Tuesday, 28 May 2019

Tuesday's Serial: "História do Futuro" by Fr. António Vieira (in Portuguese) VI

Capítulo III - Prova-se o mesmo contra outra profecia de Zacarias
                Assim como Deus dobrou as visões, assim dobrou também as testemunhas , e a mesma sucessão de impérios que revelou a Daniel em umas figuras a mostra agora ao Profeta Zacarias em outras. A primeira profecia de Daniel foi a mesma de Nabucodonosor, a segunda em tempo de Baltasar, que sucedeu a Nabuco; es1a terceira de &carias em tempo de Hidaspes, que sucedeu a Baltasar. De modo que, assim como iam sucedendo os reis, iam sucedendo as profecias, e Deus multiplicando as revelações, mas sempre mostrando pela mesma forma primeiro os quatro impérios e depois o quinto.
                Diz pois o Profeta Zacarias, no capítulo VI da sua profecia, levantando os olhos (ou levantado-lhos Deus da atenção das cousas presentes para a visão das futuras), viu que do meio de dois montes de bronze saíam quatro carroças puxadas por quatro cavalos, cada tiro ou parelha de diferentes cores. Pela primeira tiravam cavalos melados, pela segunda murzelos, pela terceira pombos, pela quarta remendados; assim parece que se deve construir o texto na forma da nossa cavalaria, mas na frase do mesmo texto chama aos da primeira carroça ruivos, aos da segunda negros, aos da terceira brancos, aos da quarta vários, e estes entre os outros diz que eram os mais fortes.
                Vendo estas carroças Zacarias e não entendendo o que significavam, diz que o perguntou a um anjo que falava dentro nele. Mas, ou porque este anjo falasse mais culto que o de Daniel, ou porque Zacarias se entendia por dentro com e1e acham os Doutores que explicou um enigma com outro, e mais trabalho tem dado aos expositores deste lugar a declaração do Anjo que a visão do Profeta. Respondeu pois o Anjo que aquelas quatro carroças (dos montes não disse nada) eram quatro ventos doces que assistiam ao dominador da Terra para executarem suas ordens; e que os cavalos negros tinham saído contra as terras do Norte, e após eles os brancos; os vários saíram contra as do Sul, e destes os mais fortes trataram de discorrer por toda a Terra, e que com licença do Dominador a tinham passeado toda.
                Até aqui a interpretação do Anjo, na qual e na visão do Profeta seguiremos a comum sentença dos Doutores, que é desta maneira: estas carroças significam os mesmos quatro impérios que Deus mostrou a Daniel, e foram estes impérios representados ao Profeta em figura de carroças, e declarados pelo Anjo em metáfora de ventos, para mostrar a violência e velocidade com que seus fundadores conquistariam e sujeitariam por armas os reinos terras e gentes de que se haviam de formar os ditos impérios; porque, ao uso daqueles tempos, a principal força dos exércitos consistia nas carroças armada que eram as que faziam maior estrago na guerra como se vê nos casos tão celebrados.
                Estas carroças diz o Anjo que estavam prontas como ventos para execução dos mandados do Dominador da terra, porque Deus, como supremo Senhor dos Exércitos, se servia sempre das armas de todas as nações, principalmente destas quatro, como tão poderosas para a execução de seus divinos decretos, os quais por altos e imutáveis são comparáveis aos dois montes de bronze donde saíam as carroças. A primeira carroça representava o Império dos Assírios, e tiravam por ela cavalos ruivos, que é cor de fogo, para significar os danos, assolações e incêndios com que os Assírios conquistaram destruíram e abrasaram o povo hebreu, principalmente no cativeiro de setenta anos a que eles com razão chamavam fornalhas da Babilônia. A segunda carroça representava o Império dos Persas, e tiravam por ela cavalos negros, cor de tristeza e luto, porque também os Persas afligiram e foram lutuosos aos Hebreus, principalmente naquela grande aflição, quando El-Rei Assuero, marido de Ester, persuadido pelos enganos de Amão, tinha condenado a morrer em um dia com crueldade inaudita toda a nação hebréia. A terceira carroça representava o Império dos Gregos e tiravam por ela cavalos brancos, cor pacífica e alegre, porque, exceto Antíoco (cuja tirania também serviu de matéria gloriosa aos triunfos dos Macabeus) os outros príncipes gregos sempre foram benéficos aos Hebreus, e mais que todos Alexandre Magno, fundador daquele império, cuja majestade, como escreve José, não duvidou de adorar no templo ao pontífice Jada. Finalmente, a quarta carroça representava o Império Romano, e tiravam por ela cavalos vários, porque os Romanos, assim no ódio como na benevolência, foram vários para com os Hebreus, uns amigos e propícios, como Júlio César, Augusto, Tibério, Cláudio; outros inimigos, perseguidores e cruéis, como Pompeu, Calígula, Nero, Vespasiano, Adriano, Tito.
                Restam por explicar os diferentes caminhos que disse o Anjo fizeram estas carroças, e primeiro que tudo se deve muito notar que da primeira carroça não disse cousa alguma, que é admirável confirmação de serem significados nas quatro carroças os quatro impérios. Porque, como a primeira carroça significava o Império dos Assírios, que já havia muito tempo florescia, não tinha necessidade de intérprete nem declaração. E assim declarou somente o Anjo os três impérios seguintes, cuja fundação e sucessos estavam ainda por vir. A segunda carroça, dos cavalos negros, que são os Persas, diz o Anjo que caminhou para as terras do Norte; e assim foi, porque os Persas devastaram e ocuparam a Babilônia que fica para a parte do Norte da Judéia, e ali acabou o Império dos Assírios. A terceira carroça, a dos cavalos brancos, diz que foi atrás da primeira, e assim sucedeu, porque os Gregos venceram e destruíram a Dario, último imperador dos Persas, junto à mesma Babilônia onde Alexandre, como escreve Crítio e Plutarco, tomou o nome de Rei da Ásia. E a quarta carroça, dos cavalos vários, diz que foi para o Sul, e assim consta das histórias, porque os Romanos passaram por várias vezes à conquista do Egito, que fica ao sul de Judéia, e depois da vitória chamada actíaca, em que Augusto desbaratou a Cleópatra e Marco Antônio, reduziu o mesmo Egito a província, como escreve Suetónio, e ali acabou o Império dos Gregos. De toda esta combinação das histórias com a profecia, e da consonância e harmonia dos tempos, lugares, nações, princípios, fins e todos os sucessos desses Impérios tão ajustados com as propriedades das figuras que as representavam, se faz certo e evidente argumento de que esta interpretação é a sólida e verdadeira, e que isto foi o que Deus e o Anjo quiseram significar ao Profeta.
                Ultimamente diz que os cavalos mais fortes ou os robustíssimos da quarta carroça quiseram correr e passear toda a Terra, e que a correram e passearam; e assim se verificou nos Romanos, que com sua potência e vitórias se fizeram senhores do Mundo e o meteram debaixo dos pés. Estes robustíssimos dos Romanos foram os seus maiores capitães e imperadores, como Cipião, Pompeu, César, Augusto, Vespasiano, Trajano, Constantino, Teodósio, etc. E posto que os Romanos absolutamente não conquistaram o Mundo como é em si, porque nunca chegaram à América, que mais é uma metade que parte do Mundo, contudo diz o Anjo que correram e passearam todo o Mundo no mesmo sentido em que Augusto, no seu edicto do tempo do nascimento de Cristo, mandou que todo o Mundo se alistasse, ut describeretur universus orbis. Mas Sanchez, para explicar a palavra per omnem terram em toda a sua largueza, quer que não só nas terras do Mundo Antigo, senão nas da América, Mundo Novo, e nas da Índia Oriental, nunca conquistada nem ainda conhecidas pelos Romanos. E diz que aqueles robustíssimos de que fala o Anjo são os Espanhóis, verdadeiramente valentíssimos, audacíssimos e fortíssimos, pois conquistaram estas regiões novas e incógnitas, não pelejando contra os homens, como os antigos Romanos, senão contra os ventos, contra os mares, contra o Céu, contra o Sol, contra todos elementos e contra a mesma natureza, a que venceram e contrastaram. E para este autor perfilhar ou acomodar aos Romanos, conforme a profecia, estas vitórias próprias dos Espanhóis, e que de nenhum modo; parece lhe competiam, leva o direito desta herança à origem que os Reis de Espanha trazem dos Godos, os quais Godos, como já tinha notado Ribeira, foram estipendiários dos Romanos e pelejaram debaixo de suas bandeiras, ajudando a defesa e conquista do Império, como fizeram ao Imperador Maximino contra os Partos e a Constantino contra Licínio. Mas esta aplicação, como violenta e trazida de tão longe, com razão não é admitida de Cornélio à lápide, que impugna facilmente. Contudo, porque esta glória que Sanchez dá aos Espanhóis toca pela maior e melhor parte aos Portugueses, pelas vitórias do Oriente a que o mesmo Cornélio chama ad miraculum usque illustres, por não deixar perder a nossa, nação um título tão honrado como serem chamados por ,boca de um anjo os mais fortes de todos os Romanos, digo que os Portugueses e todos os Espanhóis se podem e devem entender debaixo do nome de Romanos, no sentido desta profecia, porque Espanha e Portugal foram colônias dos Romanos, e parte não só do Império, senão do povo romano, e verdadeiros cidadãos romanos; ao que não obstava serem de diferente nação, como se vê em S. Paulo, que, sendo hebreu, apelou para o César, alegando que era cidadão romano e que só no tribunal de César podia ser julgado.
                Além de que muitos portugueses eram filhos e netos dos Romanos, como muitos romanos de Portugueses, pela união e comércio destas duas nações, assim em Portugal, onde viviam os presídios romanos, como nas guerras dos mesmos Romanos, onde os Portugueses iam servir e merecer debaixo de suas bandeiras. E posto que qualquer destas razões e muito mais todas juntas são bastantes para que sem impropriedade se possa entender os Portugueses debaixo do nome de Romanos, o fundamento principal sólido e certo desta interpretação é ser esta a mente e sentido em que falaram os mesmos Profetas, os quais entendem Império Romano todo o corpo íntegro do dito Império, e todas as partes de que ele se compôs e inteirou quando esteve em sua maior grandeza, ainda que essas mesmas partes depois se desunissem do mesmo Império e lhe negassem obediência.
                Vê-se claramente esta verdade na primeira profecia de Daniel, onde se diz que os pés e dedos da estátua eram compostos de ferro e barro, e que o barro e o ferro não estavam unidos, na qual divisão de dedos e desunião de metais se significava que o Império Romano se havia de dividir em muitos reinos e senhorios menores, e que esses se haviam de desunir da sujeição e obediência do mesmo Império. Assim o interpretou o mesmo Daniel: Porro quia vidisti pedum et digitorum partem testæ figuli, et partem ferream, regnum divisum erit; as quais palavras comentando, Cornélio diz assim: Potissimum vero divisum fuit hoc regnum ideoque enervatum cum variæ gentes ab ejus obedientia se subduxerunt, sibique proprios reges crearunt, uti fecerunt Hispani, Poloni, Angli, Franci, etc. De maneira que a divisão dos dedos e a desunião dos metais dos pés da estátua significava os reinos dos Espanhóis, Polacos, Ingleses, Franceses e os demais, que, sendo antes sujeitos aos imperadores romanos, lhes negaram a sujeição e se desuniram, deles. Mas contudo (que é o nosso intento) ainda assim divididos e desunidos se computam e reputam por parte da mesma estátua e do mesmo Império Romano, ainda que não sejam romanos, porque realmente são partes daquele corpo e daquele todo, ainda desunidos dele. Destas nações pois e destes reinos de que se compunha o Império Romano, aqueles homens, que eram os mais fortes e valentes de todos, não se contentaram só com as terras dos outros impérios, mas que intentaram discorrer e passear toda a redondeza da Terra. Estes foram os Espanhóis, e entre os Espanhóis muito particularmente os Portugueses; porque a conquista dos mares e terras do Oriente, pela distancia remotíssima das terras, pela dificuldade de navegações, pela diferença dos climas, pelo valor e potência das nações que se conquistaram, foi empresa de muito maior valor, resolução e esforço que a dos Castelhanos. Assim que, considerando todo o corpo do Império Romano e todas suas empresas, os fortes dos Romanos foram os Cipiões, os Pompeus, os Césares, os Augustos; os fortíssimos foram os Espanhóis, e entre esses Espanhóis os fortíssimos dos fortíssimos foram os Portugueses. Não somos nós que o dizemos, senão o anjo que falava em Zacarias: Qui autem erant robustissimi, exierunt, et quærebant ire et discurrere per omnem terram; et dixit: Ite, perambulate terram: et perambalaverunt terram. Finalmente, para que a profecia se entenda dos Espanhóis e Portugueses, era justo...


Volume II
Livro II - Introdução       
Em que se mostra que Império há-de ser este. Suposto como deixamos assentado que há-de haver no Mundo um quinto e novo Império, segue-se que digamos que Império há-de ser: e assim o faremos em todo este II Livro. Que o Quinto Império é o Império de Cristo e dos Cristãos.

Capítulo I           
É conclusão certa e de fé que este Quinto Império de que falamos, anunciado e prometido pelos Profetas, é o Império de Cristo e dos Cristãos. Prova-se dos mesmos textos e profecias já alegadas, sobre as quais fundaremos tudo o que dissermos nesta história, para maior clareza e firmeza dela, pois não é cerzida de pedaços ou retalhos das Escrituras, senão cortada toda da mesma peça.
                Primeiramente aquela pedra que derrubou a estátua e desfez as quatro monarquias figuradas nos quatro metais, e depois cresceu e a sua grandeza ocupou e encheu toda a Terra, é Cristo, o qual em outros muitos lugares da Sagrada Escritura se chama Pedra. Ele foi a pedra que no deserto matou a sede aos filhos de Israel e os acompanhou até a terra da Promissão. Ele foi a pedra com que David derrubou ao gigante, em significação de que por meio e virtude de Cristo havemos de vencer o Mundo e o Demônio. Ele foi a pedra que viu Zacarias, e sobre ela sete olhos, super lapidem unum septem oculi, que são os sete dons do Espírito Santo, o qual infundiu todo e descansou sobre Cristo. Ele foi a pedra sobre que adormeceu Jacob, quando se lhe abriu o Céu e viu a escada; ele a pedra sobre que sustentou os braços levantados de Moisés, quando venceu os exércitos de Amalec; ele finalmente a pedra angular, a que uniu os dois povos gentílicos e judaico, e a pedra fundamental e provada sobre que se fundaram na Lei antiga a Igreja de Sion e na nova a do mesmo Cristo. Esta pedra pois foi a que, arrancada do monte, derrubou a estátua e desfez os quatro impérios dos Assírios, Persas, Gregos e Romanos, para fundar e levantar o seu sobre todos eles. Assim o dizem conformemente neste lugar não só todos os Padres e expositores católicos, senão também os hereges e até mesmo Rabinos, os quais acertam em dizer que nesta pedra está profetizado o Reino do Messias, e erram somente em não crerem que o Messias é Cristo.
                Diz Daniel que esta pedra caiu de um alto monte, arrancada dele sem mãos. E este monte ou é o Céu e o seio do Eterno Padre, donde desceu Cristo quanto a divindade, como interpreta S. Ambrósio; ou é a nação hebraica, levantada naquele tempo como monte entre todas as outras nações do Mundo, da qual o Verbo se dignou tomar e unir a si a humanidade, como explica S. Agostinho; ou finalmente é a Virgem Maria, Senhora Nossa, sublimada como monte altíssimo sobre todas as criaturas, como a mais perfeita e excelente de todas.
                Esta é a sentença comum e mais recebida dos Padres e expositores deste lugar, com a qual concorda admiravelmente a advertência de Daniel, que a pedra foi arrancada ou cortada do monte sem mãos: Lapis abscissus de monte sine manibus; porque na geração temporal de Cristo, sendo verdadeiro homem, não tiveram parte mãos de homem, toda foi obra sobrenatural e divina, suprindo o Espírito Santo e a virtude do Altíssimo o que nela faltou de concurso humano. Assim o notou o mesmo S. Agostinho, S. Hierónimo, S. Ireneu, S. Júlio, S. Epilanio, Teodoreto, Ruperto e muitos outros Padres.
                Na segunda visão de Daniel ainda consta mais claramente e por termos mais expressos que este Império é o de Cristo....et ecce (diz o Profeta) cum nubibs cæli quasi filius hominis veniebat, et usque ad.Antiquum dierum pervenit: ...et dabit ei potestatem et honorem et regnum, etc.; De sorte que a pessoa a quem foi dado por Deus o Quinto Império de que Danie1 fala neste lugar (como vimos) era o Filho do Homem. E que cousa há mais certa e freqüente no Evangelho que chamar-se Cristo Filho do Homem? Quem dicunt homines esse filium hominis? Væ autem homini illi per quem filis hominis tradetur! Tunc videbunt filius hominis venientem in nubibus cæli. Não repito os autores desta explicação, porque são todos, e porque o texto é tão claro que não há mister intérpretes. Só reparou Maldonado que não se chama Cristo neste lugar Filho do Homem absolutamente, sendo quasi filius hominis, para denotar o Profeta que entre este homem e os outros homens havia diferença: os outros são puros homens, Cristo é homem e Deus juntamente; assim que aquele quasi significa a falta de substância humana, posto que tão superiormente suprida com a divina. E porque Deus não havia de ter subsistência humana como os outros homens, posto que tivesse a mesma natureza como eles, não lhe chama por isso o Profeta homem, senão quase homem-quasi filius hominis. Quem havia de duvidar que em um quasi cabia uma distancia infinita?
                A terceira visão de Zacarias confirma ainda com maior propriedade ser Cristo o Senhor deste Império. Já dissemos que a coroa ou coroas que foram postas sobre a cabeça de Jesus, filho de Josedec significavam o mesmo Império Quinto profetizado por Daniel: e que seja Cristo o soberaníssimo Monarca que Zacarias viu coroar naquela figura, não só o confessa a Igreja Universal na aplicação deste lugar, e a opinião comum de todos os Padres e Doutores, senão ainda muitos hebreus, que sem ódio escreveram antes de Cristo. Communis est Patrum sententia et multorum ex Hebræis quibus accedit Chaldeus sermonem hic esse de Messsiah, diz o doutissimo Sanchez. De maneira que na primeira visão foi Cristo, significado com o nome comum e metafórico de pedra, na segunda com o nome particular de Filho do Homem, na terceira com o nome propriíssimo de Jesus, Jesus filii Josedeci: e em todas estas três visões em que Deus revelou aos seus Profetas a grandeza e majestade futura do Quinto Império, e os quatro a que ele devia de suceder, lhes mostrou , e revelou também que o Senhor e o Monarca deste Império havia de ser Cristo.
                Com muitos outros textos da Escritura pudéramos confirmar esta mesma conclusão, mas porque tudo o que havemos de dizer nesta história será uma continuada prova e confirmação dela, bastem os textos alegados, que são, como dizia, os fundamentais de toda ela.
                Mas porque no princípio deste capítulo dissemos que o Quinto Império era o Império de Cristo e dos, Cristãos, tornemos à segunda visão de Daniel, onde Deus para consolação dos fiéis quis que nos ficasse expressa e revelada esta tão gloriosa verdade.
                Depois de referir Daniel como Deus Padre, a quem ele chama o Antigo dos dias dera ao Filho do Homem aquele novo reino ou império, perguntou o mesmo Profeta a um dos anjos que assistiam ao trono a significação das cousas que via, e ele lhe disse por três vezes que o reino e império que vira dar ao Filho do Homem era o reino e império que os santos do Altíssimo haviam de ter neste Mundo. No verso 18 daquele capítulo (que é o VII) diz assim: Suscitient autem regnum Sancti Dei altissimi: et oblinebunt regnum usque in sæculum et sacculum sæculorum. E no verso : Donec vénit Antiquus dierum, et dierum, et judicium dedit sanctis Excelsi, et tempus advenit, et regnum obtinuerunt sancti. E no 27: Regnum autem, et potestas, et magnitudo regni quæ est subter omne cælum, detur populo sanctorum Altissimi; cujus regnum, regnum sempiternum est, et omnes reges servient ei et obedient. Muitas cousas e muito grandes disse nestas palavras o Anjo, as quais ficam reservadas para se explicarem em seus lugares por agora só nos serve (o que diz e repete tantas vezes o Anjo) que aquele mesmo Reino que o eterno Padre deu ou há-de dar a seu filho Cristo é o Reino e o Império dos Santos, isto é, dos Cristãos. Assim o diz expressamente sobre estas palavras de Daniel o seu grande comentador Perério, chamando a este Quinto Império Regnum Christi e Christianoram, Reino de Cristo e dos Cristãos. Deinceps (diz ele) pagnandum nobis est cum Judæis qui Christianis infensi infestique et iniquo animo ferentes, quæ de illo quinto Regno tam præclara et gloriosa prædix Daniel, ea ad Regnum Christi et Christianorm accommodari, etc.
                E que pelo nome de Santos, de que usa Daniel, se entendam e devam entender os Cristãos não é só explicação de intérpretes da Escritura, senão frase muito corrente e ordinária em toda ela. S. Paulo, escrevendo aos cristãos da cidade de Filipe, em Macedônia,. no título ou sobrescrito da carta diz assim: Omnibus Sanctis in Christo qui sunt Philippis «a todos os Santos em Cristo que estão em Philippis». E escreveu aos cristãos de Roma: Omnibus qui sunt Romæ dilectis Dei, vocatis Sanctis. E na mesma epístola, exortando aos mesmos Romanos a que socorressem com suas esmolas aos cristãos necessitados: Necessitatibus Sanctorum communicantes. E saudando aos Filipenses no fim da epístola citada, em nome de alguns cristãos que estavam em serviço do Imperador que então era Nero: Salutant vos omnes Sancti maxime autem qui de Cæsaris domo sunt: «saúdam-vos, diz, todos os Santos, e principalmente os que estão em casa de César». Finalmente este era o ordinário modo de falar da primitiva Igreja, e assim lemos no capítulo IX dos Atos dos Apóstolos que usou da mesma frase Ananias, representando Cristo os grandes males que Saulo tinha feito contra os Cristãos: Quanta mala Sanctis tuis fecerit. E a este uso se chamaram as igrejas dos Cristãos igrejas dos Santos, conforme o texto da Epístola ad Corinthios: In ecclesiis Sanctorm doceo.
                A razão deste nome é tomada da santidade da Lei de Cristo que professam os Cristãos, os quais, assim como de Cristo se chamavam cristãos, assim da Lei santa de Cristo se chamaram santos. E este é o sentido em que Daniel e o Anjo falaram naquela visão chamando a Cristo Filho do Homem, com a mesma frase com que depois se nomeou a Cristo, e chamando ao Reino dos Cristãos Reino dos Santos, com a mesma frase com que depois se nomearam os Cristãos, bem assim como já antes de Daniel o tinha profetizado com o mesmo espírito Isaías: Et vocabunt eos populus sanctus, redempti a Domino. E aquele povo remido por Deus será chamado publicamente Povo santo, que é em próprios termos o que depois se viu na Igreja e o que diz aqui o Anjo: Regnum autem et potestas detur populo sanctorum. E ambos estes nomes e as etimologias deles compreendeu S. Paulo no princípio da Epístola aos Romanos, em que lhe chama Vocati Jesu Christi et vocatis Sanctis, chamados de Jesus Cristo e chamados santos.


Capítulo II          
Pergunta-se se este Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser neste Mundo ou no outro. Deu motivo a esta questão, entre os Padres gregos, o Teodoreto, e entre os latinos, Tertuliano, os quais concordavam com a verdade da nossa História em dizerem com os demais que o Quinto Império é o de Cristo e dos Cristãos, mas que tem para si que há-de ser este Império no Céu e não na Terra. Fundam a sua opinião nas mesmas visões de Daniel, desta maneira: Antes que a pedra cortada do monte (que é Deus e o seu Império) crescesse a toda aquela sua grandeza (diz Teodoreto), já todos os outros reinos e impérios do Mundo estavam derrubados e caídos, já o vento os tinha levado pelos ares, desfeito em pó e em cinza, e já tinham desaparecido totalmente do Mundo, sem haver mais que a memória deles, nem se poder achar ou conhecer o lugar onde tivessem estado, como consta do texto: Tunc contrita sunt pariter ferrum, testa, æs, argentum et aurum, et redacta quasi in favillam æstiva, areæ quæ rapta sunt vento; nullusque locus inventus est eis; lapis autem qui percusserat statuam factus est mons magnus. Sendo logo certo como é que os reinos, cidades, repúblicas e impérios do Mundo se não hão-de desfazer em cinza, nem se hão-de acabar, senão quando se desfizer e acabar o mesmo Mundo na última ruína dele, segue-se que o Império de Cristo e dos Cristãos, de que fala Daniel, e aquela sua grandeza prodigiosa e que há-de crescer, não há-de ser neste Mundo, senão no outro.
                Tertuliano, fundado na mesma visão, e muito mais na segunda, argumenta assim Este Reino ou Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser Reino perpétuo, incorruptíve1 e eterno, como dizem expressamente as palavras de ambos os textos: Regnum quod in eternum non dissipabitur; Regnum quod non corrumpetur; Regnum usque in sæculum et sæculum sceculorum; Regnu sempiternum. Os reinos deste Mundo todos de sua própria natureza são corruptíveis, e todos, por mais que durem e permaneçam, hão-de ter um com o mesmo Mundo, o qual é de fé que se há-de acabar. Logo, se o Reino e Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser perpétuo, incorruptível e eterno, clara e manifestamente se segue que não há-de ser império da Terra, senão do Céu.
                Contudo a sentença comum dos Santos, e recebida e seguida como certa de todos os expositores, é que este Reino e Império de Cristo e dos Cristãos profetizado por Daniel (qualquer que haja de ser) é Império da Terra e na Terra. E posto que os autores desta sentença mais supõem que aprovam, nós aprovaremos e demonstraremos com os textos das mesmas visões.
                Daquela pedra que representava a Cristo e seu Império, diz Daniel, na primeira visão, que cresceu e se fez um monte tão grande que ocupou e encheu toda a terra. Lapis autem qui percusserat statuam factus est mons magnus et implevit universam terram. Infiro agora assim: Esta pedra e este Império de Cristo, que derribou os outros impérios, cresceu? Logo, não é império do Céu nem depois de acabado o Mundo; porque o Reino e Império de Cristo, depois de acabado o Mundo, de nenhum modo há-de crescer nem pode crescer. Não há-de crescer nem pode crescer no número dos homens, porque, depois de acabado o Mundo e depois do Dia de Juízo, não há-de haver mais homens que vão ao Céu; não há-de crescer nem pode crescer na glória dos bem-aventurados, porque, desde aquele ponto, cada um há-de receber por inteiro toda a glória devida a seus merecimentos; e como se acabou o tempo de mais merecer, assim se acabou o tempo de mais alcançar. Logo, se o Reino de Cristo e dos Cristãos há-de crescer depois daquele tempo, e crescer a uma grandeza tão imensa, segue-se que esse crescimento há-de ser neste Mundo e não no outro. Mas para que são conseqüências, se as mesmas palavras do texto o dizem claramente? Factus est mons magnus et implevit universam terram. Se a pedra, crescendo, se fez um grande monte, o qual grande monte encheu e ocupou toda a Terra, e este é o Império profetizado de Cristo, bem claro se mostra que é Império da Terra e não do Céu e que na Terra e não no Céu há-de ter toda esta sua grandeza.
                Não negamos, porém, nem podemos negar que este Reino e Império de Cristo e dos Cristãos há-de durar também com o mesmo Cristo e os mesmos Cristãos depois de bem-aventurados por toda a eternidade no Céu; mas nem por isso há-de deixar de ter na Terra a grandeza que nestes textos lhe é profetizada e prometida, antes a razão de haver de ter tanta grandeza no Céu, é porque a terá primeiro na Terra, no Céu consumada e perfeitíssima, como se deve ao estado do Céu. Desta maneira se concilia e concorda facilmente a opinião de Tertuliano e Tedoreto com a verdade da nossa; este é o mais ordinário sentir de todos os expositores de Daniel, os quais dizem que este Reino e Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser incoado na Terra e consumado no Céu, mas com tanta discrepância de tempos, como veremos em seu lugar, que agora só trataremos qual seja em comum o deste Império.
                Os termos da segunda visão de Daniel ainda são (se podem ser) mais evidentes. Regnum autem et potestas et magnitudo regni, quæ est subter omne cælum, detur populo sanctorurn Altissimi. «0 Reino ou Império que se há-de dar ao povo dos Santos do Altíssimo, que são os Cristãos, é o poder e grandeza de todos os reinos que há debaixo do Céu.»
                Podia-se dizer cousa mais clara? Parece que estava antevendo Daniel que havia de haver quem interpretasse esta sua visão em diferente sentido do que ele a escrevia, dizendo que este Reino havia de ser no Céu e não na Terra, pois posto se entenda e saiba que não é assim, adverte e nota sinaladamente o Profeta que não é Reino do Céu, senão de debaixo do Céu: magnitudo regni, que est subter omne cælum, detur populo sanctorum Altissimi.
                Nas palavras que se seguem a estas declara mais em particular Danie1 (ou o Anjo por ele) quem hão-de ser os súbditos deste Império, e diz em nova confirmação do que dizemos, que serão todos os reis do Mundo, os quais o hão-de servir e lhe hão-de obedecer: et omnes reges servient ei et obedient.
                Se os reis hão-de servir e obedecer a este Império, bem se colhe que há-de ser Império da Terra e não do Céu, porque no Céu não se serve, nem se obedece, nem se merece, e só se goza o prêmio do que se obedeceu, do que se serviu e do que se mereceu na Terra. Da Terra é logo este Império, e na Terra é que há-de ser servido e obedecido e reconhecida de todos os reis dela, como bem advertiu Cornélio, comentando as palavras subter omne cælum, pouco atrás citadas: Non quæ est super, sed quæ est subter omne cælum, id est in omni terra, sive in omni plaga cælo subjecta..
                Responder aos seus argumentos é igualmente fácil. Ao de Teodoreto dizemos que o texto de Daniel só fala das quatro monarquias representadas nos quatro metais da estátua, as quais nem cada uma por si nem todas juntas compreenderão nunca toda a grandeza da Terra; e quando se diz que ficaram desfeitas em pó e desapareceram, e foram voadas do vento, e não se achou mais o lugar onde estivessem, não quer dizer que as terras, cidade e gentes das ditas monarquias se haviam de acabar e extinguir totalmente (como há-de acontecer a todo o Mundo no Dia de Juízo) senão que havia de se acabar seu mando, seu poder, seu império, sua soberania, como verdadeiramente se acabou a dos Assírios pela sucessão dos Persas, e a dos Persas pela sucessão dos Gregos, e a dos Gregos pela sucessão dos Romanos e se acabará também a dos Romanos pela sucessão do Quinto Império. E isto quer dizer em frase da Escritura - non inventus est locus ejus-que «se não achou mais o seu lugar», porque sucederam outros nele, como se vê no exemplo de Judas, de quem fala a Escritura pelos mesmos termos, e consta que sucedeu em seu lugar S. Matias.
                Ao argumento de Tertuliano que se fundava na eternidade do Quinto Império, já temos dito que a continuação dele no Céu há-de ser verdadeiramente eterna em toda a propriedade e largueza da significação desta palavra. Mas se entendermos o texto de Daniel da duração somente que o Império de Cristo e dos Cristãos há de ser neste Mundo, pela palavra eternidade não se entende rigorosamente duração sem fim, senão continuação e permanência de muito tempo, que depois veremos quanto há-de ser. Entretanto basta saber-se que a palavra eterno tem este mesmo sentido e limitação em muitos lugares da Escritura, como notou S. Agostinho na Questão 3I.a sobre o Gênesis, e mostraremos mais largamente quando escrevermos a duração do Quinto Império.
                Mas para que tiremos todo o escrúpulo aos outros razão será não passe sem satisfação uma grande dúvida que, por ser fundada nas mesmas palavras do texto de Daniel, não só pode embaraçar a verdade da nossa sentença, mas confirmar na contrária os autores e seguidores dela. Aspiciebam (diz Daniel na segunda visão) donec throni positi sunt, et Antiquus dierum sedit vestimentum ejus candidum quasi nix, et capilli captis ejus quasi lana munda; thronus ejus flammæ ignis rotæ ejus ignis accensus, Fluvius igneus, rapidusque egrediebatur a facie ejus. Millia millium ministrabant ei, et decies millies centena millia assistebant ei; judicium sedit et libri aperti sunt, etc. E estas palavras por todas as circunstâncias do trono, do fogo, da assistência dos anjos, dos livros que se abriram e do mesmo nome de juízo, não só parece que significam, senão que estão demonstrando o vigor e majestade do juízo final, e assim o entendem mais ordinariamente os expositores desta visão. Logo, se o Reino e Império de Cristo e dos Cristãos há-de ser depois do juízo final, claramente se convence que ano é nem há-de ser Império desde Mundo, senão do outro.
                Respondo que é certo falar neste lugar o Profeta de juízo, e juízo de Deus, e juízo rigoroso e de grande majestade, mas digo com a mesma certeza que este juízo não é o juízo final, em que Cristo há-de vir julgar os vivos e os mortos no fim do Mundo, senão um juízo particular, em que o Padre Eterno há-de tirar o Reino e Império universal do Mundo ao tirano ou tiranos que então o possuírem, e para meter de posse e o entregar a Cristo, seu filho, como legitimo senhor e herdeiro dele, e aos professores de sua fé e obediência, que são os Cristãos.


Capítulo III - Se este Império de Cristo no Mundo é espiritual ou temporal
                Assentado, como acabamos de resolver, que este Império de Cristo e dos Cristãos, de que falam as profecias alegadas, é principalmente o da Terra e não o do Céu, ainda nesta suposição nos resta averiguar um ponto de grande importância e de cuja decisão depende o maior fundamento de todo este nosso discurso. Porque este Império de Cristo, que dizemos há de ser na Terra, ou pode ser espiritual ou temporal. espiritual como o que hoje tem o Sumo Pontífice, cujo poder e jurdição se ordena a governar os fiéis membros e súbditos da Igreja, a conseguir a bem-aventurança, que é o último fim do homem; temporal, como o que têm os príncipes católicos sobre os seus reinos e províncias, que se dirige a governar os vassalos por meio de leis prudentes e justas, que é o fim particular de todas as comunidades humanas, dos Cristãos católicos, em quanto este fim particular e mediato se ordena ao último fim.
                Isto posto, perguntamos agora se este Império de Cristo há-de ser espiritual ou temporal; e começando pela conclusão em que não há resistência nem dificuldade, diremos primeiramente que este Império de Cristo (o qual não há-de ser diferente do que hoje é, senão ,quanto ao modo como em seu lugar veremos) é império espiritual. Assim o ensinam e ensinaram sempre conformemente todos os Padres e Doutores da Igreja, todos os teólogos antigos e modernos, e todos os expositores de ambos os Testamentos, e se demonstra com o mesmo mistério da Encarnação e fim com que Cristo veio ao Mundo, e com a doutrina e ações de sua vida e morte.
                Porque, se perguntarmos aos Evangelistas (deixando o testemunho das outras Escrituras) que fez Cristo e que ensinou com a palavra e com o exemplo, desde o dia em que nasceu até à hora em que expirou na cruz, dir-nos-ão que veio ensinar aos homens a ciência da saúde e salvação; que veio ser luz do Mundo e alumiar os que vêm a ele; que veio lançar fogo na terra, para que se acendesse nela a claridade que tão apagada estava; que veio encher e informar a lei e animar a letra com o espírito; que veio vencer o demônio e lançá-lo do Mundo, onde reinava e se intitulava príncipe; que veio apartar os pais dos filhos e os filhos dos pais, para que a graça prevalecesse contra a natureza e o amor de Deus pudesse mais que o do sangue; que ensinou o desprezo das riquezas, os interesses da esmola, o perdão das injúrias, a verdadeira amizade com os inimigos, a virtude da humildade e a da castidade, uma não usada, outra não conhecida no Mundo, que pregou o Reino do Céu, a eternidade do Inferno, o rigor do juízo, o preço e imortalidade da alma; finalmente que abriu sete fontes de graça e ou que instituiu sete sacramentos perpétuos e ficou Ele conosco perpetuamente em sacramento; que nos lavou com o seu sangue, que morreu por nós, e que nos deixou o seu amor e o nosso contentamento.
                Sendo pois estas as ações daquele Senhor a quem antes de vir ao Mundo todos os profetas chamaram Pai, e em seu nascimento foi aclamado Rei e em sua morte intitulado Rei; e sendo todas elas ordenadas só à salvação e perfeição dos homens e dirigidas e encaminhadas ao Céu, cujo reino lhes pregou e prometeu sempre, e estando até aquele tempo fechado, lho abriu e mereceu com seu sangue; que maior sentimento se pode desejar, nem que maior demonstração ou evidência de ser o Reino e Império deste santíssimo e soberaníssimo Rei, Reino e Império espiritual?
                Foi Reino e Império espiritual no fim e causas de sua instituição, espiritual nas leis, espiritual no governo, espiritual no uso, nas execuções e no exercício; e suposto que dizemos há-de ser sempre o mesmo (nem é decente nem seria crível outra cousa), em qualquer tempo futuro será e há-de ser também espiritual.
                Não alegamos aos autores desta doutrina, assim por serem todos, como dissemos, como porque alegaremos muitos no capítulo seguinte.


Capítulo IV - Examina-se se o Reino e Império de Cristo é também temporal. Refere-se a opinião negativa
                O império e domínio temporal é certo que de sua natureza não exclui nem implica com o temporal, de modo que um outro domínio bem pode sem repugnância alguma convir e ajustar-se no mesmo sujeito. Assim vemos que o Sumo Pontífice, tendo o domínio espiritual de toda a Igreja, é também senhor e príncipe temporal do estado que chamam eclesiástico; em Alemanha, três dos eleitores do Império são príncipes eclesiásticos e senhores temporais de seus estados; e no nosso reino, o Arcebispo primaz é juntamente Bispo e Senhor de Braga.
                Suposto pois que o Reino e Império de Cristo seja espiritual, como acabamos de resolver, resta examinar agora se é também império temporal. Muitos e graves teólogos seguem de tal maneira a parte negativa que exclui totalmente do Império de Cristo toda a jurdição, poder e domínio temporal, e somente lhe concedem ou admitem nele o puramente espiritual; bem assim como aquele que os príncipes eclesiásticos têm sobre suas igrejas ou ovelhas (posto que por modo mais sublime e excelente) mas de nenhum como aquele que os senhores e príncipes seculares têm sobre seus estados e vassalos.
                Fundam primeiramente esta sua sentença em muitos lugares da Escritura e particularmente em todos aqueles com que no capítulo passado mostramos o seu nome e título de Rei, que os Profetas davam a Cristo; e notam bem advertida e doutamente estes autores que todas as vezes que os textos da Escritura Sagrada falam no Reino, Império, domínio, poder ou principado de Cristo, sempre acrescentam alguma explicação ou limitação com que o nome geral de Rei e Senhor se distinga ou aliene da significação de poder temporal, e se limite, estreite e determine ao espiritual somente.
                No Salmo II chama David a Cristo Rei constituído por Deus - Ego autem constitutus sum rex ab eo; mas logo limita a significação do ofício ou dignidade, dizendo que para pregar seus preceitos-praedicans praeceptum ejus. No Salmo XLIV descreve o mesmo Profeta as prosperidades e progressos do Reino de Cristo: ...intende, prospere procede et regna; mas logo declara o gênero de armas, todas espirituais, com que há-de conquistar o Mundo: Propter veritatem et mansuetudinem et justitiam , et deducet te mirabiliter dextera tua. Isaias, no capítulo IX, anuncia o mesmo Reino de Cristo e sua perpetuidade: ...super solium David et super regnum ejus sedebit in eternum; mas logo aponta os fundamentos espirituais também, de que lhe háde vir a firmeza: ut confirmet illud et corroboret in judicio et justitia. Jeremias, no capítulo XXIII, celebra o Reino e sabedoria de Cristo Rei: ...regnabit rex et sapiens erit; mas logo determina os efeitos dessa sabedoria que hão-de ser encaminhados todos à salvação: In diebus illis salvabitur Juda. Zacarias no capítulo IX descreve o triunfo de Cristo aclamado por rei na entrada de Jerusalém: Ecce Rex tuus veniet tibi; mas logo lhe chama rei e salvador justo, pobre e humilde: Justus et salvator, ipse pauper et ascendens super asinam. Finalmente, o mesmo Cristo »— confessando a Pilatos que era rei »— Tu dicis quia rex sum ego - acrescentou logo que o seu Reino era para dar testemunho da verdade ao Mundo: Ego in hoc veni in mundum ut testimonium perhibeam veritati. E depois de ressuscitado, declarando aos Apóstolos com a maior majestade de palavras que podia ser a grandeza de seu império, domínio e potestade-Data est mihi omnis potestas in Cælo in Terra-a conseqüência que tirou deste poder tão universal foi: Euntes in mundum universum prædicantes Evangelium omni creaturæ; qui crediderit et baptizatus fuerit, salvus erit: fé, batismo e salvação dos homens. Segue-se logo que o Reino e Império de Cristo é espiritual somente, e de nenhum modo temporal. Sobretudo está por esta parte aquele claríssimo oráculo de Cristo: Regnum meum non est hoc mundo - o meu Reino não é deste Mundo, das quais palavras podemos dizer: Quid adhuc egemus testibus?
                A eficácia destes textos se acrescenta a de muitas razões e argumentos, entre os quais porventura não é o que tem granjeado menos votos a esta opinião errada aquela palavra temporal, a qual, construída com o Império de Cristo e pronunciada aos ouvidos mais religiosos e espirituais, parece que traz consigo alguma dureza e dissonância, por não dizer indecência.
                De que servia a Cristo (dizem) o nome ou jurdição de Rei temporal do Mundo, se ele vinha como vimos a confundir com seu exemplo o mesmo Mundo, os mesmos reis e as mesmas temporalidades? Se a perfeição cristã que Cristo veio ensinar aos homens consistia em deixar tudo e seguir em pobreza e humildade a Cristo pobre e humilde, como dizia com esta renunciação de todos os bens, honras e haveres do Mundo, o domínio, o império, a majestade de todo ele? E se esta majestade, este império e este domínio não havia de ter (como nunca teve com Cristo) uso ou exercício público, e havia de estar sempre oculto e encoberto aos homens, não seria maior autoridade, maior exemplo e ainda maior circunstância de perfeição saber-se que o renunciara Cristo, podendo tê-lo, que dizer-se que o tivera e conservara, e ainda que o pedira, como alguns dizem? Com que liberdade ou com que confiança havia de aconselhar ou mandar Cristo a certo mancebo que, se queria ser perfeito, deixasse o domínio das suas herdades, se no mesmo tempo o mestre desta perfeição retivesse o domínio de toda a Terra? Para que se há-de admitir logo o nome deste Império temporal em Cristo; se nem para o decoro da pessoa, nem para o fim do ofício, nem para o exemplo da doutrina era necessário, e para o exercício e uso que nunca teve realmente inútil e ocioso?
                Estas razões ou admirações, que não são muitas vezes as que menos persuadem, se fecham e apertam eficazmente com um discurso fundido em todos os princípios gerais de direito, com que parece aos autores desta sentença que não só estabelecem de todo a certeza dela, mas que convencem e desfazem a probabilidade de qualquer outra. Argumentam ou decorrem assim:
                Se Cristo foi Rei temporal, ou foi Rei por direito natural, ou por direito divino, ou por direito humano. Por direito natural não, porque Cristo não era filho nem herdeiro de rei; e dado que fosse legítimo sucessor do Reino de Israel, como dizem menos provavelmente alguns autores, a herança de um reino particular não lhe dava direito para o império de todo o Mundo. Por direito divino também não, porque, se houvera tal direito, constara pelas Escrituras, e posto que muitos textos da Escritura falem de Cristo como Rei e lhe dêem o nome e título de Rei, todos, como vimos, se entendem do Reino espiritual ou celeste, e quando menos se podem interpretar assim, sem nos obrigarem a que os entendamos do Reino ou Império temporal. Finalmente, por direito humano não, porque a jurdição de fazer ou eleger rei está na comunidade dos homens; e para Cristo ser respectivamente Rei universal de todo o Mundo por esta via, era necessário que todos os homens e comunidades do Mundo se unissem em um consentimento, com que o elegessem por Rei e Senhor de todas, o que nunca houve, antes sabemos que os príncipes e povo de Judéia, que era a terra onde Cristo vivia, se conjuraram contra ele e lhe tiraram a vida, só porque não tomasse o nome de Rei; e que o mesmo Senhor, na ocasião em que alguns deles lho quiseram dar, fugiu deles e do mesmo título, e se escondeu em um monte para escapar daquela violência. Logo se não foi Rei temporal, nem por sucessão natural, nem por eleição humana, nem ,por doação ou nomeação divina, bem se conclui que o Reino e Império de Cristo, tão celebrado nas Escrituras, de nenhum modo foi nem pode ser temporal, se não espiritual e somente qual acima dissemos.
                Os Padres que isto disseram e seguiram querem alguns que sejam todos. Ao menos confessa Vasques que da doutrina dos Padres não se pode convencer o contrário. O primeiro que se alega é Santo Agostinho em muitos lugares, entre os quais o mais claro (ou o que parece) é este: Populi personam figurate gerebat homo ille, scilicet Saul; qui populus regnum fuerat amissurus Christo Domino nostro per Novum Testamentum, non carnaliter sed spiritualiter regnaturo. Nenhum dos outros Padres fala em termos de tanta expressão, mas alegam-se e podem-se alegar no mesmo sentido S. Ambrósio, S. Atanásio, S. João Crisóstomo, Tertuliano, Teófilo e outros, e diz o doutíssimo Maldonado que esta é a sentença comum dos melhores teólogos que assim o disseram. O douto leitor julgará se são os melhores. E são estes: Hermas, Letmatio, Driedo, Castro, Bertolameu de Medina, Jansénio, Vitória, Adrião Fino, João Parisiense, Francisco de Cristo, Melchior Flávio; e posto que também se citem por esta ,parte Soto, Abulense e Waldense, falam, por termos tão indiferentes, que Vasques os alega (e diz que assim se devem alegar) pela parte contrária.
                Advirta-se, porém, para crédito de Maldonado e nosso, que os teólogos que hoje têm maior fama nas escolas, quando ele escreveu, ainda não tinham escrito.

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