Tuesday, 17 October 2023

Tuesday's Serial: “A Cachoeira de Paulo Afonso” by Castro Alves (in Portuguese) - I

 

     Je ne sais vraiment si j’aurai mérité qu’on dépose un jour un laurier sur mon cercueil. La poésie, quelque soit mon amour pour elle, n’a toujours été pour moi qu’un moyen consacré pour un but sain.

      Je n’ai jamais attaché un trop grand prix à la gloire de mes poèmes, et peu m’importe qu’on les loue, ou qu’on les blâme. Mais ce sera un glaive, que vous devez placer sur ma tombe, car j’ai été un brave soldat dans la guerre de délivrance de l’humanité.

Heinrich Heine (Reisebilder)

 

 

A TARDE

Era a hora em que a tarde se debruça

Lá da crista das serras mais remotas...

E d'araponga o canto, que soluça,

Acorda os ecos nas sombrias grotas;

Quando sobre a lagoa, que s'embuça,

Passa o bando selvagem das gaivotas...

E a onça sobre as lapas salta urrando,

Da cordilheira os visos abalando.

 

Era a hora em que os cardos rumorejam

Como um abrir de bocas inspiradas,

E os angicos as comas espanejam

Pelos dedos das auras perfumadas...

A hora em que as gardênias, que se beijam,

São tímidas, medrosas desposadas;

E a pedra... a flor... as selvas... os condores

Gaguejam... falam... cantam seus amores!

 

Hora meiga da Tarde! Como és bela

Quando surges do azul da zona ardente!

... Tu és do céu a pálida donzela,

Que se banha nas termas do oriente...

Quando é gota do banho cada estrela,

Que te rola da espádua refulgente...

E, — prendendo-te a trança a meia lua,

Te enrolas em neblinas seminua!...

 

Eu amo-te, ó mimosa do infinito!

Tu me lembras o tempo em que era infante.

Inda adora-te o peito do precito

No meio do martírio excruciante;

E, se não te dá mais da infância o grito

Que menino elevava-te arrogante,

É que agora os martírios foram tantos,

Que mesmo para o riso só tem prantos!...

 

Mas não m'esqueço nunca dos fraguedos

Onde infante selvagem me guiavas,

E os ninhos do sofrer que entre os silvedos

Da embaíba nos ramos me apontavas;

Nem, mais tarde, dos lânguidos segredos

De amor do nenufar que enamoravas...

E as tranças mulheris da granadilha!...

E os abraços fogosos da baunilha!...

 

E te amei tanto — cheia de harmonias

A murmurar os cantos da serrana, —

A lustrar o broquel das serranias,

A doirar dos rendeiros a cabana...

E te amei tanto — à flor das águas frias —

Da lagoa agitando a verde cana,

Que sonhava morrer entre os palmares,

Fitando o céu ao tom dos teus cantares!...

 

Mas hoje, da procela aos estridores,

Sublime, desgrenhada sobre o monte,

Eu quisera fitar-te entre os condores

Das nuvens arruivadas do horizonte...

... Para então, — do relâmpago aos livores,

Que descobrem do espaço a larga fronte, —

Contemplando o infinito..., na floresta

Rolar ao som da funeral orquestra!!!

 

 

MARIA

Onde vais à tardezinha,

Mucama tão bonitinha,

Morena flor do sertão?

A grama um beijo te furta

Por baixo da saia curta,

Que a perna te esconde em vão...

 

Mimosa flor das escravas!

O bando das rolas bravas

Voou com medo de ti!...

Levas hoje algum segredo...

Pois te voltaste com medo

Ao grito do bem-te-vi!

 

Serão amores deveras?

Ah! Quem dessas primaveras

Pudesse a flor apanhar!

E contigo, ao tom d'aragem,

Sonhar na rede selvagem...

À sombra do azul palmar!

 

Bem feliz quem na viola

Te ouvisse a moda espanhola

Da lua ao frouxo clarão...

Com a luz dos astros — por círios,

Por leito — um leito de lírios...

E por tenda — a solidão!

 

 

O BAILE NA FLOR

Que belas as margens do rio possante,

Que ao largo espumante campeia sem par!...

Ali das bromélias nas flores doiradas

Há silfos e fadas, que fazem seu lar...

 

E, em lindos cardumes,

Sutis vaga-lumes

Acendem os lumes

P'ra o baile na flor.

E então — nas arcadas

Das pet'las doiradas,

Os grilos em festa

Começam na orquesta

Febris a tocar...

 

E as breves

Falenas

Vão leves,

Serenas,

Em bando

Girando,

Valsando,

Voando

No ar!...

 

 

NA MARGEM

"Vamos! Vamos! Aqui por entre os juncos

Ei-la a canoa em que eu pequena outrora

Voava nas maretas... Quando o vento,

Abrindo o peito à camisinha úmida,

Pela testa enrolava-me os cabelos,

Ela voava qual marreca brava

No dorso crespo da feral enchente!

 

Voga, minha canoa! Voga ao largo!

Deixa a praia, onde a vaga morde os juncos

Como na mata os caititus bravios...

 

Filha das ondas! andorinha arisca!

Tu, que outrora levavas minha infância

— Pulando alegre no espumante dorso

Dos cães-marinhos a morder-te a proa, —

Leva-me agora a mocidade triste

Pelos ermos do rio ao longe... ao longe..."

 

Assim dizia a Escrava...

Iam caindo

 

Dos dedos do crepúsc'lo os véus de sombra,

Com que a terra se vela como noiva

Para o doce himeneu das noites límpidas...

 

Lá no meio do rio, que cintila,

Como o dorso de enorme crocodilo,

Já manso e manso escoa-se a canoa.

Parecia, assim vista ao sol poente,

Esses ninhos, que tombam sobre o rio,

E onde em meio das flores vão chilrando

— Alegres sobre o abismo — os passarinhos!...

 

. . . . . . . . . . .

 

Tu — guardas algum segredo?...

Maria, 'stás a chorar!

Onde vais? Por que assim foges,

Rio abaixo a deslizar?

 

Pedra — não tens o teu musgo?

Não tens um favônio — flor?

Estrela — não tens um lago?

Mulher — não tens um amor?

 

 

A QUEIMADA

Meu nobre perdigueiro! vem comigo.

Vamos a sós, meu corajoso amigo,

Pelos ermos vagar!

Vamos Já dos gerais, que o vento açoita,

Dos verdes capinais n'agreste moita

A perdiz levantar!...

 

Mas não!... Pousa a cabeça em meus joelhos...

Aqui, meu cão! ... Já de listrões vermelhos

O céu se iluminou.

Eis súbito da barra do ocidente,

Doudo, rubro, veloz, incandescente,

O incêndio que acordou!

 

A floresta rugindo as comas curva...

As asas foscas o gavião recurva,

Espantado a gritar.

O estampido estupendo das queimadas

Se enrola de quebradas em quebradas,

Galopando no ar.

 

E a chama lavra qual jibóia informe,

Que, no espaço vibrando a cauda enorme,

Ferra os dentes no chão...

Nas rubras roscas estortega as matas....

Que espadanam o sangue das cascatas

Do roto coração!...

 

O incêndio — leão ruivo, ensangüentado,

A juba, a crina atira desgrenhado

Aos pampeiros dos céus!...

Travou-se o pugilato e o cedro tomba...

Queimado..., retorcendo na hecatomba

Os braços para Deus.

 

A queimada! A queimada é uma fornalha!

A irara — pula; a cascavel — chocalha...

Raiva, espuma o tapir!

... E às vezes sobre o cume de um rochedo

A corça e o tigre — náufragos do medo —

Vão trêmulos se unir!

 

Então passa-se ali um drama augusto...

N'último ramo do pau-d'arco adusto

O jaguar se abrigou...

Mas rubro é o céu... Recresce o fogo em mares...

E após... tombam as selvas seculares...

E tudo se acabou!...

 

 

LUCAS

Quem fosse naquela hora,

Sobre algum tronco lascado

Sentar-se no descampado

Da solitária ladeira,

Veria descer da serra,

Onde o incêndio vai sangrento,

A passo tardio e lento,

Um belo escravo da terra

Cheio de viço e valor...

Era o filho das florestas!

Era o escravo lenhador!

Que bela testa espaçosa,

Que olhar franco e triunfante!

E sob o chapéu de couro

Que cabeleira abundante!

De marchetada jibóia

Pende-lhe a rasto o facão...

E assim... erguendo o machado

Na larga e robusta mão...

Aquele vulto soberbo,

— Vivamente alumiado, —

Atravessa o descampado

Como uma estátua de bronze

Do incêndio ao fulvo clarão.

 

Desceu a encosta do monte,

Tomou do rio o caminho...

E foi cantando baixinho

Como quem canta p'ra si.

 

Era uma dessas cantigas

Que ele um dia improvisara,

Quando junto da coivara

Faz-se o Escravo — trovador.

 

Era um canto languoroso,

Selvagem, belo, vivace,

Como o caniço que nasce

Sob os raios do Equador.

Eu gosto dessas cantigas,

Que me vem lembrar a infância,

São minhas velhas amigas,

Por elas morro de amor...

 

Deixai ouvir a toada

Do — cativo lenhador —

 

E o sertanejo assim solta a tirana,

Descendo lento p'ra a servil cabana...

 

 

TIRANA

"Minha Maria é bonita,

Tão bonita assim não há;

O beija-flor quando passa

Julga ver o manacá.

 

"Minha Maria é morena,

Como as tardes de verão;

Tem as tranças da palmeira

Quando sopra a viração.

 

"Companheiros! o meu peito

Era um ninho sem senhor;

Hoje tem um passarinho

P'ra cantar o seu amor.

 

"Trovadores da floresta!

Não digam a ninguém, não!...

Que Maria é a baunilha

Que me prende o coração.

 

"Quando eu morrer só me enterrem

Junto às palmeiras do val,

Para eu pensar que é Maria

Que geme no taquaral..."

 

 

A SENZALA

Qual o veado, que buscou o aprisco,

Balindo arisco, para a cerva corre...

ou como o pombo, que os arrulos solta,

Se ao ninho volta, quando a tarde morre...,

 

Assim, cantando a pastoril balada,

Já na esplanada o lenhador chegou.

Para a cabana da gentil Maria

Com que alegria a suspirar marchou!

 

Ei-la a casinha... tão pequena e bela!

Como é singela com seus brancos muros!

Que liso teto de sapé doirado!

Que ar engraçado! que perfumes puros!

 

Abre a janela para o campo verde,

Que além se perde pelos cerros nus...

A testa enfeita da infantil choupana

Verde liana de festões azuis.

 

É este o galho da rolinha brava,

Aonde a escrava seu viver abriga...

Canta a jandaia sobre a curva rama

E alegre chama sua dona amiga.

 

Aqui n'aurora, abandonando os ninhos,

Os passarinhos vêm pedir-lhe pão;

Pousam-lhe alegres nos cabelos bastos,

Nos seios castos, na pequena mão.

 

. . . . . . . . . . .

 

Eis o painel encantado,

Que eu quis pintar, mas não pude...

Lucas melhor o traçara

Na canção suave e rude...

Vede que olhar, que sorriso

S'expande no brônzeo rosto,

Vendo o lar do seu amor...

Ai! Da luz do Paraíso

Bate-lhe em cheio o fulgor.

 

 

DIÁLOGO DOS ECOS

E chegou-se p'ra a vivenda

Risonho, calmo, feliz...

Escutou... mas só ao longe

Cantavam as juritis...

Murmurou: "Vou surpr'endê-la!"

E a porta ao toque cedeu...

"Talvez agora sonhando

Diz meu nome o lábio seu,

Que a dormir nada prevê..."

 

E o eco responde: — Vê!...

 

"Como a casa está tão triste

Que aperto no coração!...

Maria!... Ninguém responde!

Maria, não ouves, não?...

Aqui vejo uma saudade

Nos braços de sua cruz...

Que querem dizer tais prantos,

Que rolam tantos, tantos,

Sobre as faces da saudade

Sobre os braços de Jesus?...

Oh! quem me empresta uma luz?...

Quem me arranca a ansiedade,

Que no meu peito nasceu?

Quem deste negro mistério

Me rasga o sombrio véu?..."

 

E o eco responde: — Eu!...

 

E chegou-se para o leito

Da casta flor do sertão...

Apertou co'a mão convulsa

O punhal e o coração!...

Stava inda tépido o ninho

Cheio de aromas suaves...

E — como a pena, que as aves

Deixam no musgo ao voar, —

Um anel de seus cabelos

Jazia cortado a esmo

Como relíquia no altar!...

Talvez prendendo nos elos

Mil suspiros, mil anelos,

Mil soluços, mil desvelos,

Que ela deu-lhes p'ra guardar!...

E o pranto em baga a rolar...

"Onde a pomba foi perder-se?

Que céu minha estrela encerra?

Maria, pobre criança,

Que fazes tu sobre a terra?"

 

E o eco responde: — Erra!

 

"Partiste! Nem te lembraste

Deste martírio sem fim!...

Não! perdoa... tu choraste

E os prantos, que derramaste

Foram vertidos por mim...

Houve pois um braço estranho

Robusto, feroz, tamanho,

Que pôde esmagar-te assim?..."

 

E o eco responde: — Sim!

 

E rugiu: "Vingança! guerra!

Pela flor, que me deixaste,

Pela cruz em que rezaste,

E que teus prantos encerra!

Eu juro guerra de morte

A quem feriu desta sorte

O anjo puro da terra...

Vê como este braço é forte!

Vê como é rijo este ferro!

Meu golpe é certo... não erro.

Onde há sangue, sangue escorre!...

Vilão! Deste ferro e braço,

Nem a terra, nem o espaço,

Nem mesmo Deus te socorre!!..."

 

E o eco responde: — Corre !

 

Como o cão ele em torno o ar aspira,

Depois se orientou.

Fareja as ervas... descobriu a pista

            E rápido marchou.

 

. . . . . . . . . . .

 

No entanto sobre as águas, que cintilam,

Como o dorso de enorme crocodilo,

Já manso e manso escoa-se a canoa;

Parecia assim vista — ao sol poente —

Esses ninhos, que o vento lança às águas,

E que na enchente vão boiando à toa!...

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