Assim como Deus dobrou as visões, assim dobrou também
as testemunhas , e a mesma sucessão de impérios que revelou a Daniel em umas
figuras a mostra agora ao Profeta Zacarias em outras. A primeira profecia de
Daniel foi a mesma de Nabucodonosor, a segunda em tempo de Baltasar, que
sucedeu a Nabuco; es1a terceira de &carias em tempo de Hidaspes, que
sucedeu a Baltasar. De modo que, assim como iam sucedendo os reis, iam
sucedendo as profecias, e Deus multiplicando as revelações, mas sempre
mostrando pela mesma forma primeiro os quatro impérios e depois o quinto.
Diz pois o Profeta Zacarias, no capítulo VI da sua
profecia, levantando os olhos (ou levantado-lhos Deus da atenção das cousas
presentes para a visão das futuras), viu que do meio de dois montes de bronze
saíam quatro carroças puxadas por quatro cavalos, cada tiro ou parelha de
diferentes cores. Pela primeira tiravam cavalos melados, pela segunda murzelos,
pela terceira pombos, pela quarta remendados; assim parece que se deve
construir o texto na forma da nossa cavalaria, mas na frase do mesmo texto
chama aos da primeira carroça ruivos, aos da segunda negros, aos da terceira
brancos, aos da quarta vários, e estes entre os outros diz que eram os mais
fortes.
Vendo estas carroças Zacarias e não entendendo o que
significavam, diz que o perguntou a um anjo que falava dentro nele. Mas, ou
porque este anjo falasse mais culto que o de Daniel, ou porque Zacarias se
entendia por dentro com e1e acham os Doutores que explicou um enigma com outro,
e mais trabalho tem dado aos expositores deste lugar a declaração do Anjo que a
visão do Profeta. Respondeu pois o Anjo que aquelas quatro carroças (dos montes
não disse nada) eram quatro ventos doces que assistiam ao dominador da Terra
para executarem suas ordens; e que os cavalos negros tinham saído contra as
terras do Norte, e após eles os brancos; os vários saíram contra as do Sul, e
destes os mais fortes trataram de discorrer por toda a Terra, e que com licença
do Dominador a tinham passeado toda.
Até aqui a interpretação do Anjo, na qual e na visão
do Profeta seguiremos a comum sentença dos Doutores, que é desta maneira: estas
carroças significam os mesmos quatro impérios que Deus mostrou a Daniel, e
foram estes impérios representados ao Profeta em figura de carroças, e
declarados pelo Anjo em metáfora de ventos, para mostrar a violência e
velocidade com que seus fundadores conquistariam e sujeitariam por armas os
reinos terras e gentes de que se haviam de formar os ditos impérios; porque, ao
uso daqueles tempos, a principal força dos exércitos consistia nas carroças
armada que eram as que faziam maior estrago na guerra como se vê nos casos tão
celebrados.
Estas carroças diz o Anjo que estavam prontas como
ventos para execução dos mandados do Dominador da terra, porque Deus, como
supremo Senhor dos Exércitos, se servia sempre das armas de todas as nações,
principalmente destas quatro, como tão poderosas para a execução de seus
divinos decretos, os quais por altos e imutáveis são comparáveis aos dois
montes de bronze donde saíam as carroças. A primeira carroça representava o
Império dos Assírios, e tiravam por ela cavalos ruivos, que é cor de fogo, para
significar os danos, assolações e incêndios com que os Assírios conquistaram
destruíram e abrasaram o povo hebreu, principalmente no cativeiro de setenta
anos a que eles com razão chamavam fornalhas da Babilônia. A segunda carroça
representava o Império dos Persas, e tiravam por ela cavalos negros, cor de
tristeza e luto, porque também os Persas afligiram e foram lutuosos aos
Hebreus, principalmente naquela grande aflição, quando El-Rei Assuero, marido
de Ester, persuadido pelos enganos de Amão, tinha condenado a morrer em um dia
com crueldade inaudita toda a nação hebréia. A terceira carroça representava o
Império dos Gregos e tiravam por ela cavalos brancos, cor pacífica e alegre,
porque, exceto Antíoco (cuja tirania também serviu de matéria gloriosa aos
triunfos dos Macabeus) os outros príncipes gregos sempre foram benéficos aos
Hebreus, e mais que todos Alexandre Magno, fundador daquele império, cuja
majestade, como escreve José, não duvidou de adorar no templo ao pontífice
Jada. Finalmente, a quarta carroça representava o Império Romano, e tiravam por
ela cavalos vários, porque os Romanos, assim no ódio como na benevolência,
foram vários para com os Hebreus, uns amigos e propícios, como Júlio César,
Augusto, Tibério, Cláudio; outros inimigos, perseguidores e cruéis, como
Pompeu, Calígula, Nero, Vespasiano, Adriano, Tito.
Restam por explicar os diferentes caminhos que disse
o Anjo fizeram estas carroças, e primeiro que tudo se deve muito notar que da
primeira carroça não disse cousa alguma, que é admirável confirmação de serem
significados nas quatro carroças os quatro impérios. Porque, como a primeira
carroça significava o Império dos Assírios, que já havia muito tempo florescia,
não tinha necessidade de intérprete nem declaração. E assim declarou somente o
Anjo os três impérios seguintes, cuja fundação e sucessos estavam ainda por
vir. A segunda carroça, dos cavalos negros, que são os Persas, diz o Anjo que
caminhou para as terras do Norte; e assim foi, porque os Persas devastaram e
ocuparam a Babilônia que fica para a parte do Norte da Judéia, e ali acabou o
Império dos Assírios. A terceira carroça, a dos cavalos brancos, diz que foi
atrás da primeira, e assim sucedeu, porque os Gregos venceram e destruíram a
Dario, último imperador dos Persas, junto à mesma Babilônia onde Alexandre,
como escreve Crítio e Plutarco, tomou o nome de Rei da Ásia. E a quarta
carroça, dos cavalos vários, diz que foi para o Sul, e assim consta das
histórias, porque os Romanos passaram por várias vezes à conquista do Egito,
que fica ao sul de Judéia, e depois da vitória chamada actíaca, em que Augusto
desbaratou a Cleópatra e Marco Antônio, reduziu o mesmo Egito a província, como
escreve Suetónio, e ali acabou o Império dos Gregos. De toda esta combinação
das histórias com a profecia, e da consonância e harmonia dos tempos, lugares,
nações, princípios, fins e todos os sucessos desses Impérios tão ajustados com
as propriedades das figuras que as representavam, se faz certo e evidente
argumento de que esta interpretação é a sólida e verdadeira, e que isto foi o
que Deus e o Anjo quiseram significar ao Profeta.
Ultimamente diz que os cavalos mais fortes ou os
robustíssimos da quarta carroça quiseram correr e passear toda a Terra, e que a
correram e passearam; e assim se verificou nos Romanos, que com sua potência e
vitórias se fizeram senhores do Mundo e o meteram debaixo dos pés. Estes
robustíssimos dos Romanos foram os seus maiores capitães e imperadores, como
Cipião, Pompeu, César, Augusto, Vespasiano, Trajano, Constantino, Teodósio,
etc. E posto que os Romanos absolutamente não conquistaram o Mundo como é em
si, porque nunca chegaram à América, que mais é uma metade que parte do Mundo,
contudo diz o Anjo que correram e passearam todo o Mundo no mesmo sentido em
que Augusto, no seu edicto do tempo do nascimento de Cristo, mandou que todo o
Mundo se alistasse, ut describeretur universus orbis. Mas Sanchez, para
explicar a palavra per omnem terram em toda a sua largueza, quer que não só nas
terras do Mundo Antigo, senão nas da América, Mundo Novo, e nas da Índia
Oriental, nunca conquistada nem ainda conhecidas pelos Romanos. E diz que
aqueles robustíssimos de que fala o Anjo são os Espanhóis, verdadeiramente
valentíssimos, audacíssimos e fortíssimos, pois conquistaram estas regiões
novas e incógnitas, não pelejando contra os homens, como os antigos Romanos,
senão contra os ventos, contra os mares, contra o Céu, contra o Sol, contra
todos elementos e contra a mesma natureza, a que venceram e contrastaram. E
para este autor perfilhar ou acomodar aos Romanos, conforme a profecia, estas
vitórias próprias dos Espanhóis, e que de nenhum modo; parece lhe competiam,
leva o direito desta herança à origem que os Reis de Espanha trazem dos Godos,
os quais Godos, como já tinha notado Ribeira, foram estipendiários dos Romanos
e pelejaram debaixo de suas bandeiras, ajudando a defesa e conquista do
Império, como fizeram ao Imperador Maximino contra os Partos e a Constantino
contra Licínio. Mas esta aplicação, como violenta e trazida de tão longe, com
razão não é admitida de Cornélio à lápide, que impugna facilmente. Contudo,
porque esta glória que Sanchez dá aos Espanhóis toca pela maior e melhor parte
aos Portugueses, pelas vitórias do Oriente a que o mesmo Cornélio chama ad
miraculum usque illustres, por não deixar perder a nossa, nação um título tão
honrado como serem chamados por ,boca de um anjo os mais fortes de todos os
Romanos, digo que os Portugueses e todos os Espanhóis se podem e devem entender
debaixo do nome de Romanos, no sentido desta profecia, porque Espanha e
Portugal foram colônias dos Romanos, e parte não só do Império, senão do povo
romano, e verdadeiros cidadãos romanos; ao que não obstava serem de diferente
nação, como se vê em S. Paulo, que, sendo hebreu, apelou para o César, alegando
que era cidadão romano e que só no tribunal de César podia ser julgado.
Além de que muitos portugueses eram filhos e netos
dos Romanos, como muitos romanos de Portugueses, pela união e comércio destas
duas nações, assim em Portugal, onde viviam os presídios romanos, como nas
guerras dos mesmos Romanos, onde os Portugueses iam servir e merecer debaixo de
suas bandeiras. E posto que qualquer destas razões e muito mais todas juntas
são bastantes para que sem impropriedade se possa entender os Portugueses
debaixo do nome de Romanos, o fundamento principal sólido e certo desta
interpretação é ser esta a mente e sentido em que falaram os mesmos Profetas,
os quais entendem Império Romano todo o corpo íntegro do dito Império, e todas
as partes de que ele se compôs e inteirou quando esteve em sua maior grandeza,
ainda que essas mesmas partes depois se desunissem do mesmo Império e lhe
negassem obediência.
Vê-se claramente esta verdade na primeira profecia de
Daniel, onde se diz que os pés e dedos da estátua eram compostos de ferro e
barro, e que o barro e o ferro não estavam unidos, na qual divisão de dedos e
desunião de metais se significava que o Império Romano se havia de dividir em
muitos reinos e senhorios menores, e que esses se haviam de desunir da sujeição
e obediência do mesmo Império. Assim o interpretou o mesmo Daniel: Porro quia
vidisti pedum et digitorum partem testæ figuli, et partem ferream, regnum
divisum erit; as quais palavras comentando, Cornélio diz assim: Potissimum vero
divisum fuit hoc regnum ideoque enervatum cum variæ gentes ab ejus obedientia
se subduxerunt, sibique proprios reges crearunt, uti fecerunt Hispani, Poloni,
Angli, Franci, etc. De maneira que a divisão dos dedos e a desunião dos metais
dos pés da estátua significava os reinos dos Espanhóis, Polacos, Ingleses,
Franceses e os demais, que, sendo antes sujeitos aos imperadores romanos, lhes
negaram a sujeição e se desuniram, deles. Mas contudo (que é o nosso intento)
ainda assim divididos e desunidos se computam e reputam por parte da mesma
estátua e do mesmo Império Romano, ainda que não sejam romanos, porque
realmente são partes daquele corpo e daquele todo, ainda desunidos dele. Destas
nações pois e destes reinos de que se compunha o Império Romano, aqueles
homens, que eram os mais fortes e valentes de todos, não se contentaram só com
as terras dos outros impérios, mas que intentaram discorrer e passear toda a
redondeza da Terra. Estes foram os Espanhóis, e entre os Espanhóis muito
particularmente os Portugueses; porque a conquista dos mares e terras do
Oriente, pela distancia remotíssima das terras, pela dificuldade de navegações,
pela diferença dos climas, pelo valor e potência das nações que se
conquistaram, foi empresa de muito maior valor, resolução e esforço que a dos
Castelhanos. Assim que, considerando todo o corpo do Império Romano e todas
suas empresas, os fortes dos Romanos foram os Cipiões, os Pompeus, os Césares,
os Augustos; os fortíssimos foram os Espanhóis, e entre esses Espanhóis os
fortíssimos dos fortíssimos foram os Portugueses. Não somos nós que o dizemos,
senão o anjo que falava em Zacarias: Qui autem erant robustissimi, exierunt, et
quærebant ire et discurrere per omnem terram; et dixit: Ite, perambulate
terram: et perambalaverunt terram. Finalmente, para que a profecia se entenda
dos Espanhóis e Portugueses, era justo...
Volume II
Livro II - Introdução
Em que
se mostra que Império há-de ser este. Suposto como deixamos assentado que há-de
haver no Mundo um quinto e novo Império, segue-se que digamos que Império há-de
ser: e assim o faremos em todo este II Livro. Que o Quinto Império é o Império
de Cristo e dos Cristãos.
Capítulo I
É
conclusão certa e de fé que este Quinto Império de que falamos, anunciado e
prometido pelos Profetas, é o Império de Cristo e dos Cristãos. Prova-se dos
mesmos textos e profecias já alegadas, sobre as quais fundaremos tudo o que
dissermos nesta história, para maior clareza e firmeza dela, pois não é cerzida
de pedaços ou retalhos das Escrituras, senão cortada toda da mesma peça.
Primeiramente aquela pedra que derrubou a estátua e
desfez as quatro monarquias figuradas nos quatro metais, e depois cresceu e a
sua grandeza ocupou e encheu toda a Terra, é Cristo, o qual em outros muitos
lugares da Sagrada Escritura se chama Pedra. Ele foi a pedra que no deserto
matou a sede aos filhos de Israel e os acompanhou até a terra da Promissão. Ele
foi a pedra com que David derrubou ao gigante, em significação de que por meio
e virtude de Cristo havemos de vencer o Mundo e o Demônio. Ele foi a pedra que
viu Zacarias, e sobre ela sete olhos, super lapidem unum septem oculi, que são
os sete dons do Espírito Santo, o qual infundiu todo e descansou sobre Cristo.
Ele foi a pedra sobre que adormeceu Jacob, quando se lhe abriu o Céu e viu a
escada; ele a pedra sobre que sustentou os braços levantados de Moisés, quando
venceu os exércitos de Amalec; ele finalmente a pedra angular, a que uniu os
dois povos gentílicos e judaico, e a pedra fundamental e provada sobre que se
fundaram na Lei antiga a Igreja de Sion e na nova a do mesmo Cristo. Esta pedra
pois foi a que, arrancada do monte, derrubou a estátua e desfez os quatro
impérios dos Assírios, Persas, Gregos e Romanos, para fundar e levantar o seu
sobre todos eles. Assim o dizem conformemente neste lugar não só todos os
Padres e expositores católicos, senão também os hereges e até mesmo Rabinos, os
quais acertam em dizer que nesta pedra está profetizado o Reino do Messias, e
erram somente em não crerem que o Messias é Cristo.
Diz Daniel que esta pedra caiu de um alto monte,
arrancada dele sem mãos. E este monte ou é o Céu e o seio do Eterno Padre,
donde desceu Cristo quanto a divindade, como interpreta S. Ambrósio; ou é a
nação hebraica, levantada naquele tempo como monte entre todas as outras nações
do Mundo, da qual o Verbo se dignou tomar e unir a si a humanidade, como
explica S. Agostinho; ou finalmente é a Virgem Maria, Senhora Nossa, sublimada
como monte altíssimo sobre todas as criaturas, como a mais perfeita e excelente
de todas.
Esta é a sentença comum e mais recebida dos Padres e
expositores deste lugar, com a qual concorda admiravelmente a advertência de
Daniel, que a pedra foi arrancada ou cortada do monte sem mãos: Lapis abscissus
de monte sine manibus; porque na geração temporal de Cristo, sendo verdadeiro
homem, não tiveram parte mãos de homem, toda foi obra sobrenatural e divina,
suprindo o Espírito Santo e a virtude do Altíssimo o que nela faltou de
concurso humano. Assim o notou o mesmo S. Agostinho, S. Hierónimo, S. Ireneu,
S. Júlio, S. Epilanio, Teodoreto, Ruperto e muitos outros Padres.
Na segunda visão de Daniel ainda consta mais
claramente e por termos mais expressos que este Império é o de Cristo....et
ecce (diz o Profeta) cum nubibs cæli quasi filius hominis veniebat, et usque
ad.Antiquum dierum pervenit: ...et dabit ei potestatem et honorem et regnum,
etc.; De sorte que a pessoa a quem foi dado por Deus o Quinto Império de que
Danie1 fala neste lugar (como vimos) era o Filho do Homem. E que cousa há mais
certa e freqüente no Evangelho que chamar-se Cristo Filho do Homem? Quem dicunt
homines esse filium hominis? Væ autem homini illi per quem filis hominis
tradetur! Tunc videbunt filius hominis venientem in nubibus cæli. Não repito os
autores desta explicação, porque são todos, e porque o texto é tão claro que
não há mister intérpretes. Só reparou Maldonado que não se chama Cristo neste
lugar Filho do Homem absolutamente, sendo quasi filius hominis, para denotar o
Profeta que entre este homem e os outros homens havia diferença: os outros são
puros homens, Cristo é homem e Deus juntamente; assim que aquele quasi
significa a falta de substância humana, posto que tão superiormente suprida com
a divina. E porque Deus não havia de ter subsistência humana como os outros
homens, posto que tivesse a mesma natureza como eles, não lhe chama por isso o
Profeta homem, senão quase homem-quasi filius hominis. Quem havia de duvidar
que em um quasi cabia uma distancia infinita?
A terceira visão de Zacarias confirma ainda com maior
propriedade ser Cristo o Senhor deste Império. Já dissemos que a coroa ou
coroas que foram postas sobre a cabeça de Jesus, filho de Josedec significavam
o mesmo Império Quinto profetizado por Daniel: e que seja Cristo o
soberaníssimo Monarca que Zacarias viu coroar naquela figura, não só o confessa
a Igreja Universal na aplicação deste lugar, e a opinião comum de todos os
Padres e Doutores, senão ainda muitos hebreus, que sem ódio escreveram antes de
Cristo. Communis est Patrum sententia et multorum ex Hebræis quibus accedit
Chaldeus sermonem hic esse de Messsiah, diz o doutissimo Sanchez. De maneira
que na primeira visão foi Cristo, significado com o nome comum e metafórico de
pedra, na segunda com o nome particular de Filho do Homem, na terceira com o
nome propriíssimo de Jesus, Jesus filii Josedeci: e em todas estas três visões
em que Deus revelou aos seus Profetas a grandeza e majestade futura do Quinto
Império, e os quatro a que ele devia de suceder, lhes mostrou , e revelou
também que o Senhor e o Monarca deste Império havia de ser Cristo.
Com muitos outros textos da Escritura pudéramos
confirmar esta mesma conclusão, mas porque tudo o que havemos de dizer nesta
história será uma continuada prova e confirmação dela, bastem os textos
alegados, que são, como dizia, os fundamentais de toda ela.
Mas porque no princípio deste capítulo dissemos que o
Quinto Império era o Império de Cristo e dos, Cristãos, tornemos à segunda
visão de Daniel, onde Deus para consolação dos fiéis quis que nos ficasse
expressa e revelada esta tão gloriosa verdade.
Depois de referir Daniel como Deus Padre, a quem ele
chama o Antigo dos dias dera ao Filho do Homem aquele novo reino ou império,
perguntou o mesmo Profeta a um dos anjos que assistiam ao trono a significação
das cousas que via, e ele lhe disse por três vezes que o reino e império que
vira dar ao Filho do Homem era o reino e império que os santos do Altíssimo
haviam de ter neste Mundo. No verso 18 daquele capítulo (que é o VII) diz assim:
Suscitient autem regnum Sancti Dei altissimi: et oblinebunt regnum usque in
sæculum et sacculum sæculorum. E no verso : Donec vénit Antiquus dierum, et
dierum, et judicium dedit sanctis Excelsi, et tempus advenit, et regnum
obtinuerunt sancti. E no 27: Regnum autem, et potestas, et magnitudo regni quæ
est subter omne cælum, detur populo sanctorum Altissimi; cujus regnum, regnum
sempiternum est, et omnes reges servient ei et obedient. Muitas cousas e muito
grandes disse nestas palavras o Anjo, as quais ficam reservadas para se
explicarem em seus lugares por agora só nos serve (o que diz e repete tantas
vezes o Anjo) que aquele mesmo Reino que o eterno Padre deu ou há-de dar a seu
filho Cristo é o Reino e o Império dos Santos, isto é, dos Cristãos. Assim o
diz expressamente sobre estas palavras de Daniel o seu grande comentador
Perério, chamando a este Quinto Império Regnum Christi e Christianoram, Reino
de Cristo e dos Cristãos. Deinceps (diz ele) pagnandum nobis est cum Judæis qui
Christianis infensi infestique et iniquo animo ferentes, quæ de illo quinto
Regno tam præclara et gloriosa prædix Daniel, ea ad Regnum Christi et
Christianorm accommodari, etc.
E que pelo nome de Santos, de que usa Daniel, se
entendam e devam entender os Cristãos não é só explicação de intérpretes da
Escritura, senão frase muito corrente e ordinária em toda ela. S. Paulo,
escrevendo aos cristãos da cidade de Filipe, em Macedônia,. no título ou
sobrescrito da carta diz assim: Omnibus Sanctis in Christo qui sunt Philippis
«a todos os Santos em Cristo que estão em Philippis». E escreveu aos cristãos
de Roma: Omnibus qui sunt Romæ dilectis Dei, vocatis Sanctis. E na mesma
epístola, exortando aos mesmos Romanos a que socorressem com suas esmolas aos
cristãos necessitados: Necessitatibus Sanctorum communicantes. E saudando aos
Filipenses no fim da epístola citada, em nome de alguns cristãos que estavam em
serviço do Imperador que então era Nero: Salutant vos omnes Sancti maxime autem
qui de Cæsaris domo sunt: «saúdam-vos, diz, todos os Santos, e principalmente
os que estão em casa de César». Finalmente este era o ordinário modo de falar
da primitiva Igreja, e assim lemos no capítulo IX dos Atos dos Apóstolos que
usou da mesma frase Ananias, representando Cristo os grandes males que Saulo
tinha feito contra os Cristãos: Quanta mala Sanctis tuis fecerit. E a este uso
se chamaram as igrejas dos Cristãos igrejas dos Santos, conforme o texto da
Epístola ad Corinthios: In ecclesiis Sanctorm doceo.
A razão deste nome é tomada da santidade da Lei de
Cristo que professam os Cristãos, os quais, assim como de Cristo se chamavam
cristãos, assim da Lei santa de Cristo se chamaram santos. E este é o sentido
em que Daniel e o Anjo falaram naquela visão chamando a Cristo Filho do Homem,
com a mesma frase com que depois se nomeou a Cristo, e chamando ao Reino dos
Cristãos Reino dos Santos, com a mesma frase com que depois se nomearam os
Cristãos, bem assim como já antes de Daniel o tinha profetizado com o mesmo
espírito Isaías: Et vocabunt eos populus sanctus, redempti a Domino. E aquele
povo remido por Deus será chamado publicamente Povo santo, que é em próprios
termos o que depois se viu na Igreja e o que diz aqui o Anjo: Regnum autem et
potestas detur populo sanctorum. E ambos estes nomes e as etimologias deles
compreendeu S. Paulo no princípio da Epístola aos Romanos, em que lhe chama
Vocati Jesu Christi et vocatis Sanctis, chamados de Jesus Cristo e chamados
santos.
Capítulo II
Pergunta-se
se este Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser neste Mundo ou no outro. Deu
motivo a esta questão, entre os Padres gregos, o Teodoreto, e entre os latinos,
Tertuliano, os quais concordavam com a verdade da nossa História em dizerem com
os demais que o Quinto Império é o de Cristo e dos Cristãos, mas que tem para
si que há-de ser este Império no Céu e não na Terra. Fundam a sua opinião nas
mesmas visões de Daniel, desta maneira: Antes que a pedra cortada do monte (que
é Deus e o seu Império) crescesse a toda aquela sua grandeza (diz Teodoreto),
já todos os outros reinos e impérios do Mundo estavam derrubados e caídos, já o
vento os tinha levado pelos ares, desfeito em pó e em cinza, e já tinham
desaparecido totalmente do Mundo, sem haver mais que a memória deles, nem se
poder achar ou conhecer o lugar onde tivessem estado, como consta do texto:
Tunc contrita sunt pariter ferrum, testa, æs, argentum et aurum, et redacta
quasi in favillam æstiva, areæ quæ rapta sunt vento; nullusque locus inventus
est eis; lapis autem qui percusserat statuam factus est mons magnus. Sendo logo
certo como é que os reinos, cidades, repúblicas e impérios do Mundo se não
hão-de desfazer em cinza, nem se hão-de acabar, senão quando se desfizer e
acabar o mesmo Mundo na última ruína dele, segue-se que o Império de Cristo e
dos Cristãos, de que fala Daniel, e aquela sua grandeza prodigiosa e que há-de
crescer, não há-de ser neste Mundo, senão no outro.
Tertuliano, fundado na mesma visão, e muito mais na
segunda, argumenta assim Este Reino ou Império de Cristo e dos Cristãos há-de
ser Reino perpétuo, incorruptíve1 e eterno, como dizem expressamente as
palavras de ambos os textos: Regnum quod in eternum non dissipabitur; Regnum
quod non corrumpetur; Regnum usque in sæculum et sæculum sceculorum; Regnu
sempiternum. Os reinos deste Mundo todos de sua própria natureza são
corruptíveis, e todos, por mais que durem e permaneçam, hão-de ter um com o
mesmo Mundo, o qual é de fé que se há-de acabar. Logo, se o Reino e Império de
Cristo e dos Cristãos há-de ser perpétuo, incorruptível e eterno, clara e
manifestamente se segue que não há-de ser império da Terra, senão do Céu.
Contudo a sentença comum dos Santos, e recebida e
seguida como certa de todos os expositores, é que este Reino e Império de
Cristo e dos Cristãos profetizado por Daniel (qualquer que haja de ser) é
Império da Terra e na Terra. E posto que os autores desta sentença mais supõem
que aprovam, nós aprovaremos e demonstraremos com os textos das mesmas visões.
Daquela pedra que representava a Cristo e seu
Império, diz Daniel, na primeira visão, que cresceu e se fez um monte tão
grande que ocupou e encheu toda a terra. Lapis autem qui percusserat statuam
factus est mons magnus et implevit universam terram. Infiro agora assim: Esta
pedra e este Império de Cristo, que derribou os outros impérios, cresceu? Logo,
não é império do Céu nem depois de acabado o Mundo; porque o Reino e Império de
Cristo, depois de acabado o Mundo, de nenhum modo há-de crescer nem pode
crescer. Não há-de crescer nem pode crescer no número dos homens, porque, depois
de acabado o Mundo e depois do Dia de Juízo, não há-de haver mais homens que
vão ao Céu; não há-de crescer nem pode crescer na glória dos bem-aventurados,
porque, desde aquele ponto, cada um há-de receber por inteiro toda a glória
devida a seus merecimentos; e como se acabou o tempo de mais merecer, assim se
acabou o tempo de mais alcançar. Logo, se o Reino de Cristo e dos Cristãos
há-de crescer depois daquele tempo, e crescer a uma grandeza tão imensa,
segue-se que esse crescimento há-de ser neste Mundo e não no outro. Mas para
que são conseqüências, se as mesmas palavras do texto o dizem claramente?
Factus est mons magnus et implevit universam terram. Se a pedra, crescendo, se
fez um grande monte, o qual grande monte encheu e ocupou toda a Terra, e este é
o Império profetizado de Cristo, bem claro se mostra que é Império da Terra e
não do Céu e que na Terra e não no Céu há-de ter toda esta sua grandeza.
Não negamos, porém, nem podemos negar que este Reino
e Império de Cristo e dos Cristãos há-de durar também com o mesmo Cristo e os
mesmos Cristãos depois de bem-aventurados por toda a eternidade no Céu; mas nem
por isso há-de deixar de ter na Terra a grandeza que nestes textos lhe é
profetizada e prometida, antes a razão de haver de ter tanta grandeza no Céu, é
porque a terá primeiro na Terra, no Céu consumada e perfeitíssima, como se deve
ao estado do Céu. Desta maneira se concilia e concorda facilmente a opinião de
Tertuliano e Tedoreto com a verdade da nossa; este é o mais ordinário sentir de
todos os expositores de Daniel, os quais dizem que este Reino e Império de
Cristo e dos Cristãos há-de ser incoado na Terra e consumado no Céu, mas com
tanta discrepância de tempos, como veremos em seu lugar, que agora só
trataremos qual seja em comum o deste Império.
Os termos da segunda visão de Daniel ainda são (se
podem ser) mais evidentes. Regnum autem et potestas et magnitudo regni, quæ est
subter omne cælum, detur populo sanctorurn Altissimi. «0 Reino ou Império que
se há-de dar ao povo dos Santos do Altíssimo, que são os Cristãos, é o poder e
grandeza de todos os reinos que há debaixo do Céu.»
Podia-se dizer cousa mais clara? Parece que estava
antevendo Daniel que havia de haver quem interpretasse esta sua visão em
diferente sentido do que ele a escrevia, dizendo que este Reino havia de ser no
Céu e não na Terra, pois posto se entenda e saiba que não é assim, adverte e
nota sinaladamente o Profeta que não é Reino do Céu, senão de debaixo do Céu:
magnitudo regni, que est subter omne cælum, detur populo sanctorum Altissimi.
Nas palavras que se seguem a estas declara mais em
particular Danie1 (ou o Anjo por ele) quem hão-de ser os súbditos deste
Império, e diz em nova confirmação do que dizemos, que serão todos os reis do
Mundo, os quais o hão-de servir e lhe hão-de obedecer: et omnes reges servient
ei et obedient.
Se os reis hão-de servir e obedecer a este Império,
bem se colhe que há-de ser Império da Terra e não do Céu, porque no Céu não se
serve, nem se obedece, nem se merece, e só se goza o prêmio do que se obedeceu,
do que se serviu e do que se mereceu na Terra. Da Terra é logo este Império, e
na Terra é que há-de ser servido e obedecido e reconhecida de todos os reis
dela, como bem advertiu Cornélio, comentando as palavras subter omne cælum,
pouco atrás citadas: Non quæ est super, sed quæ est subter omne cælum, id est
in omni terra, sive in omni plaga cælo subjecta..
Responder aos seus argumentos é igualmente fácil. Ao
de Teodoreto dizemos que o texto de Daniel só fala das quatro monarquias
representadas nos quatro metais da estátua, as quais nem cada uma por si nem
todas juntas compreenderão nunca toda a grandeza da Terra; e quando se diz que
ficaram desfeitas em pó e desapareceram, e foram voadas do vento, e não se
achou mais o lugar onde estivessem, não quer dizer que as terras, cidade e
gentes das ditas monarquias se haviam de acabar e extinguir totalmente (como
há-de acontecer a todo o Mundo no Dia de Juízo) senão que havia de se acabar
seu mando, seu poder, seu império, sua soberania, como verdadeiramente se
acabou a dos Assírios pela sucessão dos Persas, e a dos Persas pela sucessão
dos Gregos, e a dos Gregos pela sucessão dos Romanos e se acabará também a dos
Romanos pela sucessão do Quinto Império. E isto quer dizer em frase da
Escritura - non inventus est locus ejus-que «se não achou mais o seu lugar»,
porque sucederam outros nele, como se vê no exemplo de Judas, de quem fala a
Escritura pelos mesmos termos, e consta que sucedeu em seu lugar S. Matias.
Ao argumento de Tertuliano que se fundava na eternidade
do Quinto Império, já temos dito que a continuação dele no Céu há-de ser
verdadeiramente eterna em toda a propriedade e largueza da significação desta
palavra. Mas se entendermos o texto de Daniel da duração somente que o Império
de Cristo e dos Cristãos há de ser neste Mundo, pela palavra eternidade não se
entende rigorosamente duração sem fim, senão continuação e permanência de muito
tempo, que depois veremos quanto há-de ser. Entretanto basta saber-se que a
palavra eterno tem este mesmo sentido e limitação em muitos lugares da
Escritura, como notou S. Agostinho na Questão 3I.a sobre o Gênesis, e
mostraremos mais largamente quando escrevermos a duração do Quinto Império.
Mas para que tiremos todo o escrúpulo aos outros
razão será não passe sem satisfação uma grande dúvida que, por ser fundada nas
mesmas palavras do texto de Daniel, não só pode embaraçar a verdade da nossa
sentença, mas confirmar na contrária os autores e seguidores dela. Aspiciebam
(diz Daniel na segunda visão) donec throni positi sunt, et Antiquus dierum
sedit vestimentum ejus candidum quasi nix, et capilli captis ejus quasi lana
munda; thronus ejus flammæ ignis rotæ ejus ignis accensus, Fluvius igneus,
rapidusque egrediebatur a facie ejus. Millia millium ministrabant ei, et decies
millies centena millia assistebant ei; judicium sedit et libri aperti sunt,
etc. E estas palavras por todas as circunstâncias do trono, do fogo, da
assistência dos anjos, dos livros que se abriram e do mesmo nome de juízo, não
só parece que significam, senão que estão demonstrando o vigor e majestade do
juízo final, e assim o entendem mais ordinariamente os expositores desta visão.
Logo, se o Reino e Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser depois do juízo
final, claramente se convence que ano é nem há-de ser Império desde Mundo,
senão do outro.
Respondo que é certo falar neste lugar o Profeta de
juízo, e juízo de Deus, e juízo rigoroso e de grande majestade, mas digo com a
mesma certeza que este juízo não é o juízo final, em que Cristo há-de vir
julgar os vivos e os mortos no fim do Mundo, senão um juízo particular, em que
o Padre Eterno há-de tirar o Reino e Império universal do Mundo ao tirano ou
tiranos que então o possuírem, e para meter de posse e o entregar a Cristo, seu
filho, como legitimo senhor e herdeiro dele, e aos professores de sua fé e
obediência, que são os Cristãos.
Capítulo III - Se este Império de Cristo no Mundo é espiritual ou temporal
Assentado, como acabamos de resolver, que este
Império de Cristo e dos Cristãos, de que falam as profecias alegadas, é
principalmente o da Terra e não o do Céu, ainda nesta suposição nos resta
averiguar um ponto de grande importância e de cuja decisão depende o maior
fundamento de todo este nosso discurso. Porque este Império de Cristo, que
dizemos há de ser na Terra, ou pode ser espiritual ou temporal. espiritual como
o que hoje tem o Sumo Pontífice, cujo poder e jurdição se ordena a governar os
fiéis membros e súbditos da Igreja, a conseguir a bem-aventurança, que é o
último fim do homem; temporal, como o que têm os príncipes católicos sobre os
seus reinos e províncias, que se dirige a governar os vassalos por meio de leis
prudentes e justas, que é o fim particular de todas as comunidades humanas, dos
Cristãos católicos, em quanto este fim particular e mediato se ordena ao último
fim.
Isto posto, perguntamos agora se este Império de
Cristo há-de ser espiritual ou temporal; e começando pela conclusão em que não
há resistência nem dificuldade, diremos primeiramente que este Império de
Cristo (o qual não há-de ser diferente do que hoje é, senão ,quanto ao modo
como em seu lugar veremos) é império espiritual. Assim o ensinam e ensinaram
sempre conformemente todos os Padres e Doutores da Igreja, todos os teólogos
antigos e modernos, e todos os expositores de ambos os Testamentos, e se
demonstra com o mesmo mistério da Encarnação e fim com que Cristo veio ao
Mundo, e com a doutrina e ações de sua vida e morte.
Porque, se perguntarmos aos Evangelistas (deixando o
testemunho das outras Escrituras) que fez Cristo e que ensinou com a palavra e
com o exemplo, desde o dia em que nasceu até à hora em que expirou na cruz,
dir-nos-ão que veio ensinar aos homens a ciência da saúde e salvação; que veio
ser luz do Mundo e alumiar os que vêm a ele; que veio lançar fogo na terra,
para que se acendesse nela a claridade que tão apagada estava; que veio encher
e informar a lei e animar a letra com o espírito; que veio vencer o demônio e
lançá-lo do Mundo, onde reinava e se intitulava príncipe; que veio apartar os
pais dos filhos e os filhos dos pais, para que a graça prevalecesse contra a
natureza e o amor de Deus pudesse mais que o do sangue; que ensinou o desprezo
das riquezas, os interesses da esmola, o perdão das injúrias, a verdadeira
amizade com os inimigos, a virtude da humildade e a da castidade, uma não
usada, outra não conhecida no Mundo, que pregou o Reino do Céu, a eternidade do
Inferno, o rigor do juízo, o preço e imortalidade da alma; finalmente que abriu
sete fontes de graça e ou que instituiu sete sacramentos perpétuos e ficou Ele
conosco perpetuamente em sacramento; que nos lavou com o seu sangue, que morreu
por nós, e que nos deixou o seu amor e o nosso contentamento.
Sendo pois estas as ações daquele Senhor a quem antes
de vir ao Mundo todos os profetas chamaram Pai, e em seu nascimento foi
aclamado Rei e em sua morte intitulado Rei; e sendo todas elas ordenadas só à
salvação e perfeição dos homens e dirigidas e encaminhadas ao Céu, cujo reino
lhes pregou e prometeu sempre, e estando até aquele tempo fechado, lho abriu e
mereceu com seu sangue; que maior sentimento se pode desejar, nem que maior
demonstração ou evidência de ser o Reino e Império deste santíssimo e soberaníssimo
Rei, Reino e Império espiritual?
Foi Reino e Império espiritual no fim e causas de sua
instituição, espiritual nas leis, espiritual no governo, espiritual no uso, nas
execuções e no exercício; e suposto que dizemos há-de ser sempre o mesmo (nem é
decente nem seria crível outra cousa), em qualquer tempo futuro será e há-de
ser também espiritual.
Não alegamos aos autores desta doutrina, assim por
serem todos, como dissemos, como porque alegaremos muitos no capítulo seguinte.
Capítulo IV - Examina-se se o Reino e Império de Cristo é também temporal.
Refere-se a opinião negativa
O império e domínio temporal é certo que de sua
natureza não exclui nem implica com o temporal, de modo que um outro domínio
bem pode sem repugnância alguma convir e ajustar-se no mesmo sujeito. Assim
vemos que o Sumo Pontífice, tendo o domínio espiritual de toda a Igreja, é
também senhor e príncipe temporal do estado que chamam eclesiástico; em
Alemanha, três dos eleitores do Império são príncipes eclesiásticos e senhores
temporais de seus estados; e no nosso reino, o Arcebispo primaz é juntamente
Bispo e Senhor de Braga.
Suposto pois que o Reino e Império de Cristo seja
espiritual, como acabamos de resolver, resta examinar agora se é também império
temporal. Muitos e graves teólogos seguem de tal maneira a parte negativa que
exclui totalmente do Império de Cristo toda a jurdição, poder e domínio
temporal, e somente lhe concedem ou admitem nele o puramente espiritual; bem
assim como aquele que os príncipes eclesiásticos têm sobre suas igrejas ou
ovelhas (posto que por modo mais sublime e excelente) mas de nenhum como aquele
que os senhores e príncipes seculares têm sobre seus estados e vassalos.
Fundam primeiramente esta sua sentença em muitos
lugares da Escritura e particularmente em todos aqueles com que no capítulo
passado mostramos o seu nome e título de Rei, que os Profetas davam a Cristo; e
notam bem advertida e doutamente estes autores que todas as vezes que os textos
da Escritura Sagrada falam no Reino, Império, domínio, poder ou principado de
Cristo, sempre acrescentam alguma explicação ou limitação com que o nome geral
de Rei e Senhor se distinga ou aliene da significação de poder temporal, e se
limite, estreite e determine ao espiritual somente.
No Salmo II chama David a Cristo Rei constituído por
Deus - Ego autem constitutus sum rex ab eo; mas logo limita a significação do
ofício ou dignidade, dizendo que para pregar seus preceitos-praedicans
praeceptum ejus. No Salmo XLIV descreve o mesmo Profeta as prosperidades e
progressos do Reino de Cristo: ...intende, prospere procede et regna; mas logo
declara o gênero de armas, todas espirituais, com que há-de conquistar o Mundo:
Propter veritatem et mansuetudinem et justitiam , et deducet te mirabiliter
dextera tua. Isaias, no capítulo IX, anuncia o mesmo Reino de Cristo e sua perpetuidade:
...super solium David et super regnum ejus sedebit in eternum; mas logo aponta
os fundamentos espirituais também, de que lhe háde vir a firmeza: ut confirmet
illud et corroboret in judicio et justitia. Jeremias, no capítulo XXIII,
celebra o Reino e sabedoria de Cristo Rei: ...regnabit rex et sapiens erit; mas
logo determina os efeitos dessa sabedoria que hão-de ser encaminhados todos à
salvação: In diebus illis salvabitur Juda. Zacarias no capítulo IX descreve o
triunfo de Cristo aclamado por rei na entrada de Jerusalém: Ecce Rex tuus
veniet tibi; mas logo lhe chama rei e salvador justo, pobre e humilde: Justus
et salvator, ipse pauper et ascendens super asinam. Finalmente, o mesmo Cristo
»— confessando a Pilatos que era rei »— Tu dicis quia rex sum ego - acrescentou
logo que o seu Reino era para dar testemunho da verdade ao Mundo: Ego in hoc
veni in mundum ut testimonium perhibeam veritati. E depois de ressuscitado,
declarando aos Apóstolos com a maior majestade de palavras que podia ser a
grandeza de seu império, domínio e potestade-Data est mihi omnis potestas in
Cælo in Terra-a conseqüência que tirou deste poder tão universal foi: Euntes in
mundum universum prædicantes Evangelium omni creaturæ; qui crediderit et
baptizatus fuerit, salvus erit: fé, batismo e salvação dos homens. Segue-se
logo que o Reino e Império de Cristo é espiritual somente, e de nenhum modo
temporal. Sobretudo está por esta parte aquele claríssimo oráculo de Cristo:
Regnum meum non est hoc mundo - o meu Reino não é deste Mundo, das quais
palavras podemos dizer: Quid adhuc egemus testibus?
A eficácia destes textos se acrescenta a de muitas
razões e argumentos, entre os quais porventura não é o que tem granjeado menos
votos a esta opinião errada aquela palavra temporal, a qual, construída com o
Império de Cristo e pronunciada aos ouvidos mais religiosos e espirituais,
parece que traz consigo alguma dureza e dissonância, por não dizer indecência.
De que servia a Cristo (dizem) o nome ou jurdição de
Rei temporal do Mundo, se ele vinha como vimos a confundir com seu exemplo o
mesmo Mundo, os mesmos reis e as mesmas temporalidades? Se a perfeição cristã
que Cristo veio ensinar aos homens consistia em deixar tudo e seguir em pobreza
e humildade a Cristo pobre e humilde, como dizia com esta renunciação de todos
os bens, honras e haveres do Mundo, o domínio, o império, a majestade de todo
ele? E se esta majestade, este império e este domínio não havia de ter (como
nunca teve com Cristo) uso ou exercício público, e havia de estar sempre oculto
e encoberto aos homens, não seria maior autoridade, maior exemplo e ainda maior
circunstância de perfeição saber-se que o renunciara Cristo, podendo tê-lo, que
dizer-se que o tivera e conservara, e ainda que o pedira, como alguns dizem?
Com que liberdade ou com que confiança havia de aconselhar ou mandar Cristo a
certo mancebo que, se queria ser perfeito, deixasse o domínio das suas
herdades, se no mesmo tempo o mestre desta perfeição retivesse o domínio de
toda a Terra? Para que se há-de admitir logo o nome deste Império temporal em
Cristo; se nem para o decoro da pessoa, nem para o fim do ofício, nem para o
exemplo da doutrina era necessário, e para o exercício e uso que nunca teve
realmente inútil e ocioso?
Estas razões ou admirações, que não são muitas vezes
as que menos persuadem, se fecham e apertam eficazmente com um discurso fundido
em todos os princípios gerais de direito, com que parece aos autores desta
sentença que não só estabelecem de todo a certeza dela, mas que convencem e
desfazem a probabilidade de qualquer outra. Argumentam ou decorrem assim:
Se Cristo foi Rei temporal, ou foi Rei por direito
natural, ou por direito divino, ou por direito humano. Por direito natural não,
porque Cristo não era filho nem herdeiro de rei; e dado que fosse legítimo
sucessor do Reino de Israel, como dizem menos provavelmente alguns autores, a
herança de um reino particular não lhe dava direito para o império de todo o
Mundo. Por direito divino também não, porque, se houvera tal direito, constara
pelas Escrituras, e posto que muitos textos da Escritura falem de Cristo como
Rei e lhe dêem o nome e título de Rei, todos, como vimos, se entendem do Reino
espiritual ou celeste, e quando menos se podem interpretar assim, sem nos
obrigarem a que os entendamos do Reino ou Império temporal. Finalmente, por
direito humano não, porque a jurdição de fazer ou eleger rei está na comunidade
dos homens; e para Cristo ser respectivamente Rei universal de todo o Mundo por
esta via, era necessário que todos os homens e comunidades do Mundo se unissem
em um consentimento, com que o elegessem por Rei e Senhor de todas, o que nunca
houve, antes sabemos que os príncipes e povo de Judéia, que era a terra onde
Cristo vivia, se conjuraram contra ele e lhe tiraram a vida, só porque não
tomasse o nome de Rei; e que o mesmo Senhor, na ocasião em que alguns deles lho
quiseram dar, fugiu deles e do mesmo título, e se escondeu em um monte para
escapar daquela violência. Logo se não foi Rei temporal, nem por sucessão
natural, nem por eleição humana, nem ,por doação ou nomeação divina, bem se
conclui que o Reino e Império de Cristo, tão celebrado nas Escrituras, de
nenhum modo foi nem pode ser temporal, se não espiritual e somente qual acima
dissemos.
Os Padres que isto disseram e seguiram querem alguns
que sejam todos. Ao menos confessa Vasques que da doutrina dos Padres não se
pode convencer o contrário. O primeiro que se alega é Santo Agostinho em muitos
lugares, entre os quais o mais claro (ou o que parece) é este: Populi personam
figurate gerebat homo ille, scilicet Saul; qui populus regnum fuerat amissurus
Christo Domino nostro per Novum Testamentum, non carnaliter sed spiritualiter
regnaturo. Nenhum dos outros Padres fala em termos de tanta expressão, mas
alegam-se e podem-se alegar no mesmo sentido S. Ambrósio, S. Atanásio, S. João
Crisóstomo, Tertuliano, Teófilo e outros, e diz o doutíssimo Maldonado que esta
é a sentença comum dos melhores teólogos que assim o disseram. O douto leitor
julgará se são os melhores. E são estes: Hermas, Letmatio, Driedo, Castro,
Bertolameu de Medina, Jansénio, Vitória, Adrião Fino, João Parisiense,
Francisco de Cristo, Melchior Flávio; e posto que também se citem por esta
,parte Soto, Abulense e Waldense, falam, por termos tão indiferentes, que
Vasques os alega (e diz que assim se devem alegar) pela parte contrária.
Advirta-se, porém, para crédito de Maldonado e nosso,
que os teólogos que hoje têm maior fama nas escolas, quando ele escreveu, ainda
não tinham escrito.
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