Happy birthday, José de Alencar! (1829-1877)
Crônica publicada no jornal Correio Mercantil, em 19 de novembro de 1854.
Rio, 19 de novembro
Se a mitologia dos povos antigos tivesse dado
formas de mulher, de fada ou ninfa, às semanas, como fêz com as horas, não me
veria às vêzes em tão sérios embaraços para escrever esta revista.
Em lugar de estar a
cogitar idéias, a parafusar novidades, e a lembrar-me de fatos e coisas
passadas, pediria emprestado a algum dos tipos da grande galeria feminina as
feições e os traços para desenhar o meu original.
Assim, quando me
viesse uma semana alegre e risonha, mas muito inconstante, com uns dias cheios
de nuvens, e outros límpidos e brilhantes, iluminados pelos raios esplêndidos
do sol, uma semana elegante de teatros e de bailes, imaginaria alguma fada de
formas graciosas, de olhos grandes, com uma certa altivez misturada de uma dose
sofrível de loureirismo.
Vestiria a minha fada
de branco com algumas fitas côr-de-rosa, pedir-lhe-ia que me contasse com tôda
a graça e travessura do seu espírito os segredos de suas horas e de seus
instantes.
Ao contrário, se fôsse
uma semana bem calma e bem tranqüila, em que os dias corressem puros e serenos,
em que fizesse umas belas noites de luar bem suaves e bem calmas, de céu azul e
de estrêlas cintilantes, lembrar-me-ia de alguma moreninha da minha terra, de
faces côr de jambo, ojos adormidillos, como dizem os espanhóis.
Então escreveria uma
poesia, um poema, um romance ou um idílio singelo, e livrava-me assim de
meter-me em certas questões graves e importantes que ocupam a atualidade. Faria
como o poeta; e limitar-me-ia às pequenas coisas que me tivessem interessado.
Nugae, quarum pars parva fuit.
É verdade que, quando
me acertasse cair uma semana como esta passada, onde iria eu procurar um tipo,
um modêlo que a caracterizasse perfeitamente? Lembro-me de uma mulher, que
descreveu Byron, a qual, com algumas modificações, talvez me pudesse bem servir
para o caso.
Seu único aspecto (da
mulher) valia um discurso acadêmico; cada um de seus olhos era um sermão; na
sua fronte estava estampada uma dissertação gramatical. Enfim, era uma
aritmética ambulante. Dir-se-ia uma correspondência ou alguma velha polêmica
que se houvesse despegado do seu competente jornal, para andar pelo mundo a
discutir e argumentar.
Com efeito, só êste
tipo imitado de D. Juan poderia dar uma ligeira idéia da semana passada, a qual
num formulário de botica podia bem traduzir-se pela seguinte receita: uma dose
de sol, duas de chuva e três de maçada. Admirável receita para curar a
população desta côrte da febre de novidades que tem produzido a guerra do
Oriente.
Os antigos, porém, que
fizeram tanta coisa boa, esqueceram-se dessa invenção de personificar a semana,
e por conseguinte não há remédio senão deixar as comparações e voltar ao
positivo da crônica, desfiando fato por fato, dia por dia.
Aposto que já estais a
rir dêste meu projeto, perguntando com os vossos botões que fatos são êstes que
descobri na semana passada, que acontecimentos se deram nestes dias, que valham
a pena, não já escrever simplesmente, mas contar.
Ides ver. Em primeiro
lugar, contar-vos-ei que a semana teve sete dias e sete noites, tal e qual como
as outras. Dêstes sete dias muitos foram de chuva, e alguns estiveram tão
belos, tão frescos, tão puros, que sentia-se a gente renascer com o sol que
vivificava a natureza. As noites foram quase tôdas de inverno e de teatro.
No Provisório estreou
a nova cantora, completando-se assim o número das três deusas que devem
disputar o pomo de ouro, o qual também foi pomo da discórdia. O público
dilettante está por conseguinte arvorado em Paris; e os poetas já se prepararam
para cantar a nova Ilíada e as causas terríveis de tão funesta guerra. Et
teterrimas belli causas.
Em São Pedro de
Alcântara o aparecimento de João Caetano produziu uma noite de entusiasmo e um
novo triunfo para o artista distinto, único representante da arte dramática no
Brasil.
Infelizmente as
circunstâncias precárias do nosso teatro, ou outras causas que ignoramos, não
têm dado lugar a que João Caetano forme uma escola sua, e trate de elevar a sua
arte, que no nosso país ainda se acha completamente na infância.
É a êste fim que deve
presentemente dedicar-se o ator brasileiro. Sua alma já deve estar saciada
destês triunfos e dessas ovações pessoais, que são apenas a manifestação de um
fato que todos reconhecem. Como ator, já fêz muito para sua glória individual;
é preciso que agora como artista e como brasileiro trabalhe para o futuro de
sua arte e para o engrandecimento de seu país.
Se João Caetano
compreender quanto é nobre e digna de seu talento esta grande missão, que
outros, antes de mim, já lhe apontaram; se, corrigindo pelo estudo alguns
pequenos defeitos, fundar uma escola dramática que conserve os exemplos e as
boas lições do seu talento e a sua experiência, verá abrir-se para êle uma nova
época.
O govêrno não se
negará certamente a auxiliar uma obra tão útil para o nosso desenvolvimento
moral; e, em vez de vãs ostentações, de coroas e de versos que se procuram
engrandecer ùnicamente pelo assunto, terá o que lhe tem faltado até agora, o
apoio e a animação da imprensa desta côrte.
Uma das coisas que têm
obstado a fundação de um teatro nacional é o receio da inutilidade a que será
condenado êste edifício, com o qual decerto se deve despender avultada soma. O
gôverno não só conhece a falta de artistas, como sente a dificuldade de
criá-los, não havendo elementos dispostos para êsse fim.
Não temos uma
companhia regular, nem esperanças de possuí-Ia brevemente. A única cena onde se
representa em nossa língua ocupa-se com vaudevilles e comédias traduzidas do
francês, nas quais nem o sentido nem a pronúncia é nacional.
Dêste modo ficamos
reduzidos ùnicamente ao teatro italiano, para onde somos obrigados, se não
preferimos ficar em casa, a dirigirmo-nos tôdas as noites de representação,
quer cante a Casaloni, quer encante a Charton, quer descantem as coristas. Tudo
é muito bom, visto que não há melhor.
Já algumas vêzes temos
censurado a diretoria do teatro por certas coisas que nos parece se podem
melhorar sem grandes sacrifícios. Hoje cumpre-nos fazer-lhe uma justiça, e até
um elogio, que ela merece sem dúvida alguma, pela resolução que nos consta ter
tomado de reparar o edifício e iluminá-lo a gás.
A polícia também
tem-se esmerado em fazer cessar as cenas tumultuárias e desagradáveis que se
iam tornando tão freqüentes naquele teatro, e que, se continuassem, acabariam
por afugentar dêle os apaixonados da música de batuque.
Não é, porém,
ùnicamente no teatro que a polícia tem dado provas de atividade. Efetuou-se
esta semana a prisão de um moedeiro falso, que se preparava a montar uma
fábrica dessa indústria lucrativa.
O crime de moeda falsa
é um dos mais severamente punidos em todos os países, porque ameaça a fortuna
do Estado e a dos particulares. Entretanto não acho razão no legislador em ter
punido ùnicamente o falsificador de moeda, deixando impunes muitos outros falsificadores
bem perigosos para a nossa felicidade e bem-estar.
Todos os dias lemos
nos jornais anúncios de dentistas, de cabeleireiros e de modistas, que apregoam
postiços de tôdas as qualidades, sem que a lei se inquiete com semelhantes
coisas.
Entretanto imagine-se
a posição desgraçada de um homem que, tendo-se casado, leva para casa uma
mulher tôda falsificada, e que de repente, em vez de um corpinho elegante e
mimoso, e de um rostinho encantador, apresenta-lhe o desagradável aspecto de um
cabide de vestidos, onde tôda a casta de falsificadores pendurou um produto de
sua indústria.
Quando chegar o
momento da decomposição dêste todo mecânico - quando a cabeleira, o ôlho de
vidro, os dentes de porcelana, o peito de algodão, as anquinhas se forem arrumando
sôbre o toilette - quem poderá avaliar a tristíssima posição dessa infeliz
vítima dos progressos da indústria humana!
Nem ao menos as leis
lhe concedem o direito de intentar uma ação de falsidade contra aquêles que o
lograram, abusando de sua confiança e boa-fé. É uma injustiça clamorosa que
cumpre reparar.
Um homem qualquer que
nos dá a descontar uma letra de uns miseráveis cem mil réis, falsificada por
êle, é condenado a uma porção de anos de cadeia. Entretanto aquêles que
falsificam uma mulher, e que desgraçam uma existência, enriquecem e riem-se à
nossa custa.
Deixemos esta
importante questão aos espíritos pensadores, aos amigos da humanidade. Não
temos tempo de tratá-la com a profundeza que exige; senão, resumiríamos o
quadro de tôdas as desgraças que produzem não só aquelas falsificações do
corpo, mas também muitas outras, como um olhar falso, um sorriso fingido, ou
uma palavra mentida.
Demais, temos ainda de
falar de uma outra medida do chefe de polícia a respeito dos cães, e que
interessa extraordinàriamente a segurança pública. O que cumpre é zelar a sua
execução para que não se torne letra morta, e faça cessar o perigo que corremos
todos os dias de encontrarmos a cada momento na rua ou no passeio a morte do
hidrófobo.
Afonso Karr levou dois
anos a escrever para conseguir que a polícia de Paris adotasse esta útil medida
de segurança pública, a que ordinàriamente damos tão pouco cuidado, e muitas
vêzes mesmo nos revoltamos por um mal entendido sentimento de humanidade.
Um dos maiores
obstáculos que êle encontrou sempre foram certos prejuízos, certos erros
consagrados e que todo o mundo repete, sem refletir, nem compreender o sentido
das palavras que profere.
Assim, desde a
antiguidade se diz que o cão é o amigo fiel do homem, o tipo e o môdelo da
amizade.
Êste consentimento
unânime, diz o escritor francês, é uma singular revelação do caráter do homem.
O cão obedece sem reflexões, se submete a todos os caprichos e a tôdas as
vontades sem distinção; quando o castigam, em vez de se defender, roja-se aos
pés de seu senhor e caricia a mão que o castigou. E é isto o que o homem chama
um amigo!
Já se vê que o sentimento
não é tão nobre como o parece a princípio. Tôdas estas vãs declamações dos
poetas sobre êsse animal, que dizem representar o símbolo da fidelidade, dão
uma bem mesquinha idéia do coração humano.
Não é, pois, o prazer
de possuir um autômato, que se move à nossa vontade, que pode compensar um dos
maiores riscos a que estamos sujeitos, e para o qual olhamos indiferentemente.
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