Capítulo VII: A Prece
A tarde ia morrendo.
O sol declinava no horizonte e deitava-se sobre as grandes florestas, que iluminava com os seus últimos raios.
A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando pela verde alcatifa, enrolava-se como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das árvores.
Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas e delicadas; e o ouricuri abria as suas palmas mais novas, para receber no seu cálice o orvalho da noite. Os animais retardados procuravam a pousada; enquanto a juriti, chamando a companheira, soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia.
Um concerto de notas graves saudava o pôr-dosol, e confundia-se com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua queda, e ceder à doce influência da tarde.
Era a Ave-Maria.
Como é solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa do crepúsculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite!
Essas grandes sombras das árvores que se estendem pela planície; essas gradações infinitas da luz pelas quebradas da montanha; esses raios perdidos, que, esvazando-se pelo rendado da folhagem, vão brincar um momento sobre a areia; tudo respira uma poesia imensa que enche a alma.
O urutau no fundo da mata solta as suas notas graves e sonoras, que, reboando pelas longas crastas de verdura, vão ecoar ao longe como o toque lento e pausado do ângelus.
A brisa, rogando as grimpas da floresta, traz um débil sussurro, que parece o último eco dos rumores do dia, ou o derradeiro suspiro da tarde que morre.
Todas as pessoas reunidas na esplanada sentiam mais ou menos a impressão poderosa desta hora solene, e cediam involuntariamente a esse sentimento vago, que não é bem tristeza, mas respeito misturado de um certo temor.
De repente, os sons melancólicos de um clarim prolongaram-se pelo ar quebrando o concerto da tarde; era um dos aventureiros que tocava a Ave-Maria.
Todos se descobriram.
D. Antônio de Mariz, adiantando-se até à beira da esplanada para o lado do ocaso, tirou o chapéu e ajoelhou.
Ao redor dele vieram grupar-se sua mulher, as duas moças, Álvaro e D. Diogo; os aventureiros, formando um grande arco de círculo, ajoelharam-se a alguns passos de distância.
O sol com seu último reflexo esclarecia a barba e os cabelos brancos do velho fidalgo, e realçava a beleza daquele basto de antigo cavalheiro.
Era uma cena ao mesmo tempo simples e majestosa a que apresentava essa prece meio cristã, meio selvagem; em todos aqueles rostos, iluminados pelos raios do ocaso, respirava um santo respeito.
Loredano foi o único que conservou o seu sorriso desdenhoso, e seguia com o mesmo olhar torvo os menores movimentos de Álvaro, ajoelhado perto de Cecília e embebido em contemplá-la, como se ela fosse a divindade a quem dirigia a sua prece.
Durante o momento em que o rei da luz, suspenso no horizonte, lançava ainda um olhar sobre a terra, todos se concentravam em um fundo recolhimento, e diziam uma oração muda, que apenas agitava imperceptivelmente os lábios.
Por fim o sol escondeu-se; Aires Gomes estendeu o mosquete sobre o precipício, e um tiro saudou o ocaso.
Era noite.
Todos se ergueram; os aventureiros cortejaram e foram-se retirando a pouco e pouco.
Cecília ofereceu a fronte ao beijo de seu pai e de sua mãe, e fez uma graciosa mesura a seu irmão e a Álvaro.
Isabel tocou com os lábios a mão de seu tio, e curvou-se em face de D. Lauriana para receber uma bênção lançada com a dignidade e altivez de um abade.
Depois, a família chegando-se para junto da porta, dispôs-se a passar um desses curtos serões que outrora precediam à simples mas suculenta ceia.
Álvaro, em atenção a ser o seu primeiro dia de chegada, fora emprazado pelo velho fidalgo para tomar parte nessa colação da família, o que havia recebido como um favor imenso.
O que explicava esse apreço e grande valor dado por ele a um tão simples convite, era o regime caseiro que D. Lauriana havia estabelecido na sua habitação.
Os aventureiros e seus chefes viviam num lado da casa inteiramente separados da família; durante o dia corriam os matos e ocupavam-se com a caça ou com diversos trabalhos de cordoagem e marcenaria.
Era unicamente na hora da prece que se reuniam um momento na esplanada, onde, quando o tempo estava bom, as damas vinham também fazer a sua oração da tarde.
Quanto à família, esta conservava-se sempre retirada no interior da casa durante a semana; o domingo era consagrado ao repouso, à distração e à alegria; então deva-se às vezes um acontecimento extraordinário como um passeio, uma caçada, ou uma volta em canoa pelo rio.
Já se vê pois a razão por que Álvaro tinha tantos desejos, como dizia o italiano, de chegar ao Paquequer em um sábado, e antes das seis horas; o moço sonhava com a aventura desses curtos instantes de contemplação e com a liberdade do domingo, que lhe ofereceria talvez ocasião de arriscar uma palavra.
Formado o grupo da família, a conversa travou-se entre D. Antônio de Mariz, Álvaro e D. Lauriana; Diogo ficara um pouco retirado; as moças, tímidas, escutavam, e quase nunca se animavam a dizer uma palavra sem que se dirigissem diretamente a elas, o que rara vez sucedia.
Álvaro, desejoso de ouvir a voz doce e argentina de Cecília, da qual ele tinha saudade pelo muito tempo que não a escutava, procurou um pretexto que a chamasse à conversa.
—Esquecia-me contar-vos, Sr. D. Antônio, disse ele aproveitando-se de uma pausa, um dos incidentes da nossa viagem.
—Qual? Vejamos, respondeu o fidalgo.
—A coisa de quatro léguas daqui encontramos Peri.
—Inda bem! disse Cecília; há dois dias que não sabemos notícias dele.
—Nada mais simples, replicou o fidalgo; ele corre todo este sertão.
—Sim! tornou Álvaro, mas o modo por que o encontramos é que não vos parecerá tão simples.
—O que fazia então?
—Brincava com uma onça como vós com o vosso veadinho, D. Cecília.
—Meu Deus! exclamou a moça soltando um grito.
—Que tens, menina? perguntou D. Lauriana.
—É que ele deve estar morto a esta hora, minha mãe.
—Não se perde grande coisa, respondeu a senhora.
—Mas eu serei a causa de sua morte!
—Como assim, minha filha? disse D. Antônio.
—Vede vós, meu pai, respondeu Cecília enxugando as lágrimas que lhe saltavam dos olhos; conversava quinta-feira com Isabel, que tem grande medo de onças, e brincando, disse-lhe que desejava ver uma viva!...
—E Peri a foi buscar para satisfazer o teu desejo, replicou o fidalgo rindo. Não há que admirar. Outras tem ele feito.
—Porém, meu pai, isto é coisa que se faça! A onça deve tê-lo morto.
—Não vos assusteis, D. Cecília; ele saberá defender-se.
—E vós, Sr. Álvaro, por que não o ajudastes a defender-se? disse a moça sentida.
—Oh! se vísseis a raiva com que ficou por querermos atirar sobre o animal!
E o moço contou parte da cena passada na floresta.
—Não há dúvida, disse D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecília quis fazer-lhe a vontade com risco de vida. É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenho visto nesta terra, o caráter desse índio. Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de um selvagem!
A conversa continuou; mas Cecília tinha ficado triste, não tomou mais parte nela.
D. Lauriana retirou-se para dar as suas ordens; o velho fidalgo e o moço conversaram até oito horas, em que o toque de uma campa no terreiro da casa veio anunciar a ceia.
Enquanto os outros subiam os degraus da porta e entravam na habitação, Álvaro achou ocasião de trocar algumas palavras com Cecília.
—Não me perguntais pelo que me ordenastes, D. Cecília? disse ele à meia voz.
—Ah! sim! trouxestes todas as coisas que vos pedi?
—Todas e mais... disse o moço balbuciando.
—E mais o quê? perguntou Cecília.
—E mais uma coisa que não pedistes.
—Esta não quero! respondeu a moça com um ligeiro enfado.
—Nem por vos pertencer já? replicou ele timidamente.
—Não entendo. É uma coisa que já me pertence, dizeis?
—Sim; porque é uma lembrança vossa.
—Nesse caso guardai-a, Sr. Álvaro, disse ela sorrindo, e guardai-a bem.
E fugindo, foi ter com seu pai, que chegava à varanda, e em presença dele recebeu de Álvaro um pequeno cofre, que o moço fez conduzir, e que continha as suas encomendas. Estas consistiam em jóias, sedas, espiguilhas de linho, fitas, glacês, holandês, e um lindo par de pistolas primorosamente embutidas.
Vendo essas armas, a moça soltou um suspiro abafado e murmurou consigo:
—Meu pobre Peri! Talvez já não te sirvam nem para te defenderes.
A ceia foi longa e pausada, como costumava ser naqueles tempos em que a refeição era uma ocupação séria, e a mesa um altar que se respeitava.
Durante a colação, Álvaro esteve descontente pela recusa que a moça fizera do modesto presente que ele havia acariciado com tanto amor e tanta esperança.
Logo que seu pai ergueu-se, Cecília recolheu ao seu quarto, e ajoelhando diante do crucifixo, fez a sua oração. Depois, erguendo-se, foi levantar um canto da cortina da janela e olhar a cabana que se erguia na ponta do rochedo, e estava deserta e solitária.
Sentia apertar-se o coração com a idéia de que, por um gracejo, tivesse sido a causa da morte desse amigo dedicado que lhe salvara a vida, e arriscava todos os dias a sua somente para fazê-la sorrir.
Tudo nesta recâmara lhe falava dele: suas aves, seus dois amiguinhos que dormiam, um no seu ninho e outro sobre o tapete, as penas que serviam de ornato ao aposento, as peles dos animais que seus pés rogavam, o perfume suave de benjoim que ela respirava; tudo tinha vindo do índio, que, como um poeta ou um artista, parecia criar em torno dela um pequeno templo dos primores da natureza brasileira.
Ficou assim a olhar pela janela muito tempo; nessa ocasião nem se lembrava de Álvaro, o jovem cavalheiro elegante, tão delicado, tão tímido, que corava diante dela, como ela diante dele.
De repente a moça estremeceu.
Tinha visto a luz das estrelas passar um vulto que ela reconheceu pela alvura de sua túnica de algodão, e pelas formas esbeltas e flexíveis; quando o vulto entrou na cabana, não lhe restou a menor dúvida.
Era Peri.
Sentiu-se aliviada de um grande peso; e pôde então entregar-se ao prazer de examinar um por um, com toda a atenção, os lindos objetos que recebera, e que lhe causavam um vivo prazer.
Nisto gastou seguramente meia hora; depois deitou-se, e como já não tinha inquietação nem tristeza, adormeceu sorrindo à imagem de Álvaro e pensando na mágoa que lhe fizera, recusando o seu mimo.
Capítulo VIII: Três Linhas
Tudo estava em sossego; apenas quando o vento escasseava, ouvia-se do lado do edifício habitado pelos aventureiros um rumor de vozes abafadas.
A esta hora, havia naquele lagar três homens bem diferentes pelo seu caráter, pela sua posição e pela sua origem, que entretanto tinham uma mesma idéia.
Separados pelos costumes e pela distância, os seus espíritos quebravam essa barreira moral e física, e se reuniam num só pensamento, convergindo para um mesmo ponto como os raios de um círculo.
Sigamos pois cada uma das linhas traçadas por essas existências, que mais cedo ou mais tarde hão de cruzar-se no seu vértice.
Numa das alpendradas que corriam no fundo da casa, trinta e seis aventureiros cercavam uma longa mesa, no meio da qual trescalavam em escudelas de pau algumas peças de caça, já estreadas de uma maneira que fazia honra ao apetite dos convivas.
O catalão não corria nos canjirões de louça e de metal com tanta fartura quanta era de desejar; mas, em compensação, viam-se aos cantos do alpendre, grossas talhas cheias de vinho de caju e ananás, onde os aventureiros podiam beber à larga.
O vício tinha suprido os licores europeus pelas bebidas selvagens; afora uma pequena diferença de sabor, havia no fundo de todas elas o álcool que excita o espírito, e produz a embriaguez.
A colação começara há meia hora; nos primeiros momentos não se ouviu senão o mastigar dos dentes, os beijos dados aos canjirões, e o ranger da faca na escudela.
Depois, um dos aventureiros proferiu uma palavra, cuja réplica correu imediatamente à roda da mesa; a conversa tornou-se uma espécie de coro confuso e discordante.
Foi no meio desta algazarra que um dos convivas, erguendo a voz, lançou estas palavras:
—E vós, Loredano, nada dizeis? Estais aí que não há modo de vos ouvir uma palavra!
—Certo, acudiu outro, Bento Simões diz verdade; se não é a fome que vos traz mudo, algo tendes, misser italiano.
—Voto a Deus, Martim Vaz, disse um terceiro, que são penares por alguma moçoila que andou reqüestando em São Sebastião.
—Tirai-vos lá com os vossos penares, Rui Soeiro; achais que Loredano seja homem de se amofinar por coisa de tal jaez?
—E por que não, Vasco Afonso? Todos calçamos pelo mesmo sapato, em que o aperte mais a uns do que a outros.
—Não julgueis os mais por vós, dom namorado; homens há que trazem seu pensamento empregado em coisa de mor valia do que requebros e galanteios.
O italiano conservava-se taciturno, e deixava que os outros o trouxessem à baila, sem dar-se por achado: era fácil de ver que ele seguia com afinco uma idéia que lhe trabalhava no espírito.
—Mas, por Deus, continuou Bento Simões, falai-nos do que vistes na vossa viagem, Loredano; apostaria que alguma vos sucedeu!
—Ide com o que vos digo, retrucou Rui Soeiro, misser italiano está penado de amores.
—E por quem, se vos parece? perguntaram alguns.
—Ora, não custa sabê-lo; por aquele canjirão de vinho que aí lhe está fronteiro; não vedes que olhos que lhe deita?
Os aventureiros largaram-se a rir, aplaudindo a lembrança.
Aires Comes apareceu à porta do saguão.
—Eia, rapazes! disse ele com uma voz que se esforçava por tornar severa. Leva rumor!
—É um dia de chegada, sr. escudeiro; e deveis levá-lo em conta, acudiu Rui Soeiro.
Aires sentou-se, e começou a fazer as honras a um resto de veado que estava em frente dele.
—Olá! vós outros, gritou ele, com a boca cheia, para dois aventureiros que se haviam levantado; ide encher vosso quarto, que já refizestes, e os mais esperam sua vez.
Os dois aventureiros saíram para ir revezar os outros, que era costume ficarem de sentinela à noite; medida esta necessária naquele tempo.
—Estais hoje muito severo, Sr. Aires Gomes, disse Martim Vaz.
—Aquele que dá as ordens, sabe o que faz; a nós cumpre obedecer, respondeu o escudeiro.
—Ah! por que não dizíeis isto logo?
—Pois ficareis agora entendidos; boa guarda, que talvez breve tenhamos que ver.
—Venha isso, acudiu Bento Simões, que já me enfastio de atirar às pacas e porcos do mato.
—E em honra de quem pensais vós que queimaremos breve algumas libras de pólvora? perguntou Vasco Afonso.
—Tem que saber isso? Quem, senão os índios, nos dão esta folia?
Loredano ergueu a cabeça.
—Que histórias contais aí? Supondes que os índios nos atacarão? perguntou ele.
—Oh! eis misser italiano que acorda; foi preciso cheirar-lhe a chamusco, exclamou Martim Vaz.
A presença de Aires Gomes, reprimindo a franca hilaridade dos aventureiros, fez com que fossem uns após outros desamparando a mesa, e deixassem o escudeiro na companhia dos canjirões e escudelas.
Loredano, levantando-se, fez um gesto a Rui Soeiro e a Bento Simões; e os três seguiram juntos até ao meio do terreiro; o italiano murmurou-lhes ao ouvido uma simples palavra:
—Amanhã!
Depois, como se nada se tivesse passado entre eles, os dois aventureiros seguiram cada um de seu lado, e deixaram Loredano continuar o seu caminho até à beira do precipício.
Do lado oposto, o italiano viu refletir-se sobre as árvores o tênue reflexo da luz que esclarecia o quarto de Cecília, cujas janelas não podia distinguir por causa do ângulo que formava a esplanada.
Aí esperou.
Álvaro, deixando Cecília, voltara triste e sentido da recusa que sofrera, embora o consolasse a sua última palavra, e sobretudo o sorriso que a acompanhou.
Não se podia resignar à perda desse prazer infinito com que havia contado, de ver nos ornatos da moça uma prenda sua, uma lembrança que lhe dissesse que pensava nele. Tinha afagado tanto essa idéia, tinha vivido tanto tempo dela, que arrancá-la do seu espírito seria um sofrimento cruel.
Enquanto atravessava o espaço que o separava do seu aposento, formulou um projeto e tomou uma resolução. Meteu numa pequena bolsa de seda uma caixinha de jóias; e envolvendo-se no seu manto, costeou a casa e aproximou-se do pequeno jardim que entestava com o gabinete de Cecília.
Também ele viu a luz das janelas se refletir defronte; e esperou que a noite se adiantasse, e toda a casa dormisse.
Ao tempo que isto se passava, Peri, o índio que já conhecemos, tinha chegado com o seu fardo, tão precioso que não o trocaria por um tesouro.
No valado que se estendia à beira do rio, deixou o seu prisioneiro, depois de o ter metido numa espécie de tronco que arranjou, curvando um galho de árvore. Subiu então à esplanada, e foi nesta ocasião que a moça o viu entrar na sua cabana; o que porém não pôde distinguir, foi a maneira por que saíra quase logo.
Havia dois dias que não via sua senhora, que não recebia dela uma ordem, que não adivinhava um desejo seu para satisfazê-lo imediatamente.
O primeiro pensamento do índio, foi pois ver Cecília, ou ao menos a sua sombra; entrando na cabana percebeu, como os outros, a réstia de luz que coava entre as cortinas da janela.
Suspendeu-se a uma das palmeiras que servia de esteio à choça, e por um desses movimentos ágeis que lhe eram tão naturais, de um salto segurou-se ao galho de um óleo gigante que, elevando-se sobre a encosta fronteira, deitava alguns ramos do lado da casa.
Durante um momento o índio pairou sobre o abismo, balançando-se no galho fraco que o sustinha; depois equilibrou-se e continuou essa viagem aérea com a mesma segurança e a mesma firmeza com que um velho marinheiro caminha sobre as gáveas e sobre as enxárcias.
Com uma ligeireza extraordinária ganhou o outro lado da árvore e, escondido pela folhagem, aproximou-se até um galho que ficava fronteiro das janelas de Cecília cerca de uma braça. Era nesse mesmo momento que Loredano chegava de um lado e Álvaro de outro, e se colocavam igualmente a alguns passos.
A princípio, Peri só teve olhos para ver o que se passava dentro do aposento: Cecília examinava ainda por uma última vez as encomendas que lhe haviam chegado do Rio de Janeiro.
Nessa muda contemplação, o índio esqueceu tudo. Que lhe importava o precipício que se abria a seus pés para tragá-lo ao menor movimento, e sobre o qual planava num ramo fraco que vergava e se podia partir a todo o instante!
Era feliz: tinha visto sua senhora; ela estava alegre, contente e satisfeita; podia ir dormir e repousar.
Uma lembrança triste porem o assaltou; vendo os lindos objetos que a moça recebera, pensou que podia dar-lhe a sua vida, mas que não tinha primores como aqueles para ofertar-lhe.
O pobre selvagem ergueu os olhos ao céu num assomo de desespero, como para ver se, colocado duzentos palmos acima da terra, sobre as grimpas da árvore, poderia estender a mão e colher estrelas que deitasse aos pés de Cecília.
Assim, era esse o ponto onde se irradiavam aquelas três linhas partidas de pontos tão diferentes. De maneira por que estavam colocados, formavam um verdadeiro triângulo, cujo centro era a janela frouxamente iluminada.
Todos eles arriscavam ou iam arriscar sua vida, unicamente para tocarem com a mão o umbral da gelosia; e entretanto nem um pesava o perigo que ia correr; nem um julgava que sua vida valesse a pena de mercadejar por ela um prazer.
É que as paixões no deserto, e sobretudo no seio desta natureza grande e majestosa, são verdadeiras epopéias do coração.
Capítulo IX: Amor
As cortinas da janela cerraram-se; Cecília tinha-se deitado.
Junto da inocente menina adormecida na isenção de sua alma pura de virgem, velavam três sentimentos profundos, palpitavam três corações bem diferentes.
Em Loredano, o aventureiro de baixa extração, esse sentimento era um desejo ardente, uma sede de gozo, uma febre que lhe requeimava o sangue; o instinto brutal dessa natureza vigorosa era ainda aumentado pela impossibilidade moral que a sua condição criava, pela barreira que se elevava entre ele, pobre colono, e a filha de D. Antônio de Mariz, rico fidalgo de solar e brasão.
Para destruir esta barreira e igualar as posições, seria necessário um acontecimento extraordinário, um fato que alterasse completamente as leis da sociedade naquele tempo mais rigorosas do que hoje; era preciso uma dessas situações em face das quais os indivíduos, qualquer que seja a sua hierarquia, nobres e párias, nivelam-se; e descem ou sobem à condição de homens.
O aventureiro compreendia isto; talvez que o seu espírito italiano já tivesse sondado o alcance dessa idéia; em todo o caso o que afirmamos é que ele esperava, e esperando vigiava o seu tesouro com um zelo e uma constância a toda a prova; os vinte dias que passara no Rio de Janeiro tinham sido verdadeiro suplício.
Em Álvaro, cavalheiro delicado e cortês, o sentimento era uma afeição nobre e pura, cheia de graciosa timidez que perfuma as primeiras flores do coração, e do entusiasmo cavalheiresco que tanta poesia dava aos amores daquele tempo de crença e lealdade.
Sentir-se perto de Cecília vê-la e trocar alguma palavra a custo balbuciada; corarem ambos sem saberem por quê, e fugirem desejando encontrar-se; era toda a história desse afeto inocente, que se entregava descuidosamente ao futuro, librando-se nas asas da esperança.
Nesta noite Álvaro ia dar um passo que na sua habitual timidez, ele comparava quase com um pedido formal de casamento; tinha resolvido fazer a moça aceitar, malgrado seu, o mimo que recusara, deitando-o na sua janela; esperava que encontrando-o no dia seguinte, Cecília lhe perdoaria o seu ardimento, e conservaria a sua prenda.
Em Peri o sentimento era um culto, espécie de idolatria fanática, na qual não entrava um só pensamento de egoísmo; amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se inteiramente a ela, para cumprir o menor dos seus desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse imediatamente uma realidade.
Ao contrário dos outros ele não estava ali, nem por um ciúme inquieto, nem por uma esperança risonha; arrostava a morte unicamente para ver se Cecília estava contente, feliz e alegre; se não desejava alguma coisa que ele adivinharia no seu rosto, e iria buscar nessa mesma noite, nesse mesmo instante.
Assim o amor se transformava tão completamente nessas organizações, que apresentava três sentimentos bem distintos; um era uma loucura, o outro uma paixão, o último uma religião.
Loredano desejava; Álvaro amava; Peri adorava. O aventureiro daria a vida para gozar; o cavalheiro arrostaria a morte para merecer um olhar; o selvagem se mataria, se preciso fosse, só para fazer Cecília sorrir.
Entretanto nenhum desses três homens podia tocar a janela da moça, sem correr um risco iminente; e isto pela posição em que se achava o quarto de Cecília.
Embora o alicerce e a parede corressem a uma braça de distância da ribanceira, D. Antônio de Mariz para defender esta parte do edifício tinha feito construir um respaldo que se abaixava da precinta das janelas até à beira da esplanada; era impossível pois caminhar sobre este plano inclinado, cuja face lisa e polida não oferecia nenhuma adesão ao pé o mais firme e o mais seguro.
Abaixo da janela abria-se a rocha cortada a pique e formava um valado profundo, coberto por um dossel verde de trepadeiras e cipós que servia de habitação a todos esses répteis de mil formas que pululam na sombra e na umidade.
Assim o homem que se precipitasse do alto da esplanada nessa fenda larga e funda, se por um milagre não se espedaçasse nas pontas da rocha, seria devorado em um momento pelas cobras e insetos venenosos que enchiam essas grotas e alcantis.
Havia alguns instantes que a cortina da janela se tinha cerrado; apenas uma luz vaga e mortiça desenhava na folhagem verde-negro do óleo o quadro da janela.
O italiano que tinha os olhos fitos nesse reflexo como em um espelho, onde revia todas as imagens de sua louca paixão, estremeceu de repente. Na claridade debuxava-se uma sombra móbil; um homem se aproximava da janela.
Pálido, com os olhos ardentes e os dentes cerrados, pendido sobre o precipício, seguia as menores evoluções da sombra.
Viu um braço que se estendia para a janela, e a mão que deixava no parapeito um objeto qualquer, mas tão pequeno que não se percebia a forma. Pela manga larga do gibão, ou antes pelo instinto, o italiano adivinhou que este braço pertencia a Álvaro; e compreendeu o que esta mão havia deitado na janela.
E não se enganava.
Álvaro, segurando-se a uma estaca do jardim e pondo um pé sobre o respaldo, coseu o corpo à parede; inclinando conseguiu realizar o seu intento.
Depois voltou partilhado entre o temor da ação que praticara, e a esperança de que Cecília lhe perdoaria.
Loredano apenas viu desaparecer a sombra, e ouviu os ecos dos passos do moço, que se repercutiam surdamente no fundo do precipício, sorriu. Sua pupila fulva brilhou na treva, como os olhos da irara.
Tirou a sua adaga e cravou-a na parede tão longe quanto lhe permitiu a curva que o braço era obrigado a fazer para abarcar o ângulo.
Suspendendo-se então a este fraco apoio pôde galgar o respaldo e aproximar-se da janela; à menor indecisão, ao menor movimento, bastava que o pé lhe faltasse, ou que o punhal vacilasse no cimento, para precipitar-se com a cabeça sobre as pedras.
Enquanto isto se passava, Peri sentado tranqüilamente no galho do óleo, e escondido pela folhagem, assistia imóvel a toda esta cena.
Logo que Cecília cerrou as cortinas da janela, o índio vira os dois homens que colocados à direita e a esquerda pareciam esperar.
Esperou também, curioso de saber o que se ia passar, mas resolvido, se fosse preciso, a lançar-se de um pulo sobre aquele que ousasse fazer a menor violência, e a caírem ambos do alto da esplanada. Tinha reconhecido Álvaro e Loredano; desde muito tempo que conhecia o amor do cavalheiro por Cecília; mas sobre o italiano nunca tivera a menor suspeita.
O que podiam querer estes dois homens? Que vinham eles fazer ali àquela hora silenciosa da noite?
O movimento de Álvaro explicou-lhe parte do enigma; o de Loredano ia fazer-lhe compreender o resto.
Com efeito, o italiano que se aproximara da janela, conseguiu com um esforço fazer cair o objeto, que Álvaro aí tinha deixado, no fundo do precipício. Nisto voltou do mesmo modo, e retirou-se o prazer dessa vingança simples, mas cujo alcance ele previa.
Peri não se moveu.
Tinha compreendido com a sua sagacidade natural o amor de um e o ciúme do outro; e formulou na sua inteligência selvagem e na sua adoração fanática um pensamento, que para ele era muito simples.
Se Cecília julgasse que isto devia ser assim, pouco lhe importava o mais; porém, se o que tinha visto lhe causasse uma sombra de tristeza, e empanasse um momento o brilho de seus olhos azuis, então era diferente. O índio sacrificaria tudo, antes do que consentir que um pesar anuviasse o rostinho faceiro de sua bela senhora.
Assim, tranquilizado por esta ideia, ganhou a cabana, e dormiu sonhando que a lua lhe mandava um raio de sua luz branca e acetinada para dizer-lhe que protegesse sua filha na terra.
E com efeito, a lua se elevava sobre a cúpula das árvores, e iluminava a fachada do edifício.
Então quem se aproximasse de uma das janelas que ficavam na extrema do jardim, veria na penumbra do portal um vulto imóvel.
Era Isabel que velava pensativa, enxugando de vez em quando uma lágrima que desfiava-lhe pela face.
Pensava no seu amor infeliz, na solidão de sua alma, tão erma de recordações doces, de esperanças queridas. Toda essa tarde fora um martírio para ela; vira Álvaro falar a Cecília, adivinhara quase as suas palavras. Há poucos momentos tinha percebido a sombra do moço que atravessara a esplanada, e sabia que não era por sua causa que ele passava.
De vez em quando seus lábios tremiam e deixavam escaparem-se algumas palavras imperceptíveis:
—Se eu quisesse!
Tirava do seio uma redoma de ouro, sob cuja tampa de cristal se via um anel de cabelos que se enroscava no estreito aro de metal.
O que havia dentro desta redoma, de tão poderoso, de tão forte, que justificasse aquela exclamação, e o olhar brilhante que iluminava a pupila negra de Isabel?
Seria um segredo, um desses segredos terríveis que mudam de repente a face das coisas, e fazem surgir o passado para esmagar o presente?
Seria algum tesouro inestimável e fabuloso, a cuja sedução a natureza humana não devia resistir?
Seria uma arma poderosa e invencível, contra a qual não houvesse defesa possível senão em um milagre da Providência? Era o pó sutil do curare, o veneno terrível dos selvagens. Isabel colou os lábios no cristal com uma espécie de delírio.
—Minha mãe!... minha mãe!.. Um soluço rompeu-lhe o seio.oça recebera, pensou que podia dar-lhe a sua vida, mas que não tinha primores como aqueles para ofertar-lhe.
O pobre selvagem ergueu os olhos ao céu num assomo de desespero, como para ver se, colocado duzentos palmos acima da terra, sobre as grimpas da árvore, poderia estender a mão e colher estrelas que deitasse aos pés de Cecília.
Assim, era esse o ponto onde se irradiavam aquelas três linhas partidas de pontos tão diferentes. De maneira por que estavam colocados, formavam um verdadeiro triângulo, cujo centro era a janela frouxamente iluminada.
Todos eles arriscavam ou iam arriscar sua vida, unicamente para tocarem com a mão o umbral da gelosia; e entretanto nem um pesava o perigo que ia correr; nem um julgava que sua vida valesse a pena de mercadejar por ela um prazer.
É que as paixões no deserto, e sobretudo no seio desta natureza grande e majestosa, são verdadeiras epopéias do coração.
No comments:
Post a Comment