Tuesday 14 May 2019

Tuesday's Serial: "História do Futuro" by Fr. António Vieira (in Portuguese) IV


Volume I, Capítulo XI - Declara-se qual seja a novidade desta História, e que as cousas novas, por novas, não desmerecem o crédito de sua verdade.
                Quando no princípio deste livro prometemos cousas novas aos curiosos, bem advertimos que metíamos as armas nas mãos aos críticos; mas são estas armas já tão velhas e ferrugentas, que não há muito que temer seus golpes, ainda que a novidade da nossa História fora qual se supõe, e não é, contanto que não tenha, como por graça de Deus não tem, cousa alguma que encontre a Fé ou doutrina da Igreja. 0 reparo da novidade não é crime de que ela tema ser acusada, e pelo qual, quando o seja, ponha em risco o crédito da sua verdade, se por si mesma lhe for devida.
                Pensão é muito antiga das cousas boas e grandes serem acusadas de novas. A primeira instituição da vida monástica, sendo o estado mais santo da Igreja Católica, que acusações não padeceu antigamente (e padece ainda hoje) dos hereges, pela novidade do hábito e modo de vida! Digam-no as apologias de S. João Crisóstomo, S. Gregório, S. Bernardo Santo Tomás, S. Boaventura, para que não falemos nos Waldenses, nos Platins, nos Soares, nos Barónios, nos Belarminos. A mesma Lei de Cristo chamada por sua novidade evangélica, em quantos Evros e tribunais de Gentios e Judeus foi terminada pela glória deste título! Acusação foi de que a defendeu Tertuliano, Lactancio, Arnóbio, Prudêncio, e todos os outros padres que antes e depois destes escreveram contra Gentios. Mas o maior exemplo de todos neste caso é o daquela divina obra de S. Jerônimo na versão da Sagrada Bíblia, que hoje adoptamos por canónica, tão estranhada quando nova, não por Gentios ou hereges, nem só por quaisquer católicos, senão pela maior luz da Igreja, Santo Agostinho. Quero pôr aqui as palavras deste grande e santíssimo doutor, escritas não a outrem, senão ao mesmo S. Jerônimo: De vertendis autem in latinam linguam sanctis litteris laborare te nollem [ ] aut obscura sunt, aut manifesta. Si enim obscura sunt, te quoque in eis falli potuisse creditur,- si manifesta, superfuum est te voluisse explanare quod i11is latere non potuit: «!Quanto à versão das Escrituras Sagradas na língua latina, obra é — diz o santo— em que eu não quisera que vós empregásseis o vosso trabalho, porque ou elas são escuras ou manifestas. Se escuras, com razão se crê que também vos podeis enganar na sua interpretação, como os outros escritores; e se manifestas, supérflua diligência é quererdes vós explicar o que os outros não podem deixar de ter entendido».
                Até aqui zelosa, elegante e engenhosamente Santo Agostinho, ao qual respondeu S. Jerônimo com igual engenho, zelo e elegância, e verdadeiramente com vitória, por estas palavras:: Porro quod dicis non debuisse me interpretari post veteres, et novo utens syllogismo [...] tuo tibi sermone respondeo: omnes veteres tractatores, qui nos in Domino praecesserunt et qui Scripturas Sanctas interpretati sunt, aut manifesta. Si obscura, quomodo tu post eos ausus es disserere, quod illi explanare non potuerunt? Si manifesta, superfluum est te voluisse disserere, quod illis latere non potuit [...] respondeat mihi prudentia tua, quare tu post tantos ac tales scriptores et interpretes in explanatione Psalmorgm diversa senseris? Si enim obscurt sunt Psalmi, te quoque in eis falli potuisse credendum est; si manifesti, illos in eis falli potuisse non creditur, ac per hoc utroque modo superflua erit interpretatio tua, et hac lege post priores nullus loqui audebit, et quodcumque alius occupaverit, alius de eo scribendi non habebit licentiam.
                «Quanto ao que me dizeis—diz S. Jerônimo a S. Agostinho — que eu me não devia cansar em interpretar as Escrituras depois dos antigos intérpretes delas, e para isso usais daquele novo silogismo, respondo com as mesmas vossas palavras: Todos os expositores dos Livros Sagrados, que nos precederam no Senhor, ou interpretaram o que era escuro, ou o que era manifesto. Se o que era escuro, como vos atreveis também a declarar o que eles não puderam? Se o que era manifesto, supérfluo trabalho é cansar-vos em querer fazer entender o que eles não podiam deixar de ter entendido. Responda-me logo vossa prudência: com razão, depois de tantos e tais intérpretes, vos atrevestes na exposição dos Salmos a sentir diversamente do que eles sentiam? Porque, se os Salmos são escuros, também se deve entender que vós vos podeis enganar na sua inteligência; e se são claros e manifestos, supérflua é e não necessária a vossa interpretação E segundo esta lei, ninguém poderá falar depois dos primeiros, e tanto que um se adiantar à exposição de algum Livro Sagrado, logo nenhum outro terá licença para escrever sobre ele.»
                Isto dizia Santo Agostinho a S. Jerônimo sobre a novidade de sua versão, a qual hoje é de fé; e isto S. Jerônimo a S. Agostinho sobre a novidade da sua exposição dos Salmos, que hoje . é antiqüíssima e mui venerada, e depois dela se escreveram infinitas outras mais novas, e ainda os Salmos não estão bastantemente interpretados. Assim que os reparos da novidade são pensão (como dizia) das cousas boas e grandes, e não só entre os inimigos e impugnadores da verdade, senão entre os maiores zeladores e defensores dela.
                Mas destes mesmos exemplos se convence claramente quão frívolas são e pouco eficazes as acusações do que se estranha por novo. Não é o tempo, senão a razão, a que dá o crédito e autoridade aos escritores; nem se deve perguntar o quando, senão o como se escreveram. A antigüidade das obras é um acidente extrínseco que nem tira nem acrescenta validade, e só porque põe os autores delas mais longe dos olhos da inveja, lhes granjeia a triste fortuna de serem mais venerados ou melhor conhecidos depois da morte, que vivos. As trevas foram mais antigas que o Sol e os animais que o homem. O Testamento Velho não é mais perfeito que o Novo, por ser mais antigo, nem o Novo perde a perfeição e excelência que tem sobre o Velho, por ser mais novo. Que cousa há hoje tão antiga, que não fosse nova em algum tempo? Diz Salomão que não há cousa nova debaixo do Sol; e ainda é mais universalmente certo, que não há cousa debaixo do Sol que não fosse nova. A mais nova entre todas as do Mundo foi o mesmo Mundo. Se a nossa religião é nova, argumentava Arnóbio contra os Gentios, tempo virá em que seja velha; e se a vossa superstição é velha, tempo houve em que também foi nova. Dizeis que a religião cristã é nova, porque ainda não tem quatrocentos anos, e há menos de dois mil que os deuses que vós adoráveis ainda não tinham cento. Com a mesma energia disse o imperador Cláudio ao senado: Omnia, Patres conscripti, quae nunc vetustissima creduntur, nova fuere: plebei magistratus post patricios, latini post plebeios, coeterarum Italiae gentium post latinos; inveterescet hoc quoque, et quod hodie exemplis tuemur inter exempla erit. E verdadeiramente é assim: quantas cousas são hoje exemplos que começaram sem exemplo? Todas as opiniões ou verdades que se escreveram, tiveram princípio, e aquele que as começou sem autor, foi o primeiro que lhes deu a autoridade.
                Acudia S. Jerônimo à queixa da sua nova versão, e diz assim contra Rufino: Periculosum opus certe, et obtrectarorum meorum latratibus patens, qui me asserunt in septuaginta interpretum sugillatione, nova pro veteribus cudere; ita ingenium quasi vinum probantes. Discretamente; porque antepor o velho ao novo só pelos anos, escolha parece mais de cela vinária, que do trono ou cadeira de Salomão. E notem os leitores que são estas palavras de uma das apologias que S. Jerônimo escreveu em defesa daquela nova versão da Sagrada Escritura, que hoje se chama Vulgata, e é de fé católica; para que se veja quais são os juízos dos homens e quão impugnadas que costumam ser as obras de que Deus se quer servir.
                Não tinha esta de S. Jerônimo outro reparo mais que a glória de ser sua e nova; mas sobre esta lhe argüía Rufino e outros homens doutos tais calúnias, que a queriam fazer não menos que herética, como se só os antigos fossem católicos e a verdade sem cãs não fosse verdade. Uns o faziam por zelo, outros por inveja, muitos por malícia, todos por ignorância.
                E verdadeiramente que, se bem apontamos os fundamentos destes impugnadores d a novidade e as razões daquela dura lei com que forçosamente querem que sigamos em tudo os antigos e adoremos as suas pisadas, ou é porque têm para si que já se não podem dizer cousas novas, ou que não há capacidade nos modernos para as poderem descobrir e dizer. Se o primeiro, grande injúria fazem à verdade e às ciências; se o segundo, grande afronta aos homens e à nossa idade. Mas não me ouçam a mim, ouçam aos mesmos antigos. E começando pelos Gentios, alumiados só pelo lume da razão, Séneca, na epist. LXIV, escreve ou ensina a Lucilo desta maneira: Multum adhuc restat operis, multumque restabit; nec ulli nato, post mille secula, praecludetur occasio aliqua adhuc adjiciendi. [...] Multum egerunt, qui ante nos fuerunt, sed non peregerunt. E na epístola LXXIX:: Et qui praeesserant, non praeripuisse mihi videntur quae dici poterant, sed aperuisse; sed multum interest, utrum ad consumptam materiam, an ad subactam accedas: crescit in dies, et inventum inventa non obstant. E Marco Túlio, formando um perfeito orador no livro Orator: Nec vero Aristotelem in philosophia deterruit a scribendo amplitudo Platonis, nec ipse Aristoteles admirabili quadam scientia et copia caeterorum studia restrinxit
                Até aqui estes dois gentios, em que era ainda maior a soberba e presunção que a ciência. E se estes, sendo ambos eminentíssimos nas suas artes não duvidaram confessar que havia ainda muito mais que andar, que inventar, que descobrir e saber nelas, porque havemos nós de esperar e afrontar tanto a nossa idade e os homens dela, que cuidemos que já não podem adiantar as ciências nem dizer e acrescentar sobre elas cousa de novo?
                Sêneca floresceu nos tempos de Nero, que vem a ser, por boas contas, dezesseis séculos antes deste nosso; e se ele conheceu que os que nascessem de ali a mil séculos, ainda teriam muito que dizer na mesma filosofia moral em que ele tanto e tão sutilmente disse, que muito é que se atreva a dizer alguma cousa nova a nossa idade, se ainda lhe restam por sua confissão novecentos e oitenta e quatro séculos (se tantos durar o Mundo) para dizer e inventar muito de novo sobre o mesmo Sêneca? Se depois do divino Platão (como pondera Túlio) não acovardaram os seus escritos a Aristóteles para que não escrevesse, nem a admirável sabedoria e cópia do mesmo Aristóteles pôde apagar os fogosos espíritos de tantos filósofos que depois dele e sobre ele escreveram, sendo por comum aprovação do Mundo um dos maiores engenhos que produziu a Grécia e a mesma natureza, porque havemos de querer abreviar as mãos do Autor dela e cuidarmos que já não podem falar de novo os homens presentes, e só lhes damos licença para decorarem e repetirem o que disseram os passados? Se assim fora, debalde nos deu Deus o entendimento, pois nos bastava a memória. Porque, como bem disse o mesmo Sêneca, saber só o que os Antigos souberam, não é. saber, é lembrar-se: Aliud est meminisse, aliud scire. Meminisse est rem commissam memoriae custodire; at contra scire, est et sua facere quemque, nec ab exemplari pendere, et toties ad magistratum respicere.
                Estes tais haviam de ter a testa virada para as costas, como dizem os Italianos dos Alemães, que todos se ocupam na erudição do passado, sem descobrir nem inventar cousa nova. Muito alcançaram os Antigos, e se lhes deve o primeiro louvor; mas ainda nos deixam seus grandes talentos em que exercitar os nossos.
                E se isto é assim nas ciências humanas, que será naquele pego imenso e profundíssimo das divinas) Mas ouçamos também aos antigos delas.
                David que veio ao mundo 3000 anos depois de sua criação, dizia confiadamente, que soubera e entendera mais que todos os velhos: Super senes intelexi; e estes velhos eram aqueles varões veneráveis da primeira antigüidade — Seth, Enoch, Mathusalem, Noe, Abraão, Isaac Jacob, José, Moisés Josué, Melquisedech, Samuel e tantos outros de igual sabedoria e nome. Desde a criação do Mundo até a reparação dele, em que se contaram quatro mil anos, sempre os homens se foram excedendo na sabedoria divina, ainda que fossem diminuindo na idade. Não é consideração minha, senão doutrina de S. Gregório, Papa: Per incrementa temporum crevit scientia spiritualium Patrum; plus namque Moyses quam Abraham, plus Prophetae, quam Moyses, plus A postoli, quam Prophetae in Omnipotentis Dei scientia eruditi sunt: «Ao passo que iam procedendo os tempos —diz S. Gregório— ia juntamente crescendo a sabedoria dos antigos Padres, conhecendo sempre mais de Deus os segundos que os primeiros. Moyses soube mais das cousas divinas que Abraão; os Profetas mais que Moysés; os Apóstolos mais que os profetas». E o mesmo que tinha sucedido naquela primeira e antiga igreja, se experimenta depois na segunda, nova e mais perfeita em que hoje estamos, de que ela tinha sido figura, porque, passados os tempos de Cristo e de sua vida, em que a sabedoria eterna viveu humanada no Mundo entre os homens (que foi um parêntesis excessivo e infinito de luz, com o qual nenhum outro estado da Igreja se pode comparar), nos séculos que depois foram sucedendo, dos Padres e Doutores sagrados, sempre foram também crescendo, com novos e maiores resplendores, as ciências divinas, acrescentando, ilustrando e escrevendo muitas cousas de novo os que vinham depois, sobre o que tinham sabido e ensinado os mais antigos.
                Lactancio Firmiano, Padre dos primeiros séculos da Igreja, a quem tinham precedido os Dionisios Areopagitas, os Hieroteus, os Inácios, os Policarpos, os Ireneus, os Justinos, os Orígenes, os Tertulianos, os Clementes Alexandrinos, no Liv. II: Divinarum Institutionum, diz assim: Nec qui nos illis temporibus antecessunt;quae si hominibus aequaliter datur, occupari ab antecedentibus non potest. S. Jerônimo, que floresceu muito depois do mesmo Lactancio e a quem prece deram os Hipólitos, os Ciprianos, os Taumaturgos, os Arnóbios, os Atanásios, os Basílios, os Teófilos, os Cirilos, os Epifânios, aumentou e adiantou tanto o estudo das divinas letras, que mereceu na eminência delas, por consenso e pregão universal da igreja, o renome de doutor Máximo, na Apologia acima citada , contra Rufino, escreve o santo Doutor com a modéstia com que costumam falar os homens maiores, estas palavras: Quid igitur? Damnamus veteres? Minime; sed post priorum studia in domo Domini, quod possumus, laboramus. E convertendo-se no fim contra os vituperadores dos inventos novos, estranha muito que, sendo o apetite ou gula humana tão ambiciosa de novos e esquisitos sabores, só nas ciências, que são o sabor dos entendimentos se contentam os homens com a vulgaridade ou velhice dos manjares usados: Nam cum nova semper expectant voluntates, et gulae earum vicina maria non sufficiant, cur in solo studio scripturarum veteri sapore contentis sunt ?
                São Gregório Magno, que veio ao Mundo para lhe dar melhor cabeça do que seu juízo e errados juízos merecem, depois dos outros dois Gregórios, Nazianzeno e Niceno, e do mesmo Jerônimo- depois dos Clímacos, dos Procópios, dos Boécios, dos Cassianos, dos Teodoretos; depois dos Euquérios, dos Pascásios, dos Máximos, dos Paulinos, dos Cassiodoros; depois dos Hesíquios, dos Crisólogos, dos Leões, dos Atanásios, dos Fulgêncios, e, o que é mais que tudo, depois de um Crisóstomo, de um Ambrósio e de um Agostinho, penetrou tão alta mente o espírito interior da Teologia Mística e Ascética, que por aplauso comum do Concílio oitavo toletano foi preferido a todos os Doutores na doutrina ética e moral, com aquele famoso elogio: In ethicis assertionibus praecunctis merito praeferendus.
                Mas nem por isso depois de tantos e tão esclarecidos lumes da Igreja deixaram de espalhar nela, em todos os séculos seguintes, novos raios de novas luzes os três ilustríssimos espanhóis — Isidoro, Eugenio e Ildefonso; os Sofrónios, os Elísios, os Bedas, os Damascenos, os Anselmos, os Teofilatos, os Eutímios, os Rupertos, um Bernardo, nome singular, e muitos outros; entre os quais Ricardo Vitorino, defendendo modestamente alguma novidade que se acharia em seus livros, diz assim no prólogo de um deles: Non est magnum, vel mirum, si in uno aliquo, aliquid addere possumus [...] haec propter illos dicta sunt, qui nihil acceptant, nisi quod ab antiquissimis patribus acceperunt; sed sicut Deus produxit novos fructus ad recreationem hominis exterioris, non credunt scientias impertiri ad innovandos sensus hominis interioris: «Não se tenha por cousa grande — diz Ricardo — nem merecedora de admiração, que em alguma matéria das que escrevemos, possamos acrescentar alguma cousa de novo; e digo isto por aqueles que nada admitem nem lhes é aceito, senão o que primeiro foi recebido pelos antiquíssimos Padres. Mas se Deus para sustento e gosto dos corpos, produz inacessivelmente todos os anos tantos frutos novos, porque não cuidarão que também as ciências podem produzir cousas novas para alimento e recreação das almas?»
                Não se podia explicar com mais clara comparação nem provar-se com mais eficaz argumento, e desde aquele tempo, que foi pelos anos de mil e trezentos a esta parte, se tem confirmado pela grandeza e liberalidade de Deus em todos os séculos, com mais repetidos exemplos que nos passados, porque não só alumiou a Divina Providência pouco depois o Mundo todo com aquelas duas tochas claríssimas e santíssimas de teologia — Santo Tomás e São Boaventura — mas antes e depois deles, para aumento ou competência de suas mesmas luzes, as cercou de tão luminosas e resplandecentes estrelas, que em outra idade podiam ter nome de primeiros planetas, como foram um Alberto Magno, um Alexandre de Ales e o famosíssimo e subtilíssimo Scoto, não só luz, senão fonte de luzes; as quais depois deste doutíssimo século se multiplicaram em tanto número, que se pode com razão dizer do Mundo o que Deus disse a Abraão do firmamento: Numera stellas, si potes.
                E porque é matéria impossível e número sem conto, fiquem em silêncio (por mais que tão grande brado deram nas escolas) os Vasques, os Soares, os Molinas, os Valenças, os Belarminos, os Canísios, os Toledos, os Lugos, os Caetanos, os Soutos, os Medinas, os Vitórias, em cujos felicíssimos e imensos escritos se vêem tão adiantadas as letras divinas, que mais parecem novas que renovadas.
                Digam agora os reprovadores das que eles chamam novidades, se se pode ainda sobre os Antigos dizer alguma cousa de novo.
                É porventura o saber e dizer patrimônio só da Antigüidade e morgado como o de Isaac que, dada a bênção a Jacob, não fica outra para Esau? São os antigos como os cântaros da Sareftana (comparação de que usa Ruperto) que, depois de cheios eles, parou a fonte milagrosa, e não correu mais o óleo? Houve neste grande oceano de ciências alguma nau Vitória que desse volta a todo o mar? ou algum Gama que, passado o cabo de Boa Esperança, a tirasse a todos os outros de novos descobrimentos? E se depois deste famoso círculo do Universo, ainda ficaram mares e terras incógnitas que prometem novas empresas e novos argonautas, que será na esfera da sabedoria e da verdade, cuja imensa e infinita circunferência só a pode abraçar 0 que é imenso e compreender O que é infinito? Se depois dos antiquíssimos tiveram que descobrir os menos antigos, e depois dos que já não eram os primeiros, tiveram que inventar mais que os segundos, porque não quererão os adoradores ou aduladores da Antigüidade que, ainda depois de tanto dito, haja mais que dizer, e depois de tanto escrito, mais que escrever, e depois de tanto estudado e sabido, mais que estudar e saber?
                Como temo que os que condenam as cousas novas, são aqueles que não podem dizer senão as muito velhas, e pode ser que muito remendadas! O avarento chama pródigo ao liberal. O covarde temerário ao valente. O distraído hipócrita ao modesto; e cada um condena o que não tem, por não confessar o que lhe falta. O grande P.e Soares, que tanto tinha em si do que os Antigos souberam, dizia que daria de alvíssaras o que sabia, se lhe dessem o que ignorava, isto é, o que ficou aos vindouros para poderem saber e dizer de novo; mas querer precisamente que nos atemos em tudo aos passados, é querer atar os vivos aos mortos, crueldade que só se lê de Mezêncio.
                Fechemos este discurso, ou adocemos a dureza deste rigor com o melífluo Bernardo, o qual, como sempre falou pela boca da Escritura, assegura firmemente aos vindouros que poderão ter maiores notícias das cousas, do que tiveram e alcançaram os Antigos, e o prova e refere em dois textos ou dois exemplos: um de David, que afirmou que soubera mais que os passados; outro de Daniel, que prometeu saberiam mais os futuros: David quoque super doctores suos et seniores donum sibi intelligentiae audacter praesumit, dicens: Super omnes docentes me intellexi. Sed et propheta Daniel: pertransibunt, ait plurimi et multiplex erit scientia, ampliorem scilicet rerum notitiam promittens et ipse posteris.
                Até aqui São Bernardo, escrevendo a Hugo de São Vítor, que também lhe tinha escrito lastimado da mesma chaga. Todos os grandes engenhos tiveram sempre esta queixa, e todos se armaram destas apologias, porque todos disseram cousas novas; e nenhum careceu de quem lhas impugnasse. Não ha cousa boa sem contradição, nem grande sem inveja:

...Che come crebber l'arti,
Crebbe l'invidia; e col sapere insieme
Ne' cuori enflati i suoi veneni sparti.

Mas antes de Petrarca o tinha dito em Roma o nosso discreto espanhol:

Esse quid hoc dicam, vivis quod fama negatur,
Et sua quod rarus tempora lector amat?
Hi sunt invidiae nimirum, Regule, mores,
Praeferat antiquos semper ut illa novis.
Si veterem ingrati Pompeii quaerimus umbram
Et laudant Catulli vilia templa senes
Ennius et lectus salvo tibi, Roma, Marone
Et sua riserunt saecula Maeonidem.

Os que mais queriam louvar a Cristo, diziam que era um dos Profetas antigos, sendo ele a luz de todos os Profetas, e Herodes se persuadia que não podia ser senão o Baptista ressuscitado, sendo aquele a quem o Baptista não era digno de desatar a correia do sapato. Todas as cousas novas que se disserem nesta História, são aquelas que Deus tem prometido que há-de fazer, quando disse: Ecce nova facio omnia. Se acaso houver quem as impugne e contradiga, porque nem Deus pode fazer cousa de novo, sem contradição dos mesmos para quem as faz. A cousa mais nova que Deus fez no Mundo, foi aquela de que disse o Profeta: Creavit Dominus novum super terram: faemina circumdabit virum. E esta novidade foi o alvo das maiores contradições, como também predisse outro profeta: ...signum cui contradicetur.
                Mas para que não pareça que defendo as cousas novas, por não ser necessário este escudo à minha História respondendo à objeção da novidade dela, digo que em toda essa novidade, com ser tão grande, nenhuma cousa direi de novo. Propriedade é dos futuros serem sempre novos todos, por isso os últimos e mais distantes se chamam novíssimos; mas ainda que esta História seja toda de cousas tão novas, nem por isso ela será nova. :Ê uma História nova sem nenhuma novidade, e uma perpétua novidade sem nenhuma cousa de novo; como isto possa ser. explicarei por alguns exemplos.
                Quando os Romanos a primeira vez bateram os muros de Cartago com o aríete ou carneiro militar, ficaram os Cartagineses assombrados com a novidade daquela máquina, e não era novidade, senão esquecimento; porque os primeiros inventores daquele bravo instrumento tinham sido os mesmos Cartagineses; mas como havia muitos anos que gozavam da altíssima paz, esquecia-se Cartago do que inventara Cartago, e sendo cousa antiga e sua, a tinha por novidade.
                Quero dizê-lo com palavras do grande Tertuliano, cuja foi esta advertência: ...arietem [...] nemini umquam adhuc libratum, illa dicitur Carthago studiis asperrima belli, prima omnium armasse in oscillum penduli impetus [...] cum autem ultimarent tempora patriae, et aries jam romanus in muros quondam suos auderet stupuere illico Carthaginienses, ut novam extraneum ingenium. Tantum aevi longinqua valet mutare vetustas. De maneira que o aríete, de que Cartago tinha sido a primeira inventora, parecia instrumento novo aos mesmos Cartagineses, não por novo, senão por esquecido; não por novo, senão por muito antigo.
                Muitas novidades se verão nesta nossa História não novas por novas, senão novas por antiquíssimas. As pirâmides e obeliscos que assombraram com tão nova e desusada grandeza o foro romano (com boa vénia dos Padres Conscritos), depois de serem velhice no Egito, foram novidade em Roma. Serão novas neste nosso livro cousas que foram primeiro que as que hoje se têm por antigas. A nova opinião dos céus fluidos, também recebida em nossos dias, primeiro foi que a antiga de Aristóteles, que com tão continuado aplauso do Mundo os fez sólidos e incorruptíveis.
                Nas ciências nascem poucas verdades; as mais delas ressuscitam. Se no Mundo, como pouco há dizia Salomão, não há cousa nova, como se vêem cada dia tantas novidades no Mundo? São novidades de cousas não novas, e tais serão as desta História.
                Quando Adão saiu flamante das mãos de Deus, abriu os olhos, e viu tanta cousa nova, e todas eram mais antigas que ele. Nem eram elas as novas; ele era o novo. A novidade da nossa História há-de ser mais dos leitores que dela. Para aquele cego de seu nascimento, a quem Cristo abriu os olhos, ainda que não eram novas as quantidades, porque as apalpava, foram novas as cores, porque as não via; já havia cores e luz, mas não havia olhos. Ao terceiro dia da criação produziu a terra todas as árvores carregadas dos seus frutos. Se não fora assim, não tivera ocasião o preceito, nem tentação o pecado. Todos os frutos nasceram igualmente naquele dia. as pêras, os figos, as uvas e também as frotas novas; mas estas tiveram este nome, porque chegaram mais tarde à nossa terra.
                Porventura aquela metade do Mundo a que chamavam quarta parte, não foi criada juntamente com Ásia, com África e com Europa? E contudo, porque a América esteve tanto tempo oculta, é chamada Mundo Novo; novo para nós, que somos os sábios; mas para aqueles bárbaros, velho e muito antigo. Assim que, recolhendo todos estes exemplos, umas cousas faz novas o esquecimento, porque se não lembram. outras a escuridade, porque se não vêem; outras a ignorância, porque se não sabem; outras a distancia, porque se não alcançam. outras a negligência, porque se não buscam; e de todas estas novidades sem novidade, haverá muito nesta nossa História. Lembraremos nela muitas cousas esquecidas, alumiaremos muitas escuras, descobriremos muitas ocultas, poremos à vista muitas distantes e procuraremos saber muitas ignoradas.
                E por não deixarmos sem juízo a controvérsia disputada entre as cousas novas e as velhas, certamente entre umas e outras não se pode dar regra certa. O tempo umas cousas melhora e outras corrompe: ouro velho, vinho velho, amigo velho; casa nova, navio novo, vestido novo. A velhice no ouro é preço, no vinho madureza, no amigo constância, no vestido pobreza, no navio e na casa perigo; absolutamente nas cousas que se consomem com o tempo, melhores são as novas.
                Mais defendida está Roma com os muros de Urbano, que com os de Beluário; uns se conservam pelo que foram, outros pelo que são; em uns se admira a antigüidade, em outros se logra a fortaleza. A verdade e as ciências, em que não tem jurisdição o tempo, impropriamente se chamam novas ou velhas, porque sempre são, sempre foram e sempre hão-de ser as mesmas, posto que nem sempre se conhecem igualmente. De Deus, que por essência é sabedoria e verdade, disse Tertuliano judiciosamente que nem é velho nem novo, mas verdadeiro: ...germana divinitas nec de novitate nec de vetustate, sed de sua veritate censetur. E como a verdade da nossa História toda (como vimos) tenha o seu princípio em Deus, pedimos aos que a lerem que, assim no certo como no provável, nem se atenda se é velho, nem se repare se é novo, mas só se considere se é ou pode ser verdade: Nec de novitate nec de vetustate, sed de sua veritate censeatur. E quanto ao louvor que renunciamos facilmente, ainda que o merecêramos, digo com indiferença o que ensinou Cristo: ...scriba doctus [...] profert de thesauro suo nova et vetera: «Os doutos quando escrevem, tiram do seu tesouro as cousas novas e mais as velhas. Saber as velhas e inventar as novas, isto parece que é ser douto. Mas notou Santo Agostinho que não disse Cristo as velhas e as novas, senão as novas e as velhas, dando o primeiro lugar às novas, porque as avaliou a suma justiça pelo merecimento e não pelo tempo: Non dixit vetera et nova, quod utique dixisset, nisi maluisset meritorum ordinem servare, quam temporum. As cousas velhas são do tempo, as novas do merecimento; porque as velhas são alheias, as novas nossas.
                Todos dizem que os Antigos merecem maior louvor, e é assim; mas este louvor, se bem se considera, não é elogio da antigüidade, senão da novidade. Merecem maior louvor os Antigos, porque foram os primeiros inventores das cousas; logo da novidade é o louvor, pois o mereceram, quando as descobriram de novo. Se fora outro o autor desta História, folgara eu que se pudera dizer dele com Vincêncio Lirinense: Per te posteritas gratulatur intellectum, quad ante vetustas non intellectum venerabutur.

Volume I, Capítulo XII: Dá-se a razão por que em algumas partes desta História se não alegaram padres e seguiram exposições dos escritores modernos
Ainda que o nosso intento é seguir em quanto nos for possível as pisadas dos antigos Padres, como Padres e lumes da Igreja, depois dos Apóstolos (os quais não entram nesta controvérsia, porque em tudo o que escreveram foram alumiados pelo Espírito Santo, e segui-los como havemos de seguir em tudo, não é só obséquio e piedade, senão obrigação e respeito); e posto que o nosso desejo fora levar sempre diante dos olhos esta segunda tocha, para alumiar e penetrar com sua luz, como dizíamos, o escuro das profecias; contudo, porque não é nem será possível seguir em algumas cousas das que dizemos ou dissemos este nosso intento e desejo, pede a razão e ordem da mesma Escritura que, antes de passar mais adiante, desfaçamos este reparo, para o que os menos doutos ou mais escrupulosos não topem nele e levem desde logo entendidas as causas do que fizermos e os fundamentos, licença ou autoridade com que o fazemos. Ver-se-á em algumas partes desta História, que ou não alegamos Padres antigos, ou nos desviamos da explicação que deram a alguns lugares da Escritura, o que não fazemos senão com grandes razões, sem ofensa da reverência que lhes devemos nem da verdade que seguimos, antes para maior segurança e fundamento dela, a qual é o nosso intento e obrigação buscar e descobrir adonde quer que se ache, antepondo este respeito a qualquer outro, pois à verdade se deve o maior de todos.
                As razões que nos movem e obrigam são três: a primeira, porque os Doutores antigos não disseram tudo; segunda, porque não acertaram em tudo; terceira, porque não concordam em tudo. E com qualquer destes casos nos pode ser. não só lícito e conveniente, senão ainda necessário seguir o que se julgar por mais verdadeiro; porque nas cousas que não disseram, é forçoso falar sem eles; nas cousas em que não acertaram, é obrigação apartar deles; e nas cousas em que não concordaram, é livre seguir a qualquer deles; e também será livre e lícito deixar a todos, se assim parecer, como logo explicaremos.
Prova-se a primeira razão
                Primeiramente é certo que os Padres antigos não disseram tudo, e se prova claramente com a experiência e lição de seus próprios livros, nos quais se não acha memória de muitas cousas grandes e doutas, achadas e acrescentadas depois, não só nas outras ciências divinas, mas na inteligência das mesmas Escrituras Sagradas, e particularmente nas dos profetas, que nos tempos mais chegados a nós se descobriram, disputaram e entenderam como se lêem nos escritores modernos; e posto que para os 5 versados na lição de uns e outros bastava esta suposição somente apontada, porei aqui para os demais as palavras de dois grandes doutores, Castro e Canísio, ambos do século antecedente a este nosso, e ambos diligentíssimos investigadores da antigüidade e doutíssimos na erudição da Escritura, Concílios e Padres, os quais expressamente afirmam que muitas cousas se sabem e entendem hoje que foram ignoradas dos Padres antigos, como fala Castro ou incógnitas a eles, como mais certamente diz Canisio.
                As palavras deste segundo, no livro primeiro De Beata Virgine, cap. VII, são as seguintes: Demum habuerint Patres suorum temporum rationem quibus multa vel prorsus incognita erant, vel obscura neque satis evoluta, quae posteris diligentius excutienda, et clarius illustranda, explicandaque non sine certo Dei consilio reliquebantur... E Castro, no Liv. I Adversus haereses, cap. II, depois de provar o mesmo com o lugar do cap. VI dos Cantares, que abaixo citaremos, conclui assim: Quo sit, ut multa nunc sciamus, qae, a primis Patribus aut dubitata, aut prorsus ignorata fsuerunt. A qual diferença se não conheceu só com a comprida experiência dos nossos tempos, senão já nos mesmos Padres se conhecia, como muitos deles escreveram, e particularmente entre os da primeira idade, Tertuliano, e entre os da última Ricardo Vitorino, cujas palavras de ambos referiremos neste mesmo capítulo.
                A razão de muitas cousas que hoje se sabem serem incógnitas aos Padres antigos, se pode considerar, ou da parte de Deus, ou da parte das mesmas cousas. Da parte das mesmas cousas, nos não devemos admirar que lhes fossem incógnitas, por serem muitas delas dificultosas, escuras e mui recônditas nas Escrituras Sagradas e enigmas dos profetas, as quais se não podiam entender e penetrar só com a agudeza dos entendimentos, por sublimes e sublimíssimos que fossem, em quanto não estavam assistidos de outras notícias e circunstancias, que só se descobrem com o tempo e adquirem com larga experiência.
                Excelente exemplo é nesta matéria o das ciências é artes, ainda naturais, as quais em seus princípios e rudimentos foram imperfeitas, e com os anos, experiência e exercício se vêem hoje sublimadas a tão eminente perfeição, como a náutica, a bélica, a música a arquitetura, a geografia, a hidrografia e todas ás outras matemáticas, e muito em particular a cronologia, de que neste mesmo capítulo falaremos. E assim como estas mesmas ciências e artes cresceram e se apuraram muito com o socorro e aparelho de esquisitos instrumentos, que nelas se inventaram, como foi na náutica o astrolábio, a agulha e o admirável segredo da pedra de cevar. e na bélica o terribilíssimo e subtilíssimo invento da pólvora, que deu alma e ser a tantos e tão notáveis instrumentos de guerra, assim também puderam crescer e aumentar-se muito as ciências divinas e chegar à perfeição e eminência em que hoje se vêem com os instrumentos próprios delas, que é a multidão de livros espalhados e facilitados por todo o Mundo pelo beneficio da impressão, com que a doutrina e ciência particular dos homens insignes se faz comum a todos em tão distantes lugares, não sendo menor a comodidade dos mestres, que são instrumentos vivos das ciências, no concurso de tantas e tão diversas universidades, teatros e oficinas públicas de toda a sabedoria; comodidade de que no tempo dos Padres se carecia, sendo necessário ao Doutor Máximo, São Jerônimo, como ele mesmo escreve, copiar com imenso trabalho os livros por sua própria mão e peregrinar à Grécia à Palestina, ao Egipto e às Gálias para recolher os escritos de S. Hilário, ouvir a S. Gregório Nazianzeno, a Dídimo e aos mestres mais peritos na língua hebraica; inconvenientes que só podia vencer e contrastar um tão alentado espírito e zelo de servir à Igreja, como do grande Jerônimo, digno tanto de imortal louvor pela eminência de sua sabedoria, como pelos gloriosos trabalhos e suores com que a adquiriu e conquistou.
                Da parte dos mesmos Padres se deve igualmente considerar, que deixaram de especular e dizer muitas cousas de grande importância que depois se souberam e escreveram, porque se acomodaram à necessidade dos tempos em que viviam. Todo o intento dos Padres antigos era provar a verdade da encarnação do Filho de Deus e o mistério de sua cruz, a qual na cegueira dos Judeus (como diz S. Paulo) se reputava por escândalo e na ignorância dos Gentios por estultícia. E como esta era a guerra e a conquista daqueles tempos, todas armas da Sagrada Escritura se forjavam e acostavam contra esta resistência, e por isso os primeiros Padres e seus sucessores nenhuma cousa buscavam nos Livros Sagrados, não só proféticos, senão ainda nos históricos, mais que os mistérios de Cristo. É bom testemunho desta verdade o que diz Ruperto a Tristérico, arcebispo coloniense, do prólogo dos seus Comentários sobre os Profetas menores: Scito me Pater mi sicut in caeteris Scripturis, ita et in volumine duodecim Prophetarum operam dedisse, ad quaerendum Christum. E como isto é o que só buscavam para escrever, isto é o que só achavam ou o que só escreviam, seguindo os sentidos alegóricos e místicos e deixando ou insistindo menos nos literais, como se vê ordinariamente em todas as exposições dos Padres, que todas se empregam na alegoria, tocando muitas vezes só leve e superficialmente a letra, e talvez não sem alguma impropriedade e violência.
                Assim o notaram entre os mesmos Padres alguns mais modernos que antigos e outros menos antigos que antiqüíssimos: dos primeiros, é Ricardo de São Vitor, contemporâneo de S. Bernardo, no Prólogo sobre o Profeta Ezequiel, onde confessa que se aparta de São Gregório, por se não chegar ao sentido literal do texto; dos segundos, é o mesmo São Gregório, Padre do sexto século depois de Cristo, no Proémio sobre o Livro dos Reis, onde diz que lhe foi necessário em algumas partes não seguir os Padres mais antigos, por não faltar ao fio conseqüência e verdadeira interpretação da história.
                As palavras de São Gregório não refiro aqui, porque terão seu lugar mais abaixo; as de Ricardo depois de referir com os antigos Padres ocupavam seu estudo principal na alegoria, são estas: Hinc contigisse arbitror, ut litterae expositionem is obscuriobus quibusdam locis antiqui Patres tacile praeterirent, vel paulo negligentius tracterent, qui si plenius insistirent, multo perfectius procul dubio quam aliqui ex modernis, id potuissent. Quer dizer que os Padres antigos, por aplicarem toda a sua industria e engenho no sentido alegórico das Escrituras, ou passaram totalmente em silêncio, ou trataram menos diligentemente alguns lugares mais escuros delas, sendo certo, segundo eram dotados de altíssimos engenhos e enriquecidos de muita ciência e erudição, que, se insistissem no sentido genuíno e literal do texto, o poderiam conseguir mais perfeitamente que qualquer dos modernos.
                De maneira que, segundo a verdade desta advertência, vem a ser a diferença entre os Padres antigos e os comentadores modernos das Escrituras, a mesma que houve naqueles dois homens do Evangelho, ambos ricos e venturosos: um que achou o tesouro e deu quanto tinha por comprar o campo em que ele estava; outro que, buscando so margaritas e achando uma preciosíssima, empregou também nela quanto tinha. Os Padres antigos, que buscavam só nas Escrituras a Cristo e nesta preciosíssima margarita empregavam todo o cabedal do seu estudo, os modernos, que se não determinam no tesouro das Escrituras a um só gênero de riquezas, acham, além da mesma margarita, muitas outras pedras também preciosas, e tiram daquele tesouro (como dizia Cristo) nova et vetera, riquezas novas e velhas: as velhas, que são as notícias das verdades já passadas; as novas, que são o conhecimento das outras futuras.
                Finalmente se deve considerar este silêncio das cousas que não disseram os Padres, da parte de Deus, o qual com particular providência não quis que eles por então as soubessem e escrevessem, para que a Igreja, nossa mãe, se parecesse com seu Esposo, e, conforme os anos e idade, fosse também crescendo em luz e sabedoria. Assim o notou, além de muitos outros teólogos, o mesmo Canísio, continuando o lugar acima citado: Quae posteris diligentius excutienda et clarius illustranda explicandaque, non sine certo Dei consilio relinquebantur non vero homini tantum, sed etiam Ecclesiae Christi tempus auget sapientiam, et Spiritus Sanctus aliam atque aliam doctrinae lucem patefacit
                No cap. VI dos Cantares, onde o Esposo é Cristo e a esposa a Igreja estão profetizados os progressos que ala havia de ter, e se comparam com extremada propriedade à luz da aurora: Quae est ista , quae progreditur, quasi aurora consurgens? Porque assim como a aurora nasce das trevas da noite e começa na primeira luz, e nela vai sempre crescendo de menor para maior claridade assim a Igreja, nascida nas trevas da ignorância e infidelidade começou em menos luz de sabedoria e vai sempre crescendo e aumentando-se mais e mais de resplendor, de claridade, que são os termos que usa S. Paulo na Segunda epístola aos Coríntios:Nos vero omnes, revelata facie, gloriam Domini speculantes, in eamdem imaginem transformamur a claritate in claritatem. Fala o Apóstolo do véu da infidelidade com que os Judeus têm cobertos os olhos para não ver a Cristo, e diz que se compõe a Igreja, tirado pela Fé aquele véu, com os olhos abertos e desempedidos por meio da própria especulação e estudo, imos crescendo de claridade em claridade, não já passando das trevas à luz, senão de uma luz para outra, sempre maior e mais clara, transformando-se por este modo a Igreja na imagem do seu mesmo Esposo, Cristo. Porque, assim como Cristo, posto que sua sabedoria foi sempre igual e a mesma (em quanto Deus infinita e em quanto homem consumadíssima), contudo, nos atos exteriores e manifestação dela ao Mundo, a não mostrou toda junta, senão que a foi dispensando por partes, crescendo sempre nela ao passo que ia crescendo nos anos, como diz o evangelista São Lucas: Proficiebat sapientia et aetate; assim a Igreja, que é o corpo místico do mesmo Cristo, transformando-se na sua imagem e retratando-se nele e por ele, vai sempre crescendo mais e mais na luz e na sabedoria, à medida que cresce nos anos e na idade: Crescat igitur oportet, et multum vehementerque proficiat, tam singulorum quam omium, tam unius hominis quam totius Ecclessiae, aetatum ac saecolorum gradibus intelligentia, scientia, sapientia — disse doutamente Vincencio Lirinense.
                De sorte que vai crescendo a inteligência, a ciência e a sabedoria pelos mesmos graus do tempo com que vão passando os anos, os séculos e a idade, e isto não só na Igreja universal e em comum, senão nos homens e doutores particulares, que são os membros de que o seu corpo e os raios de que a sua luz se compõe. Donde se deve reparar e advertir (cousa que devera já estar mui notada e advertida) que os Doutores antigos e mais velhos, própria e rigorosamente falando, não são os passados, senão os presentes; nem aqueles que vulgarmente são chamados os antigos, senão os que hoje e nos tempos mais chegados a nós se chamam modernos Porque assim como nos anos de Cristo houve infância, puerícia e adolescência, e depois idade perfeita, assim nos anos e duração da Igreja há a mesma distinção e sucessão de idades, com que o corpo místico dela vai crescendo e aumentando-se sempre mais, até chegar a encher a perfeição ou medida da mesma idade de Cristo, como expressamente disse São Paulo, falando dos mesmos Doutores:..alios autem pastores et doctores. ad consummationem sanctorum in opus ministerii, in aedificationem corporis Christi donec occurramus omnes in unitatem fidei et agnitionis Filii Dei, in virum perfectum in mensuram aetatis plenitudinis Christi. Donde segue que os Doutores da infância, da puerícia e da adolescência da Igreja foram os modernos e da ciência moderna; e os Doutores da idade maior e mais provecta da Igreja são os mais velhos e mais antigos, e da ciência mais antiga, porque a Igreja não se compõe das paredes mortas, senão dos membros vivos; nem foi crescendo dos nossos anos para os primeiros, senão dos primeiros para os nossos. E seria não só contra a ordem da natureza, senão contra a decência da mesma idade, que não fosse mais sábia a Igreja nos maiores anos, do que tinha sido nos menores.
                Dizem contra isto os hereges (como notou Banhes) que a Igreja não está hoje mais alumiada, senão cada vez menos; e do mesmo Sol tiram o argumento desta cegueira.
                argumento desta sua cegueira. Dizem que Cristo é o sol da Igreja e aquela primeira verdadeira luz: quae illuminat omnem hominem venientem in hunc mundum, e que, quanto mais se vão apartando os nossos tempos do tempo em que Cristo viveu entre os homens, tanto os raios da sua luz são mais tênues, mais escassos e menos intensos; bem assim como a luz do Sol material, e qualquer outra, alumia e quenta mais aos que lhe ficam mais vizinhos e menos aos que estão mais remotos e mais distantes.
                Mas a aparência desta razão é tão falsa como todas as de seus autores; porque ainda Cristo corporalmente se apartou dos homens, espiritualmente e por particular e invisível assistência sempre ficou com eles e os assistirá (dentro porém da sua Igreja) ate o fim do Mundo, como prometeu a todos os verdadeiros discipulos de sua doutrina quando lhes disse: Ecce ego vobiscum sum usque ad consummationem saeculi.
                Também deixou em seu lugar, por segundo mestre de sua escola, ao Espírito Santo, igualmente Deus como ele, o qual, com a mesma e não diferente luz, não só alumia a Igreja com os mesmos resplendores da verdade, mas, segundo a disposição de sua providência, os vai descobrindo maiores a seu tempo, ensinando e declarando aquelas ocultas e altíssimas verdades, que por menos capacidade dos discípulos deixou Cristo de lhas dizer, quando por si mesmo os ensinava; dizendo-lhes porém, (para: que o Judeu não duvide da assistência do Espírito Santo à Igreja e cabeça dela), que o Espírito lhas ensinaria: Adhuc multa habeo vobis dicere: sed non potestis portare modo. Cum autem venerit ille Spiritus veritatis, docebit vos omnem veritatem.
                E porque a perfídia herética se nos não queira acolher por pés, (como imprudentemente fazem ainda em lugares igualmente claros de outras Escritas) fugindo para os tempos antigos, em que eles confessam que a Igreja esteve verdadeiramente alumiada, ouçam ao antiquíssimo Tertuliano:
                Regula quidem fidei una omnino est. sola immobilis et irreformabilis [...] Haec lege fidei manente, caetera iam disciplinae et conversationis admittunt novitatem correctionis, operante scilicet et proficiente usque in finem gratia Dei. Quale est enim ut diabolo semper operante et adjiciente quotidie ad iniquitatis ingenia opus Dei aut cessaverit, aut proficere destiterit, cum propterea Paracletum miserit Dominus, ut quoniam humana mediocritas omnia semel capere non poterat, paulatim dirigeretur, et ordinaretur, et ad perfectum produceretur disciplina, ab illo Vicario Domini Spiritu Sancto [...] Quae est ergo Paracleti administratio nisi haec quod disciplina dirigitur, quod Scripturar revelantur, quod intellectus reformatur,quod ad meliora proficitur.?
                Não me detenho em romancear as palavras; porque isso em suma tudo o que até agora temos dito; são em suma tudo o que até agora temos dito; só peço se pondere aquela nova e bem achada razão de Tertuliano: Quale est enim ut diabolo semper operante, et adjiciente quotidie ad iniquitatis ingenia, etc
                Se o Demônio sempre obra e não desiste de acrescentar cada dia novos erros e novos enganos com que impugnar, e novas: trevas com que diminuir e escurecer a luz da. verdade e resplendor da Igreja, como havia o Espírito Santo de cessar em acrescentar sempre nela novas:luzes contra essas trevas, novas verdades contra esses erros, nova claridade contra esses enganos e novas vitórias contra esse inimigo e seus sequazes? Em sua mesma cegueira tem o herege a prova da maior luz da Igreja; por isso disse São Paulo: Oportet haereses esse, e esse , é o bem que tira de tão grande mal aquela sapientíssima Providência, que, como doutamente disse Santo Agostinho, teve por maior glória de sua grandeza fazer dos males bens, que não permitir os males.
                Assim que os que quiserem reconhecer os aumentos da sabedoria, em que sempre mais vai crescendo a Igreja com os anos, não devem tomar à semelhança do Sol` e da luz, senão a da fonte e do no, a que o mesmo Cristo comparou sua doutrina, quando disse: Si quis sitit, veniat ad me et bibat. Qui credit in me sicut dicit Scriptura, flumina de ventre ejus fluent aquae, vivae,. Hoc autem dixit de spiritu, quem accepturi erant credentes in eum. A luz que sai do Sol, quanto mais distante, mais se vai enfraquecendo e diminuindo; mas o rio que nasce da fonte, quanto mais caminha e mais se aparta de seu princípio, tanto mais se engrossa, porque vai recebendo novas correntes e novas águas, com que se faz mais largo, mais profundo, mais caudaloso.
                Tal é a sabedoria da Igreja, entrando sempre nela as puríssimas correntes da doutrina de tantos Doutores católicos e sapientíssimos, que cada dia a aumentam com novos e tão excelentes escritos em uma e outra teologia, de que o nosso século tem sido mais fecundo e abundante que todos até hoje.
                A sabedoria da Igreja no alumiar é luz e no correr é rio; rio daquela mesma fonte e luz daquele mesmo Sol que é Cristo, conservando juntamente as luzes e claridades das águas, e as águas' os resplendores das luzes naquela milagrosa metamorfose que se conta no cap. X de Ester: Parvus fons, qui crevit in fluvium, et in lucem solemque conversus est. et in aquas plurimas redundavit. Cristo, sol com propriedade de fonte, a Igreja luz com propriedade de rio, e por isso sempre mais alumiada, sempre mais vestida de resplendores.
                E como, por esta providência particular de Deus e pela dificuldade e escuridade de muitos lugares da Escritura, e pela aplicação dos Padres, a confirmação de outras verdades e a resistência de outras batalhas próprias daqueles tempos, deixaram de escrever algumas cousas com que a Igreja depois se foi alumiando e ilustrando, não é muito que nestas que eles não disseram, falemos e hajamos de falar sem eles. Nem isto se nos deve imputar a menos veneração dos mesmos Padres doutíssimos e santíssimos; porque não querer descobrir nem saber o que eles não disseram, antes é vício da ociosidade que virtude da reverência, como bem conclui o mesmo Ricardo Vitorino acima alegado: Sed nec illud tacite praetereo, quod quidam quasi ob reverentiam Patrum nollunt ab illis omissa attentare, nec videantur aliquid ultra maiores praesumere. Sed inertiae, suae, hujusmodi velamen habentes, otio torpent, et aliorum industriam in veritatis investigatione et inventione derident, subsanant et exsufftant, sed qui habitat in coelis, irridebit eos et Dominus subsanabit eos.
                Leiam e temam esta sentença os que culpam os que não querem ser culpados nela, e advirtam que tamb5ém é um dos Padres o que isto disse.
Segunda Razão: Discorre-se sobre as cousas que no tempo dos padres houve para alguns lugares dos Profetas não poderem ser entendidos inteiramente.
                Em segundo lugar, dizíamos que os Padres não acertaram em tudo; e posto que pudéramos provar a verdade deste fundamento com a demonstração das cousas em que não acertaram, lembrados porém da reverência que os filhos devem aos pais e da bênção que mereceram aqueles dois honrados filhos, Sem e Jafet, quando voltaram as costas e apartaram os olhos do que em seu pai, Noé, podia ser menos decente, nós também lançaremos a capa sobre esta matéria, deixando tão indigno assunto a Lutero, Calvino, Bèze e Wiclef, e outros legítimos herdeiros do ímpio e irreverente Cam.
                Não negamos, contudo, que houve muitos autores católicos e pios, em cujos livros se podem ver por junto estes exemplos, os quais eles escreveram não por menos reverência que tivessem aos antigos Padres, por sua sabedoria e santidade, e igualmente merecedores da eterna veneração, mas por zelo da verdade, necessidade de doutrina e cautela dos mesmos doutos que lessem as suas obras; bem assim como os que pintam cartas de marear sinalam no vastíssimo e profundíssimo Oceano os baixos (poucos e raríssimos, se se compararem com a imensidade de suas águas) para maior vigilância e segurança dos que as navegam.
                Escreveram neste gênero doutissimamente Sixto Senense em todo o V e VI livro de sua Biblioteca Santa; Ferdinando Vellocillo, bispo de Luca, nas AdverteAncias Teológicas sobre cinco Padres da Igreja; Afonso de Castro, Adversus haeereses, Antônio Possevino, no Aparato Sacro; o Cardeal César Barónio, em muitos lugares de seus Anais; Melchior Cano, De Locis Theologicis, e outros. Este último no Liv. VII cap. III, diz assim: Auctores canonici ut superni, caelestes, divini, stabilem perpetuamque constantiam servant; reliqui vero scriptores sancti inferiores et humani sunt, deficiuntque interdum ac monstrum quandoque pariunt propter convenientem ordinem, institutumque naturae.
                Mas entre estes exemplos naturais da fragilidade humana, podemos ler em prova deles outros dos mesmos Padres, em que, confessando com alta humildade e modéstia que podiam errar como os homens, nos ensinam no conhecimento que tinham de si e nós devemos ter de nós, quão verdadeiramente eram santos, e por isso mesmo sapientíssimos Porem aqui as palavras de dois maiores Doutores, um de teologia escolástica e outro` da positiva — Santo Agostinho e S. Jerônimo — Santo Agostinho, na epístola III, escrevendo a Fortunaciano desta maneira: Neque enim quorumlibet disputationes quam vis catholicorum et laudutorum hominum, velut scripturas canonicas laudare debemus, ut nobis non liceat (salva honorificentia, quae illis debetur) aliquid in eorum scriptis improbare, atque respuere (si forte invenerimus, quod aliter senserint quam veritas habet, divino adjutorio vel ab aliis intellecta, vel a nobis); talis ego sum in scriptis aliorunt, tales volo esse intellectores meorum: «As ciências e regulações dos autores, posto que sejam católicos, mui louvados e estimados por sua ciência e. doutrina, não as devemos ler como escrituras canônicas, de tal sorte que nos não seja lícito (salva a reverência de suas pessoas), reprovar e não seguir algumas cousas das que disseram, quando acharmos por outra via a verdade, ou melhor entendida por outros, ou também por nos. Este é o modo (diz Santo Agostinho) com que eu leio os escritos dos outros e com que quero que sejam 1idos os meus.:»
                O mesmo sentia S. Jerônimo, assim dos escritos alheios como dos próprios, cujas palavras na Epístola a Teófilo, contra os erros de S. João Hierosolimitano são estas: Scio me aliter habere Apostolos, aliter reliquos tratores: illos semper vera dicere: istos in quibusdam ut homines aberrare>> «So os Apóstolos, como alumiados por Deus, disseram a verdade em tudo; os outros homens, como homens eram e podem errar:>> _ diz o Doutor Máximo.
                E se o fundamento dos erros humanos é o efeito natural de serem os homens homens, bem se segue que nenhum homem se pode livrar desta pensão da humanidade, por douto e sapientíssmo que seja. Exemplo seja o prodigioso livro Das Retratações de Santo Agostinho, mais digno de veneração por aquela obra que por todas as outras suas o qual prosseguindo a mesma sentença de Santo Agostinho no liv. II De Batismo, contra os Donatistas, cap. V diz assim com admirável piedade e juízo: Homines enim sumus, unde aliquid aliter sapere, quam se res habet, humana tentatio est.: nimis autem amando sententiam suam, vel invidendo melioribus, usque ad prescidendae communionis et condendi schismatis vel haeresis sacrilegium pervenire, diabolica praesumptio est. In nullo autem aliter sapere, quam res se habet, angelica perfectio est.
                De maneira que, seguindo Santo Agostinho, cerrar em alguma cousa é fraqueza de homens; acertar em tudo, é perfeição de anjo, e querer defender seu parecer até romper a caridade e união da Igreja, é presunção de demônios»; e como os Santos Padres fossem obedientíssimos filhos da Igreja Católica, a cujo supremo juízo sujeitaram sempre todos os seus escritos, se em alguma cousa desacertaram, como dissemos ou supomos, é argumento só de que foram homens, e não eram anjos.
                Mas para que se veja a ocasião ou ocasiões que tiveram para não acertar com a verdadeira inteligência de algumas escrituras, principalmente as dos Profetas, que é o fim para que isto supomos, direi agora o que da ponderação das mesmas escrituras proféticas e das exposições dos Padres sobre elas, e das opiniões, que eram comuns e recebidas entre os doutos, quando eles escreveram, tenho colhido. E ponho aqui (tanto de melhor vontade) esta minha advertência, em que não acabei de cair de todo, senão depois de muitos anos de estudo e lição dos mesmos Padres, quanto dela se pode colher facilmente. e sem menos louvor de sua grandeza e sabedoria, quão impossível cousa lhes era acertarem naquele tempo, em aquelas suposições, com o verdadeiro entendimento de alguns lugares dos Profetas que eles interpretaram em alheio e diferente sentido.
                A primeira ocasião que os Padres tiveram para não poderem entender em seu tempo o sentido literal e histórico daqueles textos proféticos, era a falta que então havia no Mundo da verdadeira e exata cosmografia, e a errada opinião, ou de que o globo da Terra não era perfeitamente esférico, ou de que as partes opostas às que naquele tempo se conheciam, eram não só desertas, senão ainda inabitáveis Este sentimento, que foi de muitos filósofos antigos se tinha entre os Padres por verdade muito certa e averiguada, negando geralmente a opinião, ou fama de haver os que então já se chamavam antípodas Posto que os princípios por que os Padres os negavam, não eram entre todos as mesmas razões filosóficas, em que alguns se afundavam, que então (antes da experiência) tinham nome de razões, e hoje depois delas nos parecem ridículas.
Descreve Lactâncio Firmiano que era um dos Padres, e muito douto daquele tempo e zombando elegantissimamente dos que tinham a opinião contrária, discorre assim:
                Quid illi, qui esse contrarios vestigiis nostris antipodas putant? Num aliquid loquuntur? Aut est quisquam tam ineptus, qui credut esse homines quorum vestigia sint superiora quam capita? Aut ibi quae apud nos jacent inversa pendere? Fruges et arbores deorsum versas crescere; Pluvias et nives, et grandinem sursum versus ca dere in terram? Et miratur aliquis in hortos pensiles ~nter seplem mira narrari, cum philosophi, et agros et maria, et urbes, et montes pensiles faciant; Hujus quoque erroris aperienda nobis origo est [. .] Quae igitur illos ad antipodas ratio perduxit? Videbant siderum cursus in occasum meantium. Solem atque Lunam in aemdem partem semper occidere, atque oriri semper ab eadem. Cum autem non prospicerent quce machinatio cursus eorum temperaret, nec quomodo ab occasu ad Orientem remearent, coelum autem ipsum in ornnes partes putarent esse devexum, quod sic videri propler immensam latitudnem necesse est; existimaverunt rotundum esse Mundum sicut pilam: et ex motu siderum opinati sunt coelum volvi. Sic astra, Solemque, cum occiderirint, volubilitate ipsa Mundi ad ortum referri; itaque et aereos orbes fabricati sunt quasi ad figuram Mundi, eosque caelarunt portentosis quibusdam simulacris, quae astra esse dicerent. Hanc igitur Coeli rotunditatem illud sequebatur; ut Terra in medio sinu ejus esset inclusa; quod si ita esset, etiam ipsam terram globo similem; neque enim fieri posset ut non esset rotundum, quod rotundo conclusum teneretur. Si autem rotunda etiam Terra esset, necesse esse, ut in omnes Coeli partes eamdem faciem gerat, id est, montes erigat, campos tendat, maria consternat. Quod si esset, etiam sequebatur illud extremum, ut nulla sit pars Terrae,quae non ab hominibus, caeterisque animulibus incolatur: sic pendulos istos antipodas Coeli rotunditas adinvenit. Quod si quaeras ab is, qui haec portenta defendunt, quomodo ergo non cadunt omnia in inferiorem illam cueli partem, hanc respondent rerum esse naturam, ut pondera in medium ferantur, et ad medium connexa sint omnia sicut radios videmus in rota; quae autem levia sunt, ut nebula, fumus, ignis, a medio deferantur ut coelum petant. Quid dicam de iis? Nescio; qui cum semel aberraverint, constanter in stultitia perseverant, et vana vanis defendunt, nisi quod eos interdum puto, aut joci causa philosophari, aut prudentes et scios mendacia defendenda suscipere,quasi ut ingenia sua in malis rebus exerceant vel ostentent.
                Até aqui Lactancio, não se rindo menos dos que naquele tempo tinham esta opinião, do que nós hoje nos podemos rir dele. Por isso não duvidei de copiar esta página de latim, que para os que bem o entendem sei de certo não será larga, por sua matéria e elegância; e muito menos para os que o não entendem, porque o passarão mais brevemente. O mesmo peço eu que façam os que não têm necessidade de ver a tradução dela, que agora se segue, para que não fiquem com o sentimento de quão mal se pode trasladar à nossa língua a elegância da latina: «Que direi daqueles—diz Lactando—os quais tiveram para si que há no Mundo outros homens que andam com os pés virados para nós, a que chamam antípodas? Porventura dizem estes alguma cousa que tenha fundamento, ou pode haver homem de tão pouco juízo que se lhe meta na cabeça que há homens que andem com a cabeça para baixo, e que todas as cousas que aqui estão em pé, e direitas, lá estejam dependuradas? Que as árvores cresçam para a parte inferior? Que a chuva caia para cima? E que os que hão-de colher os frutos, hajam de descer aos ramos, e não subir? E espantamo-nos que os hortos pênsiles se contêm entre as Sete Maravilhas do Mundo, quando há filósofos que fazem campos pênsiles, mares pênsiles e cidades pênsiles, em que as torres e os telhados estão pendurados para baixo! Mas será bem que digamos a origem donde teve princípio este erro e que razão moveu ou levou estes homens a uma cousa tão irracional, como haver antípodas. Viam que o Sol, a Lua e estrelas, saíam sempre do Oriente e entravam pelo Ocaso; viam, ou cuidavam que viam, que este céu que nos cobre, tem figura de uma abóbada (sendo que esta representação não a faz a figura do céu, senão o termo e fraqueza de nossa vista); e não entendendo o modo por que esta máquina se governa, vieram a imaginar que o Mundo era redondo como uma bola, e assim fingiam que havia no céu vários orbes de matéria sólida como bronze, em que estavam esculpidas essas imagens e corpos portentosos, a que chamamos estrelas e planetas. Desta redondeza ou rotundidade do céu inferiam e assentavam que também a Terra era redonda; e, acomodando-se naturalmente a figura do corpo exterior e maior, dentro do qual estava metida, e torneada desta maneira, e feita redonda a Terra, tiravam por segunda conseqüência que também havia de estar povoada de homens e de animais, em todas as partes, como está: nesta em que vivemos; assim que a imaginada rotundidade do céu foi a inventora destes antípodas pendurados. E se perguntarmos aos defensores deste portento como pode ser que os homens que. fingem com os pés para cima, se lhes não despeguem da terra, e como não caem por esses ares abaixo respondem que é o peso natural da Terra, que de todas as partes inclina para o centro, assim como os raios de uma roda todos vão parar ao eixo; e que, assim como do mesmo eixo saem os raios para a roda, assim as cousas pesadas vão buscar o meio; as cousas leves, como o fogo, os fumos, as névoas, sobem direitas para as diversas partes do Céu, de que a Terra está cercada.
                O que se haja de dizer de tais homens e de tais entendimentos, não o sei; só digo que, depois de terem caído no primeiro erro, perseveram constantemente na sua ignorância, defendendo umas cousas vãs com outras tão vãs como elas; sendo que algumas vezes cuido que não dizem nem escrevem isto de siso, senão por jogo e zombaria, e que sabendo muito bem que tudo o que dizem são fábulas e mentiras, as defendem contudo para ostentar habilidade e engenho, empregando tão bons entendimentos em tão más cousas.>>
                Este é o discurso de Lactâncio, e foi bem que o deixasse tão miudamente escrito, para que soubéssemos o que naquele tempo se sabia do Mundo e para que saiba o mesmo Mundo quanto deve aos Portugueses, primeiros descobridores de seus antípodas.
                Santo Agostinho também teve a mesma opinião de Lactâncio, posto que lhe não contentaram os seus fundamentos, os quais impugna no livro das suas Categorias; mas no liv. XVI De Civitate Dei, resolve que se não deve crer que há antípodas, com palavras de tanta segurança como as seguintes: Quod vero et antipodas esse fabulantur, id est. homines a contraria parte Terrae, ubi Sol oritur quando occidit nobis, adversa pedibus nostris calcare vestigia, nulla ratione credendum est. Neque hoc ulla historia cognitione didicisse se affirmant; sed quasi ratiocinando conjectant: «E quanto à fábula dos que fingem que há antípodas — diz Santo Agostinho, isto é, homens da outra parte do Mundo, onde o Sol lhes nasce a eles, quando se põe a nós, e que pisam a terra com os pés voltados para os nossos, como nós para os seus, é cousa que de nenhum modo se há-de crer, nem seus autores o provam com alguma história que tal afirme, e só o conjeturam por discursos.>>
                Não dissera isto o sapientíssimo Doutor, se já naquele tempo estiveram escritas as histórias dos Portugueses, mas este é o maior louvor da nossa Nação (como disse um orador delas) que chegaram os Portugueses com a espada onde Santo Agostinho não chegou com o entendimento.
                A razão de Santo Agostinho com que negou os antípodas, ainda encarece mais este louvor nosso, porque o argumento em que se funda é este: Todos os homens que se propagaram e estenderam pelo Mundo, são descendentes de Adão, como consta da Escritura; logo, segue-se que não há nem pode haver antípodas, porque, se os houvera, haviam de ter passado a outra parte do Mundo, por cima da imensidade do mar Oceano; e é grande absurdo dizer que os homens pudessem fazer tal navegação.
                Esta é a razão de Santo Agostinho e este o famoso elogio que, sem saber de quem falava, disse o famoso e ilustríssimo africano dos Portugueses conquistadores depois de sua pátria: Nimisque absurdum est (são palavras suas no mesmo lugar) ut dicatur aliquos homines ex hac in illam partem Oceani immensitate trajecta, navigare ac pervenire potuisse, ut etiam illic ex uno illo primo homine genus institueretur humanum.
                Esta mesma opinião foi comum entre os outros Padres da Igreja, e assim a lemos expressa, ainda antes de Lactâncio, em S. Justino, e antes de Santo Agostinho, em Santo Hilário, em S. João Crisóstomo, S. Basílio e Santo Ambrósio, e muitos anos e séculos depois em Procópio, Teofilato, Eutímio e outros, uns fundando-se nas razões já referidas e todos naquela tão celebrada dos filósofos, historiadores e poetas, que não só faziam inabitável a zona tórrida, mas supunham tão grande incêndio nela pela vizinhança do Sol, que de nenhum modo se podia passar: Media vero terrarum _ diz Plínio — qua Solis orbita est. exusta flammis et cremata, cominus vapore torretur. Circa duae tantum inter exustam et rigentes, temperantur: eaeque ipsae inter se non perviae propter incendium sideris.
                Este incêndio da zona tórrida ainda em tempos tão chegados aos nossos, era um dos mais forçosos argumentos, com que os reprovadores da empresa do Infante Dom Henrique a impugnavam, e tinham por impossível aquele descobrimento, como referem as nossas histórias. A estas razões propriamente filosóficas e a este discurso, acrescentavam os Padres outras teológicas e alguns textos da Escritura Sagrada, que antes da experiência parecia afirmarem ou definirem claramente que debaixo da terra não havia outra cousa mais que a água. Assim o argumentava Procópio sobre o primeiro capítulo do Gênesis, dizendo: Quod autem universa Terra in aquis subsistat nec ulla sit pars ejus, quae infra nos sita sit, aquis vacua et denudata hominibus, notum reor, nam sic docet Scriptura: «Quid expandit terram super aquis»; et iterum: «quia itse super maria fundavit eum.» O primeiro lugar é do Salmo CXXXV e o segundo do Salmo XXIII. E verdadeiramente que as palavras de um e outro são tão claras, que se a vista dos olhos não tivera ensinado o contrário, parece se deviam entender assim; e que Deus, que tudo pode, para mostrar sua onipotência tinha fundado a terra sobre a água.
                Assim o cuidou Tales Milézio, um dos sete sábios de Grécia, com muitos outros filósofos, os quais referiam os tremores da Terra à inconstância deste fundamento de sua natureza tão pouco sólido; mas depois que a experiência nos mostrou que debaixo ou da parte oposta a esta Terra há outros habitadores, que são os antípodas, a emenda deste engano nos ensinou também a entender aqueles textos de David, cujo verdadeiro sentido é este:
                Quando Deus criou o Mundo, no princípio estava o elemento da terra coberto com o elemento da água, e a água sobre a terra, conforme o lugar que se devia à sua dignidade e nobreza, como elemento que é mais nobre; mas como por esta causa ficasse a terra vazia e inabitável, como notou o texto: Terra autem erat inanis et vacua, o que fez a Providência Divina foi apartar a água de cima da terra e dar-lhe outro lugar, que é o que hoje tem o mar para que ficasse a terra superior a ele e pudesse produzir e ser habitada: Et dixit Deus: Congregentur aquae [...] in locum unum, et appareat arida. E por que a terra por este modo ficou superior à água, por isso diz David que a terra está sobre ela, isto é superior a ela, e não inferior e debaixo como de antes estava, e por sua natureza devia estar. Repito o texto todo, para que da conseqüência dele se veja melhor a verdade e clareza desta exposição: Domini est terra et plenitudo ejus; orbis terrarumm et universi qui habitant in eo: quia ipse super maria fundavit eum, et super fluvia praeparavit eum.
                Deus é o Senhor da Terra e de todos seus habitadores. E porque é Senhor da Terra? Porque a fundou; e é Senhor de seus habitadores, porque, fazendo que fosse superior ao mar e aos rios, a fez habitável; e essa é a energia da palavra praeparavit; porque, fazendo a terra superior à água, a preparou e acomodou a que se pudesse habitar: Ratio cur Dominus Terrae, omniumque in ea rerum [...] sit Deus (diz Lorino), quoniam terram itse fecit, et supereminere aquis fecit, ut habitari posset... E não é muito que Lorino entendesse melhor este texto da terra e do mar que Procópio; porque Procópio não sabia que havia mar e terra habitada dos antípodas, e Lorino sim; mas vamos a outros lugares mais impossíveis de entender, antes do conhecimento dos antípodas.
Referem-se vários lugares dos Profetas que os expositores modernos entendem dos antípodas e conquistas de Portugal.
                Começando pelo mesmo David, aquele verso do Salmo LXVII: Regna terrae, cantate Deo, psallite Domino, psallite Deo, qui ascendit super Coelum Coeli ad Orientem; ecce dabit voci suae vocem virtutis, diz Genebrardo, Viegas, Mendonça e outros autores, que fala da conversão dos reinos e terras do Oriente, convertidas à Fé por meio da pregação dos Portugueses e descobertas por eles. Donde notou advertidamente Viegas, que no mesmo Salmo tinha dito David: Cantate Deo, psalmum dicite nomini ejus; iter facite ei, qui ascendit super Occasum; Dominus nomen illi, para mostrar que a Fé e conhecimento de Deus primeiro havia de vir às terras mais ocidentais, que são as que habitamos, e depois havia de passar às do Oriente, que são aquelas que descobrimos, conquistamos, alumiamos com a luz do Evangelho; e esta é a virtude que Deus deu às vozes da sua voz, isto é, às vozes dos seus pregadores: Ecce dabit voci suae vocem virtutis.
                Todo o Salmo LXIV explica Basílio Ponce da nova conversão das Índias, assim Orientais como Ocidentais, e são tão próprios desta explicação muitos lugares dele, que, ainda os que não tiveram tal pensamento, não puderam deixar de dizer o mesmo. Lorino, comentando o verso IX: Turbabuntur gentes, et timebunt qui habitant terminos a signis tuis exitus matutini et vespere delectabis, entende pelos habitadores dos termos da terra as gentes orientais e ocidentais, e assim explica as palavras: «Exitus matutini et vespere>> pro hominibus qui habitant ubi exit dies et ubi exit nox, hoc est. pro Orientalibus et Occidentalibus.
                De maneira que os homens de quem aqui fala David, são aqueles que estão nos dois últimos fins e extremos da Terra, onde nasce o dia e onde nasce a noite. Uns nos fins do Oriente, que são os das Índias Orientais; e outros nos fins do Ocidente, que são os das Índias Ocidentais. Esta terra, uma e outra, diz o Profeta que visitaria Deus, e que a regaria como regou com a água do batismo: Visitasti terram et inebriasti eum. E acrescenta com grande energia que multiplicaria o Senhor o enriquecê-la: Multiplicasti locupletare eum; porque, tendo-lhe já dado as maiores riquezas temporais, que são as minas do ouro e prata, os diamantes, os rubis, as pérolas e outros tantos tesouros, sobre estes lhe havia de dar também as riquezas espirituais e a graça, com que ficasse cada uma não só rica, mas multiplicadamente rica: Multiplicasti etc. E porque para isto era necessário que o bravíssimo e indômito Oceano se sujeitasse aos homens e se deixasse arar de seus lenhos, o que até aquele tempo não consentia, também dizia David que fazia Deus esta mudança em suas ondas: ..qui conturbas profundum maris, sonum fluctuum ejus. Ou, como lê S. Jerônimo e Teodósio: compescens sedans, mulcens sonitum, cavitatem, latitudinem aut profundumditatem maris.
                Finalmente, porque não duvidássemos que mares eram estes, declara o Profeta que não haviam de ser aqueles que lavam as terras e praias vizinhas a nós, senão os mares de muito longe e de terras e gentes muito remotas: ...spes omnium finium terrae et in mari longe, ou como tem o hebreu: Maris rémotorum. E não carece de mistério e grande mistério, o proêmio com que David introduziu tudo o que até aqui temos dito, que foi com estas palavras:...sanctum est templum tuum, mirabile in aequitate. Como se dissera: antes de se pregar o Evangelho a estas terras ou a estes mundos do Oriente é do Ocidente, parece que vós, Senhor, e vossa Igreja não guardáveis igualdade com os homens, pois havendo tantos anos e tantos séculos que alumiastes a uns com a luz da Fé, permitistes até agora, por vossos ocultas juízos, que os outros estivessem às escuras (argumento que puseram os Japões a S. Francisco Xavier). Porém, depois que a Fé e o Evangelho, e o conhecimento e culto do verdadeiro Deus têm passado os mares, chegado às mais remotas nações do Oriente, agora sim, que podemos dizer que a vossa Igreja é admirável na igualdade, porque trata igualmente a todos: sanctum est templum tuum, mirabile in aequitate.
                Salomão, que sucedeu a David, não só na coroa, mas também no espírito de profecia, em muitos lugares dos seus Cânticos deixou também profetizadas estas maravilhas da nossa idade: neste sentido explicam alguns modernos aquelas palavras no cap. IV: Surge, Aquilo, et veni, Auster, et perfla hortum meum, et fluent aromata illius. Como se dissesse Cristo, falando do sen jardim, que é a Igreja: que saísse dele o Norte e viesse o Sul; isto é, que saíssem da Igreja as orações do Norte, como se saíram nestes tempos por meio da heresia, e que entrassem na mesma Igreja as orações do Sul (que são as do Novo Mundo), como entraram por meio da Fé. Ao qual sentido, que é mui próprio e verdadeiro, podemos aplicar as palavras de Honório: Siquidem inauditam haeresim per malignos homines Draco mentibus fidelium infudit, qua totum ortum Ecclesiae, quasi quadam lepre vitiavit; sed Rex gloriae Chrisus suis auxilium praebuit, dum universum haeresim per sapientes destruxit, et de horto suo flagellis anathematis expulit; expulso autem Aquilone, Auster intravit... Segue-se logo no texto:. et fluent aromata illius. As quais palavras, entendidas assim como soam, que outra cousa dizem senão os interesses temporais que trazem as naus da Índia por estes espirituais que levam quando vêm carregadas dos aromas e espécies aromáticas daquelas partes?
                Assim o tinha dito o mesmo Salomão no verso antecedente, com admirável propriedade e energia. Fala das missões que fazem àquelas partes os pregadores da Fé, e diz: Emissiones tuae, paradisus malorum punicorum cum pomorum fructibus As vossas missões são um paraíso de que se não colhem frutos de árvores, senão frutos de frutos. Cum pomorum fructibus. Porque pelo fruto espiritual que vão fazer os missionários, vêm de lá os frutos temporais com que Portugal se enriquece. E se vão faltando os segundos frutos, é porque também vão faltando os primeiros, de que eles nascem.
                Mas que frutos são estes? Disse o mesmo Salomão: Cypri cum nardo, nardus et crocus, fistula et cinnamomum cum universis lignis Libati, myrrha, et aloe cum omnibus primi unguentis: A canela, a canafistola, o sândalo, o benjoim, as áquilas, os calambucos, e todo o outro gênero de espécies odoríferas e aromáticas, que são as mesmas que vêm da Índia.
                No cap. VII diz assim o mesmo Salomão, ou a Esposa, que é a Igreja, falando com seu Esposo Cristo: Mandragorae dederunt odorem. In portis nostris omnia poma: nova et vetera servavi tibi. As mandrigoras são os pregadores da Fé, como diz S. Gregório: Quid per mandragoram, herbam scilicet medicinalem et odoriferam, nisi virtus perfectorum intelligitur? Qui, dum imperfectorum infirmitatibus medentur in fide quam praedicant, id est. in portis Ecclesiae veri medici esse comprobantur.
                Com o cheiro destas mandrágoras e com a doutrina destes pregadores, [diz a Esposa] que ajuntou para seu Esposo os frutos novos aos velhos. Assim o interpretam os Setenta: Nova et vetera servavi tibi; porque aos cristãos antigos, que eram os da Europa, ajuntou a Igreja estes novos, que são os da nova gente que se descobriu no Oriente e no Ocidente, que são as portas de que fala a Esposa: In portis nostris. Uma porta por onde o Sol sai ao nosso hemisfério, que é a do Oriente, e outra por onde entra aos antípodas, que é a do Ocidente. Assim entendem este lugar alguns autores que refere Cornélio, resumindo todo o sentido dele nestas palavras: Nonulli per nova opinantur hic notari novi orbis inventionem et conversionem ad Chrstum. Novus enim hic orbis continet Peruanos, Mexicanos, Brasilios, Chilenses etc. est dimidium totius orbis, ut patet ex globo cosmográphico [...] jam per religiosos S. Dominici, S. Francisci et Societatis Jesus totus pene subjacet Ecclesiae Sic in India Orientali hoc saeculo et praecedenti mire per eosdem propagatur Fides apud Japones, ubi plurimi pro Fide certant usque ad martyria lentorum ignium apud Sinenses, Molucenses et Ceilanos. De maneira que os frutos novos que a Igreja, por meio do cheiro destas mandrágoras medicinais e odoríferas, ajuntou aos velhos e antigos, são os do Peru e México, do Brasil e Chile, e os do Japão e China, das Malucas e Ceilão; uns nas portas do Oriente, outros nas do Ocidente: Madragorae dederunt odorem suum. Parece que estavam esquecidos, mas não estavam senão guardados para este tempo: servavi.
                Em quase todo o cap. VIII repete Salomão a mesma conversão das Índias, e particularmente naquelas palavras: Soror nostra parva, et ubera no habet; quid faciemus sorori nostrae in die quando alloquenda est? Si murus est. aedificemus super eum propugnacula argentea; si ostium est. compingamus illud tabulis cedrinis. Até agora foi escuríssimo este lugar, mas são admiráveis os mistérios e mais admiráveis ainda as propriedades dele. Ludovico Legionense, nos comentários sobre este livro, entende por esta irmã mais moça da Esposa a Igreja da Gentilidade novamente convertida à Fé: ...sub persona hujus sororis natu minoris, et parum forma praestantis, cu`jus de collocatione sponsa solicitari dicitur, multi significantur populi atque gentes longe a nostro orbe remotae, ad Christum adducenda; nova quadam Evangelli tradendi ratione; hoc est significatur Hispanorum navigationibus reperti orbis, ejusque incolarum ad Christi. fidem nuper facta conversio.
                Ainda que a Igreja toda seja uma, como a destas novas gentilidades veio ao conhecimento de Cristo tanto depois, que não foram menos que mil e quinhentos anos, por isso lhe chama Salomão irmã menor e pequena — Soror nostra parva est — não pela grandeza das terras e número das gentes, em que é maior ou, quando menos, igual a toda a Igreja antiga, mas pela menoridade do tempo e da idade em que se converteu. E diz com muita propriedade que não tem peitos: Et ubera non habet porque todos estes anos esteve falta do leite da verdadeira doutrina. E porque haver-se de desposar com Cristo esta nova Igreja era um negócio cheio de tantas dificuldades, assim pela distancia de tão remotas terras e navegação de tão desconhecidos mares, como principalmente pela resistência de suas nações, umas bárbaras, outras políticas e todas feras, armadas e belicosas, e tão superiores no número e multidão aos que lhes haviam de levar e introduzir a Fé, estas dificuldades representa a Igreja antiga a seu Esposo, Cristo, com aquelas palavras: Quid faciemus sorori nostrae in die quando alloquenda est? «Que faremos Senhor, quando chegar o tempo em que se há-de desposar convosco esta minha irmã menor?:>> Ao que responde Cristo com o antiquíssimo conselho de sua providência, dizendo: Si murus est. aedificemus super eum propugnacula argentea; si ostium, compingamus illud tabulis cedrinis.
                Quem não admirará nesta resposta os altíssimos conselhos da sabedoria e providência divina? Dispôs Deus desde a criação do Mundo que estas terras, assim por fora como por dentro, fossem enriquecidas de coisas preciosíssimas, para que o interesse dos homens facilitasse as dificuldades, que sem ele criam impossíveis de vencer. Como se dissera o Senhor: Ainda que a conquista da Fé tem muros que dificultem sua entrada nessas terras, também tem portas por onde poderá entrar; esses muros facilitá-los-emos com prata; essas portas abri-las-emos com cedros: Si murus, aedificemus propugnacula argentea; si ostium, compingamus illud tabulis cedrinis. Pela prata se entendem as minas e pelos cedros odoríferos as plantas preciosas; e as minas que essas terras têm em suas entranhas, e as plantas odoríferas e preciosas que nelas nascem, são os meios e incentivos que obrigaram o interesse humano a que se disponha a vencer todas essas dificuldades e abrir e franquear essas portas. E assim foi porque a prata, o ouro, os rubis, os diamantes, as esmeraldas, que aquelas terras criam e escondem em suas entranhas; as áquilas, os calambucos, o pau-brasil, o violeta, o ébano, a canela, o cravo e a pimenta, que nelas nascem, foram os incentivos do interesse tão poderoso com os homens, que grandemente facilitaram os perigos e os trabalhos da navegação e conquista de umas e outras Índias. Sendo certo que, se Deus com suma providência não enriquecera de todos estes tesouros aquelas terras, não bastaria só o zelo e amor da religião para introduzir nelas a Fé.
                O profeta Isaías, como profeta singularmente escolhido para historiar as maravilhas da lei evangélica, foi o que mais falou de nós e delas: no cap. XLIX diz assim: Ecce isti de longe venient, et ecce illi ab aquilone et mari, et isti de terra australi. Laudate, caeli, et exulta, terra, jubilate, montes, laudem, quia consolatus est Dominus populum suum, et pauperum quorum miserebitur. O qual lugar entende Cornélio à Lápide e Árias Montano da conversão da China, e o provam do original hebreu, o qual lêem de terra Senim, como verts S. Jerónimo, Símaco, Áquila, Teodósio, o Siro, o Arábio, e todos, e é o mesmo que de terra Sinorum, por ser este o modo de falar da língua hebréia, na qual os Galileus se chamam Gelilim, e os Judeus Jehudim, e os Assírios Assurim, e assim também os Chinas ou Sinas Sinim. E se replicarmos a este sentido que a China não é terra austral, senão oriental, e que se não pode verificar dela o termo de terra australi, respondem os mesmos autores que aludiu o Espírito Santo, que governava a pena de S. Jerónimo, à navegação dos Portugueses, os quais, quando vão para o Oriente, fazem a sua viagem direita ao Austro, navegando ao cabo da Boa Esperança: Sinae enim (dizem eles), qui proprie hic significantur, licet sint ad Orientem, dici tamen possum ad Austrum, quia Lusitani in Sinas navigaturi, initio longo flexu, navigant ad Austrum, scilicet ex Lusitania usque ad promontorium Bonae Spei, quod uItimum est in continente et directe oppositum Austro.
                De maneira que, como os Portugueses eram os que haviam de levar a Fé à China, navegando ao Austro ou Sul, por isso o Espírito Santo chamou Austral à China, não pelo sítio, senão pelo rumo da navegação. Da mesma conversão dos Chinas fez outra vez menção Isaías no cap. XI, v. I4, o qual explica larga e eruditamente Malvenda, seguindo a Foreiro, ambos varões mui doutos da família dominicana.
                O mesmo Profeta Isaías no cap. LX: Qui sunt isti, qui ut nubes volant et quasi columbae ad fenestras suas? Me enim insulae expectant, et naves maris in principio, ut adducam filios tuos de longe; argentum eorum et aurum eorum cum eis, nomini Domini Dei tui et Sancto Israel, quia glorificavit te. Et aedificabunt filii peregrinorum muros tugs, et reges eorum ministrabunt tibi.
                Nestas palavras está profetizada admiravelmente a conversão das Índias Ocidentais; assim as explicam o mesmo Cornélio, Bózio, Aldrovando e outros, com bem notáveis propriedades. Chama o Profeta às Índias Ocidentais, ilhas: Me enim insulae expectant. Porque todas aquelas vastíssimas terras, em quanto se têm descoberto, estão rodeadas de mar, e bastava para se chamarem assim a imensidade de mares que as dividem do Mundo amigo; além de que estes terras no princípio eram chamadas com o nome de Antilhas, como se lê na história de seu descobrimento. As nuvens que voam a estes terras para as fertilizer—Qui sunt isti, qui ut nubes volant— são os pregadores do Evangelho, levados do vento pelo mar como nuvens; e chamam-se também pombas: Et sunt columbae ad fenestras suas; porque levam estes nuvens a água do baptismo sobre que desceu o Espírito Santo em figure de pomba, que são os dois termos que desde o princípio do Mundo andaram sempre juntos na significação do batismo.
                No I cap. do Gênesis: Spiritus Domini ferebatur super aquas, e no II de S. João: ...nisi quis renatus fuerit ex aqua et Spiritu Sancto. Mas o mesmo Bózio e Aldrovando, ainda advertiram no nome e semelhança de pomba outra propriedade mais aguda, tirada do descobrimento das mesmas Índias, de cujas terras e navegação foi o primeiro descobridor Cristóvão Colombo; e dizem que a isto aludiu o profeta, chamando Columbas ou Columbos a todos os que seguem a mesma derrota e navegação das Índias: Nomine columbae alludit ad Christophorum Columbum, qui nobis iter ad illas oras primus aperuit. Bem assim, ou muito melhor, e com mais verdade do que disseram os Gentios que os Argonautas, quando foram conquistar o velo de ouro a Colcos, levaram por guia uma pomba:

Et qui movistis duo littora, cum rudis Argus
Dux erat, ignoto missa columba mari.

Os Potosis e outras minas de prata e ouro, que juntamente com as almas para a Igreja haviam de conquistar estes argonautas, também as não esqueceu o Profeta: Et adducam filios tuos de longe, argentum eorum et aurum eorum cum eis. Muito ouro, muita prata e muitos filhos para a Igreja, e tudo de muito longe; e porque não ficassem em silêncio as frotas das Índias: Et navis maris in principio; ou como lê Foreiro do hebreu: Et naves maris cum primaria, seu praetoria, que faziam esta navegação muitas naus, não divididas, senão em frota, com sua capitaina; finalmente, que homens peregrinos edificariam os muros da Igreja naquelas terras: Et aedificabunt filii peregrinorum muros tuos; e que os ministros de tudo isto seriam os mesmos reis, como fazem com tanta piedade os reis católicos: Et reges eorum ministrabunt tibi.
                É também ilustre lugar em Isaías aquele do cap. XLI: Egeni et pauperes quaerunt aquas, et non sunt: lingua eorum siti aruit. Ego Dominus exaudiam eos [...] non derelinquam eos. Aperiam in supinis collibus flumina, et in medio camporum fortes: ponam desertum in stagna aquarum, et terram inviam in rivos aquarum. Dabo in solitudinem cedrum, et spinam, et myrtum, et lignum olivae; ponam in deserto abietem, ulmum et buxum simul; ut videant et sciant, et recogitent, et intelligant pariter, quia manus Domini fecit hoc...
                Quantos pobres e miseráveis estão morrendo à sede por falta de água, isto é, vivendo na gentilidade sem água do batismo? Mas eu (diz Deus) que também sou Senhor destes, os ouvirei e não me esquecerei deles: Ego Dominus exaudiam eos. Nestes seus montes e desertos secos e estéreis abrirei fontes e rios mui copiosos; e por mais que essas terras sejam sem caminho, eu abrirei caminho por onde a elas cheguem as águas, de que tanto necessitam: Et terram inviam in rivos aquarum; e de onde até agora se não colheu fruto, eu farei que se colha muito copioso e de todo o gênero: Dabo in solitudinem cedrum et spinam et myrtum, etc. Para que entenda e conheça o Mundo quão poderoso sou, e que esta obra é de minha mão: Ut videant et sciant quia manus Domini fecit hoc.
                São Cirilo, São Jerônimo, Procópio e Teodoreto entendem este texto da conversão das gentilidades, que Deus havia de converter por meio da pregação do Evangelho, mas não nos disseram que gentes estes fossem ou houvessem de ser, porque as não conheciam; porém os Doutores modernos nos dizem quais elas são. O P.e. Cornélio, depois do reverendíssimo Cláudio Aquaviva, geral da sua religião, diz assim: Hoc etiam hodie in Japone, Brasilia, China, aliisque Indiarum provinciis impleri magna laetitia conspicimus: que se cumpriu e está cumprindo esta profecia no Japão, no Brasil, na China.
                Até aqui andamos com Isaías pelas terras firmes; vamos agora às ilhas, que são as primeiras por onde os nossos descobrimentos começaram.
                No cap. LVIII fala Isaías das obras grandes que fará o homem misericordioso; e como a major obra e a major misericórdia de sodas é tirar almas do Inferno, como se tiram as dos Gentios, quando por meio da luz da Fé se lhes mostra o caminho da salvação, diz umas palavras o Profeta, que, bem ponderadas, de nenhum outro homem se podem entender à letra senão do nosso Infante santo (sic) D. Henrique, primeiro autor dos descobrimentos portugueses, cujo principal intento naquela empresa, como dizem sodas as nossas histórias, foi o puro e piedoso zelo da dilatação da Fé e conversão da gentilidade. As palavras de Isaías são estas: Et aedificabuntur in te deserta saeculorum, fundamenta generationis, et generationis suscitabis, et vocaberis aedificator septum, avertens semitas in quietem: «Em vós se povoarão os desertos dos séculos; vós lançareis os fundamentos de uma e outra geração; vós sereis chamado edificador das cercas e fareis que os que sempre andam, tenham assento.»
                Tais foram em tudo as obras do Infante D. Henrique, continuadas depois pelos reis de Portugal, que levaram adiante o que ele começou. Primeiramente nele e por ele se povoaram os desertos dos séculos! porque muitas ilhas, que desde o princípio do Mundo, por tantos séculos estiveram desertas e incógnitas e despovoadas, como era a ilha da Madeira, as Terceiras ou dos Açores, ele as descobriu, povoou e edificou, e de ilhas desertas que antigamente eram, estão hoje tão povoadas e populosas, e tão enobrecidas de famosas cidades e suntuosos edifícios: Aedificabuntur in te deserta saeculorum. E assim como nestas ilhas ermas e desertas lançou este glorioso príncipe os primeiros fundamentos da geração humana, fazendo que fossem povoadas de homens, assim em outras ilhas, que estavam povoadas de bárbaros, como eram as Canárias e de Cabo Verde, lançou também os fundamentos da geração divina, fazendo por meio da pregação e luz do Evangelho que esses bárbaros gentios conhecessem a Deus e fossem gerados em Cristo: Fundamenta generationis et generationis suscitabis.
                O meio que para esta segunda e mais importante geração tomaram os religiosíssimos príncipes de Portugal, foi mandarem religiosos por sodas as conquistas, de grande virtude e letras, fundando e edificando conventos de diversas ordens; e por isso diz o Profeta que seria chamado o primeiro autor desta obra, edificador de cercas, que são, como aqui notam alguns expositores, as cercas e claustros das religiões: Et vocaberis aedificator septum
                Finalmente, não cala o Profeta o fruto que desta santa indústria se seguiu em sodas estes gentilidades de bárbaros, e foi que, andando de antes vagamente pelas brenhas, como animais silvestres, se aquietassem e tomassem assento, e vivessem como homens, que isso quer dizer—Avertens semitas in quietem. Neste sentido tão próprio e literal explica Bózio este texto de Isaías; mas antes que escreva as suas palavras, quero pôr aqui as do nosso João de Barros, referindo o que desta empresa do Infante sentiam e murmuravam os que lhes parecia inútil e infrutuosa: <...os reis passados deste Reino (diziam eles) sempre dos reinos alheios para o seu trouxeram gente a este a fazer novas povoações, e ele quer levar os naturais portugueses a povoar terras ermas por tantos perigos do mar, de fome e sedes, como vemos que passam os que lá vão. Certo que outro exemplo lhe deu seu padre poucos dias há, dando os maninhos de Lavre, junto a Caruche, a Lambert de Orches, alemão, que os rompesse e povoasse, com obrigação de trazer a ele moradores estrangeiros de Alemanha, e não mando?` seus vassalos passar além-mar, romper terras, que Deus deu por pasto dos brutos. E bem se viu quanto mais naturais são para eles que para nós, pois em tão poucos dias uma coelha multiplicou tanto, que os lançou fora da primeira ilha, quase como admoestação de Deus, que há por bem ser aquela terra pastada de alimárias, e não habitada por nós. E quando quer que nestas terras de Guiné se achasse tanta gente como o Infante diz, não sabemos que gente é, nem o modo de sua peleja; e quando fosse tão bárbara, como sabemos que é a das Canárias, a qual anda de penedo em penedo como cabras às pedradas contra quem os quer ofender, nós que proveito podemos ter de terra tão estéril e áspera, e cativar gente tão mesquinha? Certo nós não sabemos outro, senão virem eles encarentar o mantimento da terra e comerem nossos trabalhos; e por cobrarmos um comedor destes, perdermos os amigos e parentes!»
                Isto é o que filosofavam e diziam os prudentes e políticos daquele tempo, que sempre são os instrumentos mais aparelhados que o Mundo e o Demônio têm para impedir as obras de Deus; mas estes terras ermas foram as que pelo zelo e constância daquele príncipe se vêem hoje tão povoadas, cultivadas e ricas. E estes bárbaros, que como animais andavam saltando de penedo em penedo, são os que hoje vivem com tanto assento, humanidade, ordem e política cristã, e não só eles, senão infinitos outros.
                As palavras prometidas de Bózio são as que se seguem:

...idem perfectum videinus in insults quas Tertieras vocant, Hispaniae in Oceano adjacentibus Occidentem versus; similiter in Canariis, quas no mine Promontorii Viridis appellant, Sancti Laurentii, Ascensionis, et omnibus quae Africae littora respiciunt: amplius cunctis quas Oceanus aluit, latissimis etiam regionibus Indiarum, sive orientem, sive occidentem Solem, vel Austrum, Boreamvel spectantibus idem contingit. Neque finis illus hucusque apparet. Oppida innumera et civitates pulcherrimae passim condutur in quibus constituuntur caetus hominum, excitantur fundamenta generationis, et generationis eorum, qui bestiarum modo prius incertis sedibus vagabantur, et in stabulis ipsis habitabant.

Até aqui este autor doutíssimo, o qual no mesmo liv. II cap. III explica muitos outros lugares de Isaías, das ilhas que os Portugueses conquistaram para Cristo, e nomeadamente de Ceilão, Maldivas Socotorá, Japão, Java, Malucas e outras. Chama a estes ilhas o Profeta, ilhas de longe, como no cap. XLIX: Audite, insulin, et attendite, populi de longe, e no cap. LXVI: ...ad insulas longe ad illos, qui non audierunt de me; pelas quais ilhas entendiam todos antigamente Itália e Espanha, por estarem quase cercadas uma do Mediterrâneo, outra do Oceano; mas verdadeiramente nem são ilhas, senão terra firme; nem se podem chamar de Longe em comparação das que depois descobrimos, e com toda a propriedade são ilhas, e ilhas de muito longe.
                Ponhamos fim a Isaías com um celebradíssimo texto do cap. XVIII, o qual foi sempre julgado por um dos mais dificultosos e escuros de todos os Profetas, e é este: Vae terrae cymbalo alarum, quae est trans flumina AEthiopiae, quae mittit in mare legatos, et in vasis papyri super aquas! Ite, angeli veloces, ad gentem convulsam et dilaceratam; ad populum terribilem, post quem non est alius; ad gentem expectantem et conculcatam, cujus diripuerunt flumina terram ejus.
                Trabalharam sempre muito os intérpretes antigos por acharem a verdadeira explicação e aplicação deste texto; mas nem atinaram nem podiam atinar com ela porque não tiveram notícia nem da terra, nem das gentes de que falava o Profeta. Os comentadores modernos acertaram em comum com o entendimento da profecia, dizendo que se entende da nova conversão à Fé daquelas terras e gentes também novas, que ultimamente se conheceram no Mundo com o descobrimento dos antípodas; e notaram alguns com agudeza e propriedade, que isso quer dizer a energia da palavra: Ad gentem conculcatam: gente pisada dos pés, porque os antípodas, que ficaram debaixo de nós, parece que os trazemos debaixo dos pés e que os pisamos; mas chegando mais de perto à gente e terra ou província de que se entende a profecia, também os modernos não acertaram até agora com o sentido próprio, germano e natural dela, e este é o que nós havemos de descobrir ou escrever aqui, pelo havermos recebido de pessoa douta e versada nas Escrituras, que, havendo visto as gentes, pisado as terras e navegado as águas de que fala este texto, acabou de o entender, e verdadeiramente o entendeu, como veremos e verão melhor os que tiverem lido as exposições antigas e modernas dele.
                Cornélio teve para si que fala o profeta de Etiópia e do Preste João; mas Etiópia não está além de Etiópia, como diz o texto. Malvenda, com os outros que cita, entente dos Chinas e Japões, e aplica à navegação dos Portugueses o parafraste caldeu, por estas palavras: Chaldeus interpres haec verba Isaiae in hunc modum reddidit: <<Vae terrae, ad quam veniunt cum navibus a terra longinqua, et vela sua extendunt, ut aquila, volans alis suis.» Aptosite in Indiam, quae quondam remotarum gentium frequentibus navigationibus petebutur, et nunc ab extremo Occidente Lusitanorum victricibus classibus aditur; quae etiam itsas sinarum oras praetervectae Japoniorum insulas tenent.
                Mas esta exposição e a de Mendonça e Rebelo (que entendem o texto geralmente da Índia Oriental), têm contra si tudo o que logo diremos. José da Costa, tão versado nas Escrituras como na geografia e na história natural das Índias Ocidentais, Ludovico Legionense, Tomás Bózio, Arias Alontano, Frederico Lúmnio, Alartim del Rio e outros dizem (e bem), que falou Isaías da América e Novo Mundo, e se prova fácil e claramente. Porque esta terra que descreve o Profeta está além da Etiópia trans flumina AEtiopiae; e é terra depois da qual não há outra: ad populum post quem non est alius. Estes dois sinais tão manifestos só se podem verificar da América, que é a terra que fica da outra banda da Etiópia, e que não tem depois de si outra terra senão o vastíssimo mar do Sul. Mas porque Isaías nesta sua descrição põe tantos sinais particulares e tantas diferenças individuantes, que claramente estão mostrando que não fala de toda a América ou Mundo Novo em comum, senão de alguma província particular dele; e os autores alegados nos não dizem que província esta seja, será necessário que nós o digamos, e isto é o que agora hei-de mostrar.
                Digo primeiramente, que o texto de Isaías se entende do Brasil, porque o Brasil é a terra que direitamente está além e da outra banda da Etiópia como diz o Profeta: quae est trans flumina AEthiopiae, ou como verte e comenta Vatablo: terra, quae est sita ultra AEthiopiam (quae AEthiopia scatet fluminibus) e o hebreu ao pé da letra tem de trans flumina AEthiopiae. A qual palavra—de trans— como notou Malvenda, é hebraísmo, semelhante ao da nossa língua. Os Hebreus dizem—de trans— e nós dizemos, detrás; e assim é na geografia destas terras, que em respeito de Jerusalém, considerado o círculo que faz o globo terrestre, o Brasil fica imediatamente detrás de Etiópia.
                Diz mais o Profeta que a gente desta terra é terrível: ad populum terribilem; e não pode haver gente mais terrível entre todas as que têm figura humana, que aquela (quais são os Brasis) que não só matam seus inimigos, mas depois de mortos os despedaçam e os comem e os assam, e os cozem a este fim, sendo as próprias mulheres as que guisam e convidam hóspedes a se regalarem com estas inumanas iguarias; e assim se viu muitas vezes naquelas guerras, que estando cercados os Bárbaros, subiam as mulheres às trincheiras ou paliçadas, de que fazem os seus muros, e mostravam aos nossos as panelas em que os haviam de cozinhar. Fazem depois suas frautas dos mesmos ossos humanos, que tangem e trazem na boca, sem nenhum horror, e é estilo e nobreza entre eles não poderem tomar nome senão depois de quebraram a cabeça a algum inimigo, ainda que seja a alguma caveira desenterrada com outras cerimônias cruéis, bárbaras e verdadeiramente terríveis. Em lugar de gentem conculcatam, lê o Sírio—gentem depilatam: gente sem pêlo; e tais são também os Brasis, que pela maior parte não têm barba, e no peito e pelo corpo têm a pele lisa e sem cabelo, com grande diferença dos Europeus.
                Estes são os sinais comuns que nos aponta o Profeta daquela terra e gente; mas porque assinala mindamente outros mais particulares e que não convêm a toda a gente e terra do Brasil, é outra vez necessário que nós também declaremos a província e gente em que eles todos se verificam; e esta gente e esta província mostraremos agora que é a que com toda a propriedade chamamos Maranhão, que por ser tão pouco conhecida e menos nomeada nos escritores, não é muito que a falta de suas notícias lhe tivesse até agora escurecido e divertido a honra deste famoso oráculo do mais ilustre profeta, que tão expressamente tinha falado nesta gente.
                Diz pois o Profeta, que são estes homens uma gente a quem os rios lhe roubaram a sua terra: Cujus diripuerant flumina terram ejus. E é admirável a propriedade desta diferença, porque em toda aquela terra, em que os rios são infinitos e os maiores e mais caudalosos do Mundo, quase todos os campos estão alagados e cobertos de água doce, não se vendo em muitas jornadas mais que bosques, palmares e arvoredos altíssimos, todos com as raízes e troncos metidos na água, sendo raríssimos os lugares por espaço de cento, duzentas e mais léguas, em que se possa tomar porto, navegando-se sempre por entre árvores espessíssimas de uma e outra parte, por ruas, travessas e praças de água que a natureza deixou descobertas e desimpedidas do arvoredo, e posto que estes alagadiços sejam ordinários em toda aquela costa, vê-se este destroço e roubo que os rios fizeram à terra, muito mais particularmente naquele vastíssimo arquipélago do rio chamado Orelhana, e agora das Amazonas, cujas terras estão todas senhoreadas e afogadas das águas, sendo muito contados e muito estreitos os sítios mais altos que eles, e muito distantes uns dos outros, em que os Índios possam assentar suas povoações, vivendo por esta causa não imediatamente sobre a terra, senão em casas levantadas sobre esteios a que chamam juraus para que nas maiores enchentes passem as águas por baixo; bem assim como as mesmas árvores, que tendo as raízes e troncos escondidos na água, por cima dela se conservam e aparecem, diferindo só as árvores das casas em que umas são de ramos verdes outras de palmas secas.
                Desta sorte vivem os Nheengaíbas, Goianás, Maianás e outras antigamente populosas gentes, de quem se diz com propriedade que andam mais com as mãos que com os pés, porque apenas dão passo que não seja com o remo na mão, restituindo-lhes os rios a terra que lhes roubaram, nos frutos agrestes das árvores de que se sustentam, cuja colheita é muito 1impa, porque caem todos na água, e em muita quantidade de tartarugas e peixes-bois, que são os gados que pastam naqueles campos, além de outro pescado menor, e alguma caça de aves e montaria de porcos, que nos mesmos lugares sobre-aguados, entre os lodos e raízes das árvores, se ceva nos frutos delas. E nota o Profeta que não é rio, senão rios, os que isto fazem; porque, ainda que o rio das Amazonas tenha fama de tão enorme grandeza, toda esta se compõe do concurso de muitos outros rios, que todos desembocam nele, ou juntamente com ele, comunicando e confundindo em si as águas e como unindo e conjurando as forças para este roubo que fizeram àquela terra: Cujus diripuerunt flumina terram ejus.
                Continua Isaías a sua descrição, e diz que os habitadores desta província são gente arrancada e despedaçada, e só o Espírito Santo poderá recopilar em duas palavras a história e última fortuna daquela gente.
                Quando os Portugueses conquistaram as terras de Pernambuco, desenganados os Índios (que eram mui valentes e resistiram por muitos anos) que não podiam prevalecer contra as nossas armas, uns deles se sujeitaram, ficando em suas próprias terras; outros, com mais generosa resolução e determinados a não servir, se meteram pelo sertão, onde ficaram muitos; outros, caindo para a parte do mar, vieram sair às terras do Maranhão, e ali como soldados tão exercitados com o mais poderoso inimigo, fizeram facilmente a seus habitadores o que nós lhes tínhamos feito a eles.
                Desta peregrinação e desta guerra se seguiram naquela gente os dois efeitos que sinala Isaías, ficando uma e outra gente arrancada e despedaçada: os vencedores arrancados, porque os tinham lançado de suas terras os Portugueses; e também despedaçados, assim porque foram ficando a pedaços em vários sítios como porque depois da vitória lhes foi necessário para conservarem o violento domínio, dividirem-se em colônias mui distantes uns dos outros, os vencidos também ficaram arrancados, porque os Tutinambás, (que assim se chamavam os Pernambucanos) os arrancaram de suas pátrias; e também e com muito maior razão despedaçados porque, não podendo resistir, muitos deles fugiram em magotes pelos matos e pelos rios tomando diferentes caminhos, onde fizeram assento, não sem novos inimigos que ainda mais os despedaçassem; assim que uns e outros ficaram gente arrancada, e uns e outros gente despedaçada: gentem conculcatam et dilaceratam.
                Conhecidos já pela fortuna os descreve o Profeta, e muito particularmente pelo exercício e arte da navegação, em que eram e são os Maranhões mui sinalados entre os índios, por serem eles, ou os primeiros inventores da sua náutica, como gente nascida e mais criada na água que na terra, ou certamente porque com sua indústria adiantaram muito a rudeza das embarcações bárbaras, de que os primeiros usavam. Tanto assim que a principal nação daquela terra, tomando o nome da mesma arte de navegar e das mesmas embarcações em que lá navegavam, se chamam Igaruanas, porque as suas embarcações, que são as canoas, se chamam na sua língua igara, e deste nome igara derivaram a denominação de Igaruanas, como se disséssemos os náuticos, os artífices ou os senhores das naus
                Diz pois Isaías que esta gente de que fala é um povo: Quae mittit in mare legatos et in vasis papyri super aquas: «Que manda de uma parte para outra seus negociantes em vasos de cascas de árvores sobre as águas.>>
                As palavras do Profeta todas têm mistério e todas declaram muito a propriedade da gente de que fala. Diz que as manda o povo, com quem concorda o relativo quae, porque é gente que não tem reis, mas o mesmo povo e a mesma nação é a que elege aqueles que lhes parecem de melhor talento, assim para os negócios da paz, como para os da guerra, que tudo isso quer dizer a palavra legatos, como se pode ver nos autores da língua latina. Diz mais que vão sobre as águas em vasos de cascas de árvores, porque esta era a matéria e fábrica de suas embarcações. Depois que tiveram uso do ferro, cavam os troncos das árvores e fazem de um só madeiro muito grandes canoas, de que o autor desta explicação viu alguma que tinha dezessete palmos de boca e cento de comprimento; mas antes de terem ferro despiam estes mesmos madeiros, cujos troncos são muito altos e direitos, e, tirando-lhes as cascas assim inteiras, delas formavam as suas embarcações. E não faz dúvida dizer o profeta que estas embarcações iam ao mar: Qui mittit in mare; porque, além de entrarem com elas pelo mar Oceano, o mesmo arquipélago que dizemos, de água doce, se chama na sua língua, por sua grandeza, mar, e de aqui veio o nome que os Portugueses lhe puseram de Grão-Pará ou Maranhão, o que tudo quer dizer mar grande, porque Pará significa mar.
                Do que temos dito até aqui ficará mais fácil de entender aquele grande enigma do Profeta, que está nas primeiras palavras deste texto: Vae terrae cymbalo alarum; o qual foi sempre o que maior trabalho deu aos intérpretes e os obrigou a dizerem cousas mui violentas e impróprias, como aqueles que falavam a adivinhar, e não adivinhavam nem podiam. Os Setenta Intérpretes, em lugar de terrae cvmbalo alarum, leram terrae navium alis; e uma e outra cousa significam as palavras de Isaías; porque os nomes hebreus de que estas versões foram tiradas, têm ambas as significações e querem dizer: Ai da terra que tem navios com asas; ou, ai da terra que tem sinos com asas. Se são sinos, como são navios? e se são navios, como são sinos?
                Esta dificuldade foi até agora o torcedor de todos os entendimentos dos expositores sagrados, de 1600 anos a esta parte; mas como podia ser que entendessem o enigma da terra, senão tinham as notícias nem a língua dela? Para inteligência do verdadeiro entendimento deste texto ou enigma, se há-de supor que a palavra latina cymbalum, com que significamos os nossos sinos de metal, significa também qualquer instrumento com que se faz som e estrondo e tais eram os címbalos de que usavam antigamente os Gentios, que se chamavam por nomes particulares sistros crotalos, ou cretitáculos, e por nome geral cimbalos. Assim o explicou eruditamente Carpenteio, vertendo em verso este mesmo lugar de Isaías:

Vae tibi, quae reducem sistris cretitantibus apim
Concelebras, crotalos et inania cymbala pulsas...

Também se há-de supor que os Maranhões usavam de uns instrumentos a que chamavam maracás não de metal, porque o não tinham, senão de cabaços ou cocos grandes, dentro dos quais metiam seixos ou caroços de várias frutas, duros e acomodados a fazer muito estrondo e ruído, servindo-se dos menores nas festas e nos bailes e dos maiores nas guerras. Estes maracás eram propriamente os seus címbalos ou sinos, tanto assim que, depois que viram os sinos de que nós usamos, lhes chamam itamaracás, que quer dizer, maracás ou sinos de metal.
                Isto suposto, o expositor que mais foi rastejando o sentido verdadeiro que podia ter este enigma, foi Gabriel Palácio, o qual, no comentário literal deste lugar de Isaías, diz assim: Fortasse indicus usus nominis cymbali antiquitas inolevit apud Hebraeos tempore Isaiae: «Porventura—diz ele—que no tempo de Isaías as embarcações dos Índios se chamariam entre os Hebreus sinos.» E porque não seria antes, digo eu, que se chamassem sinos, ou tomassem nome de sinos as embarcações dos índios, de que Isaías falava, não porque este nome fosse usado entre os Hebreus, senão entre os mesmos Índios? Assim era e assim é, e deste modo fica decifrado e entendido o antiquíssimo e escuríssimo lugar e enigma de Isaías.
                As maiores embarcações dos Maranhões chamam-se maracàtim, derivado o nome da palavra mararacá, que, como dissemos, significa entre eles sino; e a razão de darem este nome às suas maiores embarcações era porque, quando iam às batalhas navais, quais eram ordinariamente as suas, punham na proa um destes maracás muito grandes, atados aos gorupezes ou paus compridos; e bolindo de indústria com eles, além do movimento natural das canoas e dos remeiros, faziam um estrondo barbaramente bélico e horrível; e porque a proa da canoa se chama tim, tirada a metáfora do nariz dos homens ou do bico das aves, que têm o mesmo nome, e juntando a palavra tim com a palavra maracá, chamavam àquelas canoas ou embarcações maiores maracàtim; e este nome usam ainda hoje, e com ele nomeiam os nossos navios.
                Nem mais nem menos que os Romanos às suas galés de guerra deram nomes de rostratas, pelas pontas de ferro agudas que levavam nas proas, tirado também o nome ou metáfora dos bicos das aves, que chamam rostros. Assim que vem a dizer Isaías que a terra de que fala é terra que usa embarcações que têm nomes de sinos; e estas são pontualmente os maracàtins dos Maranhões.
                Mas não está ainda explicada toda a dificuldade ou propriedade do enigma, porque diz o Profeta que estas embarcações ou estes sinos eram sinos e embarcações com asas: cymbalo alarum, navium alis. Os expositores todos dizem que estas asas eram as velas das embarcações e que são as asas dos navios, conforme o poeta: Velorun pandimus alas. A qual explicação pudera ser bem admitida, se não tivera a própria e verdadeira; sendo certo que o Profeta não havia de dar por sinal e divisa daquelas embarcações uma cousa tão comum e universal em todas.
                Digo pois que fala o texto de verdadeiras asas de aves. Como aqueles gentios não tecem, nem têm panos, é grande entre eles o uso das penas pela formosura das cores com que a natureza vestiu os pássaros, e particularmente o chamado guarás, de que há infinita quantidade, grandes e todos vermelhos, sem mistura de outra cor; destas penas se enfeitam quando se querem pôr bizarros, e principalmente quando vão à guerra, ornando com elas todo o gênero de armas, porque não só levam empenadas as setas, senão também os arcos e rodelas, e as partaz anas de pau e pedra que chamam fanga-penas; e quando a guerra era naval, empavezavam-se as canoas com asas vermelhas dos guarás. e as mesmas levavam penduradas dos gorupezes e maracás das proas; e por isso o Profeta diz que todas estas cousas via e notava como tão novas: chamam as lanças sinos e sinos com asas: Navius alis, cymbalo alarum.
                E porque não faltasse a esta terra a demarcação ou arrumação, como dizem os geógrafos, da sua altura, onde a Vulgata leu gentem expectantem expectantem, a propriedade da letra hebréia, como diz Foreiro, Pagnino, Vatablo, Sanchez e outros muitos tão geralmente, é gentem lineae linea:, gente da linha de linha; porque os Maranhões são aqueles que, além da Etiópia, ficam pontual e perpendicularmente bem debaixo da Linha Equinocial, que é propriedade por todos os títulos admirável; e assim como a palavra lineae se repete, está também repetida no mesmo texto a palavra expectantem; com que vem a concluir o Profeta o seu principal e total intento, que é exortar os pregadores evangélicos a que vão ser anjos da guarda daquela triste gente, que tanto há mister quem a encaminhe como quem a defenda: Ite, angeli veloces, ad gentem expectantem, expectantem: gente que está esperando, esperando. Porque entre todas as gentes do Brasil os Maranhões foram os últimos a quem chegaram as novas do Evangelho e o conhecimento do verdadeiro Deus, esperando por este bem, que tanto tardou a todos os Americanos, mais que todos eles. No Brasil se começou a pregar a Fé no ano de 1550, em que o descobriu Pedro Álvares Cabral; e no Maranhão no ano de 1615, em que o conquistou Alexandre de Moura, esperando mais que todos os outros Brasis sessenta e cinco anos. Mas hoje estão ainda em pior fortuna, padecendo aquele vae do Profeta: Vae terra: cymbalo alarum; porque o estado da esperança se Lhes tem trocado no de desesperação. E esperam de se salvar os que de tantos danos e danos são causa?
                Muito largos temos sido na exposição deste texto, mas foi assim necessário por sua dificuldade e por não estar até hoje entendido. Deixo muitos outros lugares do Profeta Isaías, o qual verdadeiramente se pode contar entre os cronistas de Portugal, segundo fala muitas vezes nas espirituais conquistas dos Portugueses e nas gentes e nações que por seus pregadores se converteram à Fé; que o primeiro e principal intento que neles tiveram nossos piedosíssimos reis, como se pode ver do que de El-Rei Dom Manuel, de El-Rei Dom João o II, do Infante Dom Henrique, de El-Rei Dom João o III e de El-Rei Dom Sebastião escrevem seus historiadores.
                O Profeta Abdias em um só capítulo que escreveu também falou das conquistas de Portugal: El transmigratio Hierusalem, quae in Bosphoro est, possidebit civitates Austri. A palavra hebréia Sepharad, de que São Jerônimo verteu Bosphoro, significa termo, limite e fim. Esta mesma palavra Sepharad é nome com que os Hebreus chamam a Espanha, porque em Espanha está o estreito que divide a Europa de África e Espanha era o termo, limite e fim que os Antigos conheciam no Mundo, como testemunham de uma parte as Colunas de Hércules e de outra o cabo de Finis Terrae, que são as duas balizas que têm no meio a Portugal. Toda a explicação é comum e certa entre todos os autores mais peritos da língua hebraica—Vatablo, Pagnino, Burgense, Arias, Lirano, Isidoro Clário e os demais. Diz agora o profeta Abdias que a transmigração de Jerusalém, que passou a Espanha, viria tempo em que possuísse as cidades do Austro.
                Mas sobre a transmigração de Jerusalém de que Abdias fala, há duas opiniões entre os autores. Árias Montano, Frei Luís de Leon, Malvenda e outros têm para si que fala da transmigração de Nabucodonosor o qual, tendo conquistado a Jerusalém e passado seus habitadores para Babilônia, de ali mandou parte deles para Espanha, por ser parte desta província conquista sua, como refere Josefo, Estrabo e outros graves autores, e que veio o mesmo Nabuco em pessoa a fazer esta guerra. Destes hebreus, ou desterrados ou trazidos por Nabuco, ficaram muitos em Espanha, pela qual fortuna (como notou Santo Agostinho na morte dos infantes de Belém) não tiveram parte na morte de Cristo e conservaram sua antiga nobreza, e deles, como escrevem muitas histórias de Espanha, foi fundação a insigne cidade de Toledo, Maqueda, Escalona e outras. Assim querem também que de Nabuco traga seu apelido a ilustre família dos Osórios. Desta transmigração pois (diz Montano e os mais acima alegados) se há-de entender o texto de Abdias; e como o Profeta própria e literalmente falava neste lugar do mesmo cativeiro de Babilônia, é conseqüência muito ajustada que da profecia do desterro passou, para consolação dos mesmos desterrados, a uma felicidade tão estranha, que delas havia de ter princípio, qual é a que logo diremos.
                Nicolau de Lira, Vatablo, Fevardêncio e outros entendem por esta transmigração de Jerusalém a que fez Cristo, mandando daquela cidade e espalhando por todo o Mundo seus Apóstolos, entre os quais coube Espanha a Sant'Iago, e ele por meio de seus discípulos a converteu toda à Fé e desterrou dela a Gentilidade: Et transmigratio Hierusalem, quae in Bosphoro est (diz Lirano) in hebraeo habetur in Cepharad, id est in Hispania, ubi dicit Rabbi Sa... quod fuit impletum per Jacobum apostolum, et ejus discipulos, ibi fidem Christi primitus praedicantes, et colla gentium subjugantes, etc. E cumprida em Sant'Iago a transmigração de Jerusalém, que é a primeira parte da profecia, em seus discípulos, que são os que em Espanha receberam e conservaram sempre a Fé que ele lhes tinha pregado, se cumpriu a segunda parte dela; sendo estes os que depois de tantos séculos vieram a dominar e possuir as regiões do Austro: Possidebunt civitates Austri. Assim o entendem também, seguindo esta segunda exposição, Cornélio, José da Costa, Antônio Caracciolo e outros. De maneira que todos estes autores concordam em que a profecia da conquista das regiões do Austro se entende de Espanha; e discordam só na inteligência da transmigração de Jerusalém, entendendo uns que é a de Nabuco pelos Judeus passados à Espanha, e outros que é a de Cristo pelos Apóstolos, quando vieram pregar a ela; mas eu, conciliando facilmente estas duas opiniões e mostrando que a profecia se entende mais particularmente de Portugal, digo que falou o Profeta de uma e outra transmigração, porque de ambas as transmigrações foram os primeiros ministros da Fé que a plantaram em Portugal, de onde ela depois tão felizmente se transplantou às regiões do Austro.
                O fundamento que tenho para assim o dizer, porei aqui com as palavras do arcebispo D. Rodrigo da Cunha, o qual, na primeira parte da História Ecclesiastica Bracharense, falando do Apóstolo Sant'Iago, diz desta maneira:
                Entrou em Braga o santo Apóstolo, e para entrar com estrondo de trovão (cujo filho o chamara Cristo, Nosso Senhor, se foi a uma sepultura célebre, onde jacia enterrado de seiscentos anos um santo profeta, judeu de nação, e que ali viera dar com outros cativos mandados de Babilônia por Nabucodonosor, chamado Malaquias, o velho, ou Samuel, o moço e em presença de infinito povo, chamando por ele o ressuscitou em nome de Jesus Cristo, a quem vinha pregar e publicar por verdadeiro Deus; batizou-o pouco depois, e dando-lhe o nome de Pedro, o escolheu e tomou por primeiro e principal de todos seus discípulos.
                Até aqui esta maravilhosa história, tirada de autores e memórias mui antigas, e particularmente de uma carta de Hugo, bispo do Porto, e dos fragmentos de Santo Atanásio, bispo de Saragoça, o qual conheceu ao mesmo Pedro ressuscitado e escreveu o caso quase pelas mesmas palavras, que por isso não traduzimos, e são as seguintes: Ego novi sanctum Petrum, Bracharensem Episcopum, quem antiquum prophetam suscitavit Sanctus Jacobus Zebeduei filius, magister meus. Hic venerat cum duodecim tributus missis a Nabuchodonosore in Hispaniam Hierosolymis duce Nabucho-Cerdan, vel Pyrrho, Hispaniarum praefecto.
                De sorte que ambas as transmigrações de Jerusalém concorrem para a fé de Portugal: a de Cristo com o Apóstolo Santiago, e a de Nabuco com o Apóstolo Malaquias, depois chamado vulgarmente S. Pedro de Rates, que foi a pedra fundamental depois do sagrado Apóstolo da Igreja de Portugal. Os filhos desta Igreja e herdeiros desta Fé foram os que dali a tantos anos dominaram com os estandartes dela as cidades e regiões do Austro, que são propriissimamente as que correm de uma e outra parte do Oceano Austral, à parte direita pela costa da América ou Brasil, e à esquerda pela costa de África à Etiópia, cuja rainha Sabá chamou Cristo Regina Austri; e estas são as terras de que no comento deste texto faz menção Cornélio: Americam, Brasilicam, Africam, AEthiopiam.
                Assim se cumpriu nos Portugueses a profecia de Abdias: Transmigratio, quae est in Hispania, possidebit civitates Austri. E esperamos que seja novo complemento dela o domínio da terra indômita, geralmente chamada Terra Austral.
                O Cântico de Habacuc, que é a matéria de todo o III cap. e último deste Profeta, tem por assunto o triunfo de Cristo, com que por meio da sua cruz triunfou um dia da morte, do demônio e do pecado, e depois em vários tempos foi triunfando da idolatria e da gentilidade, conforme a disposição da sua providência. A parte marítima deste triunfo, que também foi naval, pertence principalmente aos Portugueses, por meio de cuja navegação e pregação sujeitou Cristo à obediência de seu império tantas gentes de ambos os mundos. Isto quer dizer 0 Profeta no v. 8.° ...ascendes super equos tuos: et quadrigae tuae salvatio. E no v. 15.°: Viam fecisti in mari equis tuis, in luto aquarum multarum. Que abriu Cristo caminho pelo mar à sua cavalaria, para que pisasse as ondas, e que a guerra que com esta cavalaria havia de fazer, não era para matar os homens, senão para os salvar, e salvando-os, triunfar deles: Equitatio tua salus; hoc est, evangelistae tui portabunt te, diz Santo Agostinho, e verdadeiramente não se podia dizer cousa mais apropriada aos Portugueses.
                Os Portugueses foram aqueles cavaleiros a quem Cristo abriu o primeiro caminho pelo mar: Viam fecisti in mari equis tuis. Os Portugueses, aqueles cavaleiros que pisaram as ondas do mar, como os cavalos pisam o lodo da terra: In Iuto aquarum multarum; e as naus dos Portugueses, aquelas carroças que levavam pelo mar a Fé, a salvação: Et quadrigae tuae salvatio. E a primeira empresa e vitória desta cavalaria de Cristo foi a sujeição do mesmo mar bravo, soberbo, furioso e indignado, que ou Cristo lhe sujeitou a eles, ou eles o sujeitaram também a Cristo, para que o reconhecesse e adorasse. O mesmo Profeta o disse assim: Numquid in mari indignatio tua?» «Porventura, ó Senhor, há-de ser eterna a vossa indignação no mar?» E responde a esta sua pergunta, que o mar submeteria suas ondas: Gurges aquarum transiit: que os abismos confessariam a potência de Cristo as vozes: Dedit abyssus vocem suam; (Ibid.) e que as suas alturas ou profundidades, com as mãos levantadas o adorariam e reconheceriam por Senhor: Altitudo manus suas levavit; e esta foi a primeira vitória de Cristo, e este da sua cavalaria o primeiro triunfo.
                Mas para que se veja o grande mistério desta metáfora de cavalaria de Cristo, de que usou o Profeta (deixando à parte haver sido esta empresa dos primeiros descobrimentos e conquistas dos Portugueses), por si mesma e na opinião do Mundo tem [esta] cavalaria [tanto valimento,] que não só os mesmos Portugueses, senão ainda os estrangeiros, faziam grande apreço de se armarem nela cavaleiros, como lemos que o fizeram alguns de Alemanha e Dinamarca.
                Faz muito ao caso advertir o que escreve o nosso insigne historiador destas conquistas, que quero pôr aqui por suas próprias palavras): Mas ainda foi acerca dele (fala do Infante D. Henrique) outra cousa muito mais eficaz, que era a obrigação do cargo e administração que tinha de governador da Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, que El-Rei D. Dinis, seu tresavo, para esta guerra dos Infiéis ordenou e novamente constituiu. E mais abaixo no mesmo cap., que é o 2° do liv. I.°, Década I.a: Assentou em mudar esta conquista para outras partes mais remotas de Espanha, do que eram os reinos de Fez e Marrocos, com que a despesa deste caso fosse própria dele e não taxada por outrem; e os méritos de seu trabalho ficassem metidos na Ordem e Cavalaria de Cristo que ele governava; de cujo tesouro podia pretender. De sorte que dizer o Profeta que Cristo havia de abrir caminho no mar à sua cavalaria, e que a empresa havia de ser a salvação das almas, não só tem a formosura da metáfora, senão a propriedade do caso, e a verdade da história e cumprimento da profecia; pois verdadeiramente esta admirável empresa foi obra, não de outro príncipe, senão de um que era propriamente administrador e governador da Ordem da Cavalaria de Cristo, e feita, não com outras despesas, senão com as rendas e tesouros da mesma cavalaria e serviços e merecimentos próprios dela.
                E porque o maior ministro do Evangelho que se embarcou nas carroças desta cavalaria, para levar a salvação às terras e gentes que ela descobriu e conquistou, foi o grande Apóstolo da Índia S. Francisco Xavier, cujos primeiros trabalhos foram os da navegação da costa de África e pregação da Fé em Moçambique, é cousa memorável e muito digna de se referir neste lugar, que também ele foi cavaleiro da mesma Ordem.
                Na História do P.e Marcelo Mastrilli, a quem S. Francisco Xavier restituiu milagrosamente a vida, para que a fosse dar por Cristo no Japão, onde padeceu glorioso martírio, se conta uma visão em que o mesmo santo apóstolo apareceu vestido com o manto branco da Ordem de Cristo e com cruz vermelha no peito, como insigne cavaleiro desta santa cavalaria, e que tanto adiantou em nossas Conquistas a glória de sua empresa. Singular prerrogativa, por certo, da Ordem dos Cavaleiros de Cristo de Portugal, não havendo outra entre todas as da Cristandade, que se possa gloriar de ter tão ilustre cavaleiro, nem de que sobre os dotes da glória se vestisse o seu manto e a sua cruz; mas todo este favor do Céu merece uma cavalaria que tanto mar, tanto mundo e tantas almas conquistou para o mesmo Céu.
                Para confirmação de tudo isto, e para que os Portugueses conheçam quanto devem a Deus, pelos escolher para instrumentos de obras tão admiráveis, e para que se não admirem quando lhes dissermos que os tem escolhido para outras maiores, não pode haver melhor testemunho que o proêmio do mesmo Profeta, com que deu princípio a este cântico triunfal das vitórias de Cristo: Domine, (começa ele) audivi auditionem tuam et timui. Domine, opus tuum in medio annoram vivifica illud. In medio annorum notum facies: cum iratus fueris, misericordiae recordaberis. Quando Deus revelou ao Profeta e quando ouviu de sua boca o que havia de fazer aos vindouros, diz que ficou cheio de temor e assombro ( assim o interpretaram os Setenta , acrescentando por modo de glosa no mesmo texto: Consideravi opera tua, et expavi). Porque não houve obra de Deus, depois do princípio e criação do Mundo, que mais assombrasse e fizesse pasmar aos homens que o descobrimento do mesmo Mundo que tantos mil anos tinha estado incógnito e ignorado; nem que maior nem mais justo temor deva causar aos que bem ponderarem esta obra, que a consideração dos ocultos juízos de Deus, com que por tantos séculos permitiu que tão grande parte do Mundo, tantas gentes e tanta s almas vivessem nas trevas da infidelidade, sem lhes amanhecerem as luzes da Fé, tão breve noite para os corpos e tão comprida noite para as almas. Mas no meio desses compridíssimos anos, diz o Profeta que faria Deus que se descobrisse e conhecesse o que até então estava oculto: In medio annorum notum facies; e que tendo durado tantos séculos sua ira contra aquelas gentes idólatras, em fim se lembraria de sua misericórdia: Cum iratus fueris, misericordiae recordaberis; e que então tornaria o Senhor a vivificar e ressuscitar a sua obra: Opus tuum, in medio annorum vivifica illud.
                Os Setenta, traduzindo juntamente e explicando leram: Cum appropinquaverint anni, cognosceris. «Quando chegarem os anos determinados por vossa providência, então sereis conhecido.:>> E este novo conhecimento que Deus deu àquelas nações por meio dos nossos apóstolos e pregadores da sua Fé foi tornar a ressuscitar a mesma obra, que tinha começado pelos primeiros apóstolos que naquelas mesmas terras a pregaram, e com o tempo estava em algumas partes amortecida e em outras totalmente morta. Isto quer dizer: Opus tuum vivifica illud: ou, como traslada Símaco: Reviviscere fac ipsum. E o mesmo profeta mais abaixo se comenta a si mesmo, dizendo: Suscitans suscitatis arcum; tuum. «Vós, Senhor, tornareis a ressuscitar o vosso arco» (que é a sua cruz), por meio de cuja pregação ressuscitaria também a Fé e as vitórias dela naquelas nações.
                Assim o profetizou na Índia seu primeiro Apostolo, S. Tomé, quando na cidade de Meliapor, então famosíssima, levantando uma cruz de pedra em lugar distante das praias, não menos que doze léguas. Lhes disse e mandou esculpir no pé dela, que quando o mar ali chegasse, chegariam também de partes remotíssimas do Ocidente outros homens da sua cor. que pregassem a mesma Cruz, a mesma Fé e o mesmo Cristo que ele pregava.
                Cumpriu-se pontualmente a profecia, porque o mar, comendo pouco a pouco a terra, chegou ao lugar sinalado, e no mesmo tempo chegaram os Portugueses.
                Igual glória (e não sei se maior de Portugal) a da Índia, que ainda tivesse a S. Tomé por seu apóstolo e Portugal não era de todo cristão, e já os Apóstolos plantavam as balizas da fé em seu nome e conheciam e pregavam que ele era o que havia de fazer cristão ao Mundo. Lembre-se outra vez Portugal destas obrigações, e de quanto lhe merece Cristo.
                O Profeta Sofonias, no cap. III, também falou mui particularmente neste glorioso assunto: Ultra flumina AEthiopiae (diz ele, ou por ele Deus) inde supplices mei, filii dispersorum meorum deferent munus mihi. As quais palavras entendem Árias, Vatablo, Castro e Cornélio das nações que estão além do Tigres e do Eufrates, isto é, dos Chinas, Japões e outras gentes da Índia menos remotas, que por meio das pregações dos Portugueses se haviam de ajoelhar diante dos altares de Cristo e lhe haviam de levar e oferecer seus dons em testemunho de o reconhecerem por seu Deus; mas contra esta explicação parece que se opõem as primeiras palavras do texto, que verdadeiramente falam das gentes que estão além do rio da Etiópia: Ultra flumina AEthiopiae inde supplices mei. Logo, segundo o que acima deixamos dito, não se pode entender este texto das gentes orientais. Por este argumento há outros autores que o entendem do Brasil e da América, e posto de um e outro modo, sempre o oráculo ou elogio deste Profeta nos fica em casa. Digo que de uma e outra terra, e de uma e outra gente se pode entender.
                E a razão é porque, segundo Estrabo, Éforo, Heródoto e outros, debaixo do mesmo nome de Etiópia se compreendiam antigamente duas Etiópias: uma oriental, que estava na Ásia além do Tigres e Eufrates, donde era a mulher de Moisés, chamada por isso Etiópia; e outra ocidental, na África, que são todas aquelas terras que cerca o mar Oceano, desde Guiné até o mar Roxo.
                As palavras de Heródoto são estas: Hi AEthiopes, qui sunt ab ortu Solis, sub Pharnarzatre, censebantur cum Indiis specie nihil admodum a caeteris differentes, sed sono vocis dumtaxat, atque capillatura. Nam AEthiopes qui ab ortu Solis sunt, permixtos crines; qui ex Africa, crespissimos inter homines habent. De sorte que também havia Etíopes na Ásia, como são hoje os que se conservam com o mesmo nome na África, e só se distinguiam uns dos outros no som da voz e no cabelo; porque os da .Ásia tinham o cabelo solto e corredio e os da África crespo e retorcido; a qual distinção não não só é necessária para o entendimento de muitos lugares das Escrituras, senão ainda dos historiadores e poetas antigos, que de outro modo se não podem bem entender.
                Nem faça dúvida a esta distinção a palavra Chus, de que usa indistintamente o original hebreu, donde nós lemos AEthiopae; porque Membrot, filho de Chus e neto de Cham, deu o nome de seu pai às terras orientais, onde habitou e povoou. Os descendentes deste mesmo Membrot e deste mesmo Chus, como diz Éforo, referido por Estrabo, e os que depois passaram à África e a povoaram, levaram consigo o nome que tinham herdado de seu pai e de seu avô; e assim como uns e outros na língua latina se chamam AEthiopes, e a sua terra Ethiopia, assim uns e outros na língua hebréia se chamam Chuteos e a sua terra Chus. Donde se segue que quando na Escritura se acha este nome sem outra diferença, (como neste lugar de Sofonias) se pode entender de qualquer das Etiópias; porém quando se ajuntem na história ou narração algumas diferenças que o determinem, então se há-de entender determinadamente ou só da Etiópia Oriental ou só da Ocidental, como nós fizemos no texto de Isaías ultimamente referido.
                No cap. XVI, 12, do Apocalipse, diz S. João: Et sextus angelus effudit phialam suam in flumen illud magnum Euphraten: et siccovit aquam ejus, ut praepararetur via regibus ab ortu Solis: Que «o sexto anjo derramou sua redoma sobre aquele grande rio Eufrates e que secou suas águas, para aparelhar o caminho aos reis do Oriente». O maior impedimento de água que tinham os reis do Oriente para passar a Jerusalém, era o rio Eufrates, por ser o mais profundo e mais caudaloso da Saia; e este impedimento diz S. João que se lhes havia tirar, de modo que se pudesse passar o Eufrates a pé enxuto. Mas debaixo das figuras deste enigma se significava outra melhor Jerusalém, que é Roma, cabeça da Igreja, e outro melhor Eufrates, que é o mar Oceano, pelo qual se abriu caminho aos reis do Oriente, para que pudessem vir à Igreja.
                Assim como o Profeta Jeremias chamou ao Eufrates mar, não é muito que S. João chamasse ao mar Eufrates, principalmente acompanhado daqueles dois epítetos de alusão a grandeza: Illud magnum Euphatem. E este grande Eufrates é aquele grande mar, pelo qual os Portugueses (maior façanha e ventura que a do outro Ciro) fizeram passagem a pé enxuto nas suas grandes naus da Índia, para levarem nelas a Fé ao Oriente e trazerem tantos reis orientais à obediência e sujeição da Igreja. Não sou eu nem autor português (como quase todos os que até agora tenho alegado) o que isto digo, senão o doutíssimo Genebrardo, insigne professor parisiense das Letras Sagradas. falando em geral dos Espanhóis e em particular dos Portugueses, a quem só pertence a conversão dos reis do Oriente, 0 diz assim sobre este mesmo lugar do Apocacalipse.
                O mesmo Evangelista Profeta S João, no cap. X, diz que viu descer do Céu um anjo forte, cujas insígnias descreve largamente , que nós pode ser expliquemos em outro lugar. Neste basta dizer que tinha na mão um livro aberto: Et habebut in manu sua libellum apertum, e que pôs o pé esquerdo sobre a terra e o direito sobre o mar: Et posuit pedem suum dextrum super mare et sinistrum super terram.
                Este anjo forte (diz Pedro Bulêngero) é Cristo; o livro, o Evangelho explicado; e os pés de seu corpo místico, que é a Igreja, os pregadores apostólicos que levam pelo Mundo ao mesmo Cristo e seu Evangelho, entre os quais o pé esquerdo, que está sobre a terra, são aqueles que, sem saírem da terra firme pregaram nela; o pé direito, que está sobre o mar, os que, navegando às regiões apartadas e remotas do nosso hemisfério, levam a elas a Fé de Cristo e a luz de seu Evangelho; donde se segue que o pé direito que Cristo pôs sobre o mar para esta gloriosa e evangélica empresa, são, entre todas as nações do Mundo, por excelência os Portugueses. Não os nomeou por seu nome este autor, mas nomeou-os por suas obras, e é o mais honrado nome e de maior estimação que lhes podia dar, explicando-se com as palavras seguintes: Istud nostra memoria factum videmus, quae quidem regna a nobis longe dissita el incognitae regiones teterrimo daemonum cultui additae sunt, opera patrum Societatis nominis Jesu ad Christi religionem traducta sunt. Sinenses enim, qui populi ad veteres Índias expectant, et infideles sunt, (relicto daemonum cultu, ad octo millia primum) et in his reges et princites, permultique proceres et optimates sub anno Domini I564, Christi Jesu fidem susceperunt; deinde multa Indorum insulae et regiones christianam, catholicamque amplexerunt doctrinam, et integrae civitates sacro sunt ablutae baptismate.
                «Em cumprimento desta profecia (diz Bulêngero, alegando a Súrio). vemos que os reinos e regiões muito apartadas de nós, que adoravam nos ídolos aos demônios, pela indústria dos padres da Companhia de Jesus, se têm passado à verdadeira religião; porque os Chinas, que pertencem às antigas Índias, e são infiéis e gentios, deixando o culto da idolatria no ano de I564, receberam a Fé de Cristo em número de 8.000, em que entraram os príncipes e reis e muitos grandes senhores; e em outras muitas ilhas e terras, de tal maneira os Índios abraçaram a doutrina cristã e católica, que as cidades se batizaram.>> Tão facilmente triunfa Cristo pela voz e espada dos Portugueses, com o pé direito no mar e o livro na mão direita!
                No capítulo seguinte se verão muitos lugares de vários Profetas, explicados por autores que escreveram de cem anos a esta parte, depois que por meio da navegação do mar Oceano se quebrou o fabuloso encantamento dos negados antípodas e se descobriram tantas terras e gentes, não só incógnitas aos Antigos, mas nem ainda presumidas ou imaginadas deles. Ali veremos as admiráveis propriedades e miudíssimas circunstâncias com que os mesmos Profetas falaram dos mares, das ilhas, das navegações, das terras, dos sítios, dos rios, das minas, das árvores, dos frutos, das gentes, dos costumes, da cegueira e infelicidade em que viviam, e sobre tudo da Fé e luz do Evangelho, com que por meio dos pregadores de Cristo o haviam finalmente de conhecer, adorar e servir, como hoje, com tanta glória da Igreja, conhecem, adoram e servem.
                Agora só pergunto: Como era possível que aqueles antigos e antiquíssimos autores explicassem neste sentido aos Profetas? Ou como podiam entender nem perceber que destas gentes, e destas terras, e destes mares, falavam os seus oráculos e profecias? Se criam tão firme e assentadamente que não havia nem podia haver antípodas, como podiam explicar as profecias dos antípodas? Se criam que a imensidade do mar Oceano não era navegável e tinham este pensamento por absurdo, como haviam de entender as profecias destas navegações e destes mares? Se queriam que a zona tórrida era um perpétuo incêndio, e totalmente abrasada e inabitável, como haviam de interpretar as profecias dos habitadores da zona tórrida? Como haviam de cuidar, nem lhes havia de vir ao pensamento que os Profetas falavam dos Americanos, se não sabiam que havia América? Como dos Brasis, se não havia Brasil? Como dos Peruanos e Chiles, se não sabiam que havia Peru nem Chile? Como haviam de interpretar os Profetas das ilhas desertas ou povoadas do Oceano, se não sabiam que havia no Mundo tais ilhas? Como dos Etíopes ocidentais, se não sabiam que havia tal Etiópia? Como dos Japões, se não sabiam que havia Japões? Como dos Chinas, se não sabiam que havia China? Se os Profetas nas figuras enigmáticas dos seus oráculos se declaram pela natureza, propriedade, costumes, exercícios e histórias das gentes e reinos de que falam, como haviam de vir em conhecimento dessas gentes e desses reinos os que não podiam saber sua natureza, suas propriedades, seus exercícios e seus costumes, nem suas histórias? Se declaram as terras pelos sítios, pelos rios, pelas árvores, pelos frutos, pelas minas e seus metais, como podiam conhecer nem atinar com as terras os que não tinham notícia de tais sítios, de tais rios, de tais minas, de tais árvores, nem de tais frutos? E se ainda hoje, depois de descobertas e conhecidas estas terras e estas gentes, e se terem escrito tantos livros de sua história natural e política, ainda por falta de notícias mais particulares e miúdas, se não acerta mais que em comum e individualmente com algumas das terras e gentes de que os profetas falaram, que seriam na confusão escuríssima da Antigüidade, em que nenhuma destas cousas se sabia nem se imaginava, antes as contrárias delas se tinham por averiguadas e certas?
                Frei João de la Puente, naquele seu erudito livro da Conveniência das duas monarquias, romana e espanhola, trabalhando por explicar de Espanha certo lugar de Isaías, diz assim dos teólogos, sendo ele mestre em Teologia: La falta de Geographia v la de otras artes liberales es causa que los teologos non atinem con el sentido de la divina Escritura. E isto que se não pode dizer dos teólogos do nosso tempo sem grande nota de sua ciência e diligência, depois do Mundo estar tão descoberto e conhecido, é obrigação e força que digamos ou suponhamos dos teólogos antigos, por doutíssimos e sapientíssimos que fossem, como verdadeiramente eram, sem agravo, nem menos decoro de sua erudição e grande sabedoria, porque sabiam a geografia do seu mundo e não podiam saber nem adivinhar a do nosso. Só por nova revelação e luz sobrenatural podiam conhecer os autores daquele tempo o que nós tão fácil e naturalmente conhecemos hoje; mas esta revelação, esta luz e posto que fossem varões santíssimos e tão favorecidos de Deus, não quis o mesmo Deus que eles então a tivessem, porque era disposição mui assentada da sua providência que estas cousas se não soubessem, e estivessem ocultas até àqueles tempos medidos e taxados por ele, em que tinha decretado que se soubessem e descobrissem.
                Diz o Apóstolo S. Paulo que acomodou Deus e repartiu os séculos conforme os decretos da sua palavra, para que cousas invisíveis se fizessem visíveis: Fide intelligimus aptata esse saecula verbo Dei, ut ex invisibilibus, visibilia fiant; por onde não é muito que tanta parte do Mundo, e as gentes que o habitavam, estivessem ignoradas e invisíveis por tantos séculos, e que depois chegasse um século em que se descobrissem e fossem visíveis; e assim como, corrida esta cortina, se descobriram e manifestaram as terras e gentes de que tinham falado os Profetas, assim se entenderam e descobriram também os segredos e mistérios de suas profecias.
                Destas terras ultramarinas, encobertas e incógnitas, falava Isaías, quando disse no cap. XXIV: ...in doctrinis glorificate Dominum; in insulis maris nomen Domini, Dei Israel. E logo acrescentou: Secretum meum mihi, secretum meum mihi: «Este segredo é só para mim; este segredo é só para mim.» E se na mesma profecia estavam profetizadas as cousas, e mais o segredo delas, como podia ser que contra a verdade infalível da profecia soubessem os Antigos deste segredo, antes de chegar o tempo em que Deus tinha determinado de o revelar?
                O cântico do profeta Habacuc, que também trata destes novos descobrimentos ou triunfos da Fé e da conversão destas gentes, tem por título Pro ignorantiis. E se o conselho de Deus foi que o entendimento ou de todas ou de muitas cousas que ali contou o Profeta, se ignorasse; que agravos ou descréditos é ou pode ser dos antigos sábios, que para eles fossem ocultas, incógnitas ou ignoradas? Podem os homens ocultar os seus segredos, e Deus não será senhor de reservar os seus, sendo logo certo que estes segredos da Providência Divina se não podiam alcançar por ciência humana, e que a mesma Providência tinha decretado que se não soubessem por revelação?

LAUS DEO

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