Capítulo IX — A união dos arcos
Os tapuias voltaram, com elles vinha Agniná á frente de sua nação, para vingar a morte de Canicran, seu irmão.
Era grande a multidão dos guerreiros: e maior a tornavam a sanha da vingança e a fama do chefe que a conduzia.
Não eram tantos os tocantins; mas bastaria seu valor para igualal-os, não lhes faltasse a cabeça, que rege o corpo.
A poderosa nação estava como o bando de caitetús que perdeu o pai e desgarra-se pela floresta, correndo sem rumo.
Os mais valentes moacaras, chefes das tribus, esperavam pelo grande chefe da nação, para lhes abrir o caminho da guerra.
Os abarés meditaram. Elles não podiam inventar um guerreiro capaz de succeder a Itaquê; mas não se resignavam a abater a gloria da nação, trocando o arco invencivel do grande Tocantim por outro arco mais leve, que Pojucan manejasse.
Tambem Pojucan annunciára que não podendo brandir o arco de Itaquê, jámais empunharia outro arco chefe, menos glorioso do que o do grande Tocantim.
Abarés, chefes, moacaras, guerreiros, toda a nação se reuniu em torno do heróe cégo.
Daquelle que durante tantas luas defendera a nação com a forca de seu braço e a protegera com o terror de seu nome, esperavam ainda a salvação.
O velho ouviu a voz dos abarés, a voz dos chefes, a voz dos moacaras, a voz dos guerreiros, e disse:
— Itaquê ainda póde combater e morrer por sua nação; mas sem a luz do céo, elle não póde mais abrir a seus filhos o caminho da victoria.
«O braço de Itaquê defendeu sempre a nação tocantim; quer ella ser defendida agora pela palavra daquelle, que não tem mais para dar-lhe sinão a experiência de sua velhice?
«Pensem os abarés, os chefes, os moacaras e os guerreiros».
Guaribú respondeu:
— A nação pensou. Falla e todos obedecerão á tua palavra, como obedeciam ao braço de Itaquê.
— A voz do coração diz ao neto de Tocantim que a gloria da nação que elle gerou não se póde extinguir. O sangue de Itaquê, passando pelo seio de Aracy, se unirá a outro sangue generoso para brotar maior e mais illustre.
«Assim a terra onde nasceu uma floresta, de acajás, recebe o limo do rio e gera nova floresta mais frondosa que a outra.
«Jacamim, chama Aracy, a filha de nossa velhice. E vós abarés, chefes, moacaras e guerreiros, segui-me.»
O velho heróe atravessou a taba guiado por Aracy.
A nação o seguia em silencio.
Quando o guerreiro cégo passava com a mão no hombro da virgem formosa que dirigia o seu passo incerto, os guerreiros lembravam-se do tronco já morto que a rama do maracajú ainda sustenta de pé junto ao penedo.
Os cantores iam adiante; e entoavam um canto de paz.
Um mensageiro de Itaquê o precedera no campo dos araguayas.
Ubirajara, cercado de seus abatés, chefes, moacaras e guerreiros, veiu ao encontro do morubixaba dos tocantins.
A alma do grande chefe araguaya encheu-se de alegria de vêr Aracy; mas elle retirou os olhos da esposa, para que o amor não perturbasse a serenidade do varão.
— Ubirajara está em face de Itaquê; para combatel-o si trouxe a guerra; para abraçal-o si trouxe a paz.
— Nunca Itaquê pediu a paz ao inimigo que trouxe-lhe a guerra, antes de o vencer; nem teria vivido tanto para commetter essa fraqueza. Elle vem trazer-te a victoria para que tu a repartas com seu povo.
O velho heróe avançou o passo:
— Chefe dos araguayas, tu levaste a guerra á taba dos tocantins para conquistar Aracy, a filha de minha velhice.
«Por teu heroismo, e ainda mais pela nobreza com que restituiste a liberdade a Pojucan, tu merecias uma esposa do sangue de Tocantim.
«Mas desde que tu ameaçaste tomal-a pela força de teu braço, Itaquê não podia mais conceder-te a filha de sua velhice, sinão depois que abatesse teu orgulho.
«Elle prepara va-se para te combater, e á tua nação; mas fugiu-lhe dos olhos a luz que dirige a setta da guerra; e não ha entre seus guerreiros um que possa brandir o arco do grande Tocantim.»
Quando pronunciou estas palavras, a voz do velho guerreiro sossobrou-lhe no peito:
— O arco de Itaquê é como o gavião que perdeu as azas e não póde mais levar a morte ao inimigo. As andorinhas zombam de suas garras.
«Empunha o arco de Itaquê, chefe dos araguayas e tu conquistarás por teu heroismo uma esposa e uma nação.
«Á esposa farás mãi de cem guerreiros como Itaquê; e á nação conservarás a gloria que ella conquistou quando o filho de Javary a conduzia á guerra.
«Tupan dará a teu braço esta força para que o sangue de Itaquê brote mais vigoroso e os netos de Tocantim dominem as florestas.»
Ubirajara sorriu:
— Chefe dos tocantins, teus olhos não podem ver o grande arco da nação araguaya: mas pergunta á tua mão si o arco que Camacan brandia invencivel e agora empunha Ubirajara cede ao arco de Itaquê.
O velho heróe palpou o arco chefe dos araguayas e vergou-lhe a ponta ao hombro, como si a haste fosse de taquary.
Ubirajara travou do arco de Itaquê e desdenhando fincal-o no chão, elevou-o acima da fronte; flecha ornada de pennas de tocano partiu.
O semblante de Itaquê remoçou, ouvindo o zunido que lhe recordava o tempo de seu vigor. Era assim que elle brandia o arco outr'ora, quando as luas cresciam augmentando a forca de seu braço.
O velho inclinou a fronte para escutar o sibillo de sua flecha que talhava o azul do céo. Os cantores não tinham para elle mais doce harmonia do que essa.
Ubirajara largou o arco de Itaquê para tomar o arco de Camacan. A flecha araguaya também partiu e foi atravessar nos ares a outra que tornava a terra.
As duas settas desceram traspassadas uma pela outra como os braços do guerreiro quando se cruzam ao peito para exprimir a amizade.
Ubirajara apanhou-as no ar:
— Este é o emblema da união. Ubirajara fará a nação tocantim tão poderosa como a nação araguaya. Ambas serão irmãs na gloria e formarão uma só, que ha de ser a grande nação de Ubirajara, senhora dos rios, montes e florestas.
O chefe dos chefes ordenou que três guerreiros araguayas e três guerreiros tocantins ligassem com o fio do crautá as hastes dos dois arcos.
Quando o arco de Camacan e o arco de Itaquê não fizeram mais que um, Ubirajara o empunhou na mão possante e mostrou-o ás nações:
— Abarés, chefes, moacaras e guerreiros de minhas nações, aqui está o arco de Ubirajara, o chefe dos grandes chefes. Suas flechas são gemeas, como as duas nações, e voam juntas.
Ambas as cordas brandiram a um tempo.
A setta araguaya e a setta tocantim partiram de novo como duas aguias que par a par remontam as nuvens.
Quando calou-se a pocema do triumpho, Ubirajara caminhou para a filha de Itaquê:
— Aracy, estrella do dia, tu pertences a Ubirajara, que te conquistou pela força de seu braço. Agora que é senhor, elle espera tua vontade.
A formosa virgem rompeu a liga vermelha que lhe cingia a perna e atou-a ao pulso de seu guerreiro.
Ubirajara tomou a esposa aos hombros e levou-a á cabana do casamento.
O jasmineiro semeava de flores perfumadas a rêde do amor.
O outro sol rompia, quando os tapuias estenderam pela campina a multidão de seus guerreiros.
Na frente assomava Agniná a montanha dos guerreiros, ainda mais feroz do que o irmão, o terrivel Canicran.
De um lado e do outro seguiam-se os chefes, cada um á frente de seus guerreiros.
Ubirajara escolheu mil guerreiros araguayas e mil guerreiros tocantins, com que saiu ao encontro dos tapuias.
Depois que desdobrou sua batalha pela campina o chefe dos chefes caminhou só para o inimigo.
Quando chegava a meio do campo, os tapuias levantaram a pocema de guerra, que atroou os ares, como o estrepito da cachoeira.
Um turbilhão de settas crivou o longo escudo do heróe, que ficou semelhante ao grosso tronco da Jussara, irriçado de espinhos.
Ubirajara embraçou o escudo na altura do hombro, e com o pé brandiu sete vezes a corda do grande arco gemeo.
As settas vermelhas e amarellas subiram direitas ao céo e perderam-se nas nuvens.
Quando voltaram, Agniná e os chefes que obedeciam a seu arco tinham cada um fincado na cabeça o desafio do formidável guerreiro.
Enfurecidos mais pelo insulto, do que pela dôr, arremessaram-se contra o inimigo que os esperava coberto com seu vasto escudo. Agniná era o primeiro na corrida, e o primeiro na sanha. Apoz elle vinham os outros, a dois e dois, luctando na rapidez.
Quando o esposo de Aracy viu que elles se estendiam pela campina, como dois ribeiros que se aproximam para confundir suas aguas, o heróe empunhou a lança de duas pontas, e soltou seu grito de guerra, que era como o bramir do jaguar, senhor da floresta.
Seu pé devorou o espaço; e a lança de duas pontas girou em sua mão, como a serpente que se enrosca nos ares silvando.
Caiu Agniná do primeiro bote; apoz elle caíram aos dois os chefes tapuias, como caem os juncos talhados pelo dente afiado da capivara.
Então o heróe soltou seu grito de triumpho, que era como o rugido do vento no deserto:
— Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro invencível que tem por arma uma serpente.
«Eu sou Ubirajara, o senhor das nações, o chefe dos chefes, que varre a terra, como o vento do deserto.»
O heróe estendeu a vista pela campina, e não descobriu mais o inimigo, que se sumia na poeira.
Ubirajara lençou-lhe seus guerreiros, que tinham fome de vingança; porém o terror de de sua lança dava azas aos fugitivos.
Desde esse dia nunca mais um tapuia pisou as margens do grande rio.
Ubirajara voltou á cabana, onde o esperava Aracy.
A esposa despiu as armas de seu guerreiro, enxugou-lhe o corpo com o macio cotao da monguba, e cobriu-o do balsamo fragrante da embaiba.
Depois encheu de generoso cauim a taça vermelha feita do coco da sapucaia; e aplacou a sede do combate.
Emquanto nas grandes tabas se preparava a festa do triumpho, e o heróe repousava na rêde, Aracy foi ao terreiro e voltou conduzindo Jandyra pela mão.
— Aracy, tua esposa, é irmã de Jandyra. Ubirajara é o chefe dos chefes, senhor do arco das duas nações. Elle deve repartir seu amor por ellas, como repartiu a sua força.
A virgem araguaya poz no guerreiro seus olhos de corsa.
— Jandyra é serva de tua esposa; seu amor a obrigou a querer o que tu queres. Ella ficará em tua cabana para ensinar a tuas filhas como uma virgem araguaya ama seu guerreiro.
Ubirajara cingiu ao peito, com um e outro braço, a esposa e a virgem.
— Aracy é a esposa do chefe tocantim; Jandyra será a esposa do chefe araguaya; ambas serão as mãis dos filhos de Ubirajara, o chefe dos chefes e o senhor das florestas.
As duas nações, dos araguayas e dos tocantins, formaram a grande nação dos Ubirajaras, que tomou o nome do heróe.
Foi esta poderosa nação que dominou o deserto.
Mais tarde, quando vieram os caramurús, guerreiros do mar, ella campeava ainda nas margens do grande rio.
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