Capítulo VII: A Prece
A tarde
ia morrendo.
O sol
declinava no horizonte e deitava-se sobre as grandes florestas, que iluminava
com os seus últimos raios.
A luz
frouxa e suave do ocaso, deslizando pela verde alcatifa, enrolava-se como ondas
de ouro e de púrpura sobre a folhagem das árvores.
Os espinheiros
silvestres desatavam as flores alvas e delicadas; e o ouricuri abria as suas
palmas mais novas, para receber no seu cálice o orvalho da noite. Os animais
retardados procuravam a pousada; enquanto a juriti, chamando a companheira,
soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia.
Um
concerto de notas graves saudava o pôr-dosol, e confundia-se com o rumor da
cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua queda, e ceder à doce influência
da tarde.
Era a
Ave-Maria.
Como é
solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa do crepúsculo, em que
a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite!
Essas
grandes sombras das árvores que se estendem pela planície; essas gradações
infinitas da luz pelas quebradas da montanha; esses raios perdidos, que,
esvazando-se pelo rendado da folhagem, vão brincar um momento sobre a areia;
tudo respira uma poesia imensa que enche a alma.
O
urutau no fundo da mata solta as suas notas graves e sonoras, que, reboando
pelas longas crastas de verdura, vão ecoar ao longe como o toque lento e
pausado do ângelus.
A
brisa, rogando as grimpas da floresta, traz um débil sussurro, que parece o
último eco dos rumores do dia, ou o derradeiro suspiro da tarde que morre.
Todas
as pessoas reunidas na esplanada sentiam mais ou menos a impressão poderosa
desta hora solene, e cediam involuntariamente a esse sentimento vago, que não é
bem tristeza, mas respeito misturado de um certo temor.
De
repente, os sons melancólicos de um clarim prolongaram-se pelo ar quebrando o
concerto da tarde; era um dos aventureiros que tocava a Ave-Maria.
Todos
se descobriram.
D.
Antônio de Mariz, adiantando-se até à beira da esplanada para o lado do ocaso,
tirou o chapéu e ajoelhou.
Ao
redor dele vieram grupar-se sua mulher, as duas moças, Álvaro e D. Diogo; os
aventureiros, formando um grande arco de círculo, ajoelharam-se a alguns passos
de distância.
O sol
com seu último reflexo esclarecia a barba e os cabelos brancos do velho fidalgo,
e realçava a beleza daquele basto de antigo cavalheiro.
Era uma
cena ao mesmo tempo simples e majestosa a que apresentava essa prece meio
cristã, meio selvagem; em todos aqueles rostos, iluminados pelos raios do
ocaso, respirava um santo respeito.
Loredano
foi o único que conservou o seu sorriso desdenhoso, e seguia com o mesmo olhar
torvo os menores movimentos de Álvaro, ajoelhado perto de Cecília e embebido em
contemplá-la, como se ela fosse a divindade a quem dirigia a sua prece.
Durante
o momento em que o rei da luz, suspenso no horizonte, lançava ainda um olhar
sobre a terra, todos se concentravam em um fundo recolhimento, e diziam uma
oração muda, que apenas agitava imperceptivelmente os lábios.
Por fim
o sol escondeu-se; Aires Gomes estendeu o mosquete sobre o precipício, e um
tiro saudou o ocaso.
Era
noite.
Todos
se ergueram; os aventureiros cortejaram e foram-se retirando a pouco e pouco.
Cecília
ofereceu a fronte ao beijo de seu pai e de sua mãe, e fez uma graciosa mesura a
seu irmão e a Álvaro.
Isabel
tocou com os lábios a mão de seu tio, e curvou-se em face de D. Lauriana para
receber uma bênção lançada com a dignidade e altivez de um abade.
Depois,
a família chegando-se para junto da porta, dispôs-se a passar um desses curtos
serões que outrora precediam à simples mas suculenta ceia.
Álvaro,
em atenção a ser o seu primeiro dia de chegada, fora emprazado pelo velho
fidalgo para tomar parte nessa colação da família, o que havia recebido como um
favor imenso.
O que
explicava esse apreço e grande valor dado por ele a um tão simples convite, era
o regime caseiro que D. Lauriana havia estabelecido na sua habitação.
Os
aventureiros e seus chefes viviam num lado da casa inteiramente separados da
família; durante o dia corriam os matos e ocupavam-se com a caça ou com
diversos trabalhos de cordoagem e marcenaria.
Era
unicamente na hora da prece que se reuniam um momento na esplanada, onde,
quando o tempo estava bom, as damas vinham também fazer a sua oração da tarde.
Quanto
à família, esta conservava-se sempre retirada no interior da casa durante a
semana; o domingo era consagrado ao repouso, à distração e à alegria; então
deva-se às vezes um acontecimento extraordinário como um passeio, uma caçada,
ou uma volta em canoa pelo rio.
Já se
vê pois a razão por que Álvaro tinha tantos desejos, como dizia o italiano, de
chegar ao Paquequer em um sábado, e antes das seis horas; o moço sonhava com a
aventura desses curtos instantes de contemplação e com a liberdade do domingo,
que lhe ofereceria talvez ocasião de arriscar uma palavra.
Formado
o grupo da família, a conversa travou-se entre D. Antônio de Mariz, Álvaro e D.
Lauriana; Diogo ficara um pouco retirado; as moças, tímidas, escutavam, e quase
nunca se animavam a dizer uma palavra sem que se dirigissem diretamente a elas,
o que rara vez sucedia.
Álvaro,
desejoso de ouvir a voz doce e argentina de Cecília, da qual ele tinha saudade
pelo muito tempo que não a escutava, procurou um pretexto que a chamasse à
conversa.
—Esquecia-me
contar-vos, Sr. D. Antônio, disse ele aproveitando-se de uma pausa, um dos
incidentes da nossa viagem.
—Qual?
Vejamos, respondeu o fidalgo.
—A coisa
de quatro léguas daqui encontramos Peri.
—Inda
bem! disse Cecília; há dois dias que não sabemos notícias dele.
—Nada
mais simples, replicou o fidalgo; ele corre todo este sertão.
—Sim!
tornou Álvaro, mas o modo por que o encontramos é que não vos parecerá tão
simples.
—O que
fazia então?
—Brincava
com uma onça como vós com o vosso veadinho, D. Cecília.
—Meu
Deus! exclamou a moça soltando um grito.
—Que
tens, menina? perguntou D. Lauriana.
—É que
ele deve estar morto a esta hora, minha mãe.
—Não se
perde grande coisa, respondeu a senhora.
—Mas eu
serei a causa de sua morte!
—Como
assim, minha filha? disse D. Antônio.
—Vede
vós, meu pai, respondeu Cecília enxugando as lágrimas que lhe saltavam dos
olhos; conversava quinta-feira com Isabel, que tem grande medo de onças, e
brincando, disse-lhe que desejava ver uma viva!...
—E Peri
a foi buscar para satisfazer o teu desejo, replicou o fidalgo rindo. Não há que
admirar. Outras tem ele feito.
—Porém,
meu pai, isto é coisa que se faça! A onça deve tê-lo morto.
—Não
vos assusteis, D. Cecília; ele saberá defender-se.
—E vós,
Sr. Álvaro, por que não o ajudastes a defender-se? disse a moça sentida.
—Oh! se
vísseis a raiva com que ficou por querermos atirar sobre o animal!
E o
moço contou parte da cena passada na floresta.
—Não há
dúvida, disse D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecília quis
fazer-lhe a vontade com risco de vida. É para mim uma das coisas mais
admiráveis que tenho visto nesta terra, o caráter desse índio. Desde o primeiro
dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só ato de
abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de
um selvagem!
A
conversa continuou; mas Cecília tinha ficado triste, não tomou mais parte nela.
D.
Lauriana retirou-se para dar as suas ordens; o velho fidalgo e o moço
conversaram até oito horas, em que o toque de uma campa no terreiro da casa
veio anunciar a ceia.
Enquanto
os outros subiam os degraus da porta e entravam na habitação, Álvaro achou ocasião
de trocar algumas palavras com Cecília.
—Não me
perguntais pelo que me ordenastes, D. Cecília? disse ele à meia voz.
—Ah!
sim! trouxestes todas as coisas que vos pedi?
—Todas
e mais... disse o moço balbuciando.
—E mais
o quê? perguntou Cecília.
—E mais
uma coisa que não pedistes.
—Esta
não quero! respondeu a moça com um ligeiro enfado.
—Nem
por vos pertencer já? replicou ele timidamente.
—Não
entendo. É uma coisa que já me pertence, dizeis?
—Sim;
porque é uma lembrança vossa.
—Nesse
caso guardai-a, Sr. Álvaro, disse ela sorrindo, e guardai-a bem.
E
fugindo, foi ter com seu pai, que chegava à varanda, e em presença dele recebeu
de Álvaro um pequeno cofre, que o moço fez conduzir, e que continha as suas
encomendas. Estas consistiam em jóias, sedas, espiguilhas de linho, fitas,
glacês, holandês, e um lindo par de pistolas primorosamente embutidas.
Vendo
essas armas, a moça soltou um suspiro abafado e murmurou consigo:
—Meu
pobre Peri! Talvez já não te sirvam nem para te defenderes.
A ceia
foi longa e pausada, como costumava ser naqueles tempos em que a refeição era
uma ocupação séria, e a mesa um altar que se respeitava.
Durante
a colação, Álvaro esteve descontente pela recusa que a moça fizera do modesto
presente que ele havia acariciado com tanto amor e tanta esperança.
Logo
que seu pai ergueu-se, Cecília recolheu ao seu quarto, e ajoelhando diante do
crucifixo, fez a sua oração. Depois, erguendo-se, foi levantar um canto da
cortina da janela e olhar a cabana que se erguia na ponta do rochedo, e estava
deserta e solitária.
Sentia
apertar-se o coração com a idéia de que, por um gracejo, tivesse sido a causa
da morte desse amigo dedicado que lhe salvara a vida, e arriscava todos os dias
a sua somente para fazê-la sorrir.
Tudo
nesta recâmara lhe falava dele: suas aves, seus dois amiguinhos que dormiam, um
no seu ninho e outro sobre o tapete, as penas que serviam de ornato ao
aposento, as peles dos animais que seus pés rogavam, o perfume suave de benjoim
que ela respirava; tudo tinha vindo do índio, que, como um poeta ou um artista,
parecia criar em torno dela um pequeno templo dos primores da natureza
brasileira.
Ficou
assim a olhar pela janela muito tempo; nessa ocasião nem se lembrava de Álvaro,
o jovem cavalheiro elegante, tão delicado, tão tímido, que corava diante dela,
como ela diante dele.
De
repente a moça estremeceu.
Tinha
visto a luz das estrelas passar um vulto que ela reconheceu pela alvura de sua
túnica de algodão, e pelas formas esbeltas e flexíveis; quando o vulto entrou
na cabana, não lhe restou a menor dúvida.
Era
Peri.
Sentiu-se
aliviada de um grande peso; e pôde então entregar-se ao prazer de examinar um
por um, com toda a atenção, os lindos objetos que recebera, e que lhe causavam
um vivo prazer.
Nisto
gastou seguramente meia hora; depois deitou-se, e como já não tinha inquietação
nem tristeza, adormeceu sorrindo à imagem de Álvaro e pensando na mágoa que lhe
fizera, recusando o seu mimo.
Capítulo VIII: Três Linhas
Tudo
estava em sossego; apenas quando o vento escasseava, ouvia-se do lado do
edifício habitado pelos aventureiros um rumor de vozes abafadas.
A esta
hora, havia naquele lagar três homens bem diferentes pelo seu caráter, pela sua
posição e pela sua origem, que entretanto tinham uma mesma idéia.
Separados
pelos costumes e pela distância, os seus espíritos quebravam essa barreira
moral e física, e se reuniam num só pensamento, convergindo para um mesmo ponto
como os raios de um círculo.
Sigamos
pois cada uma das linhas traçadas por essas existências, que mais cedo ou mais
tarde hão de cruzar-se no seu vértice.
Numa
das alpendradas que corriam no fundo da casa, trinta e seis aventureiros
cercavam uma longa mesa, no meio da qual trescalavam em escudelas de pau
algumas peças de caça, já estreadas de uma maneira que fazia honra ao apetite
dos convivas.
O
catalão não corria nos canjirões de louça e de metal com tanta fartura quanta
era de desejar; mas, em compensação, viam-se aos cantos do alpendre, grossas
talhas cheias de vinho de caju e ananás, onde os aventureiros podiam beber à
larga.
O vício
tinha suprido os licores europeus pelas bebidas selvagens; afora uma pequena
diferença de sabor, havia no fundo de todas elas o álcool que excita o
espírito, e produz a embriaguez.
A
colação começara há meia hora; nos primeiros momentos não se ouviu senão o
mastigar dos dentes, os beijos dados aos canjirões, e o ranger da faca na
escudela.
Depois,
um dos aventureiros proferiu uma palavra, cuja réplica correu imediatamente à
roda da mesa; a conversa tornou-se uma espécie de coro confuso e discordante.
Foi no
meio desta algazarra que um dos convivas, erguendo a voz, lançou estas
palavras:
—E vós,
Loredano, nada dizeis? Estais aí que não há modo de vos ouvir uma palavra!
—Certo,
acudiu outro, Bento Simões diz verdade; se não é a fome que vos traz mudo, algo
tendes, misser italiano.
—Voto a
Deus, Martim Vaz, disse um terceiro, que são penares por alguma moçoila que
andou reqüestando em São Sebastião.
—Tirai-vos
lá com os vossos penares, Rui Soeiro; achais que Loredano seja homem de se
amofinar por coisa de tal jaez?
—E por
que não, Vasco Afonso? Todos calçamos pelo mesmo sapato, em que o aperte mais a
uns do que a outros.
—Não
julgueis os mais por vós, dom namorado; homens há que trazem seu pensamento
empregado em coisa de mor valia do que requebros e galanteios.
O
italiano conservava-se taciturno, e deixava que os outros o trouxessem à baila,
sem dar-se por achado: era fácil de ver que ele seguia com afinco uma idéia que
lhe trabalhava no espírito.
—Mas,
por Deus, continuou Bento Simões, falai-nos do que vistes na vossa viagem,
Loredano; apostaria que alguma vos sucedeu!
—Ide
com o que vos digo, retrucou Rui Soeiro, misser italiano está penado de amores.
—E por
quem, se vos parece? perguntaram alguns.
—Ora,
não custa sabê-lo; por aquele canjirão de vinho que aí lhe está fronteiro; não
vedes que olhos que lhe deita?
Os
aventureiros largaram-se a rir, aplaudindo a lembrança.
Aires
Comes apareceu à porta do saguão.
—Eia,
rapazes! disse ele com uma voz que se esforçava por tornar severa. Leva rumor!
—É um
dia de chegada, sr. escudeiro; e deveis levá-lo em conta, acudiu Rui Soeiro.
Aires
sentou-se, e começou a fazer as honras a um resto de veado que estava em frente
dele.
—Olá!
vós outros, gritou ele, com a boca cheia, para dois aventureiros que se haviam
levantado; ide encher vosso quarto, que já refizestes, e os mais esperam sua
vez.
Os dois
aventureiros saíram para ir revezar os outros, que era costume ficarem de
sentinela à noite; medida esta necessária naquele tempo.
—Estais
hoje muito severo, Sr. Aires Gomes, disse Martim Vaz.
—Aquele
que dá as ordens, sabe o que faz; a nós cumpre obedecer, respondeu o escudeiro.
—Ah!
por que não dizíeis isto logo?
—Pois
ficareis agora entendidos; boa guarda, que talvez breve tenhamos que ver.
—Venha
isso, acudiu Bento Simões, que já me enfastio de atirar às pacas e porcos do
mato.
—E em
honra de quem pensais vós que queimaremos breve algumas libras de pólvora?
perguntou Vasco Afonso.
—Tem
que saber isso? Quem, senão os índios, nos dão esta folia?
Loredano
ergueu a cabeça.
—Que
histórias contais aí? Supondes que os índios nos atacarão? perguntou ele.
—Oh!
eis misser italiano que acorda; foi preciso cheirar-lhe a chamusco, exclamou
Martim Vaz.
A
presença de Aires Gomes, reprimindo a franca hilaridade dos aventureiros, fez
com que fossem uns após outros desamparando a mesa, e deixassem o escudeiro na
companhia dos canjirões e escudelas.
Loredano,
levantando-se, fez um gesto a Rui Soeiro e a Bento Simões; e os três seguiram
juntos até ao meio do terreiro; o italiano murmurou-lhes ao ouvido uma simples
palavra:
—Amanhã!
Depois,
como se nada se tivesse passado entre eles, os dois aventureiros seguiram cada
um de seu lado, e deixaram Loredano continuar o seu caminho até à beira do
precipício.
Do lado
oposto, o italiano viu refletir-se sobre as árvores o tênue reflexo da luz que
esclarecia o quarto de Cecília, cujas janelas não podia distinguir por causa do
ângulo que formava a esplanada.
Aí
esperou.
Álvaro,
deixando Cecília, voltara triste e sentido da recusa que sofrera, embora o
consolasse a sua última palavra, e sobretudo o sorriso que a acompanhou.
Não se
podia resignar à perda desse prazer infinito com que havia contado, de ver nos
ornatos da moça uma prenda sua, uma lembrança que lhe dissesse que pensava
nele. Tinha afagado tanto essa idéia, tinha vivido tanto tempo dela, que
arrancá-la do seu espírito seria um sofrimento cruel.
Enquanto
atravessava o espaço que o separava do seu aposento, formulou um projeto e
tomou uma resolução. Meteu numa pequena bolsa de seda uma caixinha de jóias; e
envolvendo-se no seu manto, costeou a casa e aproximou-se do pequeno jardim que
entestava com o gabinete de Cecília.
Também
ele viu a luz das janelas se refletir defronte; e esperou que a noite se
adiantasse, e toda a casa dormisse.
Ao
tempo que isto se passava, Peri, o índio que já conhecemos, tinha chegado com o
seu fardo, tão precioso que não o trocaria por um tesouro.
No
valado que se estendia à beira do rio, deixou o seu prisioneiro, depois de o
ter metido numa espécie de tronco que arranjou, curvando um galho de árvore.
Subiu então à esplanada, e foi nesta ocasião que a moça o viu entrar na sua
cabana; o que porém não pôde distinguir, foi a maneira por que saíra quase
logo.
Havia
dois dias que não via sua senhora, que não recebia dela uma ordem, que não
adivinhava um desejo seu para satisfazê-lo imediatamente.
O
primeiro pensamento do índio, foi pois ver Cecília, ou ao menos a sua sombra;
entrando na cabana percebeu, como os outros, a réstia de luz que coava entre as
cortinas da janela.
Suspendeu-se
a uma das palmeiras que servia de esteio à choça, e por um desses movimentos
ágeis que lhe eram tão naturais, de um salto segurou-se ao galho de um óleo gigante
que, elevando-se sobre a encosta fronteira, deitava alguns ramos do lado da
casa.
Durante
um momento o índio pairou sobre o abismo, balançando-se no galho fraco que o
sustinha; depois equilibrou-se e continuou essa viagem aérea com a mesma
segurança e a mesma firmeza com que um velho marinheiro caminha sobre as gáveas
e sobre as enxárcias.
Com uma
ligeireza extraordinária ganhou o outro lado da árvore e, escondido pela
folhagem, aproximou-se até um galho que ficava fronteiro das janelas de Cecília
cerca de uma braça. Era nesse mesmo momento que Loredano chegava de um lado e
Álvaro de outro, e se colocavam igualmente a alguns passos.
A
princípio, Peri só teve olhos para ver o que se passava dentro do aposento:
Cecília examinava ainda por uma última vez as encomendas que lhe haviam chegado
do Rio de Janeiro.
Nessa
muda contemplação, o índio esqueceu tudo. Que lhe importava o precipício que se
abria a seus pés para tragá-lo ao menor movimento, e sobre o qual planava num
ramo fraco que vergava e se podia partir a todo o instante!
Era
feliz: tinha visto sua senhora; ela estava alegre, contente e satisfeita; podia
ir dormir e repousar.
Uma
lembrança triste porem o assaltou; vendo os lindos objetos que a moça recebera,
pensou que podia dar-lhe a sua vida, mas que não tinha primores como aqueles
para ofertar-lhe.
O pobre
selvagem ergueu os olhos ao céu num assomo de desespero, como para ver se,
colocado duzentos palmos acima da terra, sobre as grimpas da árvore, poderia
estender a mão e colher estrelas que deitasse aos pés de Cecília.
Assim,
era esse o ponto onde se irradiavam aquelas três linhas partidas de pontos tão
diferentes. De maneira por que estavam colocados, formavam um verdadeiro
triângulo, cujo centro era a janela frouxamente iluminada.
Todos
eles arriscavam ou iam arriscar sua vida, unicamente para tocarem com a mão o
umbral da gelosia; e entretanto nem um pesava o perigo que ia correr; nem um
julgava que sua vida valesse a pena de mercadejar por ela um prazer.
É que
as paixões no deserto, e sobretudo no seio desta natureza grande e majestosa,
são verdadeiras epopéias do coração.
Capítulo IX: Amor
As
cortinas da janela cerraram-se; Cecília tinha-se deitado.
Junto
da inocente menina adormecida na isenção de sua alma pura de virgem, velavam
três sentimentos profundos, palpitavam três corações bem diferentes.
Em
Loredano, o aventureiro de baixa extração, esse sentimento era um desejo
ardente, uma sede de gozo, uma febre que lhe requeimava o sangue; o instinto
brutal dessa natureza vigorosa era ainda aumentado pela impossibilidade moral
que a sua condição criava, pela barreira que se elevava entre ele, pobre
colono, e a filha de D. Antônio de Mariz, rico fidalgo de solar e brasão.
Para
destruir esta barreira e igualar as posições, seria necessário um acontecimento
extraordinário, um fato que alterasse completamente as leis da sociedade
naquele tempo mais rigorosas do que hoje; era preciso uma dessas situações em face
das quais os indivíduos, qualquer que seja a sua hierarquia, nobres e párias,
nivelam-se; e descem ou sobem à condição de homens.
O
aventureiro compreendia isto; talvez que o seu espírito italiano já tivesse
sondado o alcance dessa idéia; em todo o caso o que afirmamos é que ele
esperava, e esperando vigiava o seu tesouro com um zelo e uma constância a toda
a prova; os vinte dias que passara no Rio de Janeiro tinham sido verdadeiro
suplício.
Em
Álvaro, cavalheiro delicado e cortês, o sentimento era uma afeição nobre e
pura, cheia de graciosa timidez que perfuma as primeiras flores do coração, e
do entusiasmo cavalheiresco que tanta poesia dava aos amores daquele tempo de
crença e lealdade.
Sentir-se
perto de Cecília vê-la e trocar alguma palavra a custo balbuciada; corarem
ambos sem saberem por quê, e fugirem desejando encontrar-se; era toda a
história desse afeto inocente, que se entregava descuidosamente ao futuro,
librando-se nas asas da esperança.
Nesta
noite Álvaro ia dar um passo que na sua habitual timidez, ele comparava quase
com um pedido formal de casamento; tinha resolvido fazer a moça aceitar,
malgrado seu, o mimo que recusara, deitando-o na sua janela; esperava que
encontrando-o no dia seguinte, Cecília lhe perdoaria o seu ardimento, e conservaria
a sua prenda.
Em Peri
o sentimento era um culto, espécie de idolatria fanática, na qual não entrava
um só pensamento de egoísmo; amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma
satisfação, mas para dedicar-se inteiramente a ela, para cumprir o menor dos
seus desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse
imediatamente uma realidade.
Ao
contrário dos outros ele não estava ali, nem por um ciúme inquieto, nem por uma
esperança risonha; arrostava a morte unicamente para ver se Cecília estava
contente, feliz e alegre; se não desejava alguma coisa que ele adivinharia no
seu rosto, e iria buscar nessa mesma noite, nesse mesmo instante.
Assim o
amor se transformava tão completamente nessas organizações, que apresentava
três sentimentos bem distintos; um era uma loucura, o outro uma paixão, o
último uma religião.
Loredano
desejava; Álvaro amava; Peri adorava. O aventureiro daria a vida para gozar; o
cavalheiro arrostaria a morte para merecer um olhar; o selvagem se mataria, se
preciso fosse, só para fazer Cecília sorrir.
Entretanto
nenhum desses três homens podia tocar a janela da moça, sem correr um risco
iminente; e isto pela posição em que se achava o quarto de Cecília.
Embora
o alicerce e a parede corressem a uma braça de distância da ribanceira, D. Antônio
de Mariz para defender esta parte do edifício tinha feito construir um respaldo
que se abaixava da precinta das janelas até à beira da esplanada; era
impossível pois caminhar sobre este plano inclinado, cuja face lisa e polida
não oferecia nenhuma adesão ao pé o mais firme e o mais seguro.
Abaixo
da janela abria-se a rocha cortada a pique e formava um valado profundo,
coberto por um dossel verde de trepadeiras e cipós que servia de habitação a
todos esses répteis de mil formas que pululam na sombra e na umidade.
Assim o
homem que se precipitasse do alto da esplanada nessa fenda larga e funda, se
por um milagre não se espedaçasse nas pontas da rocha, seria devorado em um
momento pelas cobras e insetos venenosos que enchiam essas grotas e alcantis.
Havia
alguns instantes que a cortina da janela se tinha cerrado; apenas uma luz vaga
e mortiça desenhava na folhagem verde-negro do óleo o quadro da janela.
O
italiano que tinha os olhos fitos nesse reflexo como em um espelho, onde revia
todas as imagens de sua louca paixão, estremeceu de repente. Na claridade
debuxava-se uma sombra móbil; um homem se aproximava da janela.
Pálido,
com os olhos ardentes e os dentes cerrados, pendido sobre o precipício, seguia
as menores evoluções da sombra.
Viu um
braço que se estendia para a janela, e a mão que deixava no parapeito um objeto
qualquer, mas tão pequeno que não se percebia a forma. Pela manga larga do
gibão, ou antes pelo instinto, o italiano adivinhou que este braço pertencia a
Álvaro; e compreendeu o que esta mão havia deitado na janela.
E não
se enganava.
Álvaro,
segurando-se a uma estaca do jardim e pondo um pé sobre o respaldo, coseu o
corpo à parede; inclinando conseguiu realizar o seu intento.
Depois
voltou partilhado entre o temor da ação que praticara, e a esperança de que
Cecília lhe perdoaria.
Loredano
apenas viu desaparecer a sombra, e ouviu os ecos dos passos do moço, que se
repercutiam surdamente no fundo do precipício, sorriu. Sua pupila fulva brilhou
na treva, como os olhos da irara.
Tirou a
sua adaga e cravou-a na parede tão longe quanto lhe permitiu a curva que o
braço era obrigado a fazer para abarcar o ângulo.
Suspendendo-se
então a este fraco apoio pôde galgar o respaldo e aproximar-se da janela; à
menor indecisão, ao menor movimento, bastava que o pé lhe faltasse, ou que o
punhal vacilasse no cimento, para precipitar-se com a cabeça sobre as pedras.
Enquanto
isto se passava, Peri sentado tranqüilamente no galho do óleo, e escondido pela
folhagem, assistia imóvel a toda esta cena.
Logo
que Cecília cerrou as cortinas da janela, o índio vira os dois homens que
colocados à direita e a esquerda pareciam esperar.
Esperou
também, curioso de saber o que se ia passar, mas resolvido, se fosse preciso, a
lançar-se de um pulo sobre aquele que ousasse fazer a menor violência, e a
caírem ambos do alto da esplanada. Tinha reconhecido Álvaro e Loredano; desde
muito tempo que conhecia o amor do cavalheiro por Cecília; mas sobre o italiano
nunca tivera a menor suspeita.
O que
podiam querer estes dois homens? Que vinham eles fazer ali àquela hora
silenciosa da noite?
O
movimento de Álvaro explicou-lhe parte do enigma; o de Loredano ia fazer-lhe
compreender o resto.
Com
efeito, o italiano que se aproximara da janela, conseguiu com um esforço fazer
cair o objeto, que Álvaro aí tinha deixado, no fundo do precipício. Nisto
voltou do mesmo modo, e retirou-se o prazer dessa vingança simples, mas cujo
alcance ele previa.
Peri
não se moveu.
Tinha
compreendido com a sua sagacidade natural o amor de um e o ciúme do outro; e
formulou na sua inteligência selvagem e na sua adoração fanática um pensamento,
que para ele era muito simples.
Se
Cecília julgasse que isto devia ser assim, pouco lhe importava o mais; porém,
se o que tinha visto lhe causasse uma sombra de tristeza, e empanasse um
momento o brilho de seus olhos azuis, então era diferente. O índio sacrificaria
tudo, antes do que consentir que um pesar anuviasse o rostinho faceiro de sua
bela senhora.
Assim,
tranquilizado por esta ideia, ganhou a cabana, e dormiu sonhando que a lua lhe
mandava um raio de sua luz branca e acetinada para dizer-lhe que protegesse sua
filha na terra.
E com
efeito, a lua se elevava sobre a cúpula das árvores, e iluminava a fachada do
edifício.
Então
quem se aproximasse de uma das janelas que ficavam na extrema do jardim, veria
na penumbra do portal um vulto imóvel.
Era
Isabel que velava pensativa, enxugando de vez em quando uma lágrima que
desfiava-lhe pela face.
Pensava
no seu amor infeliz, na solidão de sua alma, tão erma de recordações doces, de
esperanças queridas. Toda essa tarde fora um martírio para ela; vira Álvaro
falar a Cecília, adivinhara quase as suas palavras. Há poucos momentos tinha
percebido a sombra do moço que atravessara a esplanada, e sabia que não era por
sua causa que ele passava.
De vez
em quando seus lábios tremiam e deixavam escaparem-se algumas palavras
imperceptíveis:
—Se eu
quisesse!
Tirava
do seio uma redoma de ouro, sob cuja tampa de cristal se via um anel de cabelos
que se enroscava no estreito aro de metal.
O que
havia dentro desta redoma, de tão poderoso, de tão forte, que justificasse
aquela exclamação, e o olhar brilhante que iluminava a pupila negra de Isabel?
Seria
um segredo, um desses segredos terríveis que mudam de repente a face das
coisas, e fazem surgir o passado para esmagar o presente?
Seria
algum tesouro inestimável e fabuloso, a cuja sedução a natureza humana não
devia resistir?
Seria
uma arma poderosa e invencível, contra a qual não houvesse defesa possível
senão em um milagre da Providência? Era o pó sutil do curare, o veneno terrível
dos selvagens. Isabel colou os lábios no cristal com uma espécie de delírio.
—Minha
mãe!... minha mãe!.. Um soluço rompeu-lhe o seio.oça recebera, pensou que podia
dar-lhe a sua vida, mas que não tinha primores como aqueles para ofertar-lhe.
O pobre
selvagem ergueu os olhos ao céu num assomo de desespero, como para ver se,
colocado duzentos palmos acima da terra, sobre as grimpas da árvore, poderia
estender a mão e colher estrelas que deitasse aos pés de Cecília.
Assim,
era esse o ponto onde se irradiavam aquelas três linhas partidas de pontos tão
diferentes. De maneira por que estavam colocados, formavam um verdadeiro
triângulo, cujo centro era a janela frouxamente iluminada.
Todos
eles arriscavam ou iam arriscar sua vida, unicamente para tocarem com a mão o
umbral da gelosia; e entretanto nem um pesava o perigo que ia correr; nem um
julgava que sua vida valesse a pena de mercadejar por ela um prazer.
É que
as paixões no deserto, e sobretudo no seio desta natureza grande e majestosa,
são verdadeiras epopéias do coração.