Tuesday, 7 May 2019

Tuesday's Serial: "História do Futuro" by Fr. António Vieira (in Portuguese) IV


Volume I, Capítulo IX: Verdade desta História. Declara-se o modo com que se pode conhecer e saber os futuros            
A primeira qualidade da história (quando não seja a sua essência) é a verdade; e porque esta parecerá muito dificultosa, e porventura impossível na História do Futuro, será razão que, antes que vamos mais por diante, sosseguemos o escrúpulo ou receio (quando não seja o riso e o desprezo) dos que assim o podem imaginar. E pois pedimos aos leitores o assento da fé, justo é que lhes mostremos primeiro os motivos da credulidade; não duvidamos da pia afeição de todos, pois a matéria é tanto para crer, e tão sua.
                Confesso que entramos em um caos profundíssimo e escuríssimo, de que se pode dizer com toda a razão: Tenebrae erant super faciem abyssi Mas neste mesmo abismo de trevas, se o espírito do Senhor (como esperamos) nos não faltar com a sua assistência, como ali não faltou: Spiritus Domini ferebatur super aquas, dirá Deus o que so Ele pode dizer, e far-se-á o que só Ele pode fazer: Fiat lux, et facta est lux. As maiores trevas que se viram no Mundo, ou com que o Mundo se não viu, foram aquelas do Egipto, das quais diz o Texto Sagrado: Factae sunt tenebrae horribiles in universa terra Aegypti, nemo vidit fratrem suum, nec movit se de loco in quo erat. Trevas que faziam horror, trevas com que nada se via e trevas com que se não podia dar passo. Tais são as trevas, e tal a escuridade do futuro. Contudo, o Apóstolo S. Pedro nos ensinou a entrar nestas trevas sem medo, e a dar passo, e muitos passos nelas, e a ver claramente e com maior certeza tudo o que elas encobrem: Habemus firmiorem propheticum sermonem, cui benefactis attendentes, quasi lucernae lucenti in caliginoso loco, donec dies elucescat: «Temos — diz o Príncipe dos Apóstolos — as profecias e palavras certíssimas dos profetas, as quais devemos observar e atender, usando delas como de candeia luzente em lugar escuro e caliginoso, até que amanheça o dia». Lugar escuro e caliginoso é o futuro; a candeia que alumeia são as profecias; o sol que há-de amanhecer é o cumprimento delas. E enquanto este sol, que será muito formoso e alegre, não aparece, não coroa os nossos montes, o que só agora podemos e devemos fazer é levar a candeia das profecias diante, e com a sua luz (ainda que luz pequena) entraremos no lugar caliginoso e escuríssimo dos futuros, e veremos o que neles se passa.
                Por isso os Profetas na Sagrada Escritura se chamam por antonomásia Videntes, porque com o lume da profecia entravam nos lugares escuríssimos e secretíssimos dos futuros e viam neles claramente aquelas cousas para que todos os outros homens são cegos, e ninguém as pode ver senão alumiado da mesma luz.
                Eu conheço e confesso que a não tenho, nem basta estudo ou diligência alguma para a alcançar, porque só Deus a pode dar e a dá, quando e a quem é servido: Non enim voluntate humana allata est ali quando prophetia, sed Spiritu Sancto inspirati locuti sunt sancti Dei homines — diz S. Pedro: Mas ainda que a candeia esteja na mão de outrem, também se podem aproveitar da sua luz os que se chegarem a ela e a forem seguindo. Nesta propriedade fala a Escritura, quando diz da profecia de Ageu: ...factum est verbum Domini in manu Aggaei prophetae. E da profecia de Malaquias: Onus verbi Domini ad Israel in manu Malachiae. E geralmente das profecias de todos os profetas: Sicut locutus es de manu puerorum tuorum prophetarum. De maneira que pôs Deus a profecia como candeia na mão dos profetas, para que, alumiados e guiados da mesma luz os que não somos profetas, possamos entrar com eles no lugar escuro e caliginoso dos futuros e ver e conhecer com a luz não nossa, o que eles viram e conheceram com a sua.
                Este é o modo com que, havendo a nossa História de caminhar por passos tão escuros e dificultosos, saberá contudo onde há-de pôr os pés, e os porá mui seguros, seguindo sempre os raios deste farol divino, e dizendo humilde a Deus com David: Lucerna pedibus meis verbum tuum, et lumen semitis meis. Serão pois as primeiras fontes desta nossa História, e os primeiros e principais escritores a quem nela seguiremos todos ou quase todos os profetas canônicos, desde Isaías até Miqueas; porque, exceto o profeta Jonas, cujo assunto foi um só, e particularmente determinado à história dos Ninivitas, todos os outros, mais ou menos, concorreram para a fábrica deste novo edifício.
                Assim como os que escrevem anais ou histórias passadas e antiquíssimas, recorrem aos autores mais antigos, e estes são os que têm maior crédito e autoridade nas cousas daqueles tempos, assim nós que escrevemos do futuro, devemos recorrer e buscar a verdade e notícias da nossa História nos autores dos tempos futuros, que são somente os Profetas, pois só eles os conheceram. E porque entre os outros Livros Sagrados, também canônicos, há alguns que totalmente são proféticos, como os Salmos, os Cantares e o Apocalipse, e todos os outros, assim do Velho como do Novo Testamento, contêm ou muitas ou algumas cousas proféticas, ainda que sejam meramente históricos, como o Gênesis, Josué, Josias, Reis, Paralipamenon, Esdras e Macabeus; ou meramente doutrinais, como Provérbios, Sabedoria, Eclesiastes, Eclesiástico e as Epístolas dos Apóstolos; ou juntamente doutrinais e históricos, como o Levítico, Números, Deuteronômio, Job e os Evangelhos, de todos estes nos ajudaremos também, quando servirem ou puderem servir (que não será pouco) ao conhecimento e inteligência dos tempos futuros. Assim que podemos dizer em uma palavra que a primeira e principal fonte e os primeiros e principais fundamentos de toda esta nossa História é a Escritura Sagrada; com que vem a ser um só livro e um só Autor o que nela principalmente seguiremos: o livro, a Escritura; o Autor, Deus. Sobre estes fundamentos da primeira e suma Verdade entrará o discurso como arquiteto de toda esta grande fábrica, dispondo, ordenando, ajustando, combinando, inferindo e acrescentando tudo aquilo que por conseqüência e razão natural se segue e infere dos mesmos princípios, no qual modo de fábrica se não perde a primeira verdade dos fundamentos, mas vai crescendo, dilatando-se e frutificando, não em diversos, senão no mesmo corpo, como a árvore em suas raízes.
                Deste modo crescem e se aumentam todas as ciências, não só as naturais, senão as divinas, e por isso se chamam e são ciências. Assim como a filosofia de princípios naturais evidentemente conhecidos tira conclusões certas, evidentes e científicas, assim a teologia, de princípios sobrenaturais não evidentes mas certissimamente conhecidos, tira conclusões teológicas, também científicas e ainda mais certas, posto que não evidentes. Nem este modo de discorrer sobre as profecias e revelações proféticas, para vir em conhecimento dos mistérios, segredos, sucessos e tempos futuros, que nelas não estejam imediatamente expressados, é alheio da reverência que se deve aos oráculos divinos, nem atrevimento do entendimento e discurso humano, ou cousa nova e desusada na Igreja e escola de Cristo, antes estudo muito lícito, muito louvável e muito recomendado do mesmo Mestre Divino e seus sucessores.
                Temos desta matéria um excelente texto do Apóstolo S. Pedro (primeira e infalível regra da Igreja), o qual, falando das mesmas profecias e profetas, diz assim no primeiro capítulo de sua primeira epístola: De qua salute exquisierunt atque scrutati sunt Prophetae qui de futura in vobis gratia prophetaverunt, scrutantes in quod vel quale tempus significaret in eis spiritus Christi praenuntians eas quae, Christo sunt, passiones et posteriores glorias.
                Quer dizer S. Pedro que os Profetas antigos, depois de lhes serem revelados com lume sobrenatural e eles conhecerem e profetizaram mistérios futuros (como os da paixão e glórias de Cristo) sobre os mesmos mistérios e sobre as mesmas suas profecias inquiriam e especulavam de novo com o lume natural do discurso muitas circunstancias que lhes não foram expressamente reveladas, como as do tempo estado do Mundo em que os mesmos mistérios se haviam de obrar e as suas mesmas profecias haviam de suceder.
                Desta maneira, no sentido em que o digo vinham a inferir e alcançar pelo estudo e especulação natural e própria o que Deus lhes não tinha manifestado pela revelação sobrenatural e divina. Isto é o que literal e genuinamente significam aquelas palavras: «Exquisierunt et scrutati sunt.» Exquisitio et scrutatio (diz Lorino) ...proprie indicant... curam et studium et industriam naturalem vel meditationis,vel lectionis, vel disputationis.
                De sorte que, ajuntando o lume natural do d curso ao lume sobrenatural da pirofecia, com o cuidado, estudo e indústria própria, lendo, disputando e meditando, vinham a estender e adiantar muito as mesmas profecias, conhecendo delas e por elas muitas cousas que nelas imediatamente não estava reveladas. Bem assim como o sol ou candeia (que era a nossa comparação) não só alumeia com a luz que está ao lume ou fogo que nela se sustenta, senão também, e muito mais, com a luz que dela se vai produzindo, multiplicando e difundindo por todas as partes vizinhas e ainda distantes, conforme a sua menor ou maior esfera, assim o lume natural do discurso, se vai propagando, difundindo e estendendo a muitas cousas, tempos, sucessos e circunstâncias que nelas estavam ocultas e pela conferência e conseqüência do mesmo discurso se vão entendendo e descobrindo de novo. Isso quer dizer: In quod vel quale tempus. A palavra, em que tempo significa a determinação do tempo certo em que as cousas hão-de suceder; e a palavra no qual tempo significa as qualidades e circunstâncias do mesmo tempo, isto é, o estado dos reinos, das repúblicas, das nações, e os acontecimentos particulares da paz, da guerra, do cativeiro, da liberdade e outros semelhantes que no mesmo tempo, ou mais vizinho ou mais distante, se hão-de ver e suceder no Mundo: Deprehendebant Prophetae instinctu spiritus Messiae ejusdem Messiae adventum et gratiae dona, quae allaturus erat, nec tamen salten omnes, definite sciebant quo tempore veniret et quali, quam brevi, an belli, aut pacis, captivitatis, aut libertatis; quo statu Reipublicae Hebraeorum. Eplicabant quae Messias primum passurus, quam postea gloriam consecuturus et collaturus etiam esset; at ignorabant circumstantiam tem poris, et ratiocinando, atque conjecturando disquirebant. Atèqui Lorino.
                O mesmo diz Salmeirão, ambos doutissimos expositores deste lugar, e ambos trazem em confirmacão o exemplo da Virgem Maria, nossa Senhora, da qual diz o Evangelho: Maria autem conservabat omnia verba haec conferens in corde suo. Conferia a Senhora, com ser alumiada sobre todas as criaturas, as palavras que os pastores referiam ter ouvido aos anjos, as que ouviu a Simeão, a Ana a profetiza, e ao mesmo Cristo Menino, quando o achou entre os doutores; e delas, por discurso natural, inferia e descobria outros mistérios ocultos e profundíssimos, que nas mesmas palavras não estavam expressamente declarados. Isto mesmo é o que se diz no cap. XV dos Atos dos Apóstolos faziam os mais doutos cristãos da primitiva Igreja, e o que Cristo mandou a todos que fizessem, dizendo por S. João na cap. L: Scrutamini Scripturas. É isto o que nós fazemos e devemos fazer, pois de nós e para nós falam os Profetas, como diz o mesmo texto de S. Pedro nas palavras citadas: ...qui de futura in vobis gratia prophetaverunt; e mais abaixo: Quibus revelatum est quia non sibimetipsis, vobis autem mintistrabant, onde a versão siríaca tem: Nostra nobis: vaticinabantur.
                E pois os Profetas profetizavam para nós e as cousas nossas, razão é que nós como nossas as entendamos. Mas porque as profecias por sua natural escuridade não são fáceis de entender, e assim como se há mister necessariamente a sua luz para conhecer os futuros, é também necessária outra Segunda e nova luz para as entender a elas. Esta segunda luz serão aqueles a quem Cristo chamou luz do Mundo: Vox estis lux Mundi, e, por outras palavras, candeia acesa: Neque enim accendunt lucernam et ponunt eum sub modio, que são em primeiro lugar os Apóstolos sagrados, e em segundo os Padres Doutores da Igreja e expositores das Escrituras divinas, os quais seguiremos e alegaremos em tudo o que dissermos com estas duas luzes ou candeias: uma dos Doutores sagrados, com que alumiaremos as profecias, e outra as mesmas profecias, com que alumiaremos e descobriremos os futuros; poderemos entrar neste labirinto com todo o aparato e prevenção de instrumentos com que se entrava seguramente no de Creta.
                Era aquele labirinto por uma parte muito escuro e por outra mui intricado; e para vencer e facilitar estas duas dificuldades se inventou entrar nele, não só com tocha, mas também com fio: as tochas para ver o escuro dos caminhos e o fio para entrar e sair pelo intricado deles. Por este modo entraremos também nós pelo escuro e intricado labirinto dos futuros. As profecias e os Doutores nos servirão de tochas; o entendimento e o discurso de fio. Isto é quanto às profecias e Profetas canônicos.
                E porque o Espírito Santo, depois de fechado o número dos livros e os escritores sagrados (o qual se cerrou no Apocalipse de S. João), não deixou de ilustrar e ornar sua esposa a Igreja com o lume e dom da profecia; e depois daqueles seus primitivos anos houve sempre novos profetas, alumiados com o mesmo espírito, que por palavra e escrito predispuseram muitas cousas futuras, assim dos seus, como dos seguintes tempos, também estes darão matéria à nossa História. Não meteremos porém nesta conta senão aquelas profecias somente que, ou pela santidade de seus autores, aprovados e canonizados pela Igreja, ou por outros fundamentos sólidos da razão, experiência e opinião do Mundo, tenham, na forma possível, merecido no juízo dos prudentes o nome e veneração de profecias ou predições verdadeiras.
                A este fim empregarei grande parte deste presente livro na qualificação do espírito profético que tiveram todos os autores do futuro que na História se hão-de alegar, por ser este não só o principal, mas o único fundamento de toda a sua verdade, e sem o qual vã e não merecidamente lhe devemos prometer o crédito que de todos os que a lerem esperamos.
                Por esta causa se não acharão porventura neste nosso discurso menos algumas que em nome de profecias andam entre o vulgo, sem certeza de autor e muito menos do espírito com que foram escritas; e não só provaremos quanto for necessário o espírito da profecia destes autores, mas diremos o tempo em que escreveram as obras proféticas que deles existam; a inteireza ou corrupção com que se tem conservado, com uma breve relação também das mesmas pessoas (quando não forem geralmente mui conhecidas) pelo muito que importam todas estas notícias não só para a fé e crédito, senão ainda, e muito mais, para a inteligência e combinação das mesmas profecias, que grandemente depende do tempo e de outras semelhantes circunstâncias.
                Procuramos quanto nos foi possível que fosse mui exata esta diligência, e não só falaremos nos autores e Profetas modernos e não canônicos, senão igualmente nos antigos e sagrados, pelas mesmas causas. Também excitaremos a este fim e resolveremos várias questões muito importantes ao conhecimento das profecias, pela ordem que a necessidade ou ocasião o for pedindo, e esta será a própria matéria de todo este livro, a que por isso chamamos Anteprimeiro, e é como alicerce de todo o edifício. E posto que todo este tão largo Prolegómeno em rigor não seja História do Futuro, senão preparação ou aparato para ela, à imitação de Barónio e de outros autores, que com menos necessidade o fizeram em suas histórias, esperamos que a matéria, por sua grande variedade e diligente erudição de cousas curiosas, e pela maior parte até agora não tratadas, não será injucunda aos que a lerem, e que possa sem enfado entreter a expectação e desejo da mesma História, enquanto não sai a luz, que será, como em Deus esperamos, muito brevemente.
                De tudo o que fica dito ou prometido se colhe facilmente quanta será a verdade desta História; porque as cousas que expressa e imediatamente se predizem nas profecias canônicas, de cuja inteligência por sua clareza se não pode duvidar, ou por estarem explicadas por escritores também canônicos por concílios, por tradições, ou pelo consenso comum dos Padres, é certo que têm toda aquela certeza infalível e de fé, que as outras verdades sagradas que se contêm nas Escrituras. As outras cousas, que destas verdades assim profetizadas e conhecidas, por natural conseqüência, se deduzirem, ainda que intervenha no discurso algum meio ou proposição científica, são verdades segundas que participam a mesma certeza também infalível, qual é a das conclusões teológicas que, não sendo totalmente fé, nem somente ciência, por esta parte têm evidência, e por ambas tal certeza, que não é sujeita a erro ou falsidade, nem perigo de poderem não ser.
                As profecias não canônicas podem ser tão evidentemente provadas por seus efeitos, como veremos que tenham toda a certeza moral, que é a que depois a fé e da ciência têm no juízo humano o maior assento; e a mesma participarão, na forma que pouco antes dissemos, todas as outras conclusões que por natural e evidente conseqüência delas se deduzirem, pois são filhas e herdeiras da mesma Verdade de que tiveram seu nascimento
                Restam somente aquelas profecias que, ou por não averiguadas com tão evidente certeza (posto que sempre estabelecidas com bons e racionais fundamentos) ou por sua interpretação não ser tão manifesta ou recebida que não desfaça moralmente toda a razão de dúvida, ficam dentro dos lates da probabilidade opinativa; le nestas, assim o que imediatamente predizem, como as conseqüências que delas por formalização se deduzirem, terão somente certeza provável naquele sentido em que dizemos provavelmente certas aquelas cousas de que há fundamentos prováveis para o serem.
                Estes quatro gêneros de verdade são os de que repartidamente se comporá toda a História do Futuro, merecendo, segundo todas suas partes, o nome de história verdadeira, posto que não em todas com igual grau de certeza. Nas do primeiro gênero, verdadeira com certeza de fé; nas do segundo, verdadeira com certeza teológica; nas do terceiro, verdadeira com certeza moral; nas do quarto, verdadeira com certeza provável, pelo modo já explicado; sendo a excelência singular desta História que toda ela, ou provável, ou moral, ou teológica, ou canonicamente, será fundada na primeira e suma Verdade, que é; o mesmo Deus.
                Daqui inferimos sem injúria nem agravo de quantas histórias até hoje estão escritas no Mundo, que esta História do Futuro é mais certa e mais verdadeira que todas elas (excetas somente as Histórias Sagradas), e ainda esta exceção se não deve entender em todo, senão em parte; a História do Futuro igualará na verdade e na certeza, que, por melhor dizer, se não distinguirá delas, por ir toda (como vai) não só fundada nos mesmos textos e sentenças da Escritura divina, mas formada e como tecida deles.
                E digo que sem injúria nem agravo de todas as outras histórias humanas, porque, como também terão advertido os mais lidos e versados, assim nas antigas como nas modernas, todas elas estão cheias, não só de cousas incertas e improváveis, mas alheias e encontradas com a verdade, e conhecidamente supostas e falsas, ou por culpas ou sem culpa dos mesmos historiadores.
                Que historiador há ou pode haver, por mais diligente investigador que seja dos sucessos presentes ou passados, que não escreva por informações? E que informações há de homens, que não vão envoltas em muitos erros, ou da ignorância, ou da malícia? Que historiador há de tão limpo coração e tão inteiro amador da verdade, que o não incline só o respeito, a lisonja, a vingança, o ódio, o amor, ou da sua, ou da alheia nação, ou do seu ou de estranho príncipe? Todas as penas nasceram em carne e sangue, e todos na tinta de escrever misturam as cores do seu afeto.
                Prova Tácito a verdade da sua história, com ter longe as causas do ódio e amor; mas de aí se convence contra ele, que também tinha longe as informações da verdade. O certo é que só tinha perto a ambição de seu próprio juízo, com que formava os processos para as sentenças, e não as sentenças sobre os processos. Por isso Tertuliano lhe chamou com razão mendaciorum loquacíssimum.
                Não aponto erros em particular das histórias mais vizinhas a nossos tempos por reverência deles, e porque fora matéria infinita. Das dos Gregos e Romanos disse S. Jerônimo, por ocasião do milagre da serpente: Cedaxt huic veritati, tam graeco quam romano stylo mendacis ficta miracula. E Cícero, que é mais, no livro primeiro das Leis: Apud Herodotum patrem Historiae et apud Theopompum sunt innumerabiles fabulae. Estes foram os pais da História humana, e desta é filha legítima a sua verdade, sobre a qual batalham tantas vezes os mesmos historiadores, mas nunca com conhecida vitória.
                Quem quiser ver claramente a falsidade das histórias humanas, leia a mesma história por diferentes escritores, e verá como se encontram, se contradizem e se implicam no mesmo sucesso, sendo infalível que um só pode dizer a verdade e certo que nenhum a diz. Mas isto mesmo se conhece, ainda com maior evidência, daquelas histórias de que temos verdadeira relação nas Escrituras Sagradas, como são as de Noé, do Dilúvio, da divisão das primeiras gentes; as dos Assírios, Persas, Medos, Romanos, Egípcios, Gregos, e principalmente a dos Hebreus, com os quais cotejado, como em pedra de toque, o que escteveram os Berosos, os Heródotos, os Diodoros, os Trogos, os Cúrcios, os Lívios, e todos os outros historiadores daquelas nações e tempos, apenas se acha cousa que não seja contradição da verdade; e desta mesma experiência e razões dela se qualifica claramente ser a nossa História do Futuro mais verdadeira que todas as do passado porque elas em grande parte foram tiradas da fonte da mentira, que é a ignorancia e malícia humana, e a nossa tirada do lume da profecia e acrescentada pelo lume da razão, que são as duas fontes da verdade humana e divina.

Volume I, Capítulo X: Resposta a uma objeção: mostra-se que o melhor comentador das profecias é o tempo.                
Assentamos com o Apóstolo S. Pedro, no capítulo antecedente, que com a candeia da profecia se podia entrar pela escuridade dos futuros e descobrir e conhecer o que neles está encoberto e enterrado. Mas sobre esta resolução se pode dizer e argüir contra nós, que esta mesma candeia e luz das profecias há muitos centos de anos que está acesa, e não sub modio, senão supra candelabrum, e que ninguém contudo se atreveu até agora a entrar com ela por estes abismos e escundades do futuro, como nós prometemos fazer, empresa e ousadia, que mais merece nome de temeridade :que de confiança; aos quais (que sempre serão mais de um) responderemos facilmente com o seu mesmo argumento. Os futuros, quanto mais vão correndo, tanto mais se vão chegando para nós, e nós para eles; e como há tantos centos de anos que estão escritas estas profecias, também há outros centos de anos que os futuros se vão chegando para elas, e elas para os futuros; e por isso nós nos atrevemos a fazer hoje o que os Antigos não fizeram, ainda que tivessem acesa a mesma candeia; porque a candeia de mais perto alumeia melhor. Para ver com uma candeia, não basta só que a candeia esteja acesa, é necessário que a distância seja proporcionada: Ut luceat omnibus qui in domo sunt, disse Cristo. Com una candeia na mão pode-se ver o que há em uma casa, mas não se pode ver o que há em uma cidade. 0 grande precursor de Cristo ...erat lucerna lucens et ardens, e ainda que todos os outros Profetas anunciaram a Cristo, o Baptista o mostrou melhor, porque era candeia de mais perto; os outros diziam: — Há-de vir, e ele disse: — Este é.
                As visões e revelações de Deus vêem-se melhor ao perto que ao longe: de longe viu Moisés a visão da sarça; e que disse? — Vadam et videbo visionem hanc magram: «Irei e verei esta grande visão». Estava vendo a visão, e disse que a iria ver, porque vai muita diferença de ver as visões de Deus ao longe, ou vê-las ao perto. Ao longe viu só Moisés a sarça e o fogo; ao perto, entendeu o que aquelas figuras significavam. A mesma luz e a mesma candeia ao longe vê-se, e ao perto alumeia.
                Esta é a diferença que não nós, senão os nossos tempos, fazem aos antigos: nos antigos reconhecemos a vantagem da sabedoria, nos nossos a fortuna da vizinhança. Se estamos mais perto dos futuros com igual luz (ainda que não seja com igual vista), porque os não veremos melhor? Assim o confessou Santo Agostiho com ter os olhos de águia o qual, achando-se às escuras em muitos lugares das profecias, reservou a verdadeira inteligência delas para os vindouros.
                Um pigmeu sobre um agigante pode ver mais que ele. Pigmeus nos conhecemos em comparação daqueles gigantes que olharam antes de nós para as mesmas Escrituras. Eles sem nós viram muito mais do que nós podemos ver sem eles; mas nós, como vive mos depois deles, e sobre eles por benefício do tempo, vemos hoje o que ,eles viram, e um pouco mais. 0 último degrau da escada não é maior que os outros, antes pode ser menor; mas basta ser o último, e estar em cima dos mais, para que dele se possa alcançar o que de outros se não alcança.
                Entre a multidão dos que acompanhavam e rodeavam a Cristo, o mais pequeno de todos era Zaqueu que por si mesmo, e com os pés no chão, não podia alcançar a ver o que os outros viam; mas subido em cima da árvore, viu melhor e mais claramente que todos.
                Mui bem medimos a nossa estatura, e conhecemos quão pequena, quão desigual) quão inferior é, comparada com aqueles cedros do Líbano e com aquelas torres altíssimas, que tanto ornato, tanta grandeza e majestade acrescentaram ao edifício da Igreja; mas subidos por merecimento seu e fortuna do tempo a tanta altura, não é muito que alcancemos e descubramos um pouco mais do que eles descobriram e alcançaram.
                Cousa maravilhosa é, e que apenas se pode entender, como os cavadores da vinha que vieram na última hora puderam ser avantajados aos demais. Mas estes são os privilégios da última hora: Hi novissimi una hora fecerunt. Fizeram na última hora o que os outros não fizeram todo o dia; porque eles com outros acabaram a obra que os outros sem eles não puderam nem podiam acabar: Sic erunt novissimi primi. Este é o modo com que os últimos podem vir a ser os primeiros. Non ergo undecima hora in vineam Domini ad operandum conductis nobis invidendum est — disse Lipomano na prefação de seus Comentários, aplicando a parábola de Cristo ao estudo da Sagrada Escritura.
                Os que estudamos e trabalhamos na inteligência da Sagrada Escritura, mais ou menos todos cavamos e, pode suceder que os que vêm na última hora por felicidade da mesma hora acabem, descubram com poucas enxadas o que muitos em muito tempo e com muito trabalho, cavando muito mais, não descobriram.
                Aquele tesouro escondido de que falou Cristo no cap. XIII de S. Mateus, diz Ruperto Tertuliano, S. João Crisóstomo, que é a Escritura Sagrada, e S. Jerônimo com mais estrita propriedade o entende particularmente das escrituras proféticas Quantas vezes os que trabalham no descobrimento de algum tesouro, cavam por muitos dias, meses e anos sem acharem o que buscam, e depois de estes cansados e desesperados, sucede vir um mais venturoso que, descendo sem trabalho ao profundo da mesma cova, e cavando alguma cousa de novo descobre a poucas enxadadas e tesouro, e logra é fruto dos trabalhos e suores dos primeiros?
                Assim aconteceu no tesouro das profecias: cavaram uns e cavaram outros, e cansaram todos e no cabo descobre o tesouro quais sem trabalho aquele ultimo para quem estava guardada tamanha ventura, a qual sempre é do último
                Eis aqui como pode acontecer que descubram o tesouro os que cavam menos: Saepe abseptus quisquam, et vilis invenit, quod magnus et sapiens vir praeterit, disse verdadeira e judiciosamente S. Crisóstomo. 0 último dos Apóstolos foi S. Paulo, e confessando-se por mínimo de todos, confessa ter recebido a graça de descobrir aos mesmos anjos do Céu os tesouros que lhes estavam escondidos: Mihi omnium sanctorum (diz ele na Epístola aos Efessos) minimo data est gratia hoec in gentibus evangelizare investigabiles divitias Christi, et illuminare omnes quae sit dispensatio sacramenti absconditi a saeculis in Deo, qui omnia creavit, ut innotescat principatibus et potestatibus in caelestibus per Ecclestam, multiformis sapientia Dei, secundum praefinitionem saeculorum. Nas quais palavras se devem ponderar muito quatro cousas: Que é o que se descobriu; quem o descobriu; a quem se descobriu; e quando ; se descobriu.
                O que se descobriu é um segredo escondido a todos os séculos passados: Sactamenti absconditi a soculis in Deo; porque costuma Deus ter algumas cousas encobertas e escondidas por muitos séculos, conforme a ordem e disposição de sua Providência. Quem o descobriu foi o último de todos os apóstolos 9 discípulos de Cristo, que já o não alcançou, nem viu, nem ouviu neste Mundo como os demais, e se confessa por mínimo de todos: Mihi omnium sanstorum minimo; porque bem pode o último e o mínimo alcançar e descobrir os segredos que os primeiros e maiores não alcançaram. A quem se descobriu foi não menos que aos espíritos angélicos das mais superiores hierarquias do Céu: Ut innotescat principatibus et caelestiu; porque não bastam as forças da sabedoria e entendimento criado, ainda que seja de um anjo e de muitos anjos, para conhecer e penetrar os segredos altíssimos de Deus, enquanto ele quer que estejam encobertos e escondidos. Finalmente, quando se descobriu, foi no século que Deus tinha predefinido e determinado: Secundum praefinitionem saeculorum; porque, quando chega o tempo determinado e predefinido por Deus para que seus segredos se conheçam e descubram no Mundo, só então, e de nenhum modo antes, se podem manifestar e entender. Assim que bem pode um homem menor que todos descobrir e alcançar o que os grandes e eminentíssimos não descobriram, porque esta ventura não é privilégio dos entendimentos, senão prerrogativa dos tempos.
                Desde que Túbal começou a povoar Espanha, que foi no ano da criação do Mundo I80I, até o de Cristo, I428, em que se passaram mais de 3600 anos, era o termo da navegação do mar Oceano junto somente à costa de África, o cabo chamado de Não, sendo os mares que depois dele se seguiam, tão temorosos aos navegantes, que era provérbio entre eles (como escreve o nosso João de Barros): quem passar o cabo de Não, o tornará ou não. Aparecia ao longe deste o cabo chamado Bojador, pelo muito que se metia dentro no mar, cuja passagem, tanto por fama e horror comum, como pelo desengano de muitas experiências, se reputava entre todos por empresa tão arriscada e impossível à indústria e poder humano, como se pode ver no IV capítulo da primeira Década. Mas quem ler o capítulo seguinte, verá também como um homem português não de muito nome, chamado Gil Eanes, foi o primeiro que, dispondo-se ousadamente ao rompimento de uma tamanha aventura, venceu felizmente o cabo em uma barca, quebrou aquele antiquíssimo encantamento e mostrou com estranho desengano à Espanha, ao Mundo e ao mesmo Oceano que também o não navegado era navegável; o qual feito ponderando o nosso grande historiador com seu costumado juízo, diz breve e sentenciosamente: «E a este seu propósito se ajuntou a boa fortuna, ou, por melhor dizer, a hora em que Deus tinha limitado o curso de tanto receio, como todos tinham, de passar aquele cabo Bojador..>>
                E verdadeiramente é assim: enquanto não chega a hora determinada por Deus, nem os Aníbales de Cartago, nem os Cipiões e Júlios de Roma, nem os Bacos, Lusos, Gedeões e Hércules de Espanha se atrevem a imaginar, que pode o Bojador ser vencido, e param suas empresas e ainda seus pensamentos no cabo de Não. Mas quando chega a hora precisa do limite que Deus tem posto às cousas humanas, basta Gil Eanes em uma barca para vencer todas essas dificuldades, para atalhar todos esses receios, para pisar todos esses impossíveis e para navegar segura e venturosamente os mares nunca de antes navegados. Ali donde chega o presente e começa o futuro, era até agora o cabo de Não; não havia historiador que de ali adiantasse um momento a conta de seus anos e dias. Não havia pensamento que ainda com imaginação (que a tudo se atreve) desse um passo seguro mais adiante naquele tão desusado caminho; o que confusamente se representava adiante ao longo deste cabo, era a carranca medonha, o temerosíssimo Bojador do futuro, coberto de névoas, de sombras, de nuvens espessas, de escuridade, de cegueira, de medos, de horrores, de impossíveis. Mas se agora virmos desfeitas estas névoas, desvanecido este escuro, facilitada esta passagem, dobrado este cabo, sondado este fundo e navegável e navegada a imensidade de mares que depois dele se seguem, e isto por um piloto de tão pouco nome e uma tão pequena barquinha como a do seu limitado talento, demos os louvores a Deus e às disposições de sua Providência, e entendamos que se passou o cabo, porque chegou a hora.
                É admirável a este propósito um lugar do profeta Daniel, com que demonstrativa e indubitavelmente se persuade e convence esta verdade nos próprios termos da inteligência das profecias em que falamos.
                No cap. XII de Daniel, depois de um anjo lhe ter declarado grandes mistérios dos tempos futuros, mandou-lhe que fechasse e selasse o livro em que estavam escritas e lhe disse estas notáveis palavras: Tu autem, Daniel, claude sermones et sigra librum, usque ad tempus statutum, plurimi pertransibunt et multiplex erit scientia: >>Tu, Daniel, fecharás e selarás o livro (em que escreveres estas cousas que tenho dito), para que estejam fechadas e seladas até o tempo determinado por Deus; entretanto passarão muitos por elas, e haverá sobre a inteligência de seus mistérios grande variedade de ciências e opiniões.:>>
                Este é o sentido literal e verdadeiro destas palavras do anjo, como se pode ver em todos os comentadores de Daniel, posto que elas são tão claras e expressas que não necessitam de comentador. De maneira que, nas escrituras dos profetas, há cousas de tal modo fechadas e seladas, que ninguém as pode entender nem declarar, até que chegue o tempo determinado pela Providência divina, o qual é o que só tem poder para romper os sigilos e abrir e fazer patentes as escrituras fechadas e declarar os mistérios futuros, que nelas estavam ocultos e encerrados. E enquanto este tempo não chega, por mais doutos, sábios e santos que sejam os expositores daquelas profecias, dirão cousas muito discretas, muito doutas, muito santas e muito várias, mas o certo e verdadeiro sentido delas sempre ficará oculto e escondido, porque passarão todos por ele sem entenderem nem penetrarem Isto quer dizer: Plurimi pertransibunt, et multiplex erit scientia.
                Onde se deve advertir e notar que muitos homem ainda que sejam de grandes letras, cuidam que passam os livros, e passam por eles: Plurimi perransibunt. Por quantos lugares passaram os Origgenes, os Clementes, os Tertulianos, que depois en tenderam os Agostinhos, os Basílios, os Jerônimos? Por quantos passaram os Hugos, os Ricardos, os Rupertos, os Teodoretos, que depois entenderam os Montanos, os Sanches, os Cornélios, os Riberas? E por quantos passaram também estes, que depois entenderam melhor os que lhes foram sucedendo, não porque os últimos sejam mais doutos ou de mais aguda vista, mas porque lêem e estudam à luz da candeia, ajudados e ensinados do tempo, que é mais certo intérprete das profecias, e para o qual reservou Deus a abertura dos seus sigilos? Signa librum usque ad tempus constitutum.
                No Apocalipse (cujas profecias são próprias deste tempo), em que a Igreja de Cristo se vai continuando mais claramente que em nenhum outro lugar das Escrituras, temos relatado este segredo da Providência divina, com que dispôs e tem decretado que as profecias se vão descobrindo e entendendo ordenada e sucessivamente aos mesmos passos, ou mais vagarosos ou mais apressados, com que vão seguindo e variando os tempos. Entre as cousas muito misteriosas que viu S. João, ou a mais misteriosa de todas, foi um livro fechado e selado com sete selos o qual era o seu mesmo Apocalipse; foram-se rompendo estes selos e abrindo-se o livro, mas não todo Juntamente, senão por passos e espaços: um selo primeiro e outros depois, e com grande aparato de cerimônias e efeitos admiráveis no céu e na terra; o mistério destas pausas e intervalos era porque se haviam ir descobrindo as profecias que estavam escritas no livro, e assim se haviam ir entendendo, não juntamente, senão em diferentes tempos, e não apartadas de seus efeitos, senão igualmente com eles. De maneira que nas profecias estão encobertos os tempos e os efeitos, e nos tempos e nos efeitos estarão descobertas as profecias; e por isso naquele misterioso livro, assim como eram diversas as profecias e diversos os efeitos e sucessos da Igreja e do Mundo, que nelas estavam profetizadas, assim também eram diversos os selos com que estavam fechados e diversos os tempos em que se haviam de abrir e manifestar, sendo o mesmo tempo e os mesmos sucessos os que as abrissem e manifestassem, ou depois de chegarem, ou quando já forem chegando. Bem assim como antes de se acabar de todo a noite, pelos resplendores da aurora se conhece a vizinhança do Sol, antes que ele se veja descoberto nos horizontes.
                E se quisermos especular a razão desta providencia, acharemos que não é outra senão a majestade da sabedoria e onipotência divina, sempre admirável em todas suas obras.
                É este mundo um teatro; os homens as figuras que nele representam, e a história verdadeira de seus sucessos uma comédia de Deus, traçada e disposta maravilhosamente pelas idéias de sua Providência. E assim como o primor e subtileza da arte cômica consiste principalmente daquela suspensão de entendimento e doce enleio dos sentidos, com que o enredo os vai levando após si, pendentes sempre de um sucesso para outro sucesso, encobrindo-se de indústria o fim da história, sem que se possa entender onde irá parar, senão quando já vai chegando e se descobre subitamente entre a expectação e o aplauso, assim Meus, soberano Autor e Governador do Mundo e perfeitíssimo exemplar de toda a natureza e arte para manifestação de sua glória e admiração de sua sabedoria, de tal maneira nos encobre as cousas futuras, ainda quando as manda escrever primeiro pelos profetas, que nos não deixa compreender nem alcançar os segredos de seus intentos, senão quando Já tem chegado ou vêm chegando os fins deles, para nos ter sempre suspensos na expectação e pendentes de sua providência. E é esta regra (com pouca exceção de casos) tão comum em Deus e seus decretos, que, ainda quando as profecias são muito claras, costuma atravessar entre elas e os nossos olhos umas certas nuvens, com que sua mesma clareza se nos faz escura. Eu o não crera, se o não vira esento para maior admiração em um dos maiores profetas, que assim o confessa, não de outrem, senão de si: In anno primo Darii, filii Asssueri, de semine Medorum, qui imperavit super regnum Chaldeorum, anno uno regni ejus, ego, Daniel, intellexi in libris numerum annorum, de quo factus est sermo Domini ad Jeremiam prophetam, ut complerentur desolationis Hierusalem septuaginta anni: <<No ano primeiro de Dario, filho de Assuero, descendente dos Medos, que teve o império dos Caldeus: Eu Daniel, diz ele, entendi nos livros o número de setenta anos, que Deus tinha revelado ao profeta Jeremias havia de durar a assolação de Jerusalém>> e cativeiro dos Judeus em Babilônia.
                Agora entra o caso e a admiração: Esta profecia de Jeremias, que Daniel afirma que entendeu no primeiro ano do império de Dario, é do cap. XXV daquele profeta, e diz assim: Et erit uníversa terra haec in solitudinem et in stuporem, et servient omnes gentes istae regi Babylonis septuaginta annis:<<Toda esta terra (diz Jeremias, estando em Jerusalém) será assolada, com pasmo e assombro do mundo, e todas as gentes que a habitam, servirão ao rei de Babilônia por espaço de setenta anos.>>
                Estes setenta anos, como consta da exata cronologia que se pode ver largamente provada em Perério e rios comentadores da profecia de Daniel, se acabaram de cumprir no primeiro ano do império de Dario. Pois se o termo de setenta anos estava profetizado com palavras tão claras e expressas como são aquelas de Jeremias: Et servsent omnes gentes istae regi Babylonis septuaginta annis, como diz Daniel, que não entendeu o número destes setenta anos, senão no primeiro ano de Dario, que foi o último dos mesmos setenta? Podia haver conta mais clara? Podia haver palavras mais expressas? Não Mas como é regra ordinária da Providência divina, que as profecias se não entendam senão quando já tem chegado ou vai chegando o fim delas, por isso, sendo a profecia tão clara e o número dos setenta anos tão expresso, não quis Deus que o mesmo Daniel, sendo Daniel, o entendesse senão no último ano.
                O tempo foi o que interpretou a ,profecia, e não Daniel, sendo Daniel um tão grande profeta. E esta parece a energia daquela sua palavra: Ego, Daniel intellexi: Eu, Daniel, sendo Daniel, não entendi a profecia tão clara de Jeremias, senão no último ano dos setenta, em que ela se cumpria; mas assim havia de ser, porque assim o profetizou e o repete o mesmo Jeremias em dois lugares, onde, falando de suas profecias, diz que se não entenderão senão nos últimos tempos do cumprimento delas: No cap. XXIII: Non revertetur furor Domini usque dum faciat et usque dum compleat cogitationem cordis sui: in novissimis diebus intelligetis consilium ejus. E no cap. XX, quase pelas mesmas palavras: Non avertet iram indignationis Dominus, donec faciat et cormpleat cogitationem cordis sui: in novissimo dierum intelligetis ea.
                E que fez Deus, ou pode fazer, para que umas palavras tão expressas e uma profecia tão clara possa parecer escura? Atravessa uma nuvem (como dizíamos) entre a profecia e os olhos, e com este véu, ou sobre os olhos ou sobre a profecia, o claro por claríssimo que seja fica escuro.
                Quando queremos encarecer uma cousa de muito clara, dizemos que é clara como a água, porque não há cousa mais clara; e contudo essa mesma água (como discretamente advertiu David), com uma nuvem diante, é escura: ...tenebrosa aqfxa in nubibgs aeris Em havendo nuvem em meio, até a água e escura, e tais são as profecias, por claras e claríssimas que sejam. Por isso pedia o mesmo David a Deus que lhe tirasse o véu dos olhos, para que pudesse conhecer as maravilhas dos seus mistérios: Revela oculos meos, et considerabo mitrabilia de lege tua. Oh quantas profecias muito claras se não entendem, ou se não querem entender, porque as quero remos ver por entre nuvens, e com véu sobre os olhos! Peço e protesto a todos os que lerem esta História, ou que tirem primeiro-o véu de sobre os olhos, ou que a não leiam.
                Como se hão-de entender as revelações com os entendimentos e olhos vendados? Não basta só que Deus tenha revelado os futuros, é necessário que revele também os olhos: Revela oculos meos. Se os olhos estão cobertos e escurecidos com o véu do afeto ou com a nuvem da paixão; se os cega o amor ou ódio, a inveja ou a lisonja, a vingança ou o interesse, a esperança ou o temor, como se pode entender a verdade da profecia, por muito clara que nela esteja, quando o primeiro intento e nega-la ou quando menos escurecê-la? As nuvens que Deus põe sobre a profecia, o tempo as gasta e as desfaz; mas os véus que os homens lançam sobre os próprios olhos, só eles os podem tirar, porque eles são os que querem ser cegos.
                Que profecias mais claras que as da vinda de Cristo ao Mundo? E muito mais claras ainda depois de manifestas e provadas com os mesmos efeitos. E contudo estas são as que mais obstinadamente nega a cegueira judaica, porque têm os olhos cobertos com aquele antigo véu de Moisés, como lhes lançou em rosto o grande Paulo Judeu e semente de Abraão, como eles, do tribo de Benjamim: Usque in hodiernum diem, cum legitur Moyses, velamen positum est super cor eortum; cum autem conversu fuerit ad Dominum, auferetur velamen.. Tirem o véu de sobre os olhos, e verão a luz das profecias: ainda que a profecia seja candeia acesa, como se há-de ver com os olhos cobertos? Tire-se o impedimento à luz, e logo se verão a candeia e mais o que ela alumeia. A mulher que buscava a dracma perdida não só acendeu a candeia, mas varreu a casa:...accendit lucernam, et (...) everrit domum. A candeia está acesa e muito clara, mas a casa não está varrida; varra-se e alimpe-se a casa, tirem-se os estorvos e impedimentos à luz, e logo verão os olhos o que há nela, e se achará o que se busca; mas nem se busca, nem se quer achar.
                De maneira que, resumindo toda a resposta da objeção, digo que descobrimos hoje mais, porque olhamos de mais alto; e que distinguimos melhor porque vemos mais perto; e que trabalhamos menos porque achamos os impedimentos tirados. Olhamos de mais alto, porque vemos sobre os passados; vemos de mais perto, porque estamos mais chegados aos futuros; e achamos os impedimentos tirados, porque todos os que cavaram neste tesouro e varreram esta casa, foram tirando impedimentos à vista, e tudo isto por beneficio do tempo, ou, para o dizer melhor, por providência do Senhor dos tempos.

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