, qual o resultado que pensas
tirar de tudo isso que me contaste.
— Que
resultado?... O... amor...
— E ele
a dar-me com o maldito amor! Augusto, falemos sério, essa tua exaltação estava
muito em ordem num moço que quisesse desposar d. Carolina; porém tu nem cuidas
em casamento nem, se em tal pensasses, te lembrarias, roceiro como és, de
escolher para mulher uma menina que foi criada, educada e pode-se dizer que
mora na corte.
— Esta
agora não é má!... Deveras que ainda me não passou pela mente a idéia do
casamento, nem chegará a tal ponto minha loucura; mas suponhamos o contrário
disto; que mal tu achas em que um roceiro se case com uma moça da cidade?
— Que
mal?... Ora, escuta: devendo ir morar na roça, a moça tem, necessariamente, de
mudar de costumes e de vida; compreende, pois, quanto atormentará o coração do
pobre marido a vista dos dissabores e contrariedades que sofrerá na solidão e
monotonia campestre urna senhora amamentada no seio dos prazeres e.festins da
corte! ... Quanto devem entristecer os suspiros e saudades de que será
testemunha, quando a amada companheira recordar-se de sua família, de suas
amigas, do teatro, do passeio, dessa cadeia de delícias, enfim, que, apesar
dela, a ligará ainda a seu passado.
— Oh!
não, não, Leopoldo, se o marido for amado. Quando se ama deveras e se está com
o objeto do amor, não se recorda, não se deseja, não se quer mais nada!...
— Tu
falas em amor, Augusto?... Ainda bem que somos ambos estudantes da roça e posso
dizer-te agora o que entendo, sem medo de ofender suscetibilidade de cortesão
algum. Pois ainda não observaste que o verdadeiro amor não se dá muito com os
ares da cidade?... Que por natureza e hábito, as nossas roceiras são mais
constantes que as cidadoas?... Olha, aqui encontramos nas moças mais espírito,
mais jovialidade, graça e prendas, porém, nelas não acharemos nem mais beleza,
nem tanta constância. Estudemos as duas vidas. A moça da corte escreve e vive
comovida sempre por sensações novas e brilhantes por objetos que se multiplicam
e se renovam a todo momento, por prazeres e distrações que se precipitam; ainda
contra a vontade, tudo a obriga a ser volúvel: se chega à janela um instante
só, que variedade de sensações! Seus olhos têm de saltar da carruagem para o
cavaleiro, da senhora que passa para o menino que brinca, do séqüito do
casamento para o acompanhamento de enterro! Sua alma tem que sentir ao mesmo
tempo o grito de dor e a risada de prazer, os lamentos, os brados de alegria e o
ruído do povo; depois, tem o baile com sua atmosfera de lisonjas e mentiras,
onde ela se acostuma a fingir o que não sente, a ouvir frases de amor a todas
as horas, a mudar de galanteador em cada contradança; depois, tem o teatro,
onde cem ócuLos fitos em seu rosto parecem estar dizendo — és bela! — E assim
enchendo-a de orgulho e muitas vezes de vaidade; finalmente, ela se faz por
força e por costume tão inconstante como a sociedade em que vive, tão mudável
como a moda dos vestidos. Quereis agora ver o que se passa com uma moça da
roça?...
Ali
está ela na solidão de seus campos, talvez menos alegre, porém, certamente,
mais livre; sua alma é todos os dias tocada dos mesmos objetos: ao romper
d’alva, é sempre e só a aurora que bruxoleia no horizonte; durante o dia, são
sempre os mesmos prados, os mesmos bosques e árvores; de tarde, sempre o mesmo
gado que se vem recolhendo ao curral; à noite, sempre a mesma lua que prateia
seus raios à Lisa superfície do lago! Assim, ela se acostuma a ver e amar um
único objeto; seu espírito, quando concebe uma idéia, não a deixa mais,
abraça-a, anima-a, vive eterno com ela; sua alma quando chega a amar, é para
nunca mais esquecer, é para viver e morrer por aquele que ama. Isto é sim,
Augusto; considera que é lá em nossos campos que mais brilham esses
sentimentos, que são a mesma vida e que não podem acabar senão com ela!...
— Como
estás exagerado, Leopoldo! Juraria que desejas casar com alguma moça da roça!
—
Oh!... Se esse desejo me dominar, certamente que o satisfarei com uma das
muitas cachopinhas da minha terra.
Eu logo
vi que em teus raciocínios e observações andava o gênio da prevenção;
escuso-me, porém, de responder-te, pois que falaste em geral e desse modo
concedes...
— Que
há muitas exceções, sem dúvida.
Bom!
Quando não, tu me forçarias a tomar a palavra para defender a linda Moreninha,
que tanto cativa.
Então,
Augusto, teremos porventura um romance? Que romance?
—
Perderás a aposta e ao completar-se o mês...
— Daqui
até lá… se eu pudesse esquecê-la! ... Mas aquela menina não é como as outras; é
uma tentação... um diabinho...
—
Quando, pois, começas a escrever?
— Estás
tolo… respondeu Augusto, tomando por um momento seu antigo bom humor; eu ainda
pretendo nestes quinze dias mudar de amor três vezes.
Basta
porém de estudantes. Já temos ouvido bastante o nosso Augusto e demorar-se mais
tempo em seu gabinete fora querer escutar ainda as mesmas coisas; porque o tal
mocinho, que quer campar de beija-flor, parece que caiu no visco dos olhos e
graças da jovem beleza da ilha de... e está sinceramente enamorado dela. Ora,
todos sabem que os amantes têm um prazer indizível em matraquear os ouvidos dos
que os atendem com uma história muito comprida e mil vezes repetida que,
reduzindo-se à expressão mais simples, ficaria em zero ou, quando muito, nos
seguintes termos: "eu olhei e ela olhou"; eu lhe disse "pode
ser, não pode ser". Deixemos, portanto, o senhor Augusto entregue a seus
cuidados de moço, e tanto mais que já conhecemos o estado em que se acha. Vamos
agora entrar no coraçãozinho de um ente bem amável, que não tem, como aquele,
uma pessoa a quem confie suas penas, e por isso sofre talvez mais. Faremos urna
visita à nossa linda Moreninha.
Também
suas modificações têm aparecido no caráter de d. Carolina, depois dos festejos
de Sant’Ana. Antes deles, era essa interessante jovenzinha o prazer da ilha
de... irreconciliável inimiga da tristeza, ela ignorava o que era estar
melancólica dez minutos e praticava o despotismo de não consentir que alguém o
estivesse; junto dela, por força ou por vontade, tudo tinha de respirar
alegria; sabia tirar partido de todas as circunstâncias para fazer rir, e, boa,
afável e carinhosa para com todos, amoldava os corações à sua vontade; o ídolo,
o delírio de quantos a praticavam, era ela a vida daquele lugar e empunhava com
suas graças o cetro do prazer. Hoje suas maneiras são outras e, enquanto suas
músicas se empoeiram, seu piano passa dias inteiros fechado, suas bonecas não
mudam de vestido, ela vagueia solitária pela praia, perdendo seus belos olhares
na vastidão do mar, ou, sentada no banco de relva da gruta, descansa a cabeça
em sua mão e pensa... Em quê?... Quais serão os solitários pensamentos de uma
menina de menos de quinze anos?... E às vezes suspira... um suspiro?... Eis o
que já é um pouco explicativo.
Assim
como o grito tem o eco, a flor o aroma e a dor o gemido, tem o amor o suspiro;
ah! o amor é um demonínho que não pede para entrar no coração da gente e,
hóspede quase sempre importuno, por pior trato que se lhe dê, não desconfia,
não se despede, vai-se colocando e deixando ficar, sem vergonha nenhuma, faz-se
dono da casa alheia, toma conta de todas as ações, leva o seu domínio muito
cedo aos olhos, e às vezes dá tais saltos no coração, que chega a ir
encarapitar-se no juízo; então, adeus minhas encomendas!...
Pois
muito bem, parece que a tal tentação anda fazendo peloticas no peito da nossa
cara menina; também não há moléstia de mais fácil diagnóstico. Uma mocinha que
não tem cuidados, com quem a mamãe não é impertinente, que não sabe dizer onde
lhe dói, que não quer que se chame médico, que suspira sem ter flatos, que não
vê o que olha, que acha todo o guisado mal temperado, é porque já ama;
portanto, d. Carolina ama, mas a quem?!...
Ah! Sr.
Augusto! Sr. Augusto, a culpa é toda sua, sem dúvida. Esta bela menina,
acostumada desde as faixas a exercer um poder absoluto sobre todos os que a
cercam, não pôde ouvir o estudante vangloriar-se de não ter encontrado ainda a
mulher que o cativasse deveras, sem sentir o mais vivo desejo de reduzi-lo a
obediente escravo de seus caprichos; ela pôs em ação todo o poder de suas
graças, ideou mesmo um plano de ataque, estudou a natureza e os fracos do
inimigo, observou e bateu-se; o combate foi fatal a ambos, talvez, e no fim
dele a orgulhosa guerreira apalpou o seu coração e sentiu que nele havia
penetrado um dardo; consultou a sua consciência e ouviu que ela respondia; se
venceste, também estás vencida!
Com
efeito, d. Carolina ama o feliz estudante, e unia mistura de saudades e de temor
da inconstância do seu amado é provavelmente a causa da sua tristeza; ajunta-se
a isto a novidade e os cuidados de um amor nascente e primeiro, o incômodo de
um sentimento novo, inexplicável, que lhe enchia o inocente coração e ver-se-á
que ela tem suas razões para andar melancólica.
E
portanto toda a família está assaltada do mesmo mal: há na ilha uma epidemia de
mau humor que tem chegado a todos, desde a sra. d. Ana até a última escrava.
Além de quanto se acaba de expor, acresce que Filipe se deixou ficar na cidade
a semana inteira. sem querer dispensar uma só tarde para vir visitar sua
querida avó e a bonita maninha.
Eis
porém, o que se chama acusação injusta. Diz o ditado que falai no mau, aprontai
o pau! Filipe estava esperando pelo dia de sábado para aproveitar o domingo
todo no seio de sua família; ei-lo aí que recebe a bênção de sua avó e beija a
fronte de sua irmã.
—
Pensei, disse aquela, que não querias mais ver-nos!
— E
quase que deixei a viagem para amanhã, minha boa avó.
— O
ingrato ainda o diz... ouves, Carolina?... Então por quê... Para vir na
companhia de Augusto, que deve passar o dia conosco.
Estas
palavras tiveram poder elétrico; d. Carolina, para ocultar a perturbação que a
agitava, correu a esconder-se em seu quarto.
Lá, bem
às escondidas, ela derramou uma lágrima: doce lágrima… era de prazer.