Capítulo VII — A guerra
Itaquê esperava sentado na cabana e cercado do carbeto dos anciões.
Jurandyr entrou; Aracy ficou na porta, orgulhosa do esposo que a conquistara e da admiração que ella ia inspirar aos guerreiros de sua nação.
Itaquê fallou:
— Quando o estrangeiro chegou á cabana de Itaquê, ninguém lhe perguntou quem era e donde vinha. O hospede é senhor.
«Mas agora o estrangeiro saiu vencedor do combate do casamento e conquistou uma esposa na taba dos tocantins.
«E' preciso que elle se faça conhecer; porque a filha de Itaquê, o pai da nação dos tocantins, jamais entrará como esposa na taba, onde habite quem tenha offendido a um só de seus guerreiros.»
O estrangeiro disse:
— Morubixaba, abarés, moacaras e guerreiros da valente nação tocantim, vós tendes presente o chefe dos chefes da grande nação araguaya.
«Eu sou Ubirajara, o senhor da lança; e o maior guerreiro depois do grande Camacan, cujo sangue me gerou. Si quereis saber porque tomei este nome, ouvi a minha maranduba de guerra.»
Ubirajara contou o seu encontro com Pojucan; o combate em que o venceu e a festa do triumpho, até o momento em que deixou a taba dos araguayas.
Terminou dizendo que no seguinte sol partiria, para assistir ao combate da morte, como promettera ao prisioneiro.
Ninguém interrompeu a maranduba de guerra. Ubirajara ouviu um gemido; mas não soube que rompera do seio de Aracy.
Itaquê arquejou como o rio ao peso da borrasca.
— Tu és Ubirajara, senhor da lança. Eu sou Itaquê, pai de Pojucan. Tenho em face o matador de meu filho; mas elle é meu hospede!
«Chefe dos araguayas, tu és um joven guerreiro; pergunta a Camacan que te gerou, qual deve ser a dôr do pai, que não póde vingar a morte do filho.
O grande chefe vergou a cabeça ao peito, como o cedro altaneiro batido pelo tufão.
Pojucan tinha sua taba mais longe, na outra margem do rio. Elle partira na ultima lua para rastejar a marcha dos tapuias; e voltava senhor do caminho da guerra quando encontrou Ubirajara.
Seu pai e os guerreiros de sua taba pensavam que elle buscava na floresta o caminho da guerra. Mal sabiam que a essa hora esperava prisioneiro na taba dos araguayas o combate da morte.
Anciões e guerreiros emmudeceram. Todos respeitaram a dôr do pai e não ousavam perturbal-a.
Jacamim, a mãe de Pojucan, approximara-se. O grande chefe ouviu seu gemido.
— A esposa de Itaquê não chora na presença do matador de seu filho.
Á voz do esposo, a mãe teve força para esconder no seio sua tristeza e mostra-se digna do grande chefe dos tocantins.
Ubirajara fallou:
— A vingança é a gloria do guerreiro; Tupan a deu aos valentes. Ubirajara venceu Pojucan em combate leal e aceita o desafio de Itaquê e de todos os chefes tocantins.
— Tu és meu hospede, emquanto Itaquê brandir o grande arco da nação tocantim, ninguém offenderá o amigo de Tupan na taba de seus guerreiros.
Dizendo assim, o grande chefe ergueu-se e trocou com o estrangeiro a fumaça da despedida.
— Parte. O sol que viu o estrangeiro na cabana hospedeira o acompanhará amigo; mas com a sombra da noite, mil guerreiros, mais velozes que o nandú, partirão para levar-te a morte.
Ubirajara tomou suas armas e disse:
— O hospede vai deixar tua cabana, chefe dos tocantins; tu verás chegar o guerreiro inimigo.
Itaquê seguiu o estrangeiro até o terreiro;
em torno delle se reuniram os abarés, os moacaras e os guerreiros para assistirem á partida.
Ubirajara caminhou com o passo lento e grave até o fim da taba.
Chegado alli, tornou rápido á entrada da cabana e retrocedeu, apagando no chão o vestígio de seus passos.
A nação tocantim o observava immovel.
Por fim o estrangeiro postou-se no centro da ocara e com o formidavel tacape vibrou no largo escudo um golpe, que repercutiu pela taba como o estrondo da montanha.
— O hospede passou o limiar da cabana que o linha acolhido e apagou seu rasto na taba dos tocantins.
«Quem está aqui é um guerreiro armado, que pisa, senhor, a taba de seus inimigos.
«Itaquê, morubixaba dos tocantins, Ubirajara, o senhor da lança, grande chefe dos araguayas, te envia a guerra na ponta da sua setta.»
Quando o guerreiro acabou de proferir estas palavras, Itaquê levantou os olhos e viu cravada na figura do tocano, que era o symbolo da nação, a setta de Ubirajara.
Mil arcos se ergueram, mil tacapes brandiram. A voz possante de Itaquê abateu as armas de seus guerreiros.
Disse o morubixaba:
— A lei da hospitalidade é sagrada. A colera do estrangeiro não deve perturbar a serenidade do varão tocantim.
Depois voltou-se para o inimigo:
— Ubirajara, grande chefe dos araguayas, Itaquê, o pai da poderosa nação tocantim, acceita a guerra que tu lhe enviaste. Recebe em teu escudo o penhor do combate.
A corda do grande arco da nação tocantim brandiu, e a setta de Itaquê mordeu o escudo de Ubirajara.
— Vae buscar teus guerreiros e nós combateremos á frente das nações.
— Ubirajara combaterá até que lhe restituas a esposa; assim como elle a conquistou a seus rivaes, saberá conquistal-a a ti e á tua nação.
O chefe araguaya partiu. No seio da floresta encontrou Aracy que o esperava.
A formosa virgem fôra á cabana do casamento buscar a rêde nupcial e preparar-se para acompanhar o esposo.
— Ubirajara parte; mas antes de cinco soes elle estará aqui para te conquistar á tua nação.
— A esposa te acompanha. Teu braço valente já a conquistou; e ella entregou-se a seu senhor. Aracy te pertence; deves leval-a.
A virgem tocantim desejava seguir Ubirajara á taba dos araguayas. Fallava em sua alma a ternura da esposa e da irmã.
Partindo, ella unia-se para sempre a seu guerreiro e esperava que o amor o moveria a salvar Pojucan.
Ubirajara pensou e disse:
— Si Ubirajara tivesse rompido a liga de Aracy, ella era sua esposa; e ninguém a arrebataria de seus braços. Mas a virgem tocantim não póde abandonar a cabana onde nasceu, sem a vontade de seu pai.
Aracy suspirou:
— Ubirajara vai deixar a lembrança de Aracy nos campos dos tocantins. Jandyra o espera na taba dos araguayas; e lhe aguarda o seu sorriso de mel.
— A luz de teus olhos, Aracy, estrella do dia, foi buscar Ubirajara na taba dos seus, onde resoavam os cantos de seu triumpho, e o trouxe á tua cabana.
«Quando elle partiu encontrou Jandyra, e para que a filha de Magé não o acompanhasse a deu a Pojucan, como esposa do tumulo.
— O goaná do lago, vôa longe, longe, para banhar-se nas aguas da chuva que alagaram a varzea; mas logo volta ao seu ninho, e não se lembra mais da moita onde dormiu.
— Ubirajara é um guerreiro: elle não aprende com o goaná do lago, que foge do perigo, mas com o gavião, grande chefe dos guerreiros do ar, que nunca mais abandona o rochedo onde assentou a sua oca.
Se Ubirajara amasse a esposa, também não a abandonaria. Os braços de Aracy já cingiram o collo de seu guerreiro. O tronco não desprende de si a baunilha que se entrelaçou em seus galhos.
Ubirajara calcou a mão sobre a cabeça de Aracy:
— Itaquê respeitou a lei da hospitalidade no corpo de Ubirajara; Ubirajara não deixará a traição na terra hospedeira.
«Aracy não deve querer para esposo um guerreiro menos generoso do que seu pai.»
A virgem emmadeceu. Ella sabia que a honra é a primeira lei do guerreiro.
Antes de partir, o chefe consolou a esposa:
— Ubirajara vai pedir ao gavião suas azas para voltar ao seio de Aracy. Elle virá á frente de sua nação, conduzido pela luz de teus olhos.
«As outras mulheres são o premio de um combate entre os servos de seu amor. Aracy terá essa gloria; que ella será o premio da maior guerra que já viram as florestas.»
O chefe araguaya pôz as mãos nos hombros de Aracy; duas vezes uniu o seu ao rosto delia, por uma e outra face, para exprimir que nada podia separal-os.
Quando o guerreiro desappareceu na floresta, Aracy caminhou para a cabana do esposo, que ficára triste e solitaria.
A virgem fechou a porta; sentou-se na soleira e cantou sua tristeza.
Dois sóes tinham passado; e viera a noite.
A ultima estrella se apagava no céo, quando Ubirajara pisou os campos dos araguayas.
Sua mão robusta, vibrando a clava, feriu o trocano. A voz da nação araguaya derramou-se ao longe pelo valle, como o estrondo da montanha que arrebenta.
Com o primeiro raio do sol que subia o pincaro da serra, chegaram á grande taba os chefes das cem tabas araguayas, com todos seus guerreiros, convocados á ocara da nação.
Ubirajara mandou que Pojucan, o prisioneiro, viesse á sua presença:
— Vê o mar de meus guerreiros que enche a terra, como as aguas do grande rio quando alaga a várzea. Elles esperam o aceno de Ubirajara para inundarem teus campos.
«A nação tocantim carece neste momento do braço de seus maiores guerreiros; vai levar-lhe o soccorro de teu valor, para que se augmente a gloria de Ubirajara, seu vencedor.
Tu és livre, Pojucan; parte e vôa, que a guerra dos araguayas te segue os passos.
O semblante do filho de Itaquê ficou sombrio:
— Pojucan é um chefe illustre; não merece esta deshonra. Tu lhe prometteste a morte dos bravos. Elle exige o combate.
O chefe araguaya contou a maranduba da hospitalidade:
— Ubirajara não sabia que Pojucan era filho de Itaquê; pois elle nunca pisaria como hospede a cabana de um guerreiro, a quem tivesse decepado um filho.
— É preciso que recuperes a liberdade para que não se diga que Ubirajara surprehendeu a hospitalidade do grande chefe dos tocantins.
Pojucan não respondeu. Elle reconhecera que a honra de seu vencedor exigia sua volta a taba dos seus.
— Parte. Nós combateremos á frente das nações. Ubirajara pertence a Itaquê; mas depois delle terás a gloria de ser vencido outra vez por este braço.
— Ubirajara é um grande chefe e maior guerreiro. Si Tupan não consente que Pojucan seja vencedor, elle não quer maior gloria do que a de morrer combatendo Ubirajara.
Pojucan foi á cabana de seu vencedor buscar as armas. Ubirajara arrimou-se ao tacape, como o rochedo que se apoia ao tronco do ipé, e meditou.
Quando passou o chefe tocantim que voltava á sua taba, Ubirajara levantou a cabeça e disse:
— Os olhos de Ubirajara te acompanham: tu és irmão de Aracy e vaes para junto della. Dize á estrella do dia que seu esposo está com ella.
O conselho dos abarás se reunira para meditar sobre a guerra. O velho Magé, a quem irritava o desapparecimento da filha, reparou que sem o voto do carbeto se convocasse a nação.
Veiu um mensageiro chamar o grande chefe para o carbeto. Ubirajara chegou. Antes que fallasse a voz dos anciões, o guerreiro levantou o arco e disse:
— O conselho dos anciões governa a taba e medita nas cousas da paz. Toda a nação respeita sua prudência e sabedoria.
«Mas emquanto Ubirajara brandir o grande arco dos araguayas, tem a guerra fechada em sua mão.
«Quando elle soltar o grito do combate, a voz que fallar da paz, emmudecera para sempre, ainda que venha da cabeça do abaré que a lua já embranqueceu.
«Quem não quizer assim, venha arrancar da mão de Ubirajara este arco que elle conquistou por seu valor.»
Os abarés estremeceram. Mas o carbeto meditou e decidiu que a maior gloria e sabedoria da nação era ter o seu grande arco de guerra na mão de unv chefe, como Ubirajara.
Camacan tratou com os anciões ácerca da defesa das tabas; e o grande chefe abriu o caminho da guerra.
Quando Ubirajara desdobrou sua guerra pela margem do grande rio, elle viu que uma nação tapuia preparava-se para assaltar a taba dos tocantins.
O grande chefe tocou a inubia, cuja voz chamava o joven Murinhem, primeiro dos cantores araguayas.
Correu nhengaçara á presença do grande chefe; e delle recebeu a mensagem que devia levar ao campo inimigo.
Os cantores eram respeitados por todas as nações das florestas, como os filhos de alegria; porque serviam de mensageiros entre as nações em guerra.
Elles penetravam no campo inimigo, entoando o seu canto de paz; e nenhum guerreiro ousava offender aquelle a quem Tupan concedera a fonte da alegria.
Murinhem atravessou rapido a campina e apresentou-se em frente de Canicran, chefe dos tapuias.
— Ubirajara, o senhor da lança, que empunha o arco da poderosa nação araguaya, te manda, a ti, quem quer que sejas, e a todos quantos te obedecem, a sua vontade.
O tapuia rugiu; mas seus olhos viam o mar dos guerreiros araguayas que o cercava e na frente o grande vulto de Ubirajara, semelhante ao rochedo sombrio e immovel no meio dos borbotões da cachoeira.
— Os guerreiros de Canicran só conhecem a vontade do seu chefe; e Canicran affronta a colera de Tupan e das nações que elle gerou. Dize, mensageiro, o que pede Ubirajara ao grande chefe dos tapuias.
— Ubirajara te manda que encostes o tacape da guerra. A nação tocantim aceitou a sua flecha de desafio e elle não consente que ninguém combata seu inimigo, antes de o ter vencido.
— Torna e dize ao grande chefe araguaya, que Canicran veio trazido pela vingança. Pojucan, um dos chefes tocantins penetrou, em sua taba e incendiou a cabana do pagé, que foi devorado pelas chammas.
«Ubirajara é um grande chefe; elle que diga si o pai da nação póde soffrer tão dura affronta. Canicran escutará voz de sua amizade.
O chefe tapuia tomou uma de suas flechas; arrancou o farpão e deu ao mensageiro a haste emplumada com as azas negras do anun, que era o emblema guerreiro da nação.
— Toma; entrega ao grande chefe araguaya o penhor da alliança.
Murinhem partiu e foi á taba dos tocantins levar igual mensagem. Itaquê escutou o que lhe mandava Ubirajara e respondeu.
— Antes que Itaquê trocasse com Ubirajara a setta do desafio, Pojucan tinha levado a guerra á taba dos tapuias.
— Canicran veio trazido pela vingança; e a nação tocantim não póde recuzar o combate. Mas Itaquê sabe honrar seu nome: si Ubirajara quer, elle combaterá juntamente os deis inimigos.
O mensageiro tornou ao campo dos araguayas com as respostas dos dois chefes. Ubirajara ouviu e meditou.
— Escuta a vontade de Ubirajara para leval-a aos inimigos. O grande chefe araguaya não roubará a Canicran a gloriada vingança; elle respeita a honra da nação tapuia, mas rejeita sua alliança. Restitue o penhor que recebeste.
«Itaquê póde aceitar o combate que Pojucan foi buscar; Ubirajara não offende o nome de um guerreiro, ainda mais de um morubixaba e do pai de Aracy.
«O chefe dos araguayas não carece de auxilio para triumphar de seus inimigos: deseja que a nação tocantim derrote aos tapuias, para ter elle a gloria de vencer ao vencedor.
«Si Itaquê não póde repellir os tapuias, Ubirajara toma a si castigar os bárbaros; e depois de varrel-os das florestas, combaterá as duas nações.
«Si os tocantins necessitam de alliados para resistir ao impeto dos araguayas, Ubirajara espera que Itaquê os chame e que elles venham.
«Murinhem fallará assim a um e outro chefe; a ambos dirá que a cabana onde estiver Aracy fica sob a guarda de Ubirajara; quem nella penetrar como inimigo soffrerá a morte vil do covarde.
O guerreiro deixou a voz do chefe e fallou com a voz do esposo:
— A' Aracy levarás o canto de amor de Ubirajara. Tu lhe dirás que arme a rêde nupcial e não deixe nossa cabana, emquanto Ubirajara não a fôr buscar.
«Conta-lhe tambem que o kanitar que ella teceu, ainda não deixou a cabeça de seu guerreiro e ha de acompanhal-o sempre.
Capítulo VIII — A batalha
A um lado da immensa campina move-se a multidão dos guerreiros tocantins, de outro lado a multidão dos guerreiros tapuias.
As duas nações se estendem como dois lagos formados pelas grandes chuvas, que se trasformam em rios e atravessam o valle.
De um e outro campo levantou-se a pocema guerreira; e os dois povos arremettendo travaram a batalha.
Itaquê achou-se em frente de Canicran. Ambos se buscavam; dez vezes tinham combatido; vencedores ambos, nenhum fôra vencido.
Emquanto viverem os formidaveis guerreiros, não é possivel quebrar a flecha da paz entre as duas nações.
Era preciso que um delles morresse para que o vencedor encostasse o tacape do combate e désse repouso á sua nação para reparar os estragos da guerra.
Quando os dois chefes se encontraram, os guerreiros de um e outro campo ficaram immoveis, contemplando o pavoroso combate.
Ubirajara de longe, apoiado em seu grande arco, admirava os dois guerreiros e pensava qual não seria o seu orgulho em vencel-os ambos.
Durava a peleja o espaço de uma sombra. Em torno dos chefes lastravam o chão os tacapes e escudos que tinham espedaçado aos golpes de cada um.
Immoveis no mesmo lugar, só agitavam a cabeça e os braços; semelhante a dois candores, que, de garras presas aos pincaros do rochedo, se dilaceram com o bico adunco.
Um rugido espantoso atroou pela campina, que estremeceu a batalha e rodou pelas profundezas da floresta.
Pahan, a setta, era o ultimo filho de Canicran. Ainda corumim, peleja ao lado do irmão, o guerreiro Creban, cujo hombro mal alcançava com o braço.
Elle tinha nos olhos a vista da gaivota e nas settas do seu arco, feitas de espinhos de ouriço, a velocidade e a certeza do vôo do guanumby.
Quando caçava na floresta, divertia-se em matar as motucas traspassando-as com suas flechas, que voavam mais rapidas e certeiras que as vespas venenosas.
Pahan saltara sobre os hombros do guerreiro Creban para assistir ao combate. Admirando o valor de Canicran, teve orgulho e inveja do pai.
Itaquê desfechára tão formidável golpe, que o tacape e escudo de Canicran se espedaçára em suas mãos, deixando-o á mercê do inimigo.
O chefe tocantim arrojou-se e já sua mão descia sobre a espadua do tapuia para fazel-o prisioneiro.
O arco de Pahan sibilou duas vezes. Os olhos de Itaquê, os olhos do varão forte que nunca uma lagrima humedecera, choraram sangue.
As settas do corumim tinham vasado as pupillas do fero guerreiro, cuja vista era raio. Assim a Jandaia róe o grello do procero coqueiro.
Foi então que Itaquê soltou o rugido pavoroso que fez tremer a terra. Mas o grito de espanto sossobrou no peito dos guerreiros e rompeu em um grito de horror.
Itaquê estendera os braços, hirtos como duas garras de condor. A mão direita abarcou o pennacho e a cabelleira de Canicran, a esquerda entrou pela bocca do tapuia e travou-lhe o queixo.
Separaram-se os braços do guerreiro cego e a cabeça de Canicran abriu-se como um côco que se fende pelo meio.
Agitando no ar o craneo sangrento como um maracá de guerra, Itaquê arrojou-se contra os inimigos, buscando a morte que lhe fugia.
Quando o sol entrou, não havia na campina a sombra de um tapuia.
O velho heroe voltou á cabana conduzido por Pojucan:
— Tupan viu que Itaquê não podia ser vencido pela mão dos homens; e quiz vencel-o elle mesmo pela mão de um menino.
Quando Ubirajara viu o exito do combate, lamentou que dos dois grandes guerreiros não restasse nenhum, para que elle o vencesse.
Seus olhos descobriram Pahan que fugia no meio dos destroços de sua nação. Ergueu a mão, mas não chegou a retezar a setta.
A aguia não persegue a andorinha. Era indigno de um guerreiro, quanto mais de um chefe, empregar seu valor contra um menino.
O chefe chamou á sua presença Tubim, um dos jovens caçadores, que tinham acompanhado a guerra para prover o alimento.
Tubim tem azas de abelha; si elle alcançar o corumim tapuia que eu estou olhando, Ubirajara lhe dará o nome dè Atjeguar.
O joven caçador seguiu o olhar do chefe e sumiu-se num turbilhão de poeira. Quando os vagalumes começaram a luzir no escuro da matta, elle estava de volta no campo dos araguayas; e trazia o corumim fechado nos braços.
Nessa mesma noite, Tubim recebeu o nome de Abeguar, senhor do vôo, em honra da façanha que tinha realisado.
Os cantores entoaram seu louvor; e o joven caçador teve a gloria de receber os applausos dos moacaras de sua nação e de um chefe como Ubirajara.
Ao raiar da manhã, Murinhem foi á taba dos tocantins, acompanhado por vinte guerreiros que conduziam o corumim.
Quando chegou em frente á cabana do grande chefe, o cantor viu Itaquê no terreiro sentado em uma sapopema.
O guerreiro fitava os olhos no céo, onde o calor lhe dizia que estava o sol. Mas não encontrava a luz que para sempre o abandonara.
Então o velho guerreiro abaixava os olhos para a terra, como si buscasse o lugar do repouso.
Quando soaram longe os passos dos estrangeiros, o chefe alongou a fronte para ver pelo ouvido o que os olhos lhe recusavam.
Murinhem chegou e disse:
— Ubirajara envia a Itaquê o resto da vingança. Este é Pahan, o filho de Canicran. Elle te roubou a vista; mas não salvou o pai de tua mão terrível. Faze do corumim tapuia um mancebo tocantim; e elle será a luz de teus olhos e caminhará na frente do grande chefe para abrir-lhe o caminho da guerra.
Pahan avançou:
— O filho de Canicran jámais será escravo; nasceu tapuia e tapuia morrerá, como o grande chefe que o gerou. Emquanto o ouriço viver nas florestas, elle roubará seus espinhos para furar os olhos dos tocanos.
Itaquê pousou a palma da mão na cabeça do menino:
— O corumim que ama seu pai é filho de Itaquê. Tu és livre, Pahan; vai caçar o ouriço. Quando fôres um guerreiro, acharás cem mancebos do sangue de Itaquê para castigarem tua audacia.
O chefe voltou-se para o cantor:
— Tupan tirou a luz dos olhos de Itaquê; mas augmentou a força de seu braço. Ubirajara terá para combatel-o um inimigo digno do seu valor.
— Murinhem tornou ao chefe araguaya com esta resposta.
Quando partia o cantor, chegaram á cabana de Itaquê os abarês da nação tocantim.
Os anciões sentaram-se em torno do guerreiro cego; e, bebendo a fumaça da sabedoria, formaram o carbeto.
Fallou Guaribú:
— O grande arco da nação carece de uma mão robusta para brandir sua corda; e de um olho seguro para dirigir sua setta. Itaquê é o maior guerreiro das florestas; seu nome faz tremer ao mais valente dos inimigos; seu braço fére como o raio. Mas a luz fugiu de seus olhos e elle não póde mais abrir o caminho da guerra.
O velho chefe ergueu-se com o passo tropego. Alcançando o grande arco dos tocantins abraçou-se a elle e fallou-lhe:
— Quando Itaquê te recebeu da mão do grande Jovary elle pensava que só a morte o separaria de ti, para transmittir-te a um guerreiro de seu sangue. Mas Itaquê ficou na terra, como um tronco levado pela corrente, que não sabe onde vae.
Um esguicho de sangue saltou dos buracos, onde o velho tivera os olhos. Era a lagrima que a desgraça lhe deixára.
Os abarés meditaram. Guaribú fallou de novo:
— O grande arco da nação que tu recebeste do grande Javary, teu pai, não te abandonará. Elle fica em tua mão invencivel; haverá outro arco na mão do mais valente guerreiro, que abrirá o caminho da guerra. Mas, em emquanto Itaquê viver, sua voz governará a nação que elle defendeu com seu braço.
O semblante do velho chefe cobriu-se de um sorriso, como o negro rochedo sobre o qual desliza um raio de luar.
— Pais da sabedoria, abarés, olhai aquelle jatobá que se levanta no meio da campina e que eu só posso ver agora na sombra de minha alma.
«Elle tem multas raizes que o sustentam nos ares, tem muitos galhos que o cercam e estendem ao longe a sua rama. Mas o tronco é um só.
«As grossas raizes são os abarés que sustentam o chefe com o seu conselho. Os galhos fortes são os moacaras que cercam o chefe e geram a multidão de guerreiros mais numerosa que as folhas das arvores. O tronco é o chefe da nação; si elle se dividir o jatobá não subirá ás nuvens nem terá forcas para resistir ao tufão.
«O lugar de Itaquê é no conselho. O ultimo dente de seu collar de guerra foi o que elle arrancou da bocca de Canicran. Convocai os guerreiros e o que for mais forte e mais valente empunhe o grande arco da nação.
O trocano chamou a nação ao carbeto. Vieram os moacaras, conduzindo suas tribus.
O velho Itaquê contava pelos passos os guerreiros que chegavam. O grande arco da nação, que elle segurava direito, parecia um dos esteios da cabana e tinha a corda tão grossa como a da rêde do chefe.
Os mais famosos guerreiros tocantins se apresentaram para disputar o grande arco; muitos conseguiram vergal-o; mas a setta não partiu.
Itaquê escutava com o ouvido attento; o som delle conhecido não feriu os ares.
— Onde está Pojucan? perguntou o velho chefe.
O valente guerreiro do sangue de Itaquê estava de parte, grave e taciturno. Algum motivo o separava do arco chefe, que elle devia ser o primeiro a disputar.
— Teu filho te escuta; respondeu.
— Empunha o arco chefe; si ha um guerreiro tocantim que possa conquistal-o esse deve ser do sangue de Itaquê.
Pojucan recebeu o arco. Fincando nelle os pés, o guerreiro arrojou-se para traz como a giboia quando se enrista para armar o bote.
A setta partiu e foi cravar a cabeça de um chefe tapuia, fincada na estaca, á entrada da taba.
Itaquê curvara a cabeça. Elle ouviu brandir a arma; não era porém aquelle o zunido da corda do arco, quando o vergava sua mão possante.
Pojucan, depôz o arco chefe aos pés de Itaquê e disse:
— Pojucan mostrou que em suas veias corre o sangue generoso de Itaquê. Mas o grande arco peza em sua mão. Só ha um guerreiro na terra que o possa brandir como Itaquê; e esse não cinge a fronte com o cocar das pennas de tocano.
— Pojucan negou a Itaquê esta ultima consolação. O arco invencível do grande Tocantim que foi o pai da nação vae sahir de sua geração. Tocantim o transmittiu a seu filho Javary, que me gerou; mas eu não soube gerar com seu sangue um guerreiro digno delles.
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