Volume I, Capítulo XI - Declara-se qual seja a novidade desta História, e
que as cousas novas, por novas, não desmerecem o crédito de sua verdade.
Quando no princípio deste livro prometemos cousas
novas aos curiosos, bem advertimos que metíamos as armas nas mãos aos críticos;
mas são estas armas já tão velhas e ferrugentas, que não há muito que temer
seus golpes, ainda que a novidade da nossa História fora qual se supõe, e não
é, contanto que não tenha, como por graça de Deus não tem, cousa alguma que encontre
a Fé ou doutrina da Igreja. 0 reparo da novidade não é crime de que ela tema
ser acusada, e pelo qual, quando o seja, ponha em risco o crédito da sua
verdade, se por si mesma lhe for devida.
Pensão é muito antiga das cousas boas e grandes serem
acusadas de novas. A primeira instituição da vida monástica, sendo o estado
mais santo da Igreja Católica, que acusações não padeceu antigamente (e padece
ainda hoje) dos hereges, pela novidade do hábito e modo de vida! Digam-no as
apologias de S. João Crisóstomo, S. Gregório, S. Bernardo Santo Tomás, S.
Boaventura, para que não falemos nos Waldenses, nos Platins, nos Soares, nos
Barónios, nos Belarminos. A mesma Lei de Cristo chamada por sua novidade
evangélica, em quantos Evros e tribunais de Gentios e Judeus foi terminada pela
glória deste título! Acusação foi de que a defendeu Tertuliano, Lactancio,
Arnóbio, Prudêncio, e todos os outros padres que antes e depois destes
escreveram contra Gentios. Mas o maior exemplo de todos neste caso é o daquela
divina obra de S. Jerônimo na versão da Sagrada Bíblia, que hoje adoptamos por
canónica, tão estranhada quando nova, não por Gentios ou hereges, nem só por
quaisquer católicos, senão pela maior luz da Igreja, Santo Agostinho. Quero pôr
aqui as palavras deste grande e santíssimo doutor, escritas não a outrem, senão
ao mesmo S. Jerônimo: De vertendis autem in latinam linguam sanctis litteris
laborare te nollem [ ] aut obscura sunt, aut manifesta. Si enim obscura sunt,
te quoque in eis falli potuisse creditur,- si manifesta, superfuum est te
voluisse explanare quod i11is latere non potuit: «!Quanto à versão das
Escrituras Sagradas na língua latina, obra é — diz o santo— em que eu não
quisera que vós empregásseis o vosso trabalho, porque ou elas são escuras ou
manifestas. Se escuras, com razão se crê que também vos podeis enganar na sua
interpretação, como os outros escritores; e se manifestas, supérflua diligência
é quererdes vós explicar o que os outros não podem deixar de ter entendido».
Até aqui zelosa, elegante e
engenhosamente Santo Agostinho, ao qual respondeu S. Jerônimo com igual
engenho, zelo e elegância, e verdadeiramente com vitória, por estas palavras::
Porro quod dicis non debuisse me interpretari post veteres, et novo utens
syllogismo [...] tuo tibi sermone respondeo: omnes veteres tractatores, qui nos
in Domino praecesserunt et qui Scripturas Sanctas interpretati sunt, aut
manifesta. Si obscura, quomodo tu post eos ausus es disserere, quod illi
explanare non potuerunt? Si manifesta, superfluum est te voluisse disserere,
quod illis latere non potuit [...] respondeat mihi prudentia tua, quare tu post
tantos ac tales scriptores et interpretes in explanatione Psalmorgm diversa
senseris? Si enim obscurt sunt Psalmi, te quoque in eis falli potuisse
credendum est; si manifesti, illos in eis falli potuisse non creditur, ac per
hoc utroque modo superflua erit interpretatio tua, et hac lege post priores
nullus loqui audebit, et quodcumque alius occupaverit, alius de eo scribendi
non habebit licentiam.
«Quanto ao que me dizeis—diz S. Jerônimo a S.
Agostinho — que eu me não devia cansar em interpretar as Escrituras depois dos
antigos intérpretes delas, e para isso usais daquele novo silogismo, respondo
com as mesmas vossas palavras: Todos os expositores dos Livros Sagrados, que
nos precederam no Senhor, ou interpretaram o que era escuro, ou o que era
manifesto. Se o que era escuro, como vos atreveis também a declarar o que eles
não puderam? Se o que era manifesto, supérfluo trabalho é cansar-vos em querer
fazer entender o que eles não podiam deixar de ter entendido. Responda-me logo
vossa prudência: com razão, depois de tantos e tais intérpretes, vos atrevestes
na exposição dos Salmos a sentir diversamente do que eles sentiam? Porque, se
os Salmos são escuros, também se deve entender que vós vos podeis enganar na
sua inteligência; e se são claros e manifestos, supérflua é e não necessária a
vossa interpretação E segundo esta lei, ninguém poderá falar depois dos
primeiros, e tanto que um se adiantar à exposição de algum Livro Sagrado, logo
nenhum outro terá licença para escrever sobre ele.»
Isto dizia Santo Agostinho a S. Jerônimo sobre a
novidade de sua versão, a qual hoje é de fé; e isto S. Jerônimo a S. Agostinho
sobre a novidade da sua exposição dos Salmos, que hoje . é antiqüíssima e mui
venerada, e depois dela se escreveram infinitas outras mais novas, e ainda os
Salmos não estão bastantemente interpretados. Assim que os reparos da novidade
são pensão (como dizia) das cousas boas e grandes, e não só entre os inimigos e
impugnadores da verdade, senão entre os maiores zeladores e defensores dela.
Mas destes mesmos exemplos se convence claramente
quão frívolas são e pouco eficazes as acusações do que se estranha por novo.
Não é o tempo, senão a razão, a que dá o crédito e autoridade aos escritores;
nem se deve perguntar o quando, senão o como se escreveram. A antigüidade das
obras é um acidente extrínseco que nem tira nem acrescenta validade, e só
porque põe os autores delas mais longe dos olhos da inveja, lhes granjeia a triste
fortuna de serem mais venerados ou melhor conhecidos depois da morte, que
vivos. As trevas foram mais antigas que o Sol e os animais que o homem. O
Testamento Velho não é mais perfeito que o Novo, por ser mais antigo, nem o
Novo perde a perfeição e excelência que tem sobre o Velho, por ser mais novo.
Que cousa há hoje tão antiga, que não fosse nova em algum tempo? Diz Salomão
que não há cousa nova debaixo do Sol; e ainda é mais universalmente certo, que
não há cousa debaixo do Sol que não fosse nova. A mais nova entre todas as do
Mundo foi o mesmo Mundo. Se a nossa religião é nova, argumentava Arnóbio contra
os Gentios, tempo virá em que seja velha; e se a vossa superstição é velha,
tempo houve em que também foi nova. Dizeis que a religião cristã é nova, porque
ainda não tem quatrocentos anos, e há menos de dois mil que os deuses que vós
adoráveis ainda não tinham cento. Com a mesma energia disse o imperador Cláudio
ao senado: Omnia, Patres conscripti, quae nunc vetustissima creduntur, nova
fuere: plebei magistratus post patricios, latini post plebeios, coeterarum
Italiae gentium post latinos; inveterescet hoc quoque, et quod hodie exemplis
tuemur inter exempla erit. E verdadeiramente é assim: quantas cousas são hoje
exemplos que começaram sem exemplo? Todas as opiniões ou verdades que se
escreveram, tiveram princípio, e aquele que as começou sem autor, foi o
primeiro que lhes deu a autoridade.
Acudia S. Jerônimo à queixa da sua nova versão, e diz
assim contra Rufino: Periculosum opus certe, et obtrectarorum meorum latratibus
patens, qui me asserunt in septuaginta interpretum sugillatione, nova pro
veteribus cudere; ita ingenium quasi vinum probantes. Discretamente; porque
antepor o velho ao novo só pelos anos, escolha parece mais de cela vinária, que
do trono ou cadeira de Salomão. E notem os leitores que são estas palavras de
uma das apologias que S. Jerônimo escreveu em defesa daquela nova versão da
Sagrada Escritura, que hoje se chama Vulgata, e é de fé católica; para que se
veja quais são os juízos dos homens e quão impugnadas que costumam ser as obras
de que Deus se quer servir.
Não tinha esta de S. Jerônimo outro reparo mais que a
glória de ser sua e nova; mas sobre esta lhe argüía Rufino e outros homens
doutos tais calúnias, que a queriam fazer não menos que herética, como se só os
antigos fossem católicos e a verdade sem cãs não fosse verdade. Uns o faziam
por zelo, outros por inveja, muitos por malícia, todos por ignorância.
E verdadeiramente que, se bem apontamos os
fundamentos destes impugnadores d a novidade e as razões daquela dura lei com
que forçosamente querem que sigamos em tudo os antigos e adoremos as suas
pisadas, ou é porque têm para si que já se não podem dizer cousas novas, ou que
não há capacidade nos modernos para as poderem descobrir e dizer. Se o
primeiro, grande injúria fazem à verdade e às ciências; se o segundo, grande
afronta aos homens e à nossa idade. Mas não me ouçam a mim, ouçam aos mesmos
antigos. E começando pelos Gentios, alumiados só pelo lume da razão, Séneca, na
epist. LXIV, escreve ou ensina a Lucilo desta maneira: Multum adhuc restat
operis, multumque restabit; nec ulli nato, post mille secula, praecludetur
occasio aliqua adhuc adjiciendi. [...] Multum egerunt, qui ante nos fuerunt,
sed non peregerunt. E na epístola LXXIX:: Et qui praeesserant, non praeripuisse
mihi videntur quae dici poterant, sed aperuisse; sed multum interest, utrum ad
consumptam materiam, an ad subactam accedas: crescit in dies, et inventum
inventa non obstant. E Marco Túlio, formando um perfeito orador no livro
Orator: Nec vero Aristotelem in philosophia deterruit a scribendo amplitudo
Platonis, nec ipse Aristoteles admirabili quadam scientia et copia caeterorum
studia restrinxit
Até aqui estes dois gentios, em que era ainda maior a
soberba e presunção que a ciência. E se estes, sendo ambos eminentíssimos nas
suas artes não duvidaram confessar que havia ainda muito mais que andar, que
inventar, que descobrir e saber nelas, porque havemos nós de esperar e afrontar
tanto a nossa idade e os homens dela, que cuidemos que já não podem adiantar as
ciências nem dizer e acrescentar sobre elas cousa de novo?
Sêneca floresceu nos tempos de Nero, que vem a ser,
por boas contas, dezesseis séculos antes deste nosso; e se ele conheceu que os
que nascessem de ali a mil séculos, ainda teriam muito que dizer na mesma
filosofia moral em que ele tanto e tão sutilmente disse, que muito é que se
atreva a dizer alguma cousa nova a nossa idade, se ainda lhe restam por sua
confissão novecentos e oitenta e quatro séculos (se tantos durar o Mundo) para
dizer e inventar muito de novo sobre o mesmo Sêneca? Se depois do divino Platão
(como pondera Túlio) não acovardaram os seus escritos a Aristóteles para que
não escrevesse, nem a admirável sabedoria e cópia do mesmo Aristóteles pôde
apagar os fogosos espíritos de tantos filósofos que depois dele e sobre ele
escreveram, sendo por comum aprovação do Mundo um dos maiores engenhos que
produziu a Grécia e a mesma natureza, porque havemos de querer abreviar as mãos
do Autor dela e cuidarmos que já não podem falar de novo os homens presentes, e
só lhes damos licença para decorarem e repetirem o que disseram os passados? Se
assim fora, debalde nos deu Deus o entendimento, pois nos bastava a memória.
Porque, como bem disse o mesmo Sêneca, saber só o que os Antigos souberam, não
é. saber, é lembrar-se: Aliud est meminisse, aliud scire. Meminisse est rem
commissam memoriae custodire; at contra scire, est et sua facere quemque, nec
ab exemplari pendere, et toties ad magistratum respicere.
Estes tais haviam de ter a testa virada para as
costas, como dizem os Italianos dos Alemães, que todos se ocupam na erudição do
passado, sem descobrir nem inventar cousa nova. Muito alcançaram os Antigos, e
se lhes deve o primeiro louvor; mas ainda nos deixam seus grandes talentos em
que exercitar os nossos.
E se isto é assim nas ciências humanas, que será
naquele pego imenso e profundíssimo das divinas) Mas ouçamos também aos antigos
delas.
David que veio ao mundo 3000 anos depois de sua
criação, dizia confiadamente, que soubera e entendera mais que todos os velhos:
Super senes intelexi; e estes velhos eram aqueles varões veneráveis da primeira
antigüidade — Seth, Enoch, Mathusalem, Noe, Abraão, Isaac Jacob, José, Moisés
Josué, Melquisedech, Samuel e tantos outros de igual sabedoria e nome. Desde a
criação do Mundo até a reparação dele, em que se contaram quatro mil anos,
sempre os homens se foram excedendo na sabedoria divina, ainda que fossem
diminuindo na idade. Não é consideração minha, senão doutrina de S. Gregório,
Papa: Per incrementa temporum crevit scientia spiritualium Patrum; plus namque
Moyses quam Abraham, plus Prophetae, quam Moyses, plus A postoli, quam
Prophetae in Omnipotentis Dei scientia eruditi sunt: «Ao passo que iam
procedendo os tempos —diz S. Gregório— ia juntamente crescendo a sabedoria dos
antigos Padres, conhecendo sempre mais de Deus os segundos que os primeiros.
Moyses soube mais das cousas divinas que Abraão; os Profetas mais que Moysés;
os Apóstolos mais que os profetas». E o mesmo que tinha sucedido naquela
primeira e antiga igreja, se experimenta depois na segunda, nova e mais
perfeita em que hoje estamos, de que ela tinha sido figura, porque, passados os
tempos de Cristo e de sua vida, em que a sabedoria eterna viveu humanada no Mundo
entre os homens (que foi um parêntesis excessivo e infinito de luz, com o qual
nenhum outro estado da Igreja se pode comparar), nos séculos que depois foram
sucedendo, dos Padres e Doutores sagrados, sempre foram também crescendo, com
novos e maiores resplendores, as ciências divinas, acrescentando, ilustrando e
escrevendo muitas cousas de novo os que vinham depois, sobre o que tinham
sabido e ensinado os mais antigos.
Lactancio Firmiano, Padre dos primeiros séculos da
Igreja, a quem tinham precedido os Dionisios Areopagitas, os Hieroteus, os
Inácios, os Policarpos, os Ireneus, os Justinos, os Orígenes, os Tertulianos,
os Clementes Alexandrinos, no Liv. II: Divinarum Institutionum, diz assim: Nec
qui nos illis temporibus antecessunt;quae si hominibus aequaliter datur,
occupari ab antecedentibus non potest. S. Jerônimo, que floresceu muito depois
do mesmo Lactancio e a quem prece deram os Hipólitos, os Ciprianos, os
Taumaturgos, os Arnóbios, os Atanásios, os Basílios, os Teófilos, os Cirilos,
os Epifânios, aumentou e adiantou tanto o estudo das divinas letras, que
mereceu na eminência delas, por consenso e pregão universal da igreja, o renome
de doutor Máximo, na Apologia acima citada , contra Rufino, escreve o santo
Doutor com a modéstia com que costumam falar os homens maiores, estas palavras:
Quid igitur? Damnamus veteres? Minime; sed post priorum studia in domo Domini,
quod possumus, laboramus. E convertendo-se no fim contra os vituperadores dos
inventos novos, estranha muito que, sendo o apetite ou gula humana tão
ambiciosa de novos e esquisitos sabores, só nas ciências, que são o sabor dos
entendimentos se contentam os homens com a vulgaridade ou velhice dos manjares
usados: Nam cum nova semper expectant voluntates, et gulae earum vicina maria
non sufficiant, cur in solo studio scripturarum veteri sapore contentis sunt ?
São Gregório Magno, que veio ao Mundo para lhe dar
melhor cabeça do que seu juízo e errados juízos merecem, depois dos outros dois
Gregórios, Nazianzeno e Niceno, e do mesmo Jerônimo- depois dos Clímacos, dos
Procópios, dos Boécios, dos Cassianos, dos Teodoretos; depois dos Euquérios,
dos Pascásios, dos Máximos, dos Paulinos, dos Cassiodoros; depois dos
Hesíquios, dos Crisólogos, dos Leões, dos Atanásios, dos Fulgêncios, e, o que é
mais que tudo, depois de um Crisóstomo, de um Ambrósio e de um Agostinho,
penetrou tão alta mente o espírito interior da Teologia Mística e Ascética, que
por aplauso comum do Concílio oitavo toletano foi preferido a todos os Doutores
na doutrina ética e moral, com aquele famoso elogio: In ethicis assertionibus
praecunctis merito praeferendus.
Mas nem por isso depois de tantos e tão esclarecidos
lumes da Igreja deixaram de espalhar nela, em todos os séculos seguintes, novos
raios de novas luzes os três ilustríssimos espanhóis — Isidoro, Eugenio e
Ildefonso; os Sofrónios, os Elísios, os Bedas, os Damascenos, os Anselmos, os
Teofilatos, os Eutímios, os Rupertos, um Bernardo, nome singular, e muitos
outros; entre os quais Ricardo Vitorino, defendendo modestamente alguma
novidade que se acharia em seus livros, diz assim no prólogo de um deles: Non
est magnum, vel mirum, si in uno aliquo, aliquid addere possumus [...] haec
propter illos dicta sunt, qui nihil acceptant, nisi quod ab antiquissimis
patribus acceperunt; sed sicut Deus produxit novos fructus ad recreationem
hominis exterioris, non credunt scientias impertiri ad innovandos sensus
hominis interioris: «Não se tenha por cousa grande — diz Ricardo — nem
merecedora de admiração, que em alguma matéria das que escrevemos, possamos
acrescentar alguma cousa de novo; e digo isto por aqueles que nada admitem nem
lhes é aceito, senão o que primeiro foi recebido pelos antiquíssimos Padres.
Mas se Deus para sustento e gosto dos corpos, produz inacessivelmente todos os anos
tantos frutos novos, porque não cuidarão que também as ciências podem produzir
cousas novas para alimento e recreação das almas?»
Não se podia explicar com mais clara comparação nem
provar-se com mais eficaz argumento, e desde aquele tempo, que foi pelos anos
de mil e trezentos a esta parte, se tem confirmado pela grandeza e liberalidade
de Deus em todos os séculos, com mais repetidos exemplos que nos passados,
porque não só alumiou a Divina Providência pouco depois o Mundo todo com
aquelas duas tochas claríssimas e santíssimas de teologia — Santo Tomás e São
Boaventura — mas antes e depois deles, para aumento ou competência de suas
mesmas luzes, as cercou de tão luminosas e resplandecentes estrelas, que em
outra idade podiam ter nome de primeiros planetas, como foram um Alberto Magno,
um Alexandre de Ales e o famosíssimo e subtilíssimo Scoto, não só luz, senão
fonte de luzes; as quais depois deste doutíssimo século se multiplicaram em
tanto número, que se pode com razão dizer do Mundo o que Deus disse a Abraão do
firmamento: Numera stellas, si potes.
E porque é matéria impossível e número sem conto,
fiquem em silêncio (por mais que tão grande brado deram nas escolas) os
Vasques, os Soares, os Molinas, os Valenças, os Belarminos, os Canísios, os
Toledos, os Lugos, os Caetanos, os Soutos, os Medinas, os Vitórias, em cujos
felicíssimos e imensos escritos se vêem tão adiantadas as letras divinas, que
mais parecem novas que renovadas.
Digam agora os reprovadores das que eles chamam
novidades, se se pode ainda sobre os Antigos dizer alguma cousa de novo.
É porventura o saber e dizer patrimônio só da
Antigüidade e morgado como o de Isaac que, dada a bênção a Jacob, não fica
outra para Esau? São os antigos como os cântaros da Sareftana (comparação de
que usa Ruperto) que, depois de cheios eles, parou a fonte milagrosa, e não
correu mais o óleo? Houve neste grande oceano de ciências alguma nau Vitória
que desse volta a todo o mar? ou algum Gama que, passado o cabo de Boa
Esperança, a tirasse a todos os outros de novos descobrimentos? E se depois
deste famoso círculo do Universo, ainda ficaram mares e terras incógnitas que
prometem novas empresas e novos argonautas, que será na esfera da sabedoria e
da verdade, cuja imensa e infinita circunferência só a pode abraçar 0 que é
imenso e compreender O que é infinito? Se depois dos antiquíssimos tiveram que
descobrir os menos antigos, e depois dos que já não eram os primeiros, tiveram
que inventar mais que os segundos, porque não quererão os adoradores ou
aduladores da Antigüidade que, ainda depois de tanto dito, haja mais que dizer,
e depois de tanto escrito, mais que escrever, e depois de tanto estudado e
sabido, mais que estudar e saber?
Como temo que os que condenam as cousas novas, são
aqueles que não podem dizer senão as muito velhas, e pode ser que muito
remendadas! O avarento chama pródigo ao liberal. O covarde temerário ao
valente. O distraído hipócrita ao modesto; e cada um condena o que não tem, por
não confessar o que lhe falta. O grande P.e Soares, que tanto tinha em si do
que os Antigos souberam, dizia que daria de alvíssaras o que sabia, se lhe
dessem o que ignorava, isto é, o que ficou aos vindouros para poderem saber e
dizer de novo; mas querer precisamente que nos atemos em tudo aos passados, é
querer atar os vivos aos mortos, crueldade que só se lê de Mezêncio.
Fechemos este discurso, ou adocemos a dureza deste
rigor com o melífluo Bernardo, o qual, como sempre falou pela boca da
Escritura, assegura firmemente aos vindouros que poderão ter maiores notícias
das cousas, do que tiveram e alcançaram os Antigos, e o prova e refere em dois
textos ou dois exemplos: um de David, que afirmou que soubera mais que os
passados; outro de Daniel, que prometeu saberiam mais os futuros: David quoque
super doctores suos et seniores donum sibi intelligentiae audacter praesumit,
dicens: Super omnes docentes me intellexi. Sed et propheta Daniel:
pertransibunt, ait plurimi et multiplex erit scientia, ampliorem scilicet rerum
notitiam promittens et ipse posteris.
Até aqui São Bernardo, escrevendo a Hugo de São
Vítor, que também lhe tinha escrito lastimado da mesma chaga. Todos os grandes
engenhos tiveram sempre esta queixa, e todos se armaram destas apologias,
porque todos disseram cousas novas; e nenhum careceu de quem lhas impugnasse.
Não ha cousa boa sem contradição, nem grande sem inveja:
...Che
come crebber l'arti,
Crebbe
l'invidia; e col sapere insieme
Ne'
cuori enflati i suoi veneni sparti.
Mas
antes de Petrarca o tinha dito em Roma o nosso discreto espanhol:
Esse
quid hoc dicam, vivis quod fama negatur,
Et
sua quod rarus tempora lector amat?
Hi
sunt invidiae nimirum, Regule, mores,
Praeferat
antiquos semper ut illa novis.
Si
veterem ingrati Pompeii quaerimus umbram
Et
laudant Catulli vilia templa senes
Ennius
et lectus salvo tibi, Roma, Marone
Et
sua riserunt saecula Maeonidem.
Os que
mais queriam louvar a Cristo, diziam que era um dos Profetas antigos, sendo ele
a luz de todos os Profetas, e Herodes se persuadia que não podia ser senão o
Baptista ressuscitado, sendo aquele a quem o Baptista não era digno de desatar
a correia do sapato. Todas as cousas novas que se disserem nesta História, são
aquelas que Deus tem prometido que há-de fazer, quando disse: Ecce nova facio
omnia. Se acaso houver quem as impugne e contradiga, porque nem Deus pode fazer
cousa de novo, sem contradição dos mesmos para quem as faz. A cousa mais nova
que Deus fez no Mundo, foi aquela de que disse o Profeta: Creavit Dominus novum
super terram: faemina circumdabit virum. E esta novidade foi o alvo das maiores
contradições, como também predisse outro profeta: ...signum cui contradicetur.
Mas para que não pareça que defendo as cousas novas,
por não ser necessário este escudo à minha História respondendo à objeção da
novidade dela, digo que em toda essa novidade, com ser tão grande, nenhuma
cousa direi de novo. Propriedade é dos futuros serem sempre novos todos, por
isso os últimos e mais distantes se chamam novíssimos; mas ainda que esta
História seja toda de cousas tão novas, nem por isso ela será nova. :Ê uma
História nova sem nenhuma novidade, e uma perpétua novidade sem nenhuma cousa
de novo; como isto possa ser. explicarei por alguns exemplos.
Quando os Romanos a primeira vez bateram os muros de
Cartago com o aríete ou carneiro militar, ficaram os Cartagineses assombrados
com a novidade daquela máquina, e não era novidade, senão esquecimento; porque
os primeiros inventores daquele bravo instrumento tinham sido os mesmos
Cartagineses; mas como havia muitos anos que gozavam da altíssima paz, esquecia-se
Cartago do que inventara Cartago, e sendo cousa antiga e sua, a tinha por
novidade.
Quero dizê-lo com palavras do grande Tertuliano, cuja
foi esta advertência: ...arietem [...] nemini umquam adhuc libratum, illa
dicitur Carthago studiis asperrima belli, prima omnium armasse in oscillum
penduli impetus [...] cum autem ultimarent tempora patriae, et aries jam
romanus in muros quondam suos auderet stupuere illico Carthaginienses, ut novam
extraneum ingenium. Tantum aevi longinqua valet mutare vetustas. De maneira que
o aríete, de que Cartago tinha sido a primeira inventora, parecia instrumento
novo aos mesmos Cartagineses, não por novo, senão por esquecido; não por novo,
senão por muito antigo.
Muitas novidades se verão nesta nossa História não
novas por novas, senão novas por antiquíssimas. As pirâmides e obeliscos que
assombraram com tão nova e desusada grandeza o foro romano (com boa vénia dos
Padres Conscritos), depois de serem velhice no Egito, foram novidade em Roma.
Serão novas neste nosso livro cousas que foram primeiro que as que hoje se têm
por antigas. A nova opinião dos céus fluidos, também recebida em nossos dias,
primeiro foi que a antiga de Aristóteles, que com tão continuado aplauso do
Mundo os fez sólidos e incorruptíveis.
Nas ciências nascem poucas verdades; as mais delas
ressuscitam. Se no Mundo, como pouco há dizia Salomão, não há cousa nova, como
se vêem cada dia tantas novidades no Mundo? São novidades de cousas não novas,
e tais serão as desta História.
Quando Adão saiu flamante das mãos de Deus, abriu os
olhos, e viu tanta cousa nova, e todas eram mais antigas que ele. Nem eram elas
as novas; ele era o novo. A novidade da nossa História há-de ser mais dos
leitores que dela. Para aquele cego de seu nascimento, a quem Cristo abriu os olhos,
ainda que não eram novas as quantidades, porque as apalpava, foram novas as
cores, porque as não via; já havia cores e luz, mas não havia olhos. Ao
terceiro dia da criação produziu a terra todas as árvores carregadas dos seus
frutos. Se não fora assim, não tivera ocasião o preceito, nem tentação o
pecado. Todos os frutos nasceram igualmente naquele dia. as pêras, os figos, as
uvas e também as frotas novas; mas estas tiveram este nome, porque chegaram
mais tarde à nossa terra.
Porventura aquela metade do Mundo a que chamavam
quarta parte, não foi criada juntamente com Ásia, com África e com Europa? E
contudo, porque a América esteve tanto tempo oculta, é chamada Mundo Novo; novo
para nós, que somos os sábios; mas para aqueles bárbaros, velho e muito antigo.
Assim que, recolhendo todos estes exemplos, umas cousas faz novas o
esquecimento, porque se não lembram. outras a escuridade, porque se não vêem;
outras a ignorância, porque se não sabem; outras a distancia, porque se não
alcançam. outras a negligência, porque se não buscam; e de todas estas
novidades sem novidade, haverá muito nesta nossa História. Lembraremos nela
muitas cousas esquecidas, alumiaremos muitas escuras, descobriremos muitas
ocultas, poremos à vista muitas distantes e procuraremos saber muitas
ignoradas.
E por não deixarmos sem juízo a controvérsia
disputada entre as cousas novas e as velhas, certamente entre umas e outras não
se pode dar regra certa. O tempo umas cousas melhora e outras corrompe: ouro
velho, vinho velho, amigo velho; casa nova, navio novo, vestido novo. A velhice
no ouro é preço, no vinho madureza, no amigo constância, no vestido pobreza, no
navio e na casa perigo; absolutamente nas cousas que se consomem com o tempo,
melhores são as novas.
Mais defendida está Roma com os muros de Urbano, que
com os de Beluário; uns se conservam pelo que foram, outros pelo que são; em
uns se admira a antigüidade, em outros se logra a fortaleza. A verdade e as
ciências, em que não tem jurisdição o tempo, impropriamente se chamam novas ou velhas,
porque sempre são, sempre foram e sempre hão-de ser as mesmas, posto que nem
sempre se conhecem igualmente. De Deus, que por essência é sabedoria e verdade,
disse Tertuliano judiciosamente que nem é velho nem novo, mas verdadeiro:
...germana divinitas nec de novitate nec de vetustate, sed de sua veritate
censetur. E como a verdade da nossa História toda (como vimos) tenha o seu
princípio em Deus, pedimos aos que a lerem que, assim no certo como no
provável, nem se atenda se é velho, nem se repare se é novo, mas só se
considere se é ou pode ser verdade: Nec de novitate nec de vetustate, sed de
sua veritate censeatur. E quanto ao louvor que renunciamos facilmente, ainda
que o merecêramos, digo com indiferença o que ensinou Cristo: ...scriba doctus
[...] profert de thesauro suo nova et vetera: «Os doutos quando escrevem, tiram
do seu tesouro as cousas novas e mais as velhas. Saber as velhas e inventar as
novas, isto parece que é ser douto. Mas notou Santo Agostinho que não disse
Cristo as velhas e as novas, senão as novas e as velhas, dando o primeiro lugar
às novas, porque as avaliou a suma justiça pelo merecimento e não pelo tempo:
Non dixit vetera et nova, quod utique dixisset, nisi maluisset meritorum
ordinem servare, quam temporum. As cousas velhas são do tempo, as novas do
merecimento; porque as velhas são alheias, as novas nossas.
Todos dizem que os Antigos merecem maior louvor, e é
assim; mas este louvor, se bem se considera, não é elogio da antigüidade, senão
da novidade. Merecem maior louvor os Antigos, porque foram os primeiros
inventores das cousas; logo da novidade é o louvor, pois o mereceram, quando as
descobriram de novo. Se fora outro o autor desta História, folgara eu que se
pudera dizer dele com Vincêncio Lirinense: Per te posteritas gratulatur
intellectum, quad ante vetustas non intellectum venerabutur.
Volume I, Capítulo XII: Dá-se a razão por que em algumas partes desta
História se não alegaram padres e seguiram exposições dos escritores modernos
Ainda
que o nosso intento é seguir em quanto nos for possível as pisadas dos antigos
Padres, como Padres e lumes da Igreja, depois dos Apóstolos (os quais não
entram nesta controvérsia, porque em tudo o que escreveram foram alumiados pelo
Espírito Santo, e segui-los como havemos de seguir em tudo, não é só obséquio e
piedade, senão obrigação e respeito); e posto que o nosso desejo fora levar
sempre diante dos olhos esta segunda tocha, para alumiar e penetrar com sua
luz, como dizíamos, o escuro das profecias; contudo, porque não é nem será possível
seguir em algumas cousas das que dizemos ou dissemos este nosso intento e
desejo, pede a razão e ordem da mesma Escritura que, antes de passar mais
adiante, desfaçamos este reparo, para o que os menos doutos ou mais
escrupulosos não topem nele e levem desde logo entendidas as causas do que
fizermos e os fundamentos, licença ou autoridade com que o fazemos. Ver-se-á em
algumas partes desta História, que ou não alegamos Padres antigos, ou nos
desviamos da explicação que deram a alguns lugares da Escritura, o que não
fazemos senão com grandes razões, sem ofensa da reverência que lhes devemos nem
da verdade que seguimos, antes para maior segurança e fundamento dela, a qual é
o nosso intento e obrigação buscar e descobrir adonde quer que se ache,
antepondo este respeito a qualquer outro, pois à verdade se deve o maior de
todos.
As razões que nos movem e obrigam são três: a
primeira, porque os Doutores antigos não disseram tudo; segunda, porque não
acertaram em tudo; terceira, porque não concordam em tudo. E com qualquer
destes casos nos pode ser. não só lícito e conveniente, senão ainda necessário
seguir o que se julgar por mais verdadeiro; porque nas cousas que não disseram,
é forçoso falar sem eles; nas cousas em que não acertaram, é obrigação apartar
deles; e nas cousas em que não concordaram, é livre seguir a qualquer deles; e
também será livre e lícito deixar a todos, se assim parecer, como logo
explicaremos.
Prova-se
a primeira razão
Primeiramente é certo que os Padres antigos não
disseram tudo, e se prova claramente com a experiência e lição de seus próprios
livros, nos quais se não acha memória de muitas cousas grandes e doutas,
achadas e acrescentadas depois, não só nas outras ciências divinas, mas na
inteligência das mesmas Escrituras Sagradas, e particularmente nas dos
profetas, que nos tempos mais chegados a nós se descobriram, disputaram e
entenderam como se lêem nos escritores modernos; e posto que para os 5 versados
na lição de uns e outros bastava esta suposição somente apontada, porei aqui para
os demais as palavras de dois grandes doutores, Castro e Canísio, ambos do
século antecedente a este nosso, e ambos diligentíssimos investigadores da
antigüidade e doutíssimos na erudição da Escritura, Concílios e Padres, os
quais expressamente afirmam que muitas cousas se sabem e entendem hoje que
foram ignoradas dos Padres antigos, como fala Castro ou incógnitas a eles, como
mais certamente diz Canisio.
As palavras deste segundo, no livro primeiro De Beata
Virgine, cap. VII, são as seguintes: Demum habuerint Patres suorum temporum
rationem quibus multa vel prorsus incognita erant, vel obscura neque satis
evoluta, quae posteris diligentius excutienda, et clarius illustranda,
explicandaque non sine certo Dei consilio reliquebantur... E Castro, no Liv. I
Adversus haereses, cap. II, depois de provar o mesmo com o lugar do cap. VI dos
Cantares, que abaixo citaremos, conclui assim: Quo sit, ut multa nunc sciamus,
qae, a primis Patribus aut dubitata, aut prorsus ignorata fsuerunt. A qual
diferença se não conheceu só com a comprida experiência dos nossos tempos,
senão já nos mesmos Padres se conhecia, como muitos deles escreveram, e
particularmente entre os da primeira idade, Tertuliano, e entre os da última
Ricardo Vitorino, cujas palavras de ambos referiremos neste mesmo capítulo.
A razão de muitas cousas que hoje se sabem serem
incógnitas aos Padres antigos, se pode considerar, ou da parte de Deus, ou da
parte das mesmas cousas. Da parte das mesmas cousas, nos não devemos admirar
que lhes fossem incógnitas, por serem muitas delas dificultosas, escuras e mui
recônditas nas Escrituras Sagradas e enigmas dos profetas, as quais se não
podiam entender e penetrar só com a agudeza dos entendimentos, por sublimes e
sublimíssimos que fossem, em quanto não estavam assistidos de outras notícias e
circunstancias, que só se descobrem com o tempo e adquirem com larga
experiência.
Excelente exemplo é nesta matéria o das ciências é
artes, ainda naturais, as quais em seus princípios e rudimentos foram
imperfeitas, e com os anos, experiência e exercício se vêem hoje sublimadas a
tão eminente perfeição, como a náutica, a bélica, a música a arquitetura, a
geografia, a hidrografia e todas ás outras matemáticas, e muito em particular a
cronologia, de que neste mesmo capítulo falaremos. E assim como estas mesmas
ciências e artes cresceram e se apuraram muito com o socorro e aparelho de
esquisitos instrumentos, que nelas se inventaram, como foi na náutica o
astrolábio, a agulha e o admirável segredo da pedra de cevar. e na bélica o terribilíssimo
e subtilíssimo invento da pólvora, que deu alma e ser a tantos e tão notáveis
instrumentos de guerra, assim também puderam crescer e aumentar-se muito as
ciências divinas e chegar à perfeição e eminência em que hoje se vêem com os
instrumentos próprios delas, que é a multidão de livros espalhados e
facilitados por todo o Mundo pelo beneficio da impressão, com que a doutrina e
ciência particular dos homens insignes se faz comum a todos em tão distantes
lugares, não sendo menor a comodidade dos mestres, que são instrumentos vivos
das ciências, no concurso de tantas e tão diversas universidades, teatros e
oficinas públicas de toda a sabedoria; comodidade de que no tempo dos Padres se
carecia, sendo necessário ao Doutor Máximo, São Jerônimo, como ele mesmo
escreve, copiar com imenso trabalho os livros por sua própria mão e peregrinar
à Grécia à Palestina, ao Egipto e às Gálias para recolher os escritos de S.
Hilário, ouvir a S. Gregório Nazianzeno, a Dídimo e aos mestres mais peritos na
língua hebraica; inconvenientes que só podia vencer e contrastar um tão
alentado espírito e zelo de servir à Igreja, como do grande Jerônimo, digno
tanto de imortal louvor pela eminência de sua sabedoria, como pelos gloriosos
trabalhos e suores com que a adquiriu e conquistou.
Da parte dos mesmos Padres se deve igualmente
considerar, que deixaram de especular e dizer muitas cousas de grande
importância que depois se souberam e escreveram, porque se acomodaram à
necessidade dos tempos em que viviam. Todo o intento dos Padres antigos era
provar a verdade da encarnação do Filho de Deus e o mistério de sua cruz, a
qual na cegueira dos Judeus (como diz S. Paulo) se reputava por escândalo e na
ignorância dos Gentios por estultícia. E como esta era a guerra e a conquista
daqueles tempos, todas armas da Sagrada Escritura se forjavam e acostavam
contra esta resistência, e por isso os primeiros Padres e seus sucessores
nenhuma cousa buscavam nos Livros Sagrados, não só proféticos, senão ainda nos
históricos, mais que os mistérios de Cristo. É bom testemunho desta verdade o
que diz Ruperto a Tristérico, arcebispo coloniense, do prólogo dos seus
Comentários sobre os Profetas menores: Scito me Pater mi sicut in caeteris
Scripturis, ita et in volumine duodecim Prophetarum operam dedisse, ad
quaerendum Christum. E como isto é o que só buscavam para escrever, isto é o
que só achavam ou o que só escreviam, seguindo os sentidos alegóricos e
místicos e deixando ou insistindo menos nos literais, como se vê ordinariamente
em todas as exposições dos Padres, que todas se empregam na alegoria, tocando
muitas vezes só leve e superficialmente a letra, e talvez não sem alguma
impropriedade e violência.
Assim o notaram entre os mesmos Padres alguns mais
modernos que antigos e outros menos antigos que antiqüíssimos: dos primeiros, é
Ricardo de São Vitor, contemporâneo de S. Bernardo, no Prólogo sobre o Profeta
Ezequiel, onde confessa que se aparta de São Gregório, por se não chegar ao
sentido literal do texto; dos segundos, é o mesmo São Gregório, Padre do sexto
século depois de Cristo, no Proémio sobre o Livro dos Reis, onde diz que lhe
foi necessário em algumas partes não seguir os Padres mais antigos, por não
faltar ao fio conseqüência e verdadeira interpretação da história.
As palavras de São Gregório não refiro aqui, porque
terão seu lugar mais abaixo; as de Ricardo depois de referir com os antigos
Padres ocupavam seu estudo principal na alegoria, são estas: Hinc contigisse
arbitror, ut litterae expositionem is obscuriobus quibusdam locis antiqui Patres
tacile praeterirent, vel paulo negligentius tracterent, qui si plenius
insistirent, multo perfectius procul dubio quam aliqui ex modernis, id
potuissent. Quer dizer que os Padres antigos, por aplicarem toda a sua
industria e engenho no sentido alegórico das Escrituras, ou passaram totalmente
em silêncio, ou trataram menos diligentemente alguns lugares mais escuros
delas, sendo certo, segundo eram dotados de altíssimos engenhos e enriquecidos
de muita ciência e erudição, que, se insistissem no sentido genuíno e literal
do texto, o poderiam conseguir mais perfeitamente que qualquer dos modernos.
De maneira que, segundo a verdade desta advertência,
vem a ser a diferença entre os Padres antigos e os comentadores modernos das
Escrituras, a mesma que houve naqueles dois homens do Evangelho, ambos ricos e
venturosos: um que achou o tesouro e deu quanto tinha por comprar o campo em
que ele estava; outro que, buscando so margaritas e achando uma preciosíssima,
empregou também nela quanto tinha. Os Padres antigos, que buscavam só nas
Escrituras a Cristo e nesta preciosíssima margarita empregavam todo o cabedal
do seu estudo, os modernos, que se não determinam no tesouro das Escrituras a
um só gênero de riquezas, acham, além da mesma margarita, muitas outras pedras também
preciosas, e tiram daquele tesouro (como dizia Cristo) nova et vetera, riquezas
novas e velhas: as velhas, que são as notícias das verdades já passadas; as
novas, que são o conhecimento das outras futuras.
Finalmente se deve considerar este silêncio das
cousas que não disseram os Padres, da parte de Deus, o qual com particular
providência não quis que eles por então as soubessem e escrevessem, para que a
Igreja, nossa mãe, se parecesse com seu Esposo, e, conforme os anos e idade,
fosse também crescendo em luz e sabedoria. Assim o notou, além de muitos outros
teólogos, o mesmo Canísio, continuando o lugar acima citado: Quae posteris
diligentius excutienda et clarius illustranda explicandaque, non sine certo Dei
consilio relinquebantur non vero homini tantum, sed etiam Ecclesiae Christi
tempus auget sapientiam, et Spiritus Sanctus aliam atque aliam doctrinae lucem
patefacit
No cap. VI dos Cantares, onde o Esposo é Cristo e a
esposa a Igreja estão profetizados os progressos que ala havia de ter, e se comparam
com extremada propriedade à luz da aurora: Quae est ista , quae progreditur,
quasi aurora consurgens? Porque assim como a aurora nasce das trevas da noite e
começa na primeira luz, e nela vai sempre crescendo de menor para maior
claridade assim a Igreja, nascida nas trevas da ignorância e infidelidade
começou em menos luz de sabedoria e vai sempre crescendo e aumentando-se mais e
mais de resplendor, de claridade, que são os termos que usa S. Paulo na Segunda
epístola aos Coríntios:Nos vero omnes, revelata facie, gloriam Domini
speculantes, in eamdem imaginem transformamur a claritate in claritatem. Fala o
Apóstolo do véu da infidelidade com que os Judeus têm cobertos os olhos para
não ver a Cristo, e diz que se compõe a Igreja, tirado pela Fé aquele véu, com
os olhos abertos e desempedidos por meio da própria especulação e estudo, imos
crescendo de claridade em claridade, não já passando das trevas à luz, senão de
uma luz para outra, sempre maior e mais clara, transformando-se por este modo a
Igreja na imagem do seu mesmo Esposo, Cristo. Porque, assim como Cristo, posto
que sua sabedoria foi sempre igual e a mesma (em quanto Deus infinita e em
quanto homem consumadíssima), contudo, nos atos exteriores e manifestação dela
ao Mundo, a não mostrou toda junta, senão que a foi dispensando por partes,
crescendo sempre nela ao passo que ia crescendo nos anos, como diz o
evangelista São Lucas: Proficiebat sapientia et aetate; assim a Igreja, que é o
corpo místico do mesmo Cristo, transformando-se na sua imagem e retratando-se
nele e por ele, vai sempre crescendo mais e mais na luz e na sabedoria, à
medida que cresce nos anos e na idade: Crescat igitur oportet, et multum
vehementerque proficiat, tam singulorum quam omium, tam unius hominis quam
totius Ecclessiae, aetatum ac saecolorum gradibus intelligentia, scientia,
sapientia — disse doutamente Vincencio Lirinense.
De sorte que vai crescendo a inteligência, a ciência
e a sabedoria pelos mesmos graus do tempo com que vão passando os anos, os
séculos e a idade, e isto não só na Igreja universal e em comum, senão nos
homens e doutores particulares, que são os membros de que o seu corpo e os
raios de que a sua luz se compõe. Donde se deve reparar e advertir (cousa que
devera já estar mui notada e advertida) que os Doutores antigos e mais velhos,
própria e rigorosamente falando, não são os passados, senão os presentes; nem
aqueles que vulgarmente são chamados os antigos, senão os que hoje e nos tempos
mais chegados a nós se chamam modernos Porque assim como nos anos de Cristo
houve infância, puerícia e adolescência, e depois idade perfeita, assim nos
anos e duração da Igreja há a mesma distinção e sucessão de idades, com que o
corpo místico dela vai crescendo e aumentando-se sempre mais, até chegar a
encher a perfeição ou medida da mesma idade de Cristo, como expressamente disse
São Paulo, falando dos mesmos Doutores:..alios autem pastores et doctores. ad
consummationem sanctorum in opus ministerii, in aedificationem corporis Christi
donec occurramus omnes in unitatem fidei et agnitionis Filii Dei, in virum
perfectum in mensuram aetatis plenitudinis Christi. Donde segue que os Doutores
da infância, da puerícia e da adolescência da Igreja foram os modernos e da
ciência moderna; e os Doutores da idade maior e mais provecta da Igreja são os
mais velhos e mais antigos, e da ciência mais antiga, porque a Igreja não se
compõe das paredes mortas, senão dos membros vivos; nem foi crescendo dos
nossos anos para os primeiros, senão dos primeiros para os nossos. E seria não
só contra a ordem da natureza, senão contra a decência da mesma idade, que não
fosse mais sábia a Igreja nos maiores anos, do que tinha sido nos menores.
Dizem contra isto os hereges (como notou Banhes) que
a Igreja não está hoje mais alumiada, senão cada vez menos; e do mesmo Sol
tiram o argumento desta cegueira.
argumento desta sua cegueira. Dizem que Cristo é o
sol da Igreja e aquela primeira verdadeira luz: quae illuminat omnem hominem
venientem in hunc mundum, e que, quanto mais se vão apartando os nossos tempos
do tempo em que Cristo viveu entre os homens, tanto os raios da sua luz são
mais tênues, mais escassos e menos intensos; bem assim como a luz do Sol
material, e qualquer outra, alumia e quenta mais aos que lhe ficam mais
vizinhos e menos aos que estão mais remotos e mais distantes.
Mas a aparência desta razão é tão falsa como todas as
de seus autores; porque ainda Cristo corporalmente se apartou dos homens,
espiritualmente e por particular e invisível assistência sempre ficou com eles
e os assistirá (dentro porém da sua Igreja) ate o fim do Mundo, como prometeu a
todos os verdadeiros discipulos de sua doutrina quando lhes disse: Ecce ego
vobiscum sum usque ad consummationem saeculi.
Também deixou em seu lugar, por segundo mestre de sua
escola, ao Espírito Santo, igualmente Deus como ele, o qual, com a mesma e não
diferente luz, não só alumia a Igreja com os mesmos resplendores da verdade,
mas, segundo a disposição de sua providência, os vai descobrindo maiores a seu
tempo, ensinando e declarando aquelas ocultas e altíssimas verdades, que por
menos capacidade dos discípulos deixou Cristo de lhas dizer, quando por si
mesmo os ensinava; dizendo-lhes porém, (para: que o Judeu não duvide da
assistência do Espírito Santo à Igreja e cabeça dela), que o Espírito lhas
ensinaria: Adhuc multa habeo vobis dicere: sed non potestis portare modo. Cum
autem venerit ille Spiritus veritatis, docebit vos omnem veritatem.
E porque a perfídia herética se nos não queira
acolher por pés, (como imprudentemente fazem ainda em lugares igualmente claros
de outras Escritas) fugindo para os tempos antigos, em que eles confessam que a
Igreja esteve verdadeiramente alumiada, ouçam ao antiquíssimo Tertuliano:
Regula quidem fidei una omnino est. sola immobilis et
irreformabilis [...] Haec lege fidei manente, caetera iam disciplinae et
conversationis admittunt novitatem correctionis, operante scilicet et
proficiente usque in finem gratia Dei. Quale est enim ut diabolo semper
operante et adjiciente quotidie ad iniquitatis ingenia opus Dei aut cessaverit,
aut proficere destiterit, cum propterea Paracletum miserit Dominus, ut quoniam
humana mediocritas omnia semel capere non poterat, paulatim dirigeretur, et
ordinaretur, et ad perfectum produceretur disciplina, ab illo Vicario Domini
Spiritu Sancto [...] Quae est ergo Paracleti administratio nisi haec quod
disciplina dirigitur, quod Scripturar revelantur, quod intellectus
reformatur,quod ad meliora proficitur.?
Não me detenho em romancear as palavras; porque isso
em suma tudo o que até agora temos dito; são em suma tudo o que até agora temos
dito; só peço se pondere aquela nova e bem achada razão de Tertuliano: Quale
est enim ut diabolo semper operante, et adjiciente quotidie ad iniquitatis
ingenia, etc
Se o Demônio sempre obra e não desiste de acrescentar
cada dia novos erros e novos enganos com que impugnar, e novas: trevas com que
diminuir e escurecer a luz da. verdade e resplendor da Igreja, como havia o
Espírito Santo de cessar em acrescentar sempre nela novas:luzes contra essas
trevas, novas verdades contra esses erros, nova claridade contra esses enganos
e novas vitórias contra esse inimigo e seus sequazes? Em sua mesma cegueira tem
o herege a prova da maior luz da Igreja; por isso disse São Paulo: Oportet
haereses esse, e esse , é o bem que tira de tão grande mal aquela sapientíssima
Providência, que, como doutamente disse Santo Agostinho, teve por maior glória
de sua grandeza fazer dos males bens, que não permitir os males.
Assim que os que quiserem reconhecer os aumentos da
sabedoria, em que sempre mais vai crescendo a Igreja com os anos, não devem
tomar à semelhança do Sol` e da luz, senão a da fonte e do no, a que o mesmo
Cristo comparou sua doutrina, quando disse: Si quis sitit, veniat ad me et
bibat. Qui credit in me sicut dicit Scriptura, flumina de ventre ejus fluent
aquae, vivae,. Hoc autem dixit de spiritu, quem accepturi erant credentes in
eum. A luz que sai do Sol, quanto mais distante, mais se vai enfraquecendo e
diminuindo; mas o rio que nasce da fonte, quanto mais caminha e mais se aparta
de seu princípio, tanto mais se engrossa, porque vai recebendo novas correntes
e novas águas, com que se faz mais largo, mais profundo, mais caudaloso.
Tal é a sabedoria da Igreja, entrando sempre nela as
puríssimas correntes da doutrina de tantos Doutores católicos e sapientíssimos,
que cada dia a aumentam com novos e tão excelentes escritos em uma e outra
teologia, de que o nosso século tem sido mais fecundo e abundante que todos até
hoje.
A sabedoria da Igreja no alumiar é luz e no correr é
rio; rio daquela mesma fonte e luz daquele mesmo Sol que é Cristo, conservando
juntamente as luzes e claridades das águas, e as águas' os resplendores das
luzes naquela milagrosa metamorfose que se conta no cap. X de Ester: Parvus
fons, qui crevit in fluvium, et in lucem solemque conversus est. et in aquas
plurimas redundavit. Cristo, sol com propriedade de fonte, a Igreja luz com
propriedade de rio, e por isso sempre mais alumiada, sempre mais vestida de
resplendores.
E como, por esta providência particular de Deus e
pela dificuldade e escuridade de muitos lugares da Escritura, e pela aplicação
dos Padres, a confirmação de outras verdades e a resistência de outras batalhas
próprias daqueles tempos, deixaram de escrever algumas cousas com que a Igreja depois
se foi alumiando e ilustrando, não é muito que nestas que eles não disseram,
falemos e hajamos de falar sem eles. Nem isto se nos deve imputar a menos
veneração dos mesmos Padres doutíssimos e santíssimos; porque não querer
descobrir nem saber o que eles não disseram, antes é vício da ociosidade que
virtude da reverência, como bem conclui o mesmo Ricardo Vitorino acima alegado:
Sed nec illud tacite praetereo, quod quidam quasi ob reverentiam Patrum nollunt
ab illis omissa attentare, nec videantur aliquid ultra maiores praesumere. Sed
inertiae, suae, hujusmodi velamen habentes, otio torpent, et aliorum industriam
in veritatis investigatione et inventione derident, subsanant et exsufftant,
sed qui habitat in coelis, irridebit eos et Dominus subsanabit eos.
Leiam e temam esta sentença os que culpam os que não
querem ser culpados nela, e advirtam que tamb5ém é um dos Padres o que isto
disse.
Segunda Razão: Discorre-se
sobre as cousas que no tempo dos padres houve para alguns lugares dos Profetas
não poderem ser entendidos inteiramente.
Em segundo lugar, dizíamos que os Padres não
acertaram em tudo; e posto que pudéramos provar a verdade deste fundamento com
a demonstração das cousas em que não acertaram, lembrados porém da reverência
que os filhos devem aos pais e da bênção que mereceram aqueles dois honrados
filhos, Sem e Jafet, quando voltaram as costas e apartaram os olhos do que em
seu pai, Noé, podia ser menos decente, nós também lançaremos a capa sobre esta
matéria, deixando tão indigno assunto a Lutero, Calvino, Bèze e Wiclef, e
outros legítimos herdeiros do ímpio e irreverente Cam.
Não negamos, contudo, que houve muitos autores
católicos e pios, em cujos livros se podem ver por junto estes exemplos, os
quais eles escreveram não por menos reverência que tivessem aos antigos Padres,
por sua sabedoria e santidade, e igualmente merecedores da eterna veneração,
mas por zelo da verdade, necessidade de doutrina e cautela dos mesmos doutos
que lessem as suas obras; bem assim como os que pintam cartas de marear sinalam
no vastíssimo e profundíssimo Oceano os baixos (poucos e raríssimos, se se
compararem com a imensidade de suas águas) para maior vigilância e segurança
dos que as navegam.
Escreveram neste gênero doutissimamente Sixto Senense
em todo o V e VI livro de sua Biblioteca Santa; Ferdinando Vellocillo, bispo de
Luca, nas AdverteAncias Teológicas sobre cinco Padres da Igreja; Afonso de
Castro, Adversus haeereses, Antônio Possevino, no Aparato Sacro; o Cardeal
César Barónio, em muitos lugares de seus Anais; Melchior Cano, De Locis
Theologicis, e outros. Este último no Liv. VII cap. III, diz assim: Auctores
canonici ut superni, caelestes, divini, stabilem perpetuamque constantiam
servant; reliqui vero scriptores sancti inferiores et humani sunt, deficiuntque
interdum ac monstrum quandoque pariunt propter convenientem ordinem,
institutumque naturae.
Mas entre estes exemplos naturais da fragilidade
humana, podemos ler em prova deles outros dos mesmos Padres, em que,
confessando com alta humildade e modéstia que podiam errar como os homens, nos
ensinam no conhecimento que tinham de si e nós devemos ter de nós, quão
verdadeiramente eram santos, e por isso mesmo sapientíssimos Porem aqui as
palavras de dois maiores Doutores, um de teologia escolástica e outro` da
positiva — Santo Agostinho e S. Jerônimo — Santo Agostinho, na epístola III,
escrevendo a Fortunaciano desta maneira: Neque enim quorumlibet disputationes
quam vis catholicorum et laudutorum hominum, velut scripturas canonicas laudare
debemus, ut nobis non liceat (salva honorificentia, quae illis debetur) aliquid
in eorum scriptis improbare, atque respuere (si forte invenerimus, quod aliter
senserint quam veritas habet, divino adjutorio vel ab aliis intellecta, vel a
nobis); talis ego sum in scriptis aliorunt, tales volo esse intellectores
meorum: «As ciências e regulações dos autores, posto que sejam católicos, mui
louvados e estimados por sua ciência e. doutrina, não as devemos ler como
escrituras canônicas, de tal sorte que nos não seja lícito (salva a reverência
de suas pessoas), reprovar e não seguir algumas cousas das que disseram, quando
acharmos por outra via a verdade, ou melhor entendida por outros, ou também por
nos. Este é o modo (diz Santo Agostinho) com que eu leio os escritos dos outros
e com que quero que sejam 1idos os meus.:»
O mesmo sentia S. Jerônimo, assim dos escritos
alheios como dos próprios, cujas palavras na Epístola a Teófilo, contra os
erros de S. João Hierosolimitano são estas: Scio me aliter habere Apostolos,
aliter reliquos tratores: illos semper vera dicere: istos in quibusdam ut
homines aberrare>> «So os Apóstolos, como alumiados por Deus, disseram a
verdade em tudo; os outros homens, como homens eram e podem errar:>> _
diz o Doutor Máximo.
E se o fundamento dos erros humanos é o efeito
natural de serem os homens homens, bem se segue que nenhum homem se pode livrar
desta pensão da humanidade, por douto e sapientíssmo que seja. Exemplo seja o
prodigioso livro Das Retratações de Santo Agostinho, mais digno de veneração
por aquela obra que por todas as outras suas o qual prosseguindo a mesma
sentença de Santo Agostinho no liv. II De Batismo, contra os Donatistas, cap. V
diz assim com admirável piedade e juízo: Homines enim sumus, unde aliquid
aliter sapere, quam se res habet, humana tentatio est.: nimis autem amando
sententiam suam, vel invidendo melioribus, usque ad prescidendae communionis et
condendi schismatis vel haeresis sacrilegium pervenire, diabolica praesumptio
est. In nullo autem aliter sapere, quam res se habet, angelica perfectio est.
De maneira que, seguindo Santo Agostinho, cerrar em
alguma cousa é fraqueza de homens; acertar em tudo, é perfeição de anjo, e
querer defender seu parecer até romper a caridade e união da Igreja, é
presunção de demônios»; e como os Santos Padres fossem obedientíssimos filhos
da Igreja Católica, a cujo supremo juízo sujeitaram sempre todos os seus
escritos, se em alguma cousa desacertaram, como dissemos ou supomos, é
argumento só de que foram homens, e não eram anjos.
Mas para que se veja a ocasião ou ocasiões que
tiveram para não acertar com a verdadeira inteligência de algumas escrituras,
principalmente as dos Profetas, que é o fim para que isto supomos, direi agora
o que da ponderação das mesmas escrituras proféticas e das exposições dos
Padres sobre elas, e das opiniões, que eram comuns e recebidas entre os doutos,
quando eles escreveram, tenho colhido. E ponho aqui (tanto de melhor vontade)
esta minha advertência, em que não acabei de cair de todo, senão depois de
muitos anos de estudo e lição dos mesmos Padres, quanto dela se pode colher
facilmente. e sem menos louvor de sua grandeza e sabedoria, quão impossível
cousa lhes era acertarem naquele tempo, em aquelas suposições, com o verdadeiro
entendimento de alguns lugares dos Profetas que eles interpretaram em alheio e
diferente sentido.
A primeira ocasião que os Padres tiveram para não
poderem entender em seu tempo o sentido literal e histórico daqueles textos
proféticos, era a falta que então havia no Mundo da verdadeira e exata cosmografia,
e a errada opinião, ou de que o globo da Terra não era perfeitamente esférico,
ou de que as partes opostas às que naquele tempo se conheciam, eram não só
desertas, senão ainda inabitáveis Este sentimento, que foi de muitos filósofos
antigos se tinha entre os Padres por verdade muito certa e averiguada, negando
geralmente a opinião, ou fama de haver os que então já se chamavam antípodas
Posto que os princípios por que os Padres os negavam, não eram entre todos as
mesmas razões filosóficas, em que alguns se afundavam, que então (antes da
experiência) tinham nome de razões, e hoje depois delas nos parecem ridículas.
Descreve Lactâncio Firmiano
que era um dos Padres, e muito douto daquele tempo e zombando
elegantissimamente dos que tinham a opinião contrária, discorre assim:
Quid illi, qui esse contrarios vestigiis nostris
antipodas putant? Num aliquid loquuntur? Aut est quisquam tam ineptus, qui
credut esse homines quorum vestigia sint superiora quam capita? Aut ibi quae
apud nos jacent inversa pendere? Fruges et arbores deorsum versas crescere;
Pluvias et nives, et grandinem sursum versus ca dere in terram? Et miratur
aliquis in hortos pensiles ~nter seplem mira narrari, cum philosophi, et agros
et maria, et urbes, et montes pensiles faciant; Hujus quoque erroris aperienda
nobis origo est [. .] Quae igitur illos ad antipodas ratio perduxit?
Videbant siderum cursus in occasum meantium. Solem atque Lunam in aemdem partem semper occidere, atque oriri semper ab
eadem. Cum autem non prospicerent quce machinatio cursus eorum temperaret, nec
quomodo ab occasu ad Orientem remearent, coelum autem ipsum in ornnes partes
putarent esse devexum, quod sic videri propler immensam latitudnem necesse est;
existimaverunt rotundum esse Mundum sicut pilam: et ex motu siderum opinati
sunt coelum volvi. Sic astra, Solemque, cum occiderirint, volubilitate ipsa
Mundi ad ortum referri; itaque et aereos orbes fabricati sunt quasi ad figuram
Mundi, eosque caelarunt portentosis quibusdam simulacris, quae astra esse
dicerent. Hanc igitur Coeli rotunditatem illud sequebatur; ut Terra in medio
sinu ejus esset inclusa; quod si ita esset, etiam ipsam terram globo similem;
neque enim fieri posset ut non esset rotundum, quod rotundo conclusum
teneretur. Si autem rotunda etiam Terra esset, necesse esse, ut in omnes Coeli
partes eamdem faciem gerat, id est, montes erigat, campos tendat, maria
consternat. Quod si esset, etiam sequebatur illud extremum, ut nulla sit pars
Terrae,quae non ab hominibus, caeterisque animulibus incolatur: sic pendulos
istos antipodas Coeli rotunditas adinvenit. Quod si quaeras ab is, qui haec
portenta defendunt, quomodo ergo non cadunt omnia in inferiorem illam cueli
partem, hanc respondent rerum esse naturam, ut pondera in medium ferantur, et
ad medium connexa sint omnia sicut radios videmus in rota; quae autem levia
sunt, ut nebula, fumus, ignis, a medio deferantur ut coelum petant. Quid dicam
de iis? Nescio; qui cum semel aberraverint, constanter in stultitia
perseverant, et vana vanis defendunt, nisi quod eos interdum puto, aut joci
causa philosophari, aut prudentes et scios mendacia defendenda suscipere,quasi
ut ingenia sua in malis rebus exerceant vel ostentent.
Até aqui Lactancio, não se rindo menos dos que
naquele tempo tinham esta opinião, do que nós hoje nos podemos rir dele. Por
isso não duvidei de copiar esta página de latim, que para os que bem o entendem
sei de certo não será larga, por sua matéria e elegância; e muito menos para os
que o não entendem, porque o passarão mais brevemente. O mesmo peço eu que
façam os que não têm necessidade de ver a tradução dela, que agora se segue,
para que não fiquem com o sentimento de quão mal se pode trasladar à nossa
língua a elegância da latina: «Que direi daqueles—diz Lactando—os quais tiveram
para si que há no Mundo outros homens que andam com os pés virados para nós, a
que chamam antípodas? Porventura dizem estes alguma cousa que tenha fundamento,
ou pode haver homem de tão pouco juízo que se lhe meta na cabeça que há homens
que andem com a cabeça para baixo, e que todas as cousas que aqui estão em pé,
e direitas, lá estejam dependuradas? Que as árvores cresçam para a parte
inferior? Que a chuva caia para cima? E que os que hão-de colher os frutos,
hajam de descer aos ramos, e não subir? E espantamo-nos que os hortos pênsiles
se contêm entre as Sete Maravilhas do Mundo, quando há filósofos que fazem
campos pênsiles, mares pênsiles e cidades pênsiles, em que as torres e os
telhados estão pendurados para baixo! Mas será bem que digamos a origem donde
teve princípio este erro e que razão moveu ou levou estes homens a uma cousa
tão irracional, como haver antípodas. Viam que o Sol, a Lua e estrelas, saíam
sempre do Oriente e entravam pelo Ocaso; viam, ou cuidavam que viam, que este
céu que nos cobre, tem figura de uma abóbada (sendo que esta representação não
a faz a figura do céu, senão o termo e fraqueza de nossa vista); e não
entendendo o modo por que esta máquina se governa, vieram a imaginar que o
Mundo era redondo como uma bola, e assim fingiam que havia no céu vários orbes
de matéria sólida como bronze, em que estavam esculpidas essas imagens e corpos
portentosos, a que chamamos estrelas e planetas. Desta redondeza ou rotundidade
do céu inferiam e assentavam que também a Terra era redonda; e, acomodando-se
naturalmente a figura do corpo exterior e maior, dentro do qual estava metida,
e torneada desta maneira, e feita redonda a Terra, tiravam por segunda
conseqüência que também havia de estar povoada de homens e de animais, em todas
as partes, como está: nesta em que vivemos; assim que a imaginada rotundidade
do céu foi a inventora destes antípodas pendurados. E se perguntarmos aos
defensores deste portento como pode ser que os homens que. fingem com os pés
para cima, se lhes não despeguem da terra, e como não caem por esses ares
abaixo respondem que é o peso natural da Terra, que de todas as partes inclina
para o centro, assim como os raios de uma roda todos vão parar ao eixo; e que,
assim como do mesmo eixo saem os raios para a roda, assim as cousas pesadas vão
buscar o meio; as cousas leves, como o fogo, os fumos, as névoas, sobem
direitas para as diversas partes do Céu, de que a Terra está cercada.
O que se haja de dizer de tais homens e de tais
entendimentos, não o sei; só digo que, depois de terem caído no primeiro erro,
perseveram constantemente na sua ignorância, defendendo umas cousas vãs com
outras tão vãs como elas; sendo que algumas vezes cuido que não dizem nem
escrevem isto de siso, senão por jogo e zombaria, e que sabendo muito bem que
tudo o que dizem são fábulas e mentiras, as defendem contudo para ostentar
habilidade e engenho, empregando tão bons entendimentos em tão más
cousas.>>
Este é o discurso de Lactâncio, e foi bem que o
deixasse tão miudamente escrito, para que soubéssemos o que naquele tempo se sabia
do Mundo e para que saiba o mesmo Mundo quanto deve aos Portugueses, primeiros
descobridores de seus antípodas.
Santo Agostinho também teve a mesma opinião de
Lactâncio, posto que lhe não contentaram os seus fundamentos, os quais impugna
no livro das suas Categorias; mas no liv. XVI De Civitate Dei, resolve que se
não deve crer que há antípodas, com palavras de tanta segurança como as
seguintes: Quod vero et antipodas esse fabulantur, id est. homines a contraria
parte Terrae, ubi Sol oritur quando occidit nobis, adversa pedibus nostris
calcare vestigia, nulla ratione credendum est. Neque hoc ulla historia
cognitione didicisse se affirmant; sed quasi ratiocinando conjectant: «E quanto
à fábula dos que fingem que há antípodas — diz Santo Agostinho, isto é, homens
da outra parte do Mundo, onde o Sol lhes nasce a eles, quando se põe a nós, e
que pisam a terra com os pés voltados para os nossos, como nós para os seus, é
cousa que de nenhum modo se há-de crer, nem seus autores o provam com alguma
história que tal afirme, e só o conjeturam por discursos.>>
Não dissera isto o sapientíssimo Doutor, se já
naquele tempo estiveram escritas as histórias dos Portugueses, mas este é o
maior louvor da nossa Nação (como disse um orador delas) que chegaram os
Portugueses com a espada onde Santo Agostinho não chegou com o entendimento.
A razão de Santo Agostinho com que negou os
antípodas, ainda encarece mais este louvor nosso, porque o argumento em que se
funda é este: Todos os homens que se propagaram e estenderam pelo Mundo, são
descendentes de Adão, como consta da Escritura; logo, segue-se que não há nem
pode haver antípodas, porque, se os houvera, haviam de ter passado a outra
parte do Mundo, por cima da imensidade do mar Oceano; e é grande absurdo dizer
que os homens pudessem fazer tal navegação.
Esta é a razão de Santo Agostinho e este o famoso
elogio que, sem saber de quem falava, disse o famoso e ilustríssimo africano
dos Portugueses conquistadores depois de sua pátria: Nimisque absurdum est (são
palavras suas no mesmo lugar) ut dicatur aliquos homines ex hac in illam partem
Oceani immensitate trajecta, navigare ac pervenire potuisse, ut etiam illic ex
uno illo primo homine genus institueretur humanum.
Esta mesma opinião foi comum entre os outros Padres
da Igreja, e assim a lemos expressa, ainda antes de Lactâncio, em S. Justino, e
antes de Santo Agostinho, em Santo Hilário, em S. João Crisóstomo, S. Basílio e
Santo Ambrósio, e muitos anos e séculos depois em Procópio, Teofilato, Eutímio
e outros, uns fundando-se nas razões já referidas e todos naquela tão celebrada
dos filósofos, historiadores e poetas, que não só faziam inabitável a zona
tórrida, mas supunham tão grande incêndio nela pela vizinhança do Sol, que de
nenhum modo se podia passar: Media vero terrarum _ diz Plínio — qua Solis
orbita est. exusta flammis et cremata, cominus vapore torretur. Circa duae
tantum inter exustam et rigentes, temperantur: eaeque ipsae inter se non
perviae propter incendium sideris.
Este incêndio da zona tórrida ainda em tempos tão
chegados aos nossos, era um dos mais forçosos argumentos, com que os
reprovadores da empresa do Infante Dom Henrique a impugnavam, e tinham por
impossível aquele descobrimento, como referem as nossas histórias. A estas
razões propriamente filosóficas e a este discurso, acrescentavam os Padres
outras teológicas e alguns textos da Escritura Sagrada, que antes da
experiência parecia afirmarem ou definirem claramente que debaixo da terra não
havia outra cousa mais que a água. Assim o argumentava Procópio sobre o
primeiro capítulo do Gênesis, dizendo: Quod autem universa Terra in aquis
subsistat nec ulla sit pars ejus, quae infra nos sita sit, aquis vacua et
denudata hominibus, notum reor, nam sic docet Scriptura: «Quid expandit terram
super aquis»; et iterum: «quia itse super maria fundavit eum.» O primeiro lugar
é do Salmo CXXXV e o segundo do Salmo XXIII. E verdadeiramente que as palavras
de um e outro são tão claras, que se a vista dos olhos não tivera ensinado o
contrário, parece se deviam entender assim; e que Deus, que tudo pode, para
mostrar sua onipotência tinha fundado a terra sobre a água.
Assim o cuidou Tales Milézio, um dos sete sábios de
Grécia, com muitos outros filósofos, os quais referiam os tremores da Terra à
inconstância deste fundamento de sua natureza tão pouco sólido; mas depois que
a experiência nos mostrou que debaixo ou da parte oposta a esta Terra há outros
habitadores, que são os antípodas, a emenda deste engano nos ensinou também a
entender aqueles textos de David, cujo verdadeiro sentido é este:
Quando Deus criou o Mundo, no princípio estava o
elemento da terra coberto com o elemento da água, e a água sobre a terra,
conforme o lugar que se devia à sua dignidade e nobreza, como elemento que é
mais nobre; mas como por esta causa ficasse a terra vazia e inabitável, como
notou o texto: Terra autem erat inanis et vacua, o que fez a Providência Divina
foi apartar a água de cima da terra e dar-lhe outro lugar, que é o que hoje tem
o mar para que ficasse a terra superior a ele e pudesse produzir e ser
habitada: Et dixit Deus: Congregentur aquae [...] in locum unum, et appareat
arida. E por que a terra por este modo ficou superior à água, por isso diz
David que a terra está sobre ela, isto é superior a ela, e não inferior e
debaixo como de antes estava, e por sua natureza devia estar. Repito o texto
todo, para que da conseqüência dele se veja melhor a verdade e clareza desta
exposição: Domini est terra et plenitudo ejus; orbis terrarumm et universi qui
habitant in eo: quia ipse super maria fundavit eum, et super fluvia praeparavit
eum.
Deus é o Senhor da Terra e de todos seus habitadores.
E porque é Senhor da Terra? Porque a fundou; e é Senhor de seus habitadores,
porque, fazendo que fosse superior ao mar e aos rios, a fez habitável; e essa é
a energia da palavra praeparavit; porque, fazendo a terra superior à água, a
preparou e acomodou a que se pudesse habitar: Ratio cur Dominus Terrae,
omniumque in ea rerum [...] sit Deus (diz Lorino), quoniam terram itse fecit,
et supereminere aquis fecit, ut habitari posset... E não é muito que Lorino
entendesse melhor este texto da terra e do mar que Procópio; porque Procópio
não sabia que havia mar e terra habitada dos antípodas, e Lorino sim; mas vamos
a outros lugares mais impossíveis de entender, antes do conhecimento dos
antípodas.
Referem-se vários lugares
dos Profetas que os expositores modernos entendem dos antípodas e conquistas de
Portugal.
Começando pelo mesmo David, aquele verso do Salmo
LXVII: Regna terrae, cantate Deo, psallite Domino, psallite Deo, qui ascendit
super Coelum Coeli ad Orientem; ecce dabit voci suae vocem virtutis, diz
Genebrardo, Viegas, Mendonça e outros autores, que fala da conversão dos reinos
e terras do Oriente, convertidas à Fé por meio da pregação dos Portugueses e
descobertas por eles. Donde notou advertidamente Viegas, que no mesmo Salmo
tinha dito David: Cantate Deo, psalmum dicite nomini ejus; iter facite ei, qui
ascendit super Occasum; Dominus nomen illi, para mostrar que a Fé e
conhecimento de Deus primeiro havia de vir às terras mais ocidentais, que são
as que habitamos, e depois havia de passar às do Oriente, que são aquelas que
descobrimos, conquistamos, alumiamos com a luz do Evangelho; e esta é a virtude
que Deus deu às vozes da sua voz, isto é, às vozes dos seus pregadores: Ecce
dabit voci suae vocem virtutis.
Todo o Salmo LXIV explica Basílio Ponce da nova
conversão das Índias, assim Orientais como Ocidentais, e são tão próprios desta
explicação muitos lugares dele, que, ainda os que não tiveram tal pensamento, não
puderam deixar de dizer o mesmo. Lorino, comentando o verso IX: Turbabuntur
gentes, et timebunt qui habitant terminos a signis tuis exitus matutini et
vespere delectabis, entende pelos habitadores dos termos da terra as gentes
orientais e ocidentais, e assim explica as palavras: «Exitus matutini et
vespere>> pro hominibus qui habitant ubi exit dies et ubi exit nox, hoc
est. pro Orientalibus et Occidentalibus.
De maneira que os homens de quem aqui fala David, são
aqueles que estão nos dois últimos fins e extremos da Terra, onde nasce o dia e
onde nasce a noite. Uns nos fins do Oriente, que são os das Índias Orientais; e
outros nos fins do Ocidente, que são os das Índias Ocidentais. Esta terra, uma
e outra, diz o Profeta que visitaria Deus, e que a regaria como regou com a
água do batismo: Visitasti terram et inebriasti eum. E acrescenta com grande
energia que multiplicaria o Senhor o enriquecê-la: Multiplicasti locupletare
eum; porque, tendo-lhe já dado as maiores riquezas temporais, que são as minas
do ouro e prata, os diamantes, os rubis, as pérolas e outros tantos tesouros,
sobre estes lhe havia de dar também as riquezas espirituais e a graça, com que
ficasse cada uma não só rica, mas multiplicadamente rica: Multiplicasti etc. E
porque para isto era necessário que o bravíssimo e indômito Oceano se
sujeitasse aos homens e se deixasse arar de seus lenhos, o que até aquele tempo
não consentia, também dizia David que fazia Deus esta mudança em suas ondas:
..qui conturbas profundum maris, sonum fluctuum ejus. Ou, como lê S. Jerônimo e
Teodósio: compescens sedans, mulcens sonitum, cavitatem, latitudinem aut
profundumditatem maris.
Finalmente, porque não duvidássemos que mares eram
estes, declara o Profeta que não haviam de ser aqueles que lavam as terras e
praias vizinhas a nós, senão os mares de muito longe e de terras e gentes muito
remotas: ...spes omnium finium terrae et in mari longe, ou como tem o hebreu:
Maris rémotorum. E não carece de mistério e grande mistério, o proêmio com que
David introduziu tudo o que até aqui temos dito, que foi com estas
palavras:...sanctum est templum tuum, mirabile in aequitate. Como se dissera:
antes de se pregar o Evangelho a estas terras ou a estes mundos do Oriente é do
Ocidente, parece que vós, Senhor, e vossa Igreja não guardáveis igualdade com
os homens, pois havendo tantos anos e tantos séculos que alumiastes a uns com a
luz da Fé, permitistes até agora, por vossos ocultas juízos, que os outros
estivessem às escuras (argumento que puseram os Japões a S. Francisco Xavier).
Porém, depois que a Fé e o Evangelho, e o conhecimento e culto do verdadeiro
Deus têm passado os mares, chegado às mais remotas nações do Oriente, agora
sim, que podemos dizer que a vossa Igreja é admirável na igualdade, porque
trata igualmente a todos: sanctum est templum tuum, mirabile in aequitate.
Salomão, que sucedeu a David, não só na coroa, mas
também no espírito de profecia, em muitos lugares dos seus Cânticos deixou
também profetizadas estas maravilhas da nossa idade: neste sentido explicam alguns
modernos aquelas palavras no cap. IV: Surge, Aquilo, et veni, Auster, et perfla
hortum meum, et fluent aromata illius. Como se dissesse Cristo, falando do sen
jardim, que é a Igreja: que saísse dele o Norte e viesse o Sul; isto é, que
saíssem da Igreja as orações do Norte, como se saíram nestes tempos por meio da
heresia, e que entrassem na mesma Igreja as orações do Sul (que são as do Novo
Mundo), como entraram por meio da Fé. Ao qual sentido, que é mui próprio e
verdadeiro, podemos aplicar as palavras de Honório: Siquidem inauditam haeresim
per malignos homines Draco mentibus fidelium infudit, qua totum ortum
Ecclesiae, quasi quadam lepre vitiavit; sed Rex gloriae Chrisus suis auxilium
praebuit, dum universum haeresim per sapientes destruxit, et de horto suo
flagellis anathematis expulit; expulso autem Aquilone, Auster intravit...
Segue-se logo no texto:. et fluent aromata illius. As quais palavras,
entendidas assim como soam, que outra cousa dizem senão os interesses temporais
que trazem as naus da Índia por estes espirituais que levam quando vêm
carregadas dos aromas e espécies aromáticas daquelas partes?
Assim o tinha dito o mesmo Salomão no verso
antecedente, com admirável propriedade e energia. Fala das missões que fazem
àquelas partes os pregadores da Fé, e diz: Emissiones tuae, paradisus malorum
punicorum cum pomorum fructibus As vossas missões são um paraíso de que se não
colhem frutos de árvores, senão frutos de frutos. Cum pomorum fructibus. Porque
pelo fruto espiritual que vão fazer os missionários, vêm de lá os frutos
temporais com que Portugal se enriquece. E se vão faltando os segundos frutos,
é porque também vão faltando os primeiros, de que eles nascem.
Mas que frutos são estes? Disse o mesmo Salomão:
Cypri cum nardo, nardus et crocus, fistula et cinnamomum cum universis lignis
Libati, myrrha, et aloe cum omnibus primi unguentis: A canela, a canafistola, o
sândalo, o benjoim, as áquilas, os calambucos, e todo o outro gênero de
espécies odoríferas e aromáticas, que são as mesmas que vêm da Índia.
No cap. VII diz assim o mesmo Salomão, ou a Esposa,
que é a Igreja, falando com seu Esposo Cristo: Mandragorae dederunt odorem. In
portis nostris omnia poma: nova et vetera servavi tibi. As mandrigoras são os
pregadores da Fé, como diz S. Gregório: Quid per mandragoram, herbam scilicet
medicinalem et odoriferam, nisi virtus perfectorum intelligitur? Qui, dum
imperfectorum infirmitatibus medentur in fide quam praedicant, id est. in
portis Ecclesiae veri medici esse comprobantur.
Com o cheiro destas mandrágoras e com a doutrina
destes pregadores, [diz a Esposa] que ajuntou para seu Esposo os frutos novos
aos velhos. Assim o interpretam os Setenta: Nova et vetera servavi tibi; porque
aos cristãos antigos, que eram os da Europa, ajuntou a Igreja estes novos, que
são os da nova gente que se descobriu no Oriente e no Ocidente, que são as
portas de que fala a Esposa: In portis nostris. Uma porta por onde o Sol sai ao
nosso hemisfério, que é a do Oriente, e outra por onde entra aos antípodas, que
é a do Ocidente. Assim entendem este lugar alguns autores que refere Cornélio,
resumindo todo o sentido dele nestas palavras: Nonulli per nova opinantur hic
notari novi orbis inventionem et conversionem ad Chrstum. Novus enim hic orbis
continet Peruanos, Mexicanos, Brasilios, Chilenses etc. est dimidium totius
orbis, ut patet ex globo cosmográphico [...] jam per religiosos S. Dominici, S.
Francisci et Societatis Jesus totus pene subjacet Ecclesiae Sic in India
Orientali hoc saeculo et praecedenti mire per eosdem propagatur Fides apud
Japones, ubi plurimi pro Fide certant usque ad martyria lentorum ignium apud
Sinenses, Molucenses et Ceilanos. De maneira que os frutos novos que a Igreja,
por meio do cheiro destas mandrágoras medicinais e odoríferas, ajuntou aos
velhos e antigos, são os do Peru e México, do Brasil e Chile, e os do Japão e
China, das Malucas e Ceilão; uns nas portas do Oriente, outros nas do Ocidente:
Madragorae dederunt odorem suum. Parece que estavam esquecidos, mas não estavam
senão guardados para este tempo: servavi.
Em quase todo o cap. VIII repete Salomão a mesma
conversão das Índias, e particularmente naquelas palavras: Soror nostra parva,
et ubera no habet; quid faciemus sorori nostrae in die quando alloquenda est?
Si murus est. aedificemus super eum propugnacula argentea; si ostium est.
compingamus illud tabulis cedrinis. Até agora foi escuríssimo este lugar, mas
são admiráveis os mistérios e mais admiráveis ainda as propriedades dele.
Ludovico Legionense, nos comentários sobre este livro, entende por esta irmã
mais moça da Esposa a Igreja da Gentilidade novamente convertida à Fé: ...sub
persona hujus sororis natu minoris, et parum forma praestantis, cu`jus de
collocatione sponsa solicitari dicitur, multi significantur populi atque gentes
longe a nostro orbe remotae, ad Christum adducenda; nova quadam Evangelli
tradendi ratione; hoc est significatur Hispanorum navigationibus reperti orbis,
ejusque incolarum ad Christi. fidem nuper facta conversio.
Ainda que a Igreja toda seja uma, como a destas novas
gentilidades veio ao conhecimento de Cristo tanto depois, que não foram menos
que mil e quinhentos anos, por isso lhe chama Salomão irmã menor e pequena —
Soror nostra parva est — não pela grandeza das terras e número das gentes, em
que é maior ou, quando menos, igual a toda a Igreja antiga, mas pela menoridade
do tempo e da idade em que se converteu. E diz com muita propriedade que não
tem peitos: Et ubera non habet porque todos estes anos esteve falta do leite da
verdadeira doutrina. E porque haver-se de desposar com Cristo esta nova Igreja
era um negócio cheio de tantas dificuldades, assim pela distancia de tão
remotas terras e navegação de tão desconhecidos mares, como principalmente pela
resistência de suas nações, umas bárbaras, outras políticas e todas feras,
armadas e belicosas, e tão superiores no número e multidão aos que lhes haviam
de levar e introduzir a Fé, estas dificuldades representa a Igreja antiga a seu
Esposo, Cristo, com aquelas palavras: Quid faciemus sorori nostrae in die
quando alloquenda est? «Que faremos Senhor, quando chegar o tempo em que se
há-de desposar convosco esta minha irmã menor?:>> Ao que responde Cristo
com o antiquíssimo conselho de sua providência, dizendo: Si murus est.
aedificemus super eum propugnacula argentea; si ostium, compingamus illud
tabulis cedrinis.
Quem não admirará nesta resposta os altíssimos
conselhos da sabedoria e providência divina? Dispôs Deus desde a criação do
Mundo que estas terras, assim por fora como por dentro, fossem enriquecidas de
coisas preciosíssimas, para que o interesse dos homens facilitasse as
dificuldades, que sem ele criam impossíveis de vencer. Como se dissera o
Senhor: Ainda que a conquista da Fé tem muros que dificultem sua entrada nessas
terras, também tem portas por onde poderá entrar; esses muros facilitá-los-emos
com prata; essas portas abri-las-emos com cedros: Si murus, aedificemus
propugnacula argentea; si ostium, compingamus illud tabulis cedrinis. Pela
prata se entendem as minas e pelos cedros odoríferos as plantas preciosas; e as
minas que essas terras têm em suas entranhas, e as plantas odoríferas e
preciosas que nelas nascem, são os meios e incentivos que obrigaram o interesse
humano a que se disponha a vencer todas essas dificuldades e abrir e franquear
essas portas. E assim foi porque a prata, o ouro, os rubis, os diamantes, as
esmeraldas, que aquelas terras criam e escondem em suas entranhas; as áquilas,
os calambucos, o pau-brasil, o violeta, o ébano, a canela, o cravo e a pimenta,
que nelas nascem, foram os incentivos do interesse tão poderoso com os homens,
que grandemente facilitaram os perigos e os trabalhos da navegação e conquista
de umas e outras Índias. Sendo certo que, se Deus com suma providência não
enriquecera de todos estes tesouros aquelas terras, não bastaria só o zelo e
amor da religião para introduzir nelas a Fé.
O profeta Isaías, como profeta singularmente
escolhido para historiar as maravilhas da lei evangélica, foi o que mais falou
de nós e delas: no cap. XLIX diz assim: Ecce isti de longe venient, et ecce
illi ab aquilone et mari, et isti de terra australi. Laudate, caeli, et exulta,
terra, jubilate, montes, laudem, quia consolatus est Dominus populum suum, et
pauperum quorum miserebitur. O qual lugar entende Cornélio à Lápide e Árias
Montano da conversão da China, e o provam do original hebreu, o qual lêem de
terra Senim, como verts S. Jerónimo, Símaco, Áquila, Teodósio, o Siro, o
Arábio, e todos, e é o mesmo que de terra Sinorum, por ser este o modo de falar
da língua hebréia, na qual os Galileus se chamam Gelilim, e os Judeus Jehudim,
e os Assírios Assurim, e assim também os Chinas ou Sinas Sinim. E se
replicarmos a este sentido que a China não é terra austral, senão oriental, e
que se não pode verificar dela o termo de terra australi, respondem os mesmos
autores que aludiu o Espírito Santo, que governava a pena de S. Jerónimo, à
navegação dos Portugueses, os quais, quando vão para o Oriente, fazem a sua
viagem direita ao Austro, navegando ao cabo da Boa Esperança: Sinae enim (dizem
eles), qui proprie hic significantur, licet sint ad Orientem, dici tamen possum
ad Austrum, quia Lusitani in Sinas navigaturi, initio longo flexu, navigant ad
Austrum, scilicet ex Lusitania usque ad promontorium Bonae Spei, quod uItimum
est in continente et directe oppositum Austro.
De maneira que, como os Portugueses eram os que
haviam de levar a Fé à China, navegando ao Austro ou Sul, por isso o Espírito
Santo chamou Austral à China, não pelo sítio, senão pelo rumo da navegação. Da
mesma conversão dos Chinas fez outra vez menção Isaías no cap. XI, v. I4, o
qual explica larga e eruditamente Malvenda, seguindo a Foreiro, ambos varões
mui doutos da família dominicana.
O mesmo Profeta Isaías no cap. LX: Qui sunt isti, qui
ut nubes volant et quasi columbae ad fenestras suas? Me enim insulae expectant,
et naves maris in principio, ut adducam filios tuos de longe; argentum eorum et
aurum eorum cum eis, nomini Domini Dei tui et Sancto Israel, quia glorificavit
te. Et aedificabunt filii peregrinorum muros tugs, et reges eorum ministrabunt
tibi.
Nestas palavras está profetizada admiravelmente a
conversão das Índias Ocidentais; assim as explicam o mesmo Cornélio, Bózio,
Aldrovando e outros, com bem notáveis propriedades. Chama o Profeta às Índias
Ocidentais, ilhas: Me enim insulae expectant. Porque todas aquelas vastíssimas
terras, em quanto se têm descoberto, estão rodeadas de mar, e bastava para se
chamarem assim a imensidade de mares que as dividem do Mundo amigo; além de que
estes terras no princípio eram chamadas com o nome de Antilhas, como se lê na
história de seu descobrimento. As nuvens que voam a estes terras para as
fertilizer—Qui sunt isti, qui ut nubes volant— são os pregadores do Evangelho,
levados do vento pelo mar como nuvens; e chamam-se também pombas: Et sunt columbae
ad fenestras suas; porque levam estes nuvens a água do baptismo sobre que
desceu o Espírito Santo em figure de pomba, que são os dois termos que desde o
princípio do Mundo andaram sempre juntos na significação do batismo.
No I cap. do Gênesis: Spiritus Domini ferebatur super
aquas, e no II de S. João: ...nisi quis renatus fuerit ex aqua et Spiritu
Sancto. Mas o mesmo Bózio e Aldrovando, ainda advertiram no nome e semelhança
de pomba outra propriedade mais aguda, tirada do descobrimento das mesmas Índias,
de cujas terras e navegação foi o primeiro descobridor Cristóvão Colombo; e
dizem que a isto aludiu o profeta, chamando Columbas ou Columbos a todos os que
seguem a mesma derrota e navegação das Índias: Nomine columbae alludit ad
Christophorum Columbum, qui nobis iter ad illas oras primus aperuit. Bem assim,
ou muito melhor, e com mais verdade do que disseram os Gentios que os
Argonautas, quando foram conquistar o velo de ouro a Colcos, levaram por guia
uma pomba:
Et
qui movistis duo littora, cum rudis Argus
Dux
erat, ignoto missa columba mari.
Os
Potosis e outras minas de prata e ouro, que juntamente com as almas para a
Igreja haviam de conquistar estes argonautas, também as não esqueceu o Profeta:
Et adducam filios tuos de longe, argentum eorum et aurum eorum cum eis. Muito
ouro, muita prata e muitos filhos para a Igreja, e tudo de muito longe; e
porque não ficassem em silêncio as frotas das Índias: Et navis maris in
principio; ou como lê Foreiro do hebreu: Et naves maris cum primaria, seu
praetoria, que faziam esta navegação muitas naus, não divididas, senão em
frota, com sua capitaina; finalmente, que homens peregrinos edificariam os
muros da Igreja naquelas terras: Et aedificabunt filii peregrinorum muros tuos;
e que os ministros de tudo isto seriam os mesmos reis, como fazem com tanta
piedade os reis católicos: Et reges eorum ministrabunt tibi.
É também ilustre lugar em Isaías aquele do cap. XLI:
Egeni et pauperes quaerunt aquas, et non sunt: lingua eorum siti aruit. Ego
Dominus exaudiam eos [...] non derelinquam eos. Aperiam in supinis collibus
flumina, et in medio camporum fortes: ponam desertum in stagna aquarum, et
terram inviam in rivos aquarum. Dabo in solitudinem cedrum, et spinam, et
myrtum, et lignum olivae; ponam in deserto abietem, ulmum et buxum simul; ut
videant et sciant, et recogitent, et intelligant pariter, quia manus Domini
fecit hoc...
Quantos pobres e miseráveis estão morrendo à sede por
falta de água, isto é, vivendo na gentilidade sem água do batismo? Mas eu (diz
Deus) que também sou Senhor destes, os ouvirei e não me esquecerei deles: Ego
Dominus exaudiam eos. Nestes seus montes e desertos secos e estéreis abrirei
fontes e rios mui copiosos; e por mais que essas terras sejam sem caminho, eu
abrirei caminho por onde a elas cheguem as águas, de que tanto necessitam: Et
terram inviam in rivos aquarum; e de onde até agora se não colheu fruto, eu
farei que se colha muito copioso e de todo o gênero: Dabo in solitudinem cedrum
et spinam et myrtum, etc. Para que entenda e conheça o Mundo quão poderoso sou,
e que esta obra é de minha mão: Ut videant et sciant quia manus Domini fecit
hoc.
São Cirilo, São Jerônimo, Procópio e Teodoreto
entendem este texto da conversão das gentilidades, que Deus havia de converter
por meio da pregação do Evangelho, mas não nos disseram que gentes estes fossem
ou houvessem de ser, porque as não conheciam; porém os Doutores modernos nos
dizem quais elas são. O P.e. Cornélio, depois do reverendíssimo Cláudio
Aquaviva, geral da sua religião, diz assim: Hoc etiam hodie in Japone,
Brasilia, China, aliisque Indiarum provinciis impleri magna laetitia
conspicimus: que se cumpriu e está cumprindo esta profecia no Japão, no Brasil,
na China.
Até aqui andamos com Isaías pelas terras firmes;
vamos agora às ilhas, que são as primeiras por onde os nossos descobrimentos
começaram.
No cap. LVIII fala Isaías das obras grandes que fará
o homem misericordioso; e como a major obra e a major misericórdia de sodas é
tirar almas do Inferno, como se tiram as dos Gentios, quando por meio da luz da
Fé se lhes mostra o caminho da salvação, diz umas palavras o Profeta, que, bem
ponderadas, de nenhum outro homem se podem entender à letra senão do nosso
Infante santo (sic) D. Henrique, primeiro autor dos descobrimentos portugueses,
cujo principal intento naquela empresa, como dizem sodas as nossas histórias,
foi o puro e piedoso zelo da dilatação da Fé e conversão da gentilidade. As
palavras de Isaías são estas: Et aedificabuntur in te deserta saeculorum,
fundamenta generationis, et generationis suscitabis, et vocaberis aedificator
septum, avertens semitas in quietem: «Em vós se povoarão os desertos dos
séculos; vós lançareis os fundamentos de uma e outra geração; vós sereis
chamado edificador das cercas e fareis que os que sempre andam, tenham
assento.»
Tais foram em tudo as obras do Infante D. Henrique,
continuadas depois pelos reis de Portugal, que levaram adiante o que ele
começou. Primeiramente nele e por ele se povoaram os desertos dos séculos!
porque muitas ilhas, que desde o princípio do Mundo, por tantos séculos
estiveram desertas e incógnitas e despovoadas, como era a ilha da Madeira, as
Terceiras ou dos Açores, ele as descobriu, povoou e edificou, e de ilhas
desertas que antigamente eram, estão hoje tão povoadas e populosas, e tão enobrecidas
de famosas cidades e suntuosos edifícios: Aedificabuntur in te deserta
saeculorum. E assim como nestas ilhas ermas e desertas lançou este glorioso
príncipe os primeiros fundamentos da geração humana, fazendo que fossem
povoadas de homens, assim em outras ilhas, que estavam povoadas de bárbaros,
como eram as Canárias e de Cabo Verde, lançou também os fundamentos da geração
divina, fazendo por meio da pregação e luz do Evangelho que esses bárbaros
gentios conhecessem a Deus e fossem gerados em Cristo: Fundamenta generationis
et generationis suscitabis.
O meio que para esta segunda e mais importante
geração tomaram os religiosíssimos príncipes de Portugal, foi mandarem
religiosos por sodas as conquistas, de grande virtude e letras, fundando e
edificando conventos de diversas ordens; e por isso diz o Profeta que seria
chamado o primeiro autor desta obra, edificador de cercas, que são, como aqui
notam alguns expositores, as cercas e claustros das religiões: Et vocaberis
aedificator septum
Finalmente, não cala o Profeta o fruto que desta
santa indústria se seguiu em sodas estes gentilidades de bárbaros, e foi que,
andando de antes vagamente pelas brenhas, como animais silvestres, se
aquietassem e tomassem assento, e vivessem como homens, que isso quer dizer—Avertens
semitas in quietem. Neste sentido tão próprio e literal explica Bózio este
texto de Isaías; mas antes que escreva as suas palavras, quero pôr aqui as do
nosso João de Barros, referindo o que desta empresa do Infante sentiam e
murmuravam os que lhes parecia inútil e infrutuosa: <...os reis passados
deste Reino (diziam eles) sempre dos reinos alheios para o seu trouxeram gente
a este a fazer novas povoações, e ele quer levar os naturais portugueses a
povoar terras ermas por tantos perigos do mar, de fome e sedes, como vemos que
passam os que lá vão. Certo que outro exemplo lhe deu seu padre poucos dias há,
dando os maninhos de Lavre, junto a Caruche, a Lambert de Orches, alemão, que
os rompesse e povoasse, com obrigação de trazer a ele moradores estrangeiros de
Alemanha, e não mando?` seus vassalos passar além-mar, romper terras, que Deus
deu por pasto dos brutos. E bem se viu quanto mais naturais são para eles que
para nós, pois em tão poucos dias uma coelha multiplicou tanto, que os lançou
fora da primeira ilha, quase como admoestação de Deus, que há por bem ser
aquela terra pastada de alimárias, e não habitada por nós. E quando quer que
nestas terras de Guiné se achasse tanta gente como o Infante diz, não sabemos
que gente é, nem o modo de sua peleja; e quando fosse tão bárbara, como sabemos
que é a das Canárias, a qual anda de penedo em penedo como cabras às pedradas
contra quem os quer ofender, nós que proveito podemos ter de terra tão estéril
e áspera, e cativar gente tão mesquinha? Certo nós não sabemos outro, senão
virem eles encarentar o mantimento da terra e comerem nossos trabalhos; e por
cobrarmos um comedor destes, perdermos os amigos e parentes!»
Isto é o que filosofavam e diziam os prudentes e
políticos daquele tempo, que sempre são os instrumentos mais aparelhados que o
Mundo e o Demônio têm para impedir as obras de Deus; mas estes terras ermas
foram as que pelo zelo e constância daquele príncipe se vêem hoje tão povoadas,
cultivadas e ricas. E estes bárbaros, que como animais andavam saltando de
penedo em penedo, são os que hoje vivem com tanto assento, humanidade, ordem e
política cristã, e não só eles, senão infinitos outros.
As palavras prometidas de Bózio são as que se seguem:
...idem
perfectum videinus in insults quas Tertieras vocant, Hispaniae in Oceano
adjacentibus Occidentem versus; similiter in Canariis, quas no mine Promontorii
Viridis appellant, Sancti Laurentii, Ascensionis, et omnibus quae Africae
littora respiciunt: amplius cunctis quas Oceanus aluit, latissimis etiam regionibus
Indiarum, sive orientem, sive occidentem Solem, vel Austrum, Boreamvel
spectantibus idem contingit. Neque finis illus hucusque apparet. Oppida
innumera et civitates pulcherrimae passim condutur in quibus constituuntur
caetus hominum, excitantur fundamenta generationis, et generationis eorum, qui
bestiarum modo prius incertis sedibus vagabantur, et in stabulis ipsis
habitabant.
Até aqui
este autor doutíssimo, o qual no mesmo liv. II cap. III explica muitos outros
lugares de Isaías, das ilhas que os Portugueses conquistaram para Cristo, e
nomeadamente de Ceilão, Maldivas Socotorá, Japão, Java, Malucas e outras. Chama
a estes ilhas o Profeta, ilhas de longe, como no cap. XLIX: Audite, insulin, et
attendite, populi de longe, e no cap. LXVI: ...ad insulas longe ad illos, qui
non audierunt de me; pelas quais ilhas entendiam todos antigamente Itália e
Espanha, por estarem quase cercadas uma do Mediterrâneo, outra do Oceano; mas
verdadeiramente nem são ilhas, senão terra firme; nem se podem chamar de Longe
em comparação das que depois descobrimos, e com toda a propriedade são ilhas, e
ilhas de muito longe.
Ponhamos fim a Isaías com um celebradíssimo texto do
cap. XVIII, o qual foi sempre julgado por um dos mais dificultosos e escuros de
todos os Profetas, e é este: Vae terrae cymbalo alarum, quae est trans flumina
AEthiopiae, quae mittit in mare legatos, et in vasis papyri super aquas! Ite,
angeli veloces, ad gentem convulsam et dilaceratam; ad populum terribilem, post
quem non est alius; ad gentem expectantem et conculcatam, cujus diripuerunt
flumina terram ejus.
Trabalharam sempre muito os intérpretes antigos por
acharem a verdadeira explicação e aplicação deste texto; mas nem atinaram nem
podiam atinar com ela porque não tiveram notícia nem da terra, nem das gentes
de que falava o Profeta. Os comentadores modernos acertaram em comum com o
entendimento da profecia, dizendo que se entende da nova conversão à Fé
daquelas terras e gentes também novas, que ultimamente se conheceram no Mundo
com o descobrimento dos antípodas; e notaram alguns com agudeza e propriedade,
que isso quer dizer a energia da palavra: Ad gentem conculcatam: gente pisada
dos pés, porque os antípodas, que ficaram debaixo de nós, parece que os
trazemos debaixo dos pés e que os pisamos; mas chegando mais de perto à gente e
terra ou província de que se entende a profecia, também os modernos não
acertaram até agora com o sentido próprio, germano e natural dela, e este é o
que nós havemos de descobrir ou escrever aqui, pelo havermos recebido de pessoa
douta e versada nas Escrituras, que, havendo visto as gentes, pisado as terras
e navegado as águas de que fala este texto, acabou de o entender, e
verdadeiramente o entendeu, como veremos e verão melhor os que tiverem lido as
exposições antigas e modernas dele.
Cornélio teve para si que fala o profeta de Etiópia e
do Preste João; mas Etiópia não está além de Etiópia, como diz o texto.
Malvenda, com os outros que cita, entente dos Chinas e Japões, e aplica à
navegação dos Portugueses o parafraste caldeu, por estas palavras: Chaldeus
interpres haec verba Isaiae in hunc modum reddidit: <<Vae terrae, ad quam
veniunt cum navibus a terra longinqua, et vela sua extendunt, ut aquila, volans
alis suis.» Aptosite in Indiam, quae quondam remotarum gentium frequentibus
navigationibus petebutur, et nunc ab extremo Occidente Lusitanorum victricibus
classibus aditur; quae etiam itsas sinarum oras praetervectae Japoniorum
insulas tenent.
Mas esta exposição e a de Mendonça e Rebelo (que
entendem o texto geralmente da Índia Oriental), têm contra si tudo o que logo
diremos. José da Costa, tão versado nas Escrituras como na geografia e na
história natural das Índias Ocidentais, Ludovico Legionense, Tomás Bózio, Arias
Alontano, Frederico Lúmnio, Alartim del Rio e outros dizem (e bem), que falou
Isaías da América e Novo Mundo, e se prova fácil e claramente. Porque esta
terra que descreve o Profeta está além da Etiópia trans flumina AEtiopiae; e é
terra depois da qual não há outra: ad populum post quem non est alius. Estes dois
sinais tão manifestos só se podem verificar da América, que é a terra que fica
da outra banda da Etiópia, e que não tem depois de si outra terra senão o
vastíssimo mar do Sul. Mas porque Isaías nesta sua descrição põe tantos sinais
particulares e tantas diferenças individuantes, que claramente estão mostrando
que não fala de toda a América ou Mundo Novo em comum, senão de alguma
província particular dele; e os autores alegados nos não dizem que província
esta seja, será necessário que nós o digamos, e isto é o que agora hei-de
mostrar.
Digo primeiramente, que o texto de Isaías se entende
do Brasil, porque o Brasil é a terra que direitamente está além e da outra
banda da Etiópia como diz o Profeta: quae est trans flumina AEthiopiae, ou como
verte e comenta Vatablo: terra, quae est sita ultra AEthiopiam (quae AEthiopia
scatet fluminibus) e o hebreu ao pé da letra tem de trans flumina AEthiopiae. A
qual palavra—de trans— como notou Malvenda, é hebraísmo, semelhante ao da nossa
língua. Os Hebreus dizem—de trans— e nós dizemos, detrás; e assim é na
geografia destas terras, que em respeito de Jerusalém, considerado o círculo
que faz o globo terrestre, o Brasil fica imediatamente detrás de Etiópia.
Diz mais o Profeta que a gente desta terra é
terrível: ad populum terribilem; e não pode haver gente mais terrível entre
todas as que têm figura humana, que aquela (quais são os Brasis) que não só
matam seus inimigos, mas depois de mortos os despedaçam e os comem e os assam,
e os cozem a este fim, sendo as próprias mulheres as que guisam e convidam
hóspedes a se regalarem com estas inumanas iguarias; e assim se viu muitas
vezes naquelas guerras, que estando cercados os Bárbaros, subiam as mulheres às
trincheiras ou paliçadas, de que fazem os seus muros, e mostravam aos nossos as
panelas em que os haviam de cozinhar. Fazem depois suas frautas dos mesmos
ossos humanos, que tangem e trazem na boca, sem nenhum horror, e é estilo e
nobreza entre eles não poderem tomar nome senão depois de quebraram a cabeça a
algum inimigo, ainda que seja a alguma caveira desenterrada com outras
cerimônias cruéis, bárbaras e verdadeiramente terríveis. Em lugar de gentem
conculcatam, lê o Sírio—gentem depilatam: gente sem pêlo; e tais são também os
Brasis, que pela maior parte não têm barba, e no peito e pelo corpo têm a pele
lisa e sem cabelo, com grande diferença dos Europeus.
Estes são os sinais comuns que nos aponta o Profeta
daquela terra e gente; mas porque assinala mindamente outros mais particulares
e que não convêm a toda a gente e terra do Brasil, é outra vez necessário que
nós também declaremos a província e gente em que eles todos se verificam; e
esta gente e esta província mostraremos agora que é a que com toda a
propriedade chamamos Maranhão, que por ser tão pouco conhecida e menos nomeada
nos escritores, não é muito que a falta de suas notícias lhe tivesse até agora
escurecido e divertido a honra deste famoso oráculo do mais ilustre profeta,
que tão expressamente tinha falado nesta gente.
Diz pois o Profeta, que são estes homens uma gente a
quem os rios lhe roubaram a sua terra: Cujus diripuerant flumina terram ejus. E
é admirável a propriedade desta diferença, porque em toda aquela terra, em que
os rios são infinitos e os maiores e mais caudalosos do Mundo, quase todos os
campos estão alagados e cobertos de água doce, não se vendo em muitas jornadas
mais que bosques, palmares e arvoredos altíssimos, todos com as raízes e
troncos metidos na água, sendo raríssimos os lugares por espaço de cento,
duzentas e mais léguas, em que se possa tomar porto, navegando-se sempre por
entre árvores espessíssimas de uma e outra parte, por ruas, travessas e praças
de água que a natureza deixou descobertas e desimpedidas do arvoredo, e posto
que estes alagadiços sejam ordinários em toda aquela costa, vê-se este destroço
e roubo que os rios fizeram à terra, muito mais particularmente naquele
vastíssimo arquipélago do rio chamado Orelhana, e agora das Amazonas, cujas
terras estão todas senhoreadas e afogadas das águas, sendo muito contados e
muito estreitos os sítios mais altos que eles, e muito distantes uns dos
outros, em que os Índios possam assentar suas povoações, vivendo por esta causa
não imediatamente sobre a terra, senão em casas levantadas sobre esteios a que
chamam juraus para que nas maiores enchentes passem as águas por baixo; bem
assim como as mesmas árvores, que tendo as raízes e troncos escondidos na água,
por cima dela se conservam e aparecem, diferindo só as árvores das casas em que
umas são de ramos verdes outras de palmas secas.
Desta sorte vivem os Nheengaíbas, Goianás, Maianás e
outras antigamente populosas gentes, de quem se diz com propriedade que andam
mais com as mãos que com os pés, porque apenas dão passo que não seja com o
remo na mão, restituindo-lhes os rios a terra que lhes roubaram, nos frutos
agrestes das árvores de que se sustentam, cuja colheita é muito 1impa, porque
caem todos na água, e em muita quantidade de tartarugas e peixes-bois, que são
os gados que pastam naqueles campos, além de outro pescado menor, e alguma caça
de aves e montaria de porcos, que nos mesmos lugares sobre-aguados, entre os
lodos e raízes das árvores, se ceva nos frutos delas. E nota o Profeta que não
é rio, senão rios, os que isto fazem; porque, ainda que o rio das Amazonas
tenha fama de tão enorme grandeza, toda esta se compõe do concurso de muitos
outros rios, que todos desembocam nele, ou juntamente com ele, comunicando e
confundindo em si as águas e como unindo e conjurando as forças para este roubo
que fizeram àquela terra: Cujus diripuerunt flumina terram ejus.
Continua Isaías a sua descrição, e diz que os
habitadores desta província são gente arrancada e despedaçada, e só o Espírito
Santo poderá recopilar em duas palavras a história e última fortuna daquela
gente.
Quando os Portugueses conquistaram as terras de
Pernambuco, desenganados os Índios (que eram mui valentes e resistiram por
muitos anos) que não podiam prevalecer contra as nossas armas, uns deles se
sujeitaram, ficando em suas próprias terras; outros, com mais generosa resolução
e determinados a não servir, se meteram pelo sertão, onde ficaram muitos;
outros, caindo para a parte do mar, vieram sair às terras do Maranhão, e ali
como soldados tão exercitados com o mais poderoso inimigo, fizeram facilmente a
seus habitadores o que nós lhes tínhamos feito a eles.
Desta peregrinação e desta guerra se seguiram naquela
gente os dois efeitos que sinala Isaías, ficando uma e outra gente arrancada e
despedaçada: os vencedores arrancados, porque os tinham lançado de suas terras
os Portugueses; e também despedaçados, assim porque foram ficando a pedaços em
vários sítios como porque depois da vitória lhes foi necessário para
conservarem o violento domínio, dividirem-se em colônias mui distantes uns dos
outros, os vencidos também ficaram arrancados, porque os Tutinambás, (que assim
se chamavam os Pernambucanos) os arrancaram de suas pátrias; e também e com
muito maior razão despedaçados porque, não podendo resistir, muitos deles
fugiram em magotes pelos matos e pelos rios tomando diferentes caminhos, onde
fizeram assento, não sem novos inimigos que ainda mais os despedaçassem; assim
que uns e outros ficaram gente arrancada, e uns e outros gente despedaçada:
gentem conculcatam et dilaceratam.
Conhecidos já pela fortuna os descreve o Profeta, e
muito particularmente pelo exercício e arte da navegação, em que eram e são os
Maranhões mui sinalados entre os índios, por serem eles, ou os primeiros
inventores da sua náutica, como gente nascida e mais criada na água que na
terra, ou certamente porque com sua indústria adiantaram muito a rudeza das
embarcações bárbaras, de que os primeiros usavam. Tanto assim que a principal
nação daquela terra, tomando o nome da mesma arte de navegar e das mesmas
embarcações em que lá navegavam, se chamam Igaruanas, porque as suas
embarcações, que são as canoas, se chamam na sua língua igara, e deste nome
igara derivaram a denominação de Igaruanas, como se disséssemos os náuticos, os
artífices ou os senhores das naus
Diz pois Isaías que esta gente de que fala é um povo:
Quae mittit in mare legatos et in vasis papyri super aquas: «Que manda de uma
parte para outra seus negociantes em vasos de cascas de árvores sobre as
águas.>>
As palavras do Profeta todas têm mistério e todas
declaram muito a propriedade da gente de que fala. Diz que as manda o povo, com
quem concorda o relativo quae, porque é gente que não tem reis, mas o mesmo
povo e a mesma nação é a que elege aqueles que lhes parecem de melhor talento,
assim para os negócios da paz, como para os da guerra, que tudo isso quer dizer
a palavra legatos, como se pode ver nos autores da língua latina. Diz mais que
vão sobre as águas em vasos de cascas de árvores, porque esta era a matéria e
fábrica de suas embarcações. Depois que tiveram uso do ferro, cavam os troncos
das árvores e fazem de um só madeiro muito grandes canoas, de que o autor desta
explicação viu alguma que tinha dezessete palmos de boca e cento de
comprimento; mas antes de terem ferro despiam estes mesmos madeiros, cujos
troncos são muito altos e direitos, e, tirando-lhes as cascas assim inteiras,
delas formavam as suas embarcações. E não faz dúvida dizer o profeta que estas
embarcações iam ao mar: Qui mittit in mare; porque, além de entrarem com elas
pelo mar Oceano, o mesmo arquipélago que dizemos, de água doce, se chama na sua
língua, por sua grandeza, mar, e de aqui veio o nome que os Portugueses lhe
puseram de Grão-Pará ou Maranhão, o que tudo quer dizer mar grande, porque Pará
significa mar.
Do que temos dito até aqui ficará mais fácil de
entender aquele grande enigma do Profeta, que está nas primeiras palavras deste
texto: Vae terrae cymbalo alarum; o qual foi sempre o que maior trabalho deu
aos intérpretes e os obrigou a dizerem cousas mui violentas e impróprias, como
aqueles que falavam a adivinhar, e não adivinhavam nem podiam. Os Setenta
Intérpretes, em lugar de terrae cvmbalo alarum, leram terrae navium alis; e uma
e outra cousa significam as palavras de Isaías; porque os nomes hebreus de que
estas versões foram tiradas, têm ambas as significações e querem dizer: Ai da
terra que tem navios com asas; ou, ai da terra que tem sinos com asas. Se são
sinos, como são navios? e se são navios, como são sinos?
Esta dificuldade foi até agora o torcedor de todos os
entendimentos dos expositores sagrados, de 1600 anos a esta parte; mas como
podia ser que entendessem o enigma da terra, senão tinham as notícias nem a
língua dela? Para inteligência do verdadeiro entendimento deste texto ou
enigma, se há-de supor que a palavra latina cymbalum, com que significamos os nossos
sinos de metal, significa também qualquer instrumento com que se faz som e
estrondo e tais eram os címbalos de que usavam antigamente os Gentios, que se
chamavam por nomes particulares sistros crotalos, ou cretitáculos, e por nome
geral cimbalos. Assim o explicou eruditamente Carpenteio, vertendo em verso
este mesmo lugar de Isaías:
Vae
tibi, quae reducem sistris cretitantibus apim
Concelebras,
crotalos et inania cymbala pulsas...
Também
se há-de supor que os Maranhões usavam de uns instrumentos a que chamavam
maracás não de metal, porque o não tinham, senão de cabaços ou cocos grandes,
dentro dos quais metiam seixos ou caroços de várias frutas, duros e acomodados
a fazer muito estrondo e ruído, servindo-se dos menores nas festas e nos bailes
e dos maiores nas guerras. Estes maracás eram propriamente os seus címbalos ou
sinos, tanto assim que, depois que viram os sinos de que nós usamos, lhes
chamam itamaracás, que quer dizer, maracás ou sinos de metal.
Isto suposto, o expositor que mais foi rastejando o
sentido verdadeiro que podia ter este enigma, foi Gabriel Palácio, o qual, no
comentário literal deste lugar de Isaías, diz assim: Fortasse indicus usus
nominis cymbali antiquitas inolevit apud Hebraeos tempore Isaiae:
«Porventura—diz ele—que no tempo de Isaías as embarcações dos Índios se
chamariam entre os Hebreus sinos.» E porque não seria antes, digo eu, que se
chamassem sinos, ou tomassem nome de sinos as embarcações dos índios, de que
Isaías falava, não porque este nome fosse usado entre os Hebreus, senão entre
os mesmos Índios? Assim era e assim é, e deste modo fica decifrado e entendido
o antiquíssimo e escuríssimo lugar e enigma de Isaías.
As maiores embarcações dos Maranhões chamam-se
maracàtim, derivado o nome da palavra mararacá, que, como dissemos, significa
entre eles sino; e a razão de darem este nome às suas maiores embarcações era
porque, quando iam às batalhas navais, quais eram ordinariamente as suas,
punham na proa um destes maracás muito grandes, atados aos gorupezes ou paus
compridos; e bolindo de indústria com eles, além do movimento natural das
canoas e dos remeiros, faziam um estrondo barbaramente bélico e horrível; e
porque a proa da canoa se chama tim, tirada a metáfora do nariz dos homens ou
do bico das aves, que têm o mesmo nome, e juntando a palavra tim com a palavra
maracá, chamavam àquelas canoas ou embarcações maiores maracàtim; e este nome
usam ainda hoje, e com ele nomeiam os nossos navios.
Nem mais nem menos que os Romanos às suas galés de
guerra deram nomes de rostratas, pelas pontas de ferro agudas que levavam nas
proas, tirado também o nome ou metáfora dos bicos das aves, que chamam rostros.
Assim que vem a dizer Isaías que a terra de que fala é terra que usa
embarcações que têm nomes de sinos; e estas são pontualmente os maracàtins dos
Maranhões.
Mas não está ainda explicada toda a dificuldade ou
propriedade do enigma, porque diz o Profeta que estas embarcações ou estes
sinos eram sinos e embarcações com asas: cymbalo alarum, navium alis. Os
expositores todos dizem que estas asas eram as velas das embarcações e que são
as asas dos navios, conforme o poeta: Velorun pandimus alas. A qual explicação
pudera ser bem admitida, se não tivera a própria e verdadeira; sendo certo que
o Profeta não havia de dar por sinal e divisa daquelas embarcações uma cousa
tão comum e universal em todas.
Digo pois que fala o texto de verdadeiras asas de
aves. Como aqueles gentios não tecem, nem têm panos, é grande entre eles o uso
das penas pela formosura das cores com que a natureza vestiu os pássaros, e
particularmente o chamado guarás, de que há infinita quantidade, grandes e
todos vermelhos, sem mistura de outra cor; destas penas se enfeitam quando se
querem pôr bizarros, e principalmente quando vão à guerra, ornando com elas
todo o gênero de armas, porque não só levam empenadas as setas, senão também os
arcos e rodelas, e as partaz anas de pau e pedra que chamam fanga-penas; e
quando a guerra era naval, empavezavam-se as canoas com asas vermelhas dos
guarás. e as mesmas levavam penduradas dos gorupezes e maracás das proas; e por
isso o Profeta diz que todas estas cousas via e notava como tão novas: chamam
as lanças sinos e sinos com asas: Navius alis, cymbalo alarum.
E porque não faltasse a esta terra a demarcação ou
arrumação, como dizem os geógrafos, da sua altura, onde a Vulgata leu gentem
expectantem expectantem, a propriedade da letra hebréia, como diz Foreiro,
Pagnino, Vatablo, Sanchez e outros muitos tão geralmente, é gentem lineae
linea:, gente da linha de linha; porque os Maranhões são aqueles que, além da
Etiópia, ficam pontual e perpendicularmente bem debaixo da Linha Equinocial,
que é propriedade por todos os títulos admirável; e assim como a palavra lineae
se repete, está também repetida no mesmo texto a palavra expectantem; com que
vem a concluir o Profeta o seu principal e total intento, que é exortar os
pregadores evangélicos a que vão ser anjos da guarda daquela triste gente, que
tanto há mister quem a encaminhe como quem a defenda: Ite, angeli veloces, ad
gentem expectantem, expectantem: gente que está esperando, esperando. Porque
entre todas as gentes do Brasil os Maranhões foram os últimos a quem chegaram
as novas do Evangelho e o conhecimento do verdadeiro Deus, esperando por este
bem, que tanto tardou a todos os Americanos, mais que todos eles. No Brasil se
começou a pregar a Fé no ano de 1550, em que o descobriu Pedro Álvares Cabral;
e no Maranhão no ano de 1615, em que o conquistou Alexandre de Moura, esperando
mais que todos os outros Brasis sessenta e cinco anos. Mas hoje estão ainda em
pior fortuna, padecendo aquele vae do Profeta: Vae terra: cymbalo alarum;
porque o estado da esperança se Lhes tem trocado no de desesperação. E esperam
de se salvar os que de tantos danos e danos são causa?
Muito largos temos sido na exposição deste texto, mas
foi assim necessário por sua dificuldade e por não estar até hoje entendido.
Deixo muitos outros lugares do Profeta Isaías, o qual verdadeiramente se pode
contar entre os cronistas de Portugal, segundo fala muitas vezes nas espirituais
conquistas dos Portugueses e nas gentes e nações que por seus pregadores se
converteram à Fé; que o primeiro e principal intento que neles tiveram nossos
piedosíssimos reis, como se pode ver do que de El-Rei Dom Manuel, de El-Rei Dom
João o II, do Infante Dom Henrique, de El-Rei Dom João o III e de El-Rei Dom
Sebastião escrevem seus historiadores.
O Profeta Abdias em um só capítulo que escreveu
também falou das conquistas de Portugal: El transmigratio Hierusalem, quae in
Bosphoro est, possidebit civitates Austri. A palavra hebréia Sepharad, de que
São Jerônimo verteu Bosphoro, significa termo, limite e fim. Esta mesma palavra
Sepharad é nome com que os Hebreus chamam a Espanha, porque em Espanha está o
estreito que divide a Europa de África e Espanha era o termo, limite e fim que
os Antigos conheciam no Mundo, como testemunham de uma parte as Colunas de
Hércules e de outra o cabo de Finis Terrae, que são as duas balizas que têm no
meio a Portugal. Toda a explicação é comum e certa entre todos os autores mais
peritos da língua hebraica—Vatablo, Pagnino, Burgense, Arias, Lirano, Isidoro
Clário e os demais. Diz agora o profeta Abdias que a transmigração de
Jerusalém, que passou a Espanha, viria tempo em que possuísse as cidades do
Austro.
Mas sobre a transmigração de Jerusalém de que Abdias
fala, há duas opiniões entre os autores. Árias Montano, Frei Luís de Leon,
Malvenda e outros têm para si que fala da transmigração de Nabucodonosor o
qual, tendo conquistado a Jerusalém e passado seus habitadores para Babilônia,
de ali mandou parte deles para Espanha, por ser parte desta província conquista
sua, como refere Josefo, Estrabo e outros graves autores, e que veio o mesmo
Nabuco em pessoa a fazer esta guerra. Destes hebreus, ou desterrados ou
trazidos por Nabuco, ficaram muitos em Espanha, pela qual fortuna (como notou
Santo Agostinho na morte dos infantes de Belém) não tiveram parte na morte de
Cristo e conservaram sua antiga nobreza, e deles, como escrevem muitas
histórias de Espanha, foi fundação a insigne cidade de Toledo, Maqueda,
Escalona e outras. Assim querem também que de Nabuco traga seu apelido a
ilustre família dos Osórios. Desta transmigração pois (diz Montano e os mais
acima alegados) se há-de entender o texto de Abdias; e como o Profeta própria e
literalmente falava neste lugar do mesmo cativeiro de Babilônia, é conseqüência
muito ajustada que da profecia do desterro passou, para consolação dos mesmos
desterrados, a uma felicidade tão estranha, que delas havia de ter princípio,
qual é a que logo diremos.
Nicolau de Lira, Vatablo, Fevardêncio e outros
entendem por esta transmigração de Jerusalém a que fez Cristo, mandando daquela
cidade e espalhando por todo o Mundo seus Apóstolos, entre os quais coube
Espanha a Sant'Iago, e ele por meio de seus discípulos a converteu toda à Fé e
desterrou dela a Gentilidade: Et transmigratio Hierusalem, quae in Bosphoro est
(diz Lirano) in hebraeo habetur in Cepharad, id est in Hispania, ubi dicit
Rabbi Sa... quod fuit impletum per Jacobum apostolum, et ejus discipulos, ibi
fidem Christi primitus praedicantes, et colla gentium subjugantes, etc. E
cumprida em Sant'Iago a transmigração de Jerusalém, que é a primeira parte da
profecia, em seus discípulos, que são os que em Espanha receberam e conservaram
sempre a Fé que ele lhes tinha pregado, se cumpriu a segunda parte dela; sendo
estes os que depois de tantos séculos vieram a dominar e possuir as regiões do
Austro: Possidebunt civitates Austri. Assim o entendem também, seguindo esta
segunda exposição, Cornélio, José da Costa, Antônio Caracciolo e outros. De
maneira que todos estes autores concordam em que a profecia da conquista das
regiões do Austro se entende de Espanha; e discordam só na inteligência da
transmigração de Jerusalém, entendendo uns que é a de Nabuco pelos Judeus
passados à Espanha, e outros que é a de Cristo pelos Apóstolos, quando vieram
pregar a ela; mas eu, conciliando facilmente estas duas opiniões e mostrando
que a profecia se entende mais particularmente de Portugal, digo que falou o
Profeta de uma e outra transmigração, porque de ambas as transmigrações foram
os primeiros ministros da Fé que a plantaram em Portugal, de onde ela depois
tão felizmente se transplantou às regiões do Austro.
O fundamento que tenho para assim o dizer, porei aqui
com as palavras do arcebispo D. Rodrigo da Cunha, o qual, na primeira parte da
História Ecclesiastica Bracharense, falando do Apóstolo Sant'Iago, diz desta
maneira:
Entrou em Braga o santo Apóstolo, e para entrar com
estrondo de trovão (cujo filho o chamara Cristo, Nosso Senhor, se foi a uma
sepultura célebre, onde jacia enterrado de seiscentos anos um santo profeta,
judeu de nação, e que ali viera dar com outros cativos mandados de Babilônia
por Nabucodonosor, chamado Malaquias, o velho, ou Samuel, o moço e em presença
de infinito povo, chamando por ele o ressuscitou em nome de Jesus Cristo, a
quem vinha pregar e publicar por verdadeiro Deus; batizou-o pouco depois, e
dando-lhe o nome de Pedro, o escolheu e tomou por primeiro e principal de todos
seus discípulos.
Até aqui esta maravilhosa história, tirada de autores
e memórias mui antigas, e particularmente de uma carta de Hugo, bispo do Porto,
e dos fragmentos de Santo Atanásio, bispo de Saragoça, o qual conheceu ao mesmo
Pedro ressuscitado e escreveu o caso quase pelas mesmas palavras, que por isso
não traduzimos, e são as seguintes: Ego novi sanctum Petrum, Bracharensem
Episcopum, quem antiquum prophetam suscitavit Sanctus Jacobus Zebeduei filius,
magister meus. Hic venerat cum duodecim tributus missis a Nabuchodonosore in
Hispaniam Hierosolymis duce Nabucho-Cerdan, vel Pyrrho, Hispaniarum praefecto.
De sorte que ambas as transmigrações de Jerusalém
concorrem para a fé de Portugal: a de Cristo com o Apóstolo Santiago, e a de
Nabuco com o Apóstolo Malaquias, depois chamado vulgarmente S. Pedro de Rates,
que foi a pedra fundamental depois do sagrado Apóstolo da Igreja de Portugal.
Os filhos desta Igreja e herdeiros desta Fé foram os que dali a tantos anos
dominaram com os estandartes dela as cidades e regiões do Austro, que são
propriissimamente as que correm de uma e outra parte do Oceano Austral, à parte
direita pela costa da América ou Brasil, e à esquerda pela costa de África à
Etiópia, cuja rainha Sabá chamou Cristo Regina Austri; e estas são as terras de
que no comento deste texto faz menção Cornélio: Americam, Brasilicam, Africam,
AEthiopiam.
Assim se cumpriu nos Portugueses a profecia de
Abdias: Transmigratio, quae est in Hispania, possidebit civitates Austri. E
esperamos que seja novo complemento dela o domínio da terra indômita,
geralmente chamada Terra Austral.
O Cântico de Habacuc, que é a matéria de todo o III
cap. e último deste Profeta, tem por assunto o triunfo de Cristo, com que por
meio da sua cruz triunfou um dia da morte, do demônio e do pecado, e depois em
vários tempos foi triunfando da idolatria e da gentilidade, conforme a
disposição da sua providência. A parte marítima deste triunfo, que também foi
naval, pertence principalmente aos Portugueses, por meio de cuja navegação e
pregação sujeitou Cristo à obediência de seu império tantas gentes de ambos os
mundos. Isto quer dizer 0 Profeta no v. 8.° ...ascendes super equos tuos: et
quadrigae tuae salvatio. E no v. 15.°: Viam fecisti in mari equis tuis, in luto
aquarum multarum. Que abriu Cristo caminho pelo mar à sua cavalaria, para que
pisasse as ondas, e que a guerra que com esta cavalaria havia de fazer, não era
para matar os homens, senão para os salvar, e salvando-os, triunfar deles:
Equitatio tua salus; hoc est, evangelistae tui portabunt te, diz Santo
Agostinho, e verdadeiramente não se podia dizer cousa mais apropriada aos
Portugueses.
Os Portugueses foram aqueles cavaleiros a quem Cristo
abriu o primeiro caminho pelo mar: Viam fecisti in mari equis tuis. Os
Portugueses, aqueles cavaleiros que pisaram as ondas do mar, como os cavalos
pisam o lodo da terra: In Iuto aquarum multarum; e as naus dos Portugueses,
aquelas carroças que levavam pelo mar a Fé, a salvação: Et quadrigae tuae
salvatio. E a primeira empresa e vitória desta cavalaria de Cristo foi a
sujeição do mesmo mar bravo, soberbo, furioso e indignado, que ou Cristo lhe
sujeitou a eles, ou eles o sujeitaram também a Cristo, para que o reconhecesse
e adorasse. O mesmo Profeta o disse assim: Numquid in mari indignatio tua?»
«Porventura, ó Senhor, há-de ser eterna a vossa indignação no mar?» E responde
a esta sua pergunta, que o mar submeteria suas ondas: Gurges aquarum transiit:
que os abismos confessariam a potência de Cristo as vozes: Dedit abyssus vocem
suam; (Ibid.) e que as suas alturas ou profundidades, com as mãos levantadas o
adorariam e reconheceriam por Senhor: Altitudo manus suas levavit; e esta foi a
primeira vitória de Cristo, e este da sua cavalaria o primeiro triunfo.
Mas para que se veja o grande mistério desta metáfora
de cavalaria de Cristo, de que usou o Profeta (deixando à parte haver sido esta
empresa dos primeiros descobrimentos e conquistas dos Portugueses), por si
mesma e na opinião do Mundo tem [esta] cavalaria [tanto valimento,] que não só
os mesmos Portugueses, senão ainda os estrangeiros, faziam grande apreço de se
armarem nela cavaleiros, como lemos que o fizeram alguns de Alemanha e
Dinamarca.
Faz muito ao caso advertir o que escreve o nosso
insigne historiador destas conquistas, que quero pôr aqui por suas próprias
palavras): Mas ainda foi acerca dele (fala do Infante D. Henrique) outra cousa
muito mais eficaz, que era a obrigação do cargo e administração que tinha de
governador da Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, que El-Rei D.
Dinis, seu tresavo, para esta guerra dos Infiéis ordenou e novamente
constituiu. E mais abaixo no mesmo cap., que é o 2° do liv. I.°, Década I.a:
Assentou em mudar esta conquista para outras partes mais remotas de Espanha, do
que eram os reinos de Fez e Marrocos, com que a despesa deste caso fosse
própria dele e não taxada por outrem; e os méritos de seu trabalho ficassem
metidos na Ordem e Cavalaria de Cristo que ele governava; de cujo tesouro podia
pretender. De sorte que dizer o Profeta que Cristo havia de abrir caminho no
mar à sua cavalaria, e que a empresa havia de ser a salvação das almas, não só
tem a formosura da metáfora, senão a propriedade do caso, e a verdade da
história e cumprimento da profecia; pois verdadeiramente esta admirável empresa
foi obra, não de outro príncipe, senão de um que era propriamente administrador
e governador da Ordem da Cavalaria de Cristo, e feita, não com outras despesas,
senão com as rendas e tesouros da mesma cavalaria e serviços e merecimentos
próprios dela.
E porque o maior ministro do Evangelho que se
embarcou nas carroças desta cavalaria, para levar a salvação às terras e gentes
que ela descobriu e conquistou, foi o grande Apóstolo da Índia S. Francisco
Xavier, cujos primeiros trabalhos foram os da navegação da costa de África e
pregação da Fé em Moçambique, é cousa memorável e muito digna de se referir
neste lugar, que também ele foi cavaleiro da mesma Ordem.
Na História do P.e Marcelo Mastrilli, a quem S.
Francisco Xavier restituiu milagrosamente a vida, para que a fosse dar por
Cristo no Japão, onde padeceu glorioso martírio, se conta uma visão em que o
mesmo santo apóstolo apareceu vestido com o manto branco da Ordem de Cristo e
com cruz vermelha no peito, como insigne cavaleiro desta santa cavalaria, e que
tanto adiantou em nossas Conquistas a glória de sua empresa. Singular
prerrogativa, por certo, da Ordem dos Cavaleiros de Cristo de Portugal, não
havendo outra entre todas as da Cristandade, que se possa gloriar de ter tão
ilustre cavaleiro, nem de que sobre os dotes da glória se vestisse o seu manto
e a sua cruz; mas todo este favor do Céu merece uma cavalaria que tanto mar,
tanto mundo e tantas almas conquistou para o mesmo Céu.
Para confirmação de tudo isto, e para que os
Portugueses conheçam quanto devem a Deus, pelos escolher para instrumentos de
obras tão admiráveis, e para que se não admirem quando lhes dissermos que os
tem escolhido para outras maiores, não pode haver melhor testemunho que o
proêmio do mesmo Profeta, com que deu princípio a este cântico triunfal das vitórias
de Cristo: Domine, (começa ele) audivi auditionem tuam et timui. Domine, opus
tuum in medio annoram vivifica illud. In medio annorum notum facies: cum iratus
fueris, misericordiae recordaberis. Quando Deus revelou ao Profeta e quando
ouviu de sua boca o que havia de fazer aos vindouros, diz que ficou cheio de
temor e assombro ( assim o interpretaram os Setenta , acrescentando por modo de
glosa no mesmo texto: Consideravi opera tua, et expavi). Porque não houve obra
de Deus, depois do princípio e criação do Mundo, que mais assombrasse e fizesse
pasmar aos homens que o descobrimento do mesmo Mundo que tantos mil anos tinha
estado incógnito e ignorado; nem que maior nem mais justo temor deva causar aos
que bem ponderarem esta obra, que a consideração dos ocultos juízos de Deus,
com que por tantos séculos permitiu que tão grande parte do Mundo, tantas
gentes e tanta s almas vivessem nas trevas da infidelidade, sem lhes
amanhecerem as luzes da Fé, tão breve noite para os corpos e tão comprida noite
para as almas. Mas no meio desses compridíssimos anos, diz o Profeta que faria
Deus que se descobrisse e conhecesse o que até então estava oculto: In medio
annorum notum facies; e que tendo durado tantos séculos sua ira contra aquelas
gentes idólatras, em fim se lembraria de sua misericórdia: Cum iratus fueris,
misericordiae recordaberis; e que então tornaria o Senhor a vivificar e
ressuscitar a sua obra: Opus tuum, in medio annorum vivifica illud.
Os Setenta, traduzindo juntamente e explicando leram:
Cum appropinquaverint anni, cognosceris. «Quando chegarem os anos determinados
por vossa providência, então sereis conhecido.:>> E este novo
conhecimento que Deus deu àquelas nações por meio dos nossos apóstolos e
pregadores da sua Fé foi tornar a ressuscitar a mesma obra, que tinha começado
pelos primeiros apóstolos que naquelas mesmas terras a pregaram, e com o tempo
estava em algumas partes amortecida e em outras totalmente morta. Isto quer
dizer: Opus tuum vivifica illud: ou, como traslada Símaco: Reviviscere fac
ipsum. E o mesmo profeta mais abaixo se comenta a si mesmo, dizendo: Suscitans
suscitatis arcum; tuum. «Vós, Senhor, tornareis a ressuscitar o vosso arco»
(que é a sua cruz), por meio de cuja pregação ressuscitaria também a Fé e as
vitórias dela naquelas nações.
Assim o profetizou na Índia seu primeiro Apostolo, S.
Tomé, quando na cidade de Meliapor, então famosíssima, levantando uma cruz de
pedra em lugar distante das praias, não menos que doze léguas. Lhes disse e
mandou esculpir no pé dela, que quando o mar ali chegasse, chegariam também de
partes remotíssimas do Ocidente outros homens da sua cor. que pregassem a mesma
Cruz, a mesma Fé e o mesmo Cristo que ele pregava.
Cumpriu-se pontualmente a profecia, porque o mar,
comendo pouco a pouco a terra, chegou ao lugar sinalado, e no mesmo tempo
chegaram os Portugueses.
Igual glória (e não sei se maior de Portugal) a da
Índia, que ainda tivesse a S. Tomé por seu apóstolo e Portugal não era de todo
cristão, e já os Apóstolos plantavam as balizas da fé em seu nome e conheciam e
pregavam que ele era o que havia de fazer cristão ao Mundo. Lembre-se outra vez
Portugal destas obrigações, e de quanto lhe merece Cristo.
O Profeta Sofonias, no cap. III, também falou mui
particularmente neste glorioso assunto: Ultra flumina AEthiopiae (diz ele, ou
por ele Deus) inde supplices mei, filii dispersorum meorum deferent munus mihi.
As quais palavras entendem Árias, Vatablo, Castro e Cornélio das nações que
estão além do Tigres e do Eufrates, isto é, dos Chinas, Japões e outras gentes
da Índia menos remotas, que por meio das pregações dos Portugueses se haviam de
ajoelhar diante dos altares de Cristo e lhe haviam de levar e oferecer seus
dons em testemunho de o reconhecerem por seu Deus; mas contra esta explicação
parece que se opõem as primeiras palavras do texto, que verdadeiramente falam
das gentes que estão além do rio da Etiópia: Ultra flumina AEthiopiae inde
supplices mei. Logo, segundo o que acima deixamos dito, não se pode entender
este texto das gentes orientais. Por este argumento há outros autores que o
entendem do Brasil e da América, e posto de um e outro modo, sempre o oráculo
ou elogio deste Profeta nos fica em casa. Digo que de uma e outra terra, e de
uma e outra gente se pode entender.
E a razão é porque, segundo Estrabo, Éforo, Heródoto
e outros, debaixo do mesmo nome de Etiópia se compreendiam antigamente duas
Etiópias: uma oriental, que estava na Ásia além do Tigres e Eufrates, donde era
a mulher de Moisés, chamada por isso Etiópia; e outra ocidental, na África, que
são todas aquelas terras que cerca o mar Oceano, desde Guiné até o mar Roxo.
As palavras de Heródoto são estas: Hi AEthiopes, qui
sunt ab ortu Solis, sub Pharnarzatre, censebantur cum Indiis specie nihil
admodum a caeteris differentes, sed sono vocis dumtaxat, atque capillatura. Nam
AEthiopes qui ab ortu Solis sunt, permixtos crines; qui ex Africa, crespissimos
inter homines habent. De sorte que também havia Etíopes na Ásia, como são hoje
os que se conservam com o mesmo nome na África, e só se distinguiam uns dos
outros no som da voz e no cabelo; porque os da .Ásia tinham o cabelo solto e
corredio e os da África crespo e retorcido; a qual distinção não não só é
necessária para o entendimento de muitos lugares das Escrituras, senão ainda
dos historiadores e poetas antigos, que de outro modo se não podem bem
entender.
Nem faça dúvida a esta distinção a palavra Chus, de
que usa indistintamente o original hebreu, donde nós lemos AEthiopae; porque
Membrot, filho de Chus e neto de Cham, deu o nome de seu pai às terras
orientais, onde habitou e povoou. Os descendentes deste mesmo Membrot e deste
mesmo Chus, como diz Éforo, referido por Estrabo, e os que depois passaram à
África e a povoaram, levaram consigo o nome que tinham herdado de seu pai e de
seu avô; e assim como uns e outros na língua latina se chamam AEthiopes, e a
sua terra Ethiopia, assim uns e outros na língua hebréia se chamam Chuteos e a
sua terra Chus. Donde se segue que quando na Escritura se acha este nome sem
outra diferença, (como neste lugar de Sofonias) se pode entender de qualquer
das Etiópias; porém quando se ajuntem na história ou narração algumas
diferenças que o determinem, então se há-de entender determinadamente ou só da
Etiópia Oriental ou só da Ocidental, como nós fizemos no texto de Isaías
ultimamente referido.
No cap. XVI, 12, do Apocalipse, diz S. João: Et
sextus angelus effudit phialam suam in flumen illud magnum Euphraten: et
siccovit aquam ejus, ut praepararetur via regibus ab ortu Solis: Que «o sexto
anjo derramou sua redoma sobre aquele grande rio Eufrates e que secou suas
águas, para aparelhar o caminho aos reis do Oriente». O maior impedimento de
água que tinham os reis do Oriente para passar a Jerusalém, era o rio Eufrates,
por ser o mais profundo e mais caudaloso da Saia; e este impedimento diz S.
João que se lhes havia tirar, de modo que se pudesse passar o Eufrates a pé
enxuto. Mas debaixo das figuras deste enigma se significava outra melhor
Jerusalém, que é Roma, cabeça da Igreja, e outro melhor Eufrates, que é o mar
Oceano, pelo qual se abriu caminho aos reis do Oriente, para que pudessem vir à
Igreja.
Assim como o Profeta Jeremias chamou ao Eufrates mar,
não é muito que S. João chamasse ao mar Eufrates, principalmente acompanhado
daqueles dois epítetos de alusão a grandeza: Illud magnum Euphatem. E este
grande Eufrates é aquele grande mar, pelo qual os Portugueses (maior façanha e
ventura que a do outro Ciro) fizeram passagem a pé enxuto nas suas grandes naus
da Índia, para levarem nelas a Fé ao Oriente e trazerem tantos reis orientais à
obediência e sujeição da Igreja. Não sou eu nem autor português (como quase
todos os que até agora tenho alegado) o que isto digo, senão o doutíssimo
Genebrardo, insigne professor parisiense das Letras Sagradas. falando em geral
dos Espanhóis e em particular dos Portugueses, a quem só pertence a conversão
dos reis do Oriente, 0 diz assim sobre este mesmo lugar do Apocacalipse.
O mesmo Evangelista Profeta S João, no cap. X, diz
que viu descer do Céu um anjo forte, cujas insígnias descreve largamente , que
nós pode ser expliquemos em outro lugar. Neste basta dizer que tinha na mão um
livro aberto: Et habebut in manu sua libellum apertum, e que pôs o pé esquerdo
sobre a terra e o direito sobre o mar: Et posuit pedem suum dextrum super mare
et sinistrum super terram.
Este anjo forte (diz Pedro Bulêngero) é Cristo; o
livro, o Evangelho explicado; e os pés de seu corpo místico, que é a Igreja, os
pregadores apostólicos que levam pelo Mundo ao mesmo Cristo e seu Evangelho,
entre os quais o pé esquerdo, que está sobre a terra, são aqueles que, sem
saírem da terra firme pregaram nela; o pé direito, que está sobre o mar, os
que, navegando às regiões apartadas e remotas do nosso hemisfério, levam a elas
a Fé de Cristo e a luz de seu Evangelho; donde se segue que o pé direito que
Cristo pôs sobre o mar para esta gloriosa e evangélica empresa, são, entre
todas as nações do Mundo, por excelência os Portugueses. Não os nomeou por seu
nome este autor, mas nomeou-os por suas obras, e é o mais honrado nome e de
maior estimação que lhes podia dar, explicando-se com as palavras seguintes:
Istud nostra memoria factum videmus, quae quidem regna a nobis longe dissita el
incognitae regiones teterrimo daemonum cultui additae sunt, opera patrum
Societatis nominis Jesu ad Christi religionem traducta sunt. Sinenses enim, qui
populi ad veteres Índias expectant, et infideles sunt, (relicto daemonum cultu,
ad octo millia primum) et in his reges et princites, permultique proceres et
optimates sub anno Domini I564, Christi Jesu fidem susceperunt; deinde multa
Indorum insulae et regiones christianam, catholicamque amplexerunt doctrinam,
et integrae civitates sacro sunt ablutae baptismate.
«Em cumprimento desta profecia (diz Bulêngero,
alegando a Súrio). vemos que os reinos e regiões muito apartadas de nós, que
adoravam nos ídolos aos demônios, pela indústria dos padres da Companhia de
Jesus, se têm passado à verdadeira religião; porque os Chinas, que pertencem às
antigas Índias, e são infiéis e gentios, deixando o culto da idolatria no ano
de I564, receberam a Fé de Cristo em número de 8.000, em que entraram os
príncipes e reis e muitos grandes senhores; e em outras muitas ilhas e terras,
de tal maneira os Índios abraçaram a doutrina cristã e católica, que as cidades
se batizaram.>> Tão facilmente triunfa Cristo pela voz e espada dos
Portugueses, com o pé direito no mar e o livro na mão direita!
No capítulo seguinte se verão muitos lugares de
vários Profetas, explicados por autores que escreveram de cem anos a esta
parte, depois que por meio da navegação do mar Oceano se quebrou o fabuloso
encantamento dos negados antípodas e se descobriram tantas terras e gentes, não
só incógnitas aos Antigos, mas nem ainda presumidas ou imaginadas deles. Ali
veremos as admiráveis propriedades e miudíssimas circunstâncias com que os
mesmos Profetas falaram dos mares, das ilhas, das navegações, das terras, dos
sítios, dos rios, das minas, das árvores, dos frutos, das gentes, dos costumes,
da cegueira e infelicidade em que viviam, e sobre tudo da Fé e luz do
Evangelho, com que por meio dos pregadores de Cristo o haviam finalmente de
conhecer, adorar e servir, como hoje, com tanta glória da Igreja, conhecem,
adoram e servem.
Agora só pergunto: Como era possível que aqueles
antigos e antiquíssimos autores explicassem neste sentido aos Profetas? Ou como
podiam entender nem perceber que destas gentes, e destas terras, e destes
mares, falavam os seus oráculos e profecias? Se criam tão firme e
assentadamente que não havia nem podia haver antípodas, como podiam explicar as
profecias dos antípodas? Se criam que a imensidade do mar Oceano não era
navegável e tinham este pensamento por absurdo, como haviam de entender as
profecias destas navegações e destes mares? Se queriam que a zona tórrida era
um perpétuo incêndio, e totalmente abrasada e inabitável, como haviam de
interpretar as profecias dos habitadores da zona tórrida? Como haviam de
cuidar, nem lhes havia de vir ao pensamento que os Profetas falavam dos
Americanos, se não sabiam que havia América? Como dos Brasis, se não havia
Brasil? Como dos Peruanos e Chiles, se não sabiam que havia Peru nem Chile?
Como haviam de interpretar os Profetas das ilhas desertas ou povoadas do
Oceano, se não sabiam que havia no Mundo tais ilhas? Como dos Etíopes ocidentais,
se não sabiam que havia tal Etiópia? Como dos Japões, se não sabiam que havia
Japões? Como dos Chinas, se não sabiam que havia China? Se os Profetas nas
figuras enigmáticas dos seus oráculos se declaram pela natureza, propriedade,
costumes, exercícios e histórias das gentes e reinos de que falam, como haviam
de vir em conhecimento dessas gentes e desses reinos os que não podiam saber
sua natureza, suas propriedades, seus exercícios e seus costumes, nem suas
histórias? Se declaram as terras pelos sítios, pelos rios, pelas árvores, pelos
frutos, pelas minas e seus metais, como podiam conhecer nem atinar com as
terras os que não tinham notícia de tais sítios, de tais rios, de tais minas,
de tais árvores, nem de tais frutos? E se ainda hoje, depois de descobertas e
conhecidas estas terras e estas gentes, e se terem escrito tantos livros de sua
história natural e política, ainda por falta de notícias mais particulares e
miúdas, se não acerta mais que em comum e individualmente com algumas das
terras e gentes de que os profetas falaram, que seriam na confusão escuríssima
da Antigüidade, em que nenhuma destas cousas se sabia nem se imaginava, antes
as contrárias delas se tinham por averiguadas e certas?
Frei João de la Puente, naquele seu erudito livro da
Conveniência das duas monarquias, romana e espanhola, trabalhando por explicar
de Espanha certo lugar de Isaías, diz assim dos teólogos, sendo ele mestre em
Teologia: La falta de Geographia v la de otras artes liberales es causa que los
teologos non atinem con el sentido de la divina Escritura. E isto que se não
pode dizer dos teólogos do nosso tempo sem grande nota de sua ciência e
diligência, depois do Mundo estar tão descoberto e conhecido, é obrigação e
força que digamos ou suponhamos dos teólogos antigos, por doutíssimos e
sapientíssimos que fossem, como verdadeiramente eram, sem agravo, nem menos
decoro de sua erudição e grande sabedoria, porque sabiam a geografia do seu
mundo e não podiam saber nem adivinhar a do nosso. Só por nova revelação e luz
sobrenatural podiam conhecer os autores daquele tempo o que nós tão fácil e
naturalmente conhecemos hoje; mas esta revelação, esta luz e posto que fossem
varões santíssimos e tão favorecidos de Deus, não quis o mesmo Deus que eles
então a tivessem, porque era disposição mui assentada da sua providência que
estas cousas se não soubessem, e estivessem ocultas até àqueles tempos medidos
e taxados por ele, em que tinha decretado que se soubessem e descobrissem.
Diz o Apóstolo S. Paulo que acomodou Deus e repartiu
os séculos conforme os decretos da sua palavra, para que cousas invisíveis se
fizessem visíveis: Fide intelligimus aptata esse saecula verbo Dei, ut ex
invisibilibus, visibilia fiant; por onde não é muito que tanta parte do Mundo,
e as gentes que o habitavam, estivessem ignoradas e invisíveis por tantos
séculos, e que depois chegasse um século em que se descobrissem e fossem
visíveis; e assim como, corrida esta cortina, se descobriram e manifestaram as
terras e gentes de que tinham falado os Profetas, assim se entenderam e
descobriram também os segredos e mistérios de suas profecias.
Destas terras ultramarinas, encobertas e incógnitas,
falava Isaías, quando disse no cap. XXIV: ...in doctrinis glorificate Dominum;
in insulis maris nomen Domini, Dei Israel. E logo acrescentou: Secretum meum
mihi, secretum meum mihi: «Este segredo é só para mim; este segredo é só para
mim.» E se na mesma profecia estavam profetizadas as cousas, e mais o segredo
delas, como podia ser que contra a verdade infalível da profecia soubessem os
Antigos deste segredo, antes de chegar o tempo em que Deus tinha determinado de
o revelar?
O cântico do profeta Habacuc, que também trata destes
novos descobrimentos ou triunfos da Fé e da conversão destas gentes, tem por
título Pro ignorantiis. E se o conselho de Deus foi que o entendimento ou de
todas ou de muitas cousas que ali contou o Profeta, se ignorasse; que agravos
ou descréditos é ou pode ser dos antigos sábios, que para eles fossem ocultas,
incógnitas ou ignoradas? Podem os homens ocultar os seus segredos, e Deus não
será senhor de reservar os seus, sendo logo certo que estes segredos da
Providência Divina se não podiam alcançar por ciência humana, e que a mesma
Providência tinha decretado que se não soubessem por revelação?
LAUS DEO
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