Thursday, 5 June 2014

"Noites Rubras" by José Thiesen (in Portuguese)

CARTA DE JAIRO ALENCAR AO PADRE PEDRO BOGUCKI DATADA DE 15 DE MAIO DE 1975.

Obs.: esta carta não faz parte dos processos policiais sobre as mortes de Cláudio Sertório ou de Mônica Oliveira do Nascimento, pois foi mantida oculta pelo pe. Bogucki junto de seus papéis pessoais, tendo sido encontrada somente após a sua morte.


Querido padre Bogucki, estou lhe escrevendo, não sei bem porque e nem como.

Não sei como, porque o que lhe quero contar não está claro em minha mente. É assim como a memória de outro que não eu; mas, sim, é de mim que vou falar.

            Também não sei por que, uma vez que o lhe vou contar é tão estranho que, por certo o senhor não me vai crer.

O sangue que mancha este papel não é meu, mas de Mônica, minha namorada. Ainda tenho em meus olhos o sangue que corria de seu pescoço, o pescoço antes amado e que rasguei com minhas unhas.

            Mas preciso contar isso a alguém e nos conhecemos desde sempre, não é, padre Bogucki? Foi o senhor quem me batizou e me catequizou, muito mais que a dona Amélia, lembra?

            Deixe-me agora por os pensamentos em ordem e restabelecer a seqüência dos fatos. Tudo começou naquela noite horrível de 18 de Abril.

            O senhor se lembra do Cláudio, meu amigo desde os tempos de menino. Naquela noite eu e ele voltávamos duma boate. Era uma noite de serração, quente e úmida.

            Tínhamos chegado na Câncio Gomes e, derrepente, ouvimos um som de asas batendo; grandes asas batendo.

            Paramos para tentar entender aquele som unusual e, derrepente, coisa de um segundo, mesmo, Cláudio foi puxado pra cima, sumindo no nevoeiro.

            Ouvi o seu grito por um breve momento, mas quase imediatamente, o sangue dele começou a cair sobre mim num chuvisqueiro medonho.

            Não podia entender que fosse sangue assim, imediatamente. Só muito tempo depois realizei que era o sangue de Cláudio que caía na calçada e sobre mim. Então Cláudio caiu ao solo, perto de mim, com a cabeça... O senhor viu as fotos, não viu, quando a polícia o entrevistou?

            Eu estava apavorado, queria gritar mas não conseguia; estava em choque!

            Então eu também fui pego e erguido no ar e lembro-me apenas de ver, brilhando de dentro da névoa, uns olhos vermelhos, cheios de ódio. Eram olhos ferozes e a coisa que me tinha nos braços emanava um hálito de coisa podre.

            Eu comecei a chorar e ouvi aquilo que me sustentava no ar dizer qualquer coisa numa língua gutural que não entendi, na altura.

            Foi então que tudo ficou negro.

            Precisei de muito tempo para saber que estava morto.

            Acordei sete dias depois, na Gruta dos Bugres. O sol me incomodava demais e eu tentava desviar dele.

            Sentia uma sede terrível, uma fraqueza terrível e acabei por beber o sangue dum cachorro que encontrei vagando por ali. Serviu para saciar-me e voltei à gruta onde dormi até a noite.

            Me parecia que sonhava que estava voando, mas o fato é que acordei na porta de casa. Queria entrar, mas não pude e então apertei a campainha.

            Meu pai abriu a porta.

            Oh, que quer que lhe diga? Que houveram lágrimas? Claro que houveram, mas enquanto eu estava abraçado a meu pai, não podia desviar os olhos de sua jugular pulsando em seu pescoço, tão próxima a mim, e eu sedento!

            Por isso eu não podia entrar naquela casa; ela não era mais minha.

            Para mim, o meu pai, como todos vocês, agora, era apenas comida.

            Apesar disso estar claro para mim, faltava-me coragem para romper os laços. Ou melhor: faltava-me coragem para ver os laços já rompidos.

            Logo os policiais que vigiavam a casa de meus pais entraram para marcar o fato de que eu era a mais importante peça para investigar a morte de Cláudio.

            Mas a sujeira que me vestia, minha palidez e o mau cheiro que meu corpo exalava denunciavam que eu não tinha muitas condições de responder a qualquer questionário e afinal consentiram que eu ficasse na casa por dois dias e deixaram alguém do lado de fora, em vigia.

            Puseram-me na cama, deram-me a comer de qualquer coisa que já não lembro e fui pra cama, pra um sono sem sonhos.

            Acordei no meio da tarde com meus pais abrindo a porta para conferir se estava bem. Pude ver a reação deles ao mau cheiro que eu exalava no quarto fechado.

            - O dia está lindo, meu bem, não queres levantar-te?

            - Acho que não...

            - Estás doente?

            - Não. Só um pouco faminto.

            - Queres que te faça um sanduiche?

            - Não! Eu só preciso dormir um pouco mais.

            Deixaram-me e voltei a dormir até a noite chegar.

            Abri a janela para receber o frescor bom da noite e vi o policial de vigia em frente de casa.

            Mudei meu corpo para uma névoa leve e voei de minha janela até o quarto de Mônica.

            Não sei pra onde vou agora, padre Bogucki. Tenho 17 anos e o mundo é grande. Precisava de alguém que me dissesse o que fazer, mas já não tenho isso. Não ouso chegar perto de si ou de qualquer outro, por causa de minha fome e porque, de momento a momento sinto um ódio por vocês, tremendo, a crescer e crescer em mim.

            Como disse antes, não me parece que sou eu, mas outro agindo em mim e não entendo isso.

            Por favor, console os que feri e reze por mim.

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