Volume I, Capítulo IX: Verdade desta História. Declara-se o modo com que se
pode conhecer e saber os futuros
A
primeira qualidade da história (quando não seja a sua essência) é a verdade; e
porque esta parecerá muito dificultosa, e porventura impossível na História do
Futuro, será razão que, antes que vamos mais por diante, sosseguemos o
escrúpulo ou receio (quando não seja o riso e o desprezo) dos que assim o podem
imaginar. E pois pedimos aos leitores o assento da fé, justo é que lhes
mostremos primeiro os motivos da credulidade; não duvidamos da pia afeição de
todos, pois a matéria é tanto para crer, e tão sua.
Confesso que entramos em um caos profundíssimo e
escuríssimo, de que se pode dizer com toda a razão: Tenebrae erant super faciem
abyssi Mas neste mesmo abismo de trevas, se o espírito do Senhor (como
esperamos) nos não faltar com a sua assistência, como ali não faltou: Spiritus
Domini ferebatur super aquas, dirá Deus o que so Ele pode dizer, e far-se-á o
que só Ele pode fazer: Fiat lux, et facta est lux. As maiores trevas que se
viram no Mundo, ou com que o Mundo se não viu, foram aquelas do Egipto, das quais
diz o Texto Sagrado: Factae sunt tenebrae horribiles in universa terra Aegypti,
nemo vidit fratrem suum, nec movit se de loco in quo erat. Trevas que faziam
horror, trevas com que nada se via e trevas com que se não podia dar passo.
Tais são as trevas, e tal a escuridade do futuro. Contudo, o Apóstolo S. Pedro
nos ensinou a entrar nestas trevas sem medo, e a dar passo, e muitos passos
nelas, e a ver claramente e com maior certeza tudo o que elas encobrem: Habemus
firmiorem propheticum sermonem, cui benefactis attendentes, quasi lucernae
lucenti in caliginoso loco, donec dies elucescat: «Temos — diz o Príncipe dos
Apóstolos — as profecias e palavras certíssimas dos profetas, as quais devemos
observar e atender, usando delas como de candeia luzente em lugar escuro e
caliginoso, até que amanheça o dia». Lugar escuro e caliginoso é o futuro; a
candeia que alumeia são as profecias; o sol que há-de amanhecer é o cumprimento
delas. E enquanto este sol, que será muito formoso e alegre, não aparece, não
coroa os nossos montes, o que só agora podemos e devemos fazer é levar a
candeia das profecias diante, e com a sua luz (ainda que luz pequena)
entraremos no lugar caliginoso e escuríssimo dos futuros, e veremos o que neles
se passa.
Por isso os Profetas na Sagrada Escritura se chamam
por antonomásia Videntes, porque com o lume da profecia entravam nos lugares
escuríssimos e secretíssimos dos futuros e viam neles claramente aquelas cousas
para que todos os outros homens são cegos, e ninguém as pode ver senão alumiado
da mesma luz.
Eu conheço e confesso que a não tenho, nem basta
estudo ou diligência alguma para a alcançar, porque só Deus a pode dar e a dá,
quando e a quem é servido: Non enim voluntate humana allata est ali quando
prophetia, sed Spiritu Sancto inspirati locuti sunt sancti Dei homines — diz S.
Pedro: Mas ainda que a candeia esteja na mão de outrem, também se podem
aproveitar da sua luz os que se chegarem a ela e a forem seguindo. Nesta
propriedade fala a Escritura, quando diz da profecia de Ageu: ...factum est
verbum Domini in manu Aggaei prophetae. E da profecia de Malaquias: Onus verbi
Domini ad Israel in manu Malachiae. E geralmente das profecias de todos os
profetas: Sicut locutus es de manu puerorum tuorum prophetarum. De maneira que
pôs Deus a profecia como candeia na mão dos profetas, para que, alumiados e
guiados da mesma luz os que não somos profetas, possamos entrar com eles no
lugar escuro e caliginoso dos futuros e ver e conhecer com a luz não nossa, o
que eles viram e conheceram com a sua.
Este é o modo com que, havendo a nossa História de
caminhar por passos tão escuros e dificultosos, saberá contudo onde há-de pôr
os pés, e os porá mui seguros, seguindo sempre os raios deste farol divino, e
dizendo humilde a Deus com David: Lucerna pedibus meis verbum tuum, et lumen
semitis meis. Serão pois as primeiras fontes desta nossa História, e os
primeiros e principais escritores a quem nela seguiremos todos ou quase todos
os profetas canônicos, desde Isaías até Miqueas; porque, exceto o profeta Jonas,
cujo assunto foi um só, e particularmente determinado à história dos Ninivitas,
todos os outros, mais ou menos, concorreram para a fábrica deste novo edifício.
Assim como os que escrevem anais ou histórias
passadas e antiquíssimas, recorrem aos autores mais antigos, e estes são os que
têm maior crédito e autoridade nas cousas daqueles tempos, assim nós que
escrevemos do futuro, devemos recorrer e buscar a verdade e notícias da nossa
História nos autores dos tempos futuros, que são somente os Profetas, pois só
eles os conheceram. E porque entre os outros Livros Sagrados, também canônicos,
há alguns que totalmente são proféticos, como os Salmos, os Cantares e o
Apocalipse, e todos os outros, assim do Velho como do Novo Testamento, contêm
ou muitas ou algumas cousas proféticas, ainda que sejam meramente históricos,
como o Gênesis, Josué, Josias, Reis, Paralipamenon, Esdras e Macabeus; ou
meramente doutrinais, como Provérbios, Sabedoria, Eclesiastes, Eclesiástico e
as Epístolas dos Apóstolos; ou juntamente doutrinais e históricos, como o
Levítico, Números, Deuteronômio, Job e os Evangelhos, de todos estes nos
ajudaremos também, quando servirem ou puderem servir (que não será pouco) ao
conhecimento e inteligência dos tempos futuros. Assim que podemos dizer em uma
palavra que a primeira e principal fonte e os primeiros e principais
fundamentos de toda esta nossa História é a Escritura Sagrada; com que vem a
ser um só livro e um só Autor o que nela principalmente seguiremos: o livro, a
Escritura; o Autor, Deus. Sobre estes fundamentos da primeira e suma Verdade
entrará o discurso como arquiteto de toda esta grande fábrica, dispondo,
ordenando, ajustando, combinando, inferindo e acrescentando tudo aquilo que por
conseqüência e razão natural se segue e infere dos mesmos princípios, no qual
modo de fábrica se não perde a primeira verdade dos fundamentos, mas vai
crescendo, dilatando-se e frutificando, não em diversos, senão no mesmo corpo,
como a árvore em suas raízes.
Deste modo crescem e se aumentam todas as ciências,
não só as naturais, senão as divinas, e por isso se chamam e são ciências.
Assim como a filosofia de princípios naturais evidentemente conhecidos tira
conclusões certas, evidentes e científicas, assim a teologia, de princípios
sobrenaturais não evidentes mas certissimamente conhecidos, tira conclusões
teológicas, também científicas e ainda mais certas, posto que não evidentes.
Nem este modo de discorrer sobre as profecias e revelações proféticas, para vir
em conhecimento dos mistérios, segredos, sucessos e tempos futuros, que nelas
não estejam imediatamente expressados, é alheio da reverência que se deve aos
oráculos divinos, nem atrevimento do entendimento e discurso humano, ou cousa
nova e desusada na Igreja e escola de Cristo, antes estudo muito lícito, muito
louvável e muito recomendado do mesmo Mestre Divino e seus sucessores.
Temos desta matéria um excelente texto do Apóstolo S.
Pedro (primeira e infalível regra da Igreja), o qual, falando das mesmas
profecias e profetas, diz assim no primeiro capítulo de sua primeira epístola:
De qua salute exquisierunt atque scrutati sunt Prophetae qui de futura in vobis
gratia prophetaverunt, scrutantes in quod vel quale tempus significaret in eis
spiritus Christi praenuntians eas quae, Christo sunt, passiones et posteriores
glorias.
Quer dizer S. Pedro que os Profetas antigos, depois
de lhes serem revelados com lume sobrenatural e eles conhecerem e profetizaram
mistérios futuros (como os da paixão e glórias de Cristo) sobre os mesmos
mistérios e sobre as mesmas suas profecias inquiriam e especulavam de novo com
o lume natural do discurso muitas circunstancias que lhes não foram
expressamente reveladas, como as do tempo estado do Mundo em que os mesmos
mistérios se haviam de obrar e as suas mesmas profecias haviam de suceder.
Desta maneira, no sentido em que o digo vinham a
inferir e alcançar pelo estudo e especulação natural e própria o que Deus lhes
não tinha manifestado pela revelação sobrenatural e divina. Isto é o que
literal e genuinamente significam aquelas palavras: «Exquisierunt et scrutati
sunt.» Exquisitio et scrutatio (diz Lorino) ...proprie indicant... curam et
studium et industriam naturalem vel meditationis,vel lectionis, vel
disputationis.
De sorte que, ajuntando o lume natural do d curso ao
lume sobrenatural da pirofecia, com o cuidado, estudo e indústria própria,
lendo, disputando e meditando, vinham a estender e adiantar muito as mesmas
profecias, conhecendo delas e por elas muitas cousas que nelas imediatamente
não estava reveladas. Bem assim como o sol ou candeia (que era a nossa
comparação) não só alumeia com a luz que está ao lume ou fogo que nela se
sustenta, senão também, e muito mais, com a luz que dela se vai produzindo,
multiplicando e difundindo por todas as partes vizinhas e ainda distantes,
conforme a sua menor ou maior esfera, assim o lume natural do discurso, se vai
propagando, difundindo e estendendo a muitas cousas, tempos, sucessos e
circunstâncias que nelas estavam ocultas e pela conferência e conseqüência do
mesmo discurso se vão entendendo e descobrindo de novo. Isso quer dizer: In
quod vel quale tempus. A palavra, em que tempo significa a determinação do
tempo certo em que as cousas hão-de suceder; e a palavra no qual tempo
significa as qualidades e circunstâncias do mesmo tempo, isto é, o estado dos
reinos, das repúblicas, das nações, e os acontecimentos particulares da paz, da
guerra, do cativeiro, da liberdade e outros semelhantes que no mesmo tempo, ou
mais vizinho ou mais distante, se hão-de ver e suceder no Mundo: Deprehendebant
Prophetae instinctu spiritus Messiae ejusdem Messiae adventum et gratiae dona,
quae allaturus erat, nec tamen salten omnes, definite sciebant quo tempore
veniret et quali, quam brevi, an belli, aut pacis, captivitatis, aut
libertatis; quo statu Reipublicae Hebraeorum. Eplicabant quae Messias primum
passurus, quam postea gloriam consecuturus et collaturus etiam esset; at
ignorabant circumstantiam tem poris, et ratiocinando, atque conjecturando
disquirebant. Atèqui Lorino.
O mesmo diz Salmeirão, ambos doutissimos expositores
deste lugar, e ambos trazem em confirmacão o exemplo da Virgem Maria, nossa
Senhora, da qual diz o Evangelho: Maria autem conservabat omnia verba haec
conferens in corde suo. Conferia a Senhora, com ser alumiada sobre todas as
criaturas, as palavras que os pastores referiam ter ouvido aos anjos, as que
ouviu a Simeão, a Ana a profetiza, e ao mesmo Cristo Menino, quando o achou
entre os doutores; e delas, por discurso natural, inferia e descobria outros
mistérios ocultos e profundíssimos, que nas mesmas palavras não estavam
expressamente declarados. Isto mesmo é o que se diz no cap. XV dos Atos dos
Apóstolos faziam os mais doutos cristãos da primitiva Igreja, e o que Cristo
mandou a todos que fizessem, dizendo por S. João na cap. L: Scrutamini
Scripturas. É isto o que nós fazemos e devemos fazer, pois de nós e para nós
falam os Profetas, como diz o mesmo texto de S. Pedro nas palavras citadas:
...qui de futura in vobis gratia prophetaverunt; e mais abaixo: Quibus
revelatum est quia non sibimetipsis, vobis autem mintistrabant, onde a versão
siríaca tem: Nostra nobis: vaticinabantur.
E pois os Profetas profetizavam para nós e as cousas
nossas, razão é que nós como nossas as entendamos. Mas porque as profecias por
sua natural escuridade não são fáceis de entender, e assim como se há mister
necessariamente a sua luz para conhecer os futuros, é também necessária outra
Segunda e nova luz para as entender a elas. Esta segunda luz serão aqueles a
quem Cristo chamou luz do Mundo: Vox estis lux Mundi, e, por outras palavras,
candeia acesa: Neque enim accendunt lucernam et ponunt eum sub modio, que são
em primeiro lugar os Apóstolos sagrados, e em segundo os Padres Doutores da
Igreja e expositores das Escrituras divinas, os quais seguiremos e alegaremos
em tudo o que dissermos com estas duas luzes ou candeias: uma dos Doutores
sagrados, com que alumiaremos as profecias, e outra as mesmas profecias, com
que alumiaremos e descobriremos os futuros; poderemos entrar neste labirinto
com todo o aparato e prevenção de instrumentos com que se entrava seguramente
no de Creta.
Era aquele labirinto por uma parte muito escuro e por
outra mui intricado; e para vencer e facilitar estas duas dificuldades se
inventou entrar nele, não só com tocha, mas também com fio: as tochas para ver
o escuro dos caminhos e o fio para entrar e sair pelo intricado deles. Por este
modo entraremos também nós pelo escuro e intricado labirinto dos futuros. As
profecias e os Doutores nos servirão de tochas; o entendimento e o discurso de fio.
Isto é quanto às profecias e Profetas canônicos.
E porque o Espírito Santo, depois de fechado o número
dos livros e os escritores sagrados (o qual se cerrou no Apocalipse de S.
João), não deixou de ilustrar e ornar sua esposa a Igreja com o lume e dom da
profecia; e depois daqueles seus primitivos anos houve sempre novos profetas,
alumiados com o mesmo espírito, que por palavra e escrito predispuseram muitas
cousas futuras, assim dos seus, como dos seguintes tempos, também estes darão
matéria à nossa História. Não meteremos porém nesta conta senão aquelas
profecias somente que, ou pela santidade de seus autores, aprovados e
canonizados pela Igreja, ou por outros fundamentos sólidos da razão,
experiência e opinião do Mundo, tenham, na forma possível, merecido no juízo
dos prudentes o nome e veneração de profecias ou predições verdadeiras.
A este fim empregarei grande parte deste presente
livro na qualificação do espírito profético que tiveram todos os autores do
futuro que na História se hão-de alegar, por ser este não só o principal, mas o
único fundamento de toda a sua verdade, e sem o qual vã e não merecidamente lhe
devemos prometer o crédito que de todos os que a lerem esperamos.
Por esta causa se não acharão porventura neste nosso
discurso menos algumas que em nome de profecias andam entre o vulgo, sem
certeza de autor e muito menos do espírito com que foram escritas; e não só
provaremos quanto for necessário o espírito da profecia destes autores, mas
diremos o tempo em que escreveram as obras proféticas que deles existam; a
inteireza ou corrupção com que se tem conservado, com uma breve relação também
das mesmas pessoas (quando não forem geralmente mui conhecidas) pelo muito que
importam todas estas notícias não só para a fé e crédito, senão ainda, e muito
mais, para a inteligência e combinação das mesmas profecias, que grandemente
depende do tempo e de outras semelhantes circunstâncias.
Procuramos quanto nos foi possível que fosse mui
exata esta diligência, e não só falaremos nos autores e Profetas modernos e não
canônicos, senão igualmente nos antigos e sagrados, pelas mesmas causas. Também
excitaremos a este fim e resolveremos várias questões muito importantes ao
conhecimento das profecias, pela ordem que a necessidade ou ocasião o for
pedindo, e esta será a própria matéria de todo este livro, a que por isso
chamamos Anteprimeiro, e é como alicerce de todo o edifício. E posto que todo
este tão largo Prolegómeno em rigor não seja História do Futuro, senão
preparação ou aparato para ela, à imitação de Barónio e de outros autores, que
com menos necessidade o fizeram em suas histórias, esperamos que a matéria, por
sua grande variedade e diligente erudição de cousas curiosas, e pela maior
parte até agora não tratadas, não será injucunda aos que a lerem, e que possa
sem enfado entreter a expectação e desejo da mesma História, enquanto não sai a
luz, que será, como em Deus esperamos, muito brevemente.
De tudo o que fica dito ou prometido se colhe
facilmente quanta será a verdade desta História; porque as cousas que expressa
e imediatamente se predizem nas profecias canônicas, de cuja inteligência por
sua clareza se não pode duvidar, ou por estarem explicadas por escritores
também canônicos por concílios, por tradições, ou pelo consenso comum dos
Padres, é certo que têm toda aquela certeza infalível e de fé, que as outras
verdades sagradas que se contêm nas Escrituras. As outras cousas, que destas
verdades assim profetizadas e conhecidas, por natural conseqüência, se
deduzirem, ainda que intervenha no discurso algum meio ou proposição
científica, são verdades segundas que participam a mesma certeza também
infalível, qual é a das conclusões teológicas que, não sendo totalmente fé, nem
somente ciência, por esta parte têm evidência, e por ambas tal certeza, que não
é sujeita a erro ou falsidade, nem perigo de poderem não ser.
As profecias não canônicas podem ser tão
evidentemente provadas por seus efeitos, como veremos que tenham toda a certeza
moral, que é a que depois a fé e da ciência têm no juízo humano o maior
assento; e a mesma participarão, na forma que pouco antes dissemos, todas as
outras conclusões que por natural e evidente conseqüência delas se deduzirem,
pois são filhas e herdeiras da mesma Verdade de que tiveram seu nascimento
Restam somente aquelas profecias que, ou por não
averiguadas com tão evidente certeza (posto que sempre estabelecidas com bons e
racionais fundamentos) ou por sua interpretação não ser tão manifesta ou
recebida que não desfaça moralmente toda a razão de dúvida, ficam dentro dos
lates da probabilidade opinativa; le nestas, assim o que imediatamente
predizem, como as conseqüências que delas por formalização se deduzirem, terão
somente certeza provável naquele sentido em que dizemos provavelmente certas
aquelas cousas de que há fundamentos prováveis para o serem.
Estes quatro gêneros de verdade são os de que
repartidamente se comporá toda a História do Futuro, merecendo, segundo todas
suas partes, o nome de história verdadeira, posto que não em todas com igual
grau de certeza. Nas do primeiro gênero, verdadeira com certeza de fé; nas do
segundo, verdadeira com certeza teológica; nas do terceiro, verdadeira com
certeza moral; nas do quarto, verdadeira com certeza provável, pelo modo já
explicado; sendo a excelência singular desta História que toda ela, ou
provável, ou moral, ou teológica, ou canonicamente, será fundada na primeira e
suma Verdade, que é; o mesmo Deus.
Daqui inferimos sem injúria nem agravo de quantas
histórias até hoje estão escritas no Mundo, que esta História do Futuro é mais
certa e mais verdadeira que todas elas (excetas somente as Histórias Sagradas),
e ainda esta exceção se não deve entender em todo, senão em parte; a História
do Futuro igualará na verdade e na certeza, que, por melhor dizer, se não
distinguirá delas, por ir toda (como vai) não só fundada nos mesmos textos e
sentenças da Escritura divina, mas formada e como tecida deles.
E digo que sem injúria nem agravo de todas as outras
histórias humanas, porque, como também terão advertido os mais lidos e versados,
assim nas antigas como nas modernas, todas elas estão cheias, não só de cousas
incertas e improváveis, mas alheias e encontradas com a verdade, e
conhecidamente supostas e falsas, ou por culpas ou sem culpa dos mesmos
historiadores.
Que historiador há ou pode haver, por mais diligente
investigador que seja dos sucessos presentes ou passados, que não escreva por
informações? E que informações há de homens, que não vão envoltas em muitos
erros, ou da ignorância, ou da malícia? Que historiador há de tão limpo coração
e tão inteiro amador da verdade, que o não incline só o respeito, a lisonja, a
vingança, o ódio, o amor, ou da sua, ou da alheia nação, ou do seu ou de
estranho príncipe? Todas as penas nasceram em carne e sangue, e todos na tinta
de escrever misturam as cores do seu afeto.
Prova Tácito a verdade da sua história, com ter longe
as causas do ódio e amor; mas de aí se convence contra ele, que também tinha
longe as informações da verdade. O certo é que só tinha perto a ambição de seu
próprio juízo, com que formava os processos para as sentenças, e não as
sentenças sobre os processos. Por isso Tertuliano lhe chamou com razão
mendaciorum loquacíssimum.
Não aponto erros em particular das histórias mais
vizinhas a nossos tempos por reverência deles, e porque fora matéria infinita.
Das dos Gregos e Romanos disse S. Jerônimo, por ocasião do milagre da serpente:
Cedaxt huic veritati, tam graeco quam romano stylo mendacis ficta miracula. E
Cícero, que é mais, no livro primeiro das Leis: Apud Herodotum patrem Historiae
et apud Theopompum sunt innumerabiles fabulae. Estes foram os pais da História
humana, e desta é filha legítima a sua verdade, sobre a qual batalham tantas
vezes os mesmos historiadores, mas nunca com conhecida vitória.
Quem quiser ver claramente a falsidade das histórias
humanas, leia a mesma história por diferentes escritores, e verá como se
encontram, se contradizem e se implicam no mesmo sucesso, sendo infalível que
um só pode dizer a verdade e certo que nenhum a diz. Mas isto mesmo se conhece,
ainda com maior evidência, daquelas histórias de que temos verdadeira relação
nas Escrituras Sagradas, como são as de Noé, do Dilúvio, da divisão das
primeiras gentes; as dos Assírios, Persas, Medos, Romanos, Egípcios, Gregos, e
principalmente a dos Hebreus, com os quais cotejado, como em pedra de toque, o
que escteveram os Berosos, os Heródotos, os Diodoros, os Trogos, os Cúrcios, os
Lívios, e todos os outros historiadores daquelas nações e tempos, apenas se
acha cousa que não seja contradição da verdade; e desta mesma experiência e
razões dela se qualifica claramente ser a nossa História do Futuro mais
verdadeira que todas as do passado porque elas em grande parte foram tiradas da
fonte da mentira, que é a ignorancia e malícia humana, e a nossa tirada do lume
da profecia e acrescentada pelo lume da razão, que são as duas fontes da
verdade humana e divina.
Volume I, Capítulo X: Resposta a uma objeção: mostra-se que o melhor
comentador das profecias é o tempo.
Assentamos
com o Apóstolo S. Pedro, no capítulo antecedente, que com a candeia da profecia
se podia entrar pela escuridade dos futuros e descobrir e conhecer o que neles
está encoberto e enterrado. Mas sobre esta resolução se pode dizer e argüir
contra nós, que esta mesma candeia e luz das profecias há muitos centos de anos
que está acesa, e não sub modio, senão supra candelabrum, e que ninguém contudo
se atreveu até agora a entrar com ela por estes abismos e escundades do futuro,
como nós prometemos fazer, empresa e ousadia, que mais merece nome de
temeridade :que de confiança; aos quais (que sempre serão mais de um)
responderemos facilmente com o seu mesmo argumento. Os futuros, quanto mais vão
correndo, tanto mais se vão chegando para nós, e nós para eles; e como há
tantos centos de anos que estão escritas estas profecias, também há outros
centos de anos que os futuros se vão chegando para elas, e elas para os
futuros; e por isso nós nos atrevemos a fazer hoje o que os Antigos não
fizeram, ainda que tivessem acesa a mesma candeia; porque a candeia de mais
perto alumeia melhor. Para ver com uma candeia, não basta só que a candeia
esteja acesa, é necessário que a distância seja proporcionada: Ut luceat
omnibus qui in domo sunt, disse Cristo. Com una candeia na mão pode-se ver o
que há em uma casa, mas não se pode ver o que há em uma cidade. 0 grande
precursor de Cristo ...erat lucerna lucens et ardens, e ainda que todos os
outros Profetas anunciaram a Cristo, o Baptista o mostrou melhor, porque era
candeia de mais perto; os outros diziam: — Há-de vir, e ele disse: — Este é.
As visões e revelações de Deus vêem-se melhor ao
perto que ao longe: de longe viu Moisés a visão da sarça; e que disse? — Vadam
et videbo visionem hanc magram: «Irei e verei esta grande visão». Estava vendo
a visão, e disse que a iria ver, porque vai muita diferença de ver as visões de
Deus ao longe, ou vê-las ao perto. Ao longe viu só Moisés a sarça e o fogo; ao
perto, entendeu o que aquelas figuras significavam. A mesma luz e a mesma
candeia ao longe vê-se, e ao perto alumeia.
Esta é a diferença que não nós, senão os nossos
tempos, fazem aos antigos: nos antigos reconhecemos a vantagem da sabedoria,
nos nossos a fortuna da vizinhança. Se estamos mais perto dos futuros com igual
luz (ainda que não seja com igual vista), porque os não veremos melhor? Assim o
confessou Santo Agostiho com ter os olhos de águia o qual, achando-se às
escuras em muitos lugares das profecias, reservou a verdadeira inteligência
delas para os vindouros.
Um pigmeu sobre um agigante pode ver mais que ele.
Pigmeus nos conhecemos em comparação daqueles gigantes que olharam antes de nós
para as mesmas Escrituras. Eles sem nós viram muito mais do que nós podemos ver
sem eles; mas nós, como vive mos depois deles, e sobre eles por benefício do
tempo, vemos hoje o que ,eles viram, e um pouco mais. 0 último degrau da escada
não é maior que os outros, antes pode ser menor; mas basta ser o último, e
estar em cima dos mais, para que dele se possa alcançar o que de outros se não
alcança.
Entre a multidão dos que acompanhavam e rodeavam a
Cristo, o mais pequeno de todos era Zaqueu que por si mesmo, e com os pés no
chão, não podia alcançar a ver o que os outros viam; mas subido em cima da
árvore, viu melhor e mais claramente que todos.
Mui bem medimos a nossa estatura, e conhecemos quão
pequena, quão desigual) quão inferior é, comparada com aqueles cedros do Líbano
e com aquelas torres altíssimas, que tanto ornato, tanta grandeza e majestade
acrescentaram ao edifício da Igreja; mas subidos por merecimento seu e fortuna
do tempo a tanta altura, não é muito que alcancemos e descubramos um pouco mais
do que eles descobriram e alcançaram.
Cousa maravilhosa é, e que apenas se pode entender,
como os cavadores da vinha que vieram na última hora puderam ser avantajados
aos demais. Mas estes são os privilégios da última hora: Hi novissimi una hora
fecerunt. Fizeram na última hora o que os outros não fizeram todo o dia; porque
eles com outros acabaram a obra que os outros sem eles não puderam nem podiam
acabar: Sic erunt novissimi primi. Este é o modo com que os últimos podem vir a
ser os primeiros. Non ergo undecima hora in vineam Domini ad operandum
conductis nobis invidendum est — disse Lipomano na prefação de seus
Comentários, aplicando a parábola de Cristo ao estudo da Sagrada Escritura.
Os que estudamos e trabalhamos na inteligência da
Sagrada Escritura, mais ou menos todos cavamos e, pode suceder que os que vêm
na última hora por felicidade da mesma hora acabem, descubram com poucas
enxadas o que muitos em muito tempo e com muito trabalho, cavando muito mais,
não descobriram.
Aquele tesouro escondido de que falou Cristo no cap.
XIII de S. Mateus, diz Ruperto Tertuliano, S. João Crisóstomo, que é a
Escritura Sagrada, e S. Jerônimo com mais estrita propriedade o entende
particularmente das escrituras proféticas Quantas vezes os que trabalham no
descobrimento de algum tesouro, cavam por muitos dias, meses e anos sem acharem
o que buscam, e depois de estes cansados e desesperados, sucede vir um mais
venturoso que, descendo sem trabalho ao profundo da mesma cova, e cavando
alguma cousa de novo descobre a poucas enxadadas e tesouro, e logra é fruto dos
trabalhos e suores dos primeiros?
Assim aconteceu no tesouro das profecias: cavaram uns
e cavaram outros, e cansaram todos e no cabo descobre o tesouro quais sem
trabalho aquele ultimo para quem estava guardada tamanha ventura, a qual sempre
é do último
Eis aqui como pode acontecer que descubram o tesouro
os que cavam menos: Saepe abseptus quisquam, et vilis invenit, quod magnus et
sapiens vir praeterit, disse verdadeira e judiciosamente S. Crisóstomo. 0
último dos Apóstolos foi S. Paulo, e confessando-se por mínimo de todos,
confessa ter recebido a graça de descobrir aos mesmos anjos do Céu os tesouros
que lhes estavam escondidos: Mihi omnium sanctorum (diz ele na Epístola aos
Efessos) minimo data est gratia hoec in gentibus evangelizare investigabiles
divitias Christi, et illuminare omnes quae sit dispensatio sacramenti
absconditi a saeculis in Deo, qui omnia creavit, ut innotescat principatibus et
potestatibus in caelestibus per Ecclestam, multiformis sapientia Dei, secundum
praefinitionem saeculorum. Nas quais palavras se devem ponderar muito quatro
cousas: Que é o que se descobriu; quem o descobriu; a quem se descobriu; e
quando ; se descobriu.
O que se descobriu é um segredo escondido a todos os
séculos passados: Sactamenti absconditi a soculis in Deo; porque costuma Deus
ter algumas cousas encobertas e escondidas por muitos séculos, conforme a ordem
e disposição de sua Providência. Quem o descobriu foi o último de todos os
apóstolos 9 discípulos de Cristo, que já o não alcançou, nem viu, nem ouviu
neste Mundo como os demais, e se confessa por mínimo de todos: Mihi omnium
sanstorum minimo; porque bem pode o último e o mínimo alcançar e descobrir os
segredos que os primeiros e maiores não alcançaram. A quem se descobriu foi não
menos que aos espíritos angélicos das mais superiores hierarquias do Céu: Ut
innotescat principatibus et caelestiu; porque não bastam as forças da sabedoria
e entendimento criado, ainda que seja de um anjo e de muitos anjos, para
conhecer e penetrar os segredos altíssimos de Deus, enquanto ele quer que
estejam encobertos e escondidos. Finalmente, quando se descobriu, foi no século
que Deus tinha predefinido e determinado: Secundum praefinitionem saeculorum;
porque, quando chega o tempo determinado e predefinido por Deus para que seus
segredos se conheçam e descubram no Mundo, só então, e de nenhum modo antes, se
podem manifestar e entender. Assim que bem pode um homem menor que todos
descobrir e alcançar o que os grandes e eminentíssimos não descobriram, porque
esta ventura não é privilégio dos entendimentos, senão prerrogativa dos tempos.
Desde que Túbal começou a povoar Espanha, que foi no
ano da criação do Mundo I80I, até o de Cristo, I428, em que se passaram mais de
3600 anos, era o termo da navegação do mar Oceano junto somente à costa de
África, o cabo chamado de Não, sendo os mares que depois dele se seguiam, tão
temorosos aos navegantes, que era provérbio entre eles (como escreve o nosso
João de Barros): quem passar o cabo de Não, o tornará ou não. Aparecia ao longe
deste o cabo chamado Bojador, pelo muito que se metia dentro no mar, cuja
passagem, tanto por fama e horror comum, como pelo desengano de muitas
experiências, se reputava entre todos por empresa tão arriscada e impossível à
indústria e poder humano, como se pode ver no IV capítulo da primeira Década.
Mas quem ler o capítulo seguinte, verá também como um homem português não de
muito nome, chamado Gil Eanes, foi o primeiro que, dispondo-se ousadamente ao
rompimento de uma tamanha aventura, venceu felizmente o cabo em uma barca,
quebrou aquele antiquíssimo encantamento e mostrou com estranho desengano à
Espanha, ao Mundo e ao mesmo Oceano que também o não navegado era navegável; o
qual feito ponderando o nosso grande historiador com seu costumado juízo, diz
breve e sentenciosamente: «E a este seu propósito se ajuntou a boa fortuna, ou,
por melhor dizer, a hora em que Deus tinha limitado o curso de tanto receio,
como todos tinham, de passar aquele cabo Bojador..>>
E verdadeiramente é assim: enquanto não chega a hora
determinada por Deus, nem os Aníbales de Cartago, nem os Cipiões e Júlios de
Roma, nem os Bacos, Lusos, Gedeões e Hércules de Espanha se atrevem a imaginar,
que pode o Bojador ser vencido, e param suas empresas e ainda seus pensamentos
no cabo de Não. Mas quando chega a hora precisa do limite que Deus tem posto às
cousas humanas, basta Gil Eanes em uma barca para vencer todas essas
dificuldades, para atalhar todos esses receios, para pisar todos esses
impossíveis e para navegar segura e venturosamente os mares nunca de antes
navegados. Ali donde chega o presente e começa o futuro, era até agora o cabo
de Não; não havia historiador que de ali adiantasse um momento a conta de seus
anos e dias. Não havia pensamento que ainda com imaginação (que a tudo se
atreve) desse um passo seguro mais adiante naquele tão desusado caminho; o que
confusamente se representava adiante ao longo deste cabo, era a carranca
medonha, o temerosíssimo Bojador do futuro, coberto de névoas, de sombras, de
nuvens espessas, de escuridade, de cegueira, de medos, de horrores, de
impossíveis. Mas se agora virmos desfeitas estas névoas, desvanecido este
escuro, facilitada esta passagem, dobrado este cabo, sondado este fundo e
navegável e navegada a imensidade de mares que depois dele se seguem, e isto
por um piloto de tão pouco nome e uma tão pequena barquinha como a do seu
limitado talento, demos os louvores a Deus e às disposições de sua Providência,
e entendamos que se passou o cabo, porque chegou a hora.
É admirável a este propósito um lugar do profeta
Daniel, com que demonstrativa e indubitavelmente se persuade e convence esta
verdade nos próprios termos da inteligência das profecias em que falamos.
No cap. XII de Daniel, depois de um anjo lhe ter
declarado grandes mistérios dos tempos futuros, mandou-lhe que fechasse e
selasse o livro em que estavam escritas e lhe disse estas notáveis palavras: Tu
autem, Daniel, claude sermones et sigra librum, usque ad tempus statutum,
plurimi pertransibunt et multiplex erit scientia: >>Tu, Daniel, fecharás
e selarás o livro (em que escreveres estas cousas que tenho dito), para que
estejam fechadas e seladas até o tempo determinado por Deus; entretanto
passarão muitos por elas, e haverá sobre a inteligência de seus mistérios
grande variedade de ciências e opiniões.:>>
Este é o sentido literal e verdadeiro destas palavras
do anjo, como se pode ver em todos os comentadores de Daniel, posto que elas
são tão claras e expressas que não necessitam de comentador. De maneira que,
nas escrituras dos profetas, há cousas de tal modo fechadas e seladas, que
ninguém as pode entender nem declarar, até que chegue o tempo determinado pela
Providência divina, o qual é o que só tem poder para romper os sigilos e abrir
e fazer patentes as escrituras fechadas e declarar os mistérios futuros, que
nelas estavam ocultos e encerrados. E enquanto este tempo não chega, por mais doutos,
sábios e santos que sejam os expositores daquelas profecias, dirão cousas muito
discretas, muito doutas, muito santas e muito várias, mas o certo e verdadeiro
sentido delas sempre ficará oculto e escondido, porque passarão todos por ele
sem entenderem nem penetrarem Isto quer dizer: Plurimi pertransibunt, et
multiplex erit scientia.
Onde se deve advertir e notar que muitos homem ainda
que sejam de grandes letras, cuidam que passam os livros, e passam por eles:
Plurimi perransibunt. Por quantos lugares passaram os Origgenes, os Clementes,
os Tertulianos, que depois en tenderam os Agostinhos, os Basílios, os
Jerônimos? Por quantos passaram os Hugos, os Ricardos, os Rupertos, os
Teodoretos, que depois entenderam os Montanos, os Sanches, os Cornélios, os Riberas?
E por quantos passaram também estes, que depois entenderam melhor os que lhes
foram sucedendo, não porque os últimos sejam mais doutos ou de mais aguda
vista, mas porque lêem e estudam à luz da candeia, ajudados e ensinados do
tempo, que é mais certo intérprete das profecias, e para o qual reservou Deus a
abertura dos seus sigilos? Signa librum usque ad tempus constitutum.
No Apocalipse (cujas profecias são próprias deste
tempo), em que a Igreja de Cristo se vai continuando mais claramente que em nenhum
outro lugar das Escrituras, temos relatado este segredo da Providência divina,
com que dispôs e tem decretado que as profecias se vão descobrindo e entendendo
ordenada e sucessivamente aos mesmos passos, ou mais vagarosos ou mais
apressados, com que vão seguindo e variando os tempos. Entre as cousas muito
misteriosas que viu S. João, ou a mais misteriosa de todas, foi um livro
fechado e selado com sete selos o qual era o seu mesmo Apocalipse; foram-se
rompendo estes selos e abrindo-se o livro, mas não todo Juntamente, senão por
passos e espaços: um selo primeiro e outros depois, e com grande aparato de
cerimônias e efeitos admiráveis no céu e na terra; o mistério destas pausas e
intervalos era porque se haviam ir descobrindo as profecias que estavam escritas
no livro, e assim se haviam ir entendendo, não juntamente, senão em diferentes
tempos, e não apartadas de seus efeitos, senão igualmente com eles. De maneira
que nas profecias estão encobertos os tempos e os efeitos, e nos tempos e nos
efeitos estarão descobertas as profecias; e por isso naquele misterioso livro,
assim como eram diversas as profecias e diversos os efeitos e sucessos da
Igreja e do Mundo, que nelas estavam profetizadas, assim também eram diversos
os selos com que estavam fechados e diversos os tempos em que se haviam de
abrir e manifestar, sendo o mesmo tempo e os mesmos sucessos os que as abrissem
e manifestassem, ou depois de chegarem, ou quando já forem chegando. Bem assim
como antes de se acabar de todo a noite, pelos resplendores da aurora se
conhece a vizinhança do Sol, antes que ele se veja descoberto nos horizontes.
E se quisermos especular a razão desta providencia,
acharemos que não é outra senão a majestade da sabedoria e onipotência divina,
sempre admirável em todas suas obras.
É este mundo um teatro; os homens as figuras que nele
representam, e a história verdadeira de seus sucessos uma comédia de Deus,
traçada e disposta maravilhosamente pelas idéias de sua Providência. E assim
como o primor e subtileza da arte cômica consiste principalmente daquela
suspensão de entendimento e doce enleio dos sentidos, com que o enredo os vai
levando após si, pendentes sempre de um sucesso para outro sucesso,
encobrindo-se de indústria o fim da história, sem que se possa entender onde irá
parar, senão quando já vai chegando e se descobre subitamente entre a
expectação e o aplauso, assim Meus, soberano Autor e Governador do Mundo e
perfeitíssimo exemplar de toda a natureza e arte para manifestação de sua
glória e admiração de sua sabedoria, de tal maneira nos encobre as cousas
futuras, ainda quando as manda escrever primeiro pelos profetas, que nos não
deixa compreender nem alcançar os segredos de seus intentos, senão quando Já
tem chegado ou vêm chegando os fins deles, para nos ter sempre suspensos na
expectação e pendentes de sua providência. E é esta regra (com pouca exceção de
casos) tão comum em Deus e seus decretos, que, ainda quando as profecias são
muito claras, costuma atravessar entre elas e os nossos olhos umas certas
nuvens, com que sua mesma clareza se nos faz escura. Eu o não crera, se o não
vira esento para maior admiração em um dos maiores profetas, que assim o
confessa, não de outrem, senão de si: In anno primo Darii, filii Asssueri, de
semine Medorum, qui imperavit super regnum Chaldeorum, anno uno regni ejus,
ego, Daniel, intellexi in libris numerum annorum, de quo factus est sermo
Domini ad Jeremiam prophetam, ut complerentur desolationis Hierusalem
septuaginta anni: <<No ano primeiro de Dario, filho de Assuero, descendente
dos Medos, que teve o império dos Caldeus: Eu Daniel, diz ele, entendi nos
livros o número de setenta anos, que Deus tinha revelado ao profeta Jeremias
havia de durar a assolação de Jerusalém>> e cativeiro dos Judeus em
Babilônia.
Agora entra o caso e a admiração: Esta profecia de
Jeremias, que Daniel afirma que entendeu no primeiro ano do império de Dario, é
do cap. XXV daquele profeta, e diz assim: Et erit uníversa terra haec in
solitudinem et in stuporem, et servient omnes gentes istae regi Babylonis septuaginta
annis:<<Toda esta terra (diz Jeremias, estando em Jerusalém) será
assolada, com pasmo e assombro do mundo, e todas as gentes que a habitam,
servirão ao rei de Babilônia por espaço de setenta anos.>>
Estes setenta anos, como consta da exata cronologia
que se pode ver largamente provada em Perério e rios comentadores da profecia
de Daniel, se acabaram de cumprir no primeiro ano do império de Dario. Pois se
o termo de setenta anos estava profetizado com palavras tão claras e expressas
como são aquelas de Jeremias: Et servsent omnes gentes istae regi Babylonis
septuaginta annis, como diz Daniel, que não entendeu o número destes setenta
anos, senão no primeiro ano de Dario, que foi o último dos mesmos setenta?
Podia haver conta mais clara? Podia haver palavras mais expressas? Não Mas como
é regra ordinária da Providência divina, que as profecias se não entendam senão
quando já tem chegado ou vai chegando o fim delas, por isso, sendo a profecia
tão clara e o número dos setenta anos tão expresso, não quis Deus que o mesmo
Daniel, sendo Daniel, o entendesse senão no último ano.
O tempo foi o que interpretou a ,profecia, e não
Daniel, sendo Daniel um tão grande profeta. E esta parece a energia daquela sua
palavra: Ego, Daniel intellexi: Eu, Daniel, sendo Daniel, não entendi a
profecia tão clara de Jeremias, senão no último ano dos setenta, em que ela se
cumpria; mas assim havia de ser, porque assim o profetizou e o repete o mesmo
Jeremias em dois lugares, onde, falando de suas profecias, diz que se não
entenderão senão nos últimos tempos do cumprimento delas: No cap. XXIII: Non
revertetur furor Domini usque dum faciat et usque dum compleat cogitationem
cordis sui: in novissimis diebus intelligetis consilium ejus. E no cap. XX,
quase pelas mesmas palavras: Non avertet iram indignationis Dominus, donec
faciat et cormpleat cogitationem cordis sui: in novissimo dierum intelligetis
ea.
E que fez Deus, ou pode fazer, para que umas palavras
tão expressas e uma profecia tão clara possa parecer escura? Atravessa uma
nuvem (como dizíamos) entre a profecia e os olhos, e com este véu, ou sobre os
olhos ou sobre a profecia, o claro por claríssimo que seja fica escuro.
Quando queremos encarecer uma cousa de muito clara,
dizemos que é clara como a água, porque não há cousa mais clara; e contudo essa
mesma água (como discretamente advertiu David), com uma nuvem diante, é escura:
...tenebrosa aqfxa in nubibgs aeris Em havendo nuvem em meio, até a água e
escura, e tais são as profecias, por claras e claríssimas que sejam. Por isso
pedia o mesmo David a Deus que lhe tirasse o véu dos olhos, para que pudesse
conhecer as maravilhas dos seus mistérios: Revela oculos meos, et considerabo
mitrabilia de lege tua. Oh quantas profecias muito claras se não entendem, ou
se não querem entender, porque as quero remos ver por entre nuvens, e com véu
sobre os olhos! Peço e protesto a todos os que lerem esta História, ou que
tirem primeiro-o véu de sobre os olhos, ou que a não leiam.
Como se hão-de entender as revelações com os
entendimentos e olhos vendados? Não basta só que Deus tenha revelado os
futuros, é necessário que revele também os olhos: Revela oculos meos. Se os
olhos estão cobertos e escurecidos com o véu do afeto ou com a nuvem da paixão;
se os cega o amor ou ódio, a inveja ou a lisonja, a vingança ou o interesse, a
esperança ou o temor, como se pode entender a verdade da profecia, por muito
clara que nela esteja, quando o primeiro intento e nega-la ou quando menos
escurecê-la? As nuvens que Deus põe sobre a profecia, o tempo as gasta e as
desfaz; mas os véus que os homens lançam sobre os próprios olhos, só eles os
podem tirar, porque eles são os que querem ser cegos.
Que profecias mais claras que as da vinda de Cristo
ao Mundo? E muito mais claras ainda depois de manifestas e provadas com os
mesmos efeitos. E contudo estas são as que mais obstinadamente nega a cegueira
judaica, porque têm os olhos cobertos com aquele antigo véu de Moisés, como
lhes lançou em rosto o grande Paulo Judeu e semente de Abraão, como eles, do
tribo de Benjamim: Usque in hodiernum diem, cum legitur Moyses, velamen positum
est super cor eortum; cum autem conversu fuerit ad Dominum, auferetur velamen..
Tirem o véu de sobre os olhos, e verão a luz das profecias: ainda que a
profecia seja candeia acesa, como se há-de ver com os olhos cobertos? Tire-se o
impedimento à luz, e logo se verão a candeia e mais o que ela alumeia. A mulher
que buscava a dracma perdida não só acendeu a candeia, mas varreu a
casa:...accendit lucernam, et (...) everrit domum. A candeia está acesa e muito
clara, mas a casa não está varrida; varra-se e alimpe-se a casa, tirem-se os
estorvos e impedimentos à luz, e logo verão os olhos o que há nela, e se achará
o que se busca; mas nem se busca, nem se quer achar.
De maneira que, resumindo toda a resposta da objeção,
digo que descobrimos hoje mais, porque olhamos de mais alto; e que distinguimos
melhor porque vemos mais perto; e que trabalhamos menos porque achamos os
impedimentos tirados. Olhamos de mais alto, porque vemos sobre os passados;
vemos de mais perto, porque estamos mais chegados aos futuros; e achamos os
impedimentos tirados, porque todos os que cavaram neste tesouro e varreram esta
casa, foram tirando impedimentos à vista, e tudo isto por beneficio do tempo,
ou, para o dizer melhor, por providência do Senhor dos tempos.
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