Wednesday, 5 February 2020

Speech of Pope Saint John Paul II to the 18th International Congress of the Transplantation Society (translated into Portuguese)


 Terça-feira, 29 de Agosto de 2000

 
Ilustres Senhoras e Senhores

1. É-me grato saudar todos vós por ocasião deste Congresso internacional, que vos vê reunidos para reflectir sobre a complexa e delicada temática dos transplantes. Agradeço aos Professores Raffaello Cortesini e Óscar Salvatierra as amáveis palavras que me dirigiram. Uma particular saudação dirige-se às Autoridades italianas aqui presentes.
A todos vós exprimo o meu reconhecimento pelo gentil convite a participar neste encontro, e aprecio vivamente a séria consideração que manifestais em relação ao ensinamento moral da Igreja. No respeito pela ciência e na atenção sobretudo à lei de Deus, a Igreja tem em vista exclusivamente o bem integral da pessoa humana.
Os transplantes são uma grande conquista da ciência ao serviço do homem e nos nossos dias não são poucos aqueles que devem a própria vida ao transplante de um órgão. Portanto, a técnica dos transplantes revela-se cada vez mais como um instrumento precioso na consecução da finalidade primária de toda a medicina:  o serviço à vida humana. Por esta razão, na Carta Encíclica Evangelium vitae recordei que, entre os gestos que concorrem para alimentar uma autêntica cultura da vida, "merece particular apreço a doação de órgãos feita, segundo formas eticamente aceitáveis, para oferecer uma possibilidade de saúde e até de vida a doentes, por vezes já sem esperança" (n. 86).

2. Como se verifica em qualquer conquista humana, também este sector especial da ciência médica, apesar de oferecer toda a esperança de saúde e de vida a muitos, não deixa de apresentar alguns pontos críticos, que requerem ser examinados à luz de uma atenta reflexão antropológica e ética.
Também nesta área da ciência médica o critério fundamental de avaliação reside na defesa e promoção do bem integral da pessoa humana, segundo a peculiar dignidade que temos em virtude da nossa humanidade. Por conseguinte, é evidente que todas as intervenções médicas na pessoa humana estão sujeitas a limitações que não se reduzem à eventual impossibilidade técnica de realização, mas que estão ligadas ao respeito da própria natureza humana entendida no seu significado integral:  "Aquilo que é tecnicamente possível não é necessariamente, por esta mera razão, admissível do ponto de vista moral" (Congregação para a Doutrina da Fé, Donum vitae, 4).

3. A primeira ênfase deve-se dar ao facto de que qualquer intervenção de transplante de órgãos, como já noutra ocasião tive a oportunidade de ressaltar, tem geralmente origem numa decisão de grande valor ético:  "A decisão de oferecer, sem recompensa, uma parte do próprio corpo, em benefício da saúde e do bem-estar de outra pessoa" (Discurso ao I Congresso Internacional sobre os Transplantes de Órgãos, cf. L'Osservatore Romano, ed. port. de 11/8/1991, pág. 5, n. 3). Precisamente nisto reside a nobreza do gesto, que se configura como um autêntico acto de amor. Não se oferece simplesmente uma parte do corpo, mas doa-se algo de si, a partir do momento que "por força da sua união substancial com uma alma espiritual, o corpo humano não pode ser considerado apenas como um conjunto de tecidos, órgãos e funções... Ele é parte constitutiva da pessoa que através dele se manifesta e se exprime" (Congregação para a Doutrina da Fé, Donum vitae, 3).
Por conseguinte, toda a práxis tendente a negociar os órgãos humanos ou a considerá-los como unidade de intercâmbio ou de comércio, resulta moralmente inaceitável, pois através da utilização do corpo como "objecto", viola-se a própria dignidade da pessoa.
Este primeiro ponto tem uma imediata consequência de notável relevância ética:  a necessidade de um consentimento informado. A "autenticidade" humana de um gesto tão decisivo requer, de facto, que a pessoa humana seja adequadamente informada sobre os processos nele implicados, a fim de exprimir de modo consciente e livre o seu consentimento ou a sua recusa. O consentimento dos parentes tem o seu próprio valor ético, quando falta a opção do doador. Naturalmente, um consentimento com características análogas deverá ser expresso por aquele que recebe os órgãos doados.

4. O reconhecimento da dignidade singular da pessoa humana tem uma ulterior consequência subjacente:  os órgãos vitais individualmente só podem ser removidos após a morte, isto é, do corpo de um indivíduo decerto morto. Esta exigência é evidente, uma vez que comportar-se diversamente significaria causar a morte intencional do doador, mediante a remoção dos seus órgãos. Daqui surge uma das questões mais frequentemente presentes nos debates bioéticos actuais e, não raro, também nas dúvidas das pessoas simples. Refiro-me ao problema da certificação da própria morte. Quando uma pessoa pode ser considerada completa e certamente morta?
A respeito disso, é oportuno recordar que a morte da pessoa é um evento único, que consiste na total desintegração do complexo unitário e integrado que a pessoa é em si mesma, como consequência da separação do princípio vital, ou da alma, da realidade corporal da pessoa. A morte da pessoa, entendida neste sentido original, é um evento que não pode ser directamente identificado por qualquer técnica científica ou método empírico.
Mas a experiência humana ensina também que o evento da morte produz inevitavelmente sinais biológicos, que a medicina aprendeu a reconhecer de maneira sempre mais específica. Os chamados "critérios" de certificação da morte, usados pela medicina moderna, não devem portanto ser entendidos como a determinação técnico-científica do momento  exacto  da  morte  da  pessoa, mas como uma modalidade cientificamente segura para identificar os sinais biológicos de que a pessoa de facto morreu.

5. Sabe-se muito bem que, desde há algum tempo, diversas abordagens científicas da certificação da morte transferiram a ênfase dos tradicionais sinais cardiorrespiratórios para o chamado critério "neurológico", nomeadamente para a constatação segundo parâmetros bem determinados e em geral compartilhados pela comunidade científica internacional, da cessação total e irreversível de qualquer actividade encefálica (cérebro, cerebelo e tronco encefálico), como sinal da perda da capacidade de integração do organismo individual como tal.
Diante dos parâmetros hodiernos de certificação da morte quer se refira aos sinais "encefálicos", quer se faça recurso aos mais tradicionais sinais cardiorrespiratórios a Igreja não toma decisões técnicas, mas limita-se a exercer a responsabilidade evangélica de confrontar os dados oferecidos pela ciência médica com uma concepção cristã da unidade da pessoa, evidenciando semelhanças e eventuais contradições, que poderiam pôr em perigo o respeito pela dignidade humana.
Nesta perspectiva, pode-se afirmar que o supramencionado critério de certificação da morte recentemente adoptado, isto é, a cessação total e irreversível de toda a actividade encefálica, se for aplicado de maneira escrupulosa, não parece contrastar os elementos essenciais duma sólida antropologia. Como consequência, o operador no campo da saúde que tem a responsabilidade profissional da certificação da morte pode basear-se neles para alcançar, caso por caso, aquele grau de certeza no juízo ético que a doutrina moral qualifica com o termo de "certeza moral", a qual é a base necessária e suficiente para se poder agir de maneira eticamente correcta. Portanto, só na presença dessa certeza será moralmente legítimo activar os necessários processos técnicos para a remoção dos órgãos a serem transplantados, tendo o médico sido informado do prévio consentimento do doador ou dos seus legítimos representantes.

6. Outro aspecto de grande relevo ético diz respeito ao problema da designação dos órgãos doados, mediante a compilação de listas de espera ou de "prioridades". Apesar dos esforços por promover uma cultura da doação de órgãos, os recursos actualmente disponíveis em muitos países ainda resultam insuficientes às necessidades médicas. Daqui nasce a exigência de compilar listas de espera para os transplantes, segundo critérios clarividentes e oportunamente motivados.
Do ponto de vista moral, um ponderado princípio de justiça exige que esses critérios de designação dos órgãos doados não derivem de modo algum de lógicas de tipo "discriminatório" (por exemplo, baseadas na idade, sexo, raça, religião, condição social, etc.), ou de tipo "utilitário" (por exemplo, assentes na capacidade de trabalho, utilidade social, etc.). Pelo contrário, na determinação das prioridades de acesso aos transplantes dever-se-á respeitar avaliações imunológicas e clínicas. Qualquer outro critério se revelaria arbitrário e subjectivo, pois não reconheceria o valor intrínseco que cada ser humano tem enquanto tal, independentemente das circunstâncias extrínsecas.

7. A última questão refere-se a uma possível solução alternativa, ainda em fase experimental, ao problema de encontrar órgãos a transplantar:  trata-se dos chamados xenotransplantes, isto é, o transplante de órgãos de outras espécies animais.
Não é minha intenção enfrentar aqui de maneira pormenorizada os problemas suscitados por essa forma de intervenção. Limito-me a recordar que já em 1956 o Papa Pio XII levantou a questão sobre a sua liceidade. Fê-lo comentando a possibilidade científica, que então se pressagiava, do transplante da córnea animal no homem. A resposta que ele deu, ainda hoje é iluminadora para nós:  como princípio, dizia ele, a liceidade de um xenotransplante requer, por um lado, que o órgão transplantado não prejudique a integridade da identidade psicológica ou genética da pessoa que o recebe; por outro, que exista a comprovada possibilidade biológica de efectuar com êxito esse transplante, sem expor a imoderados riscos quem o recebe (cf. Discurso à Associação Italiana de Doadores de Córnea e aos Clínicos Oculistas e Médicos Legais, 14 de Maio de 1956).

8. Ao concluir exprimo votos por que, graças à obra de muitas pessoas generosas e altamente qualificadas, a investigação científico-tecnológica no sector dos transplantes se desenvolva ainda mais, estendendo-se também à experimentação de novas terapias sucedâneas ao transplante de órgãos, como parecem prometer alguns dos recentes progressos protéticos. Em todo o caso, será preciso evitar sempre os métodos que não respeitam a dignidade e o valor da pessoa; penso de modo particular nas tentativas de clonagem humana, que visam a obtenção de órgãos de transplante:  enquanto implicam a manipulação e a destruição de embriões humanos, tais técnicas não são moralmente aceitáveis, mesmo que tenham em vista um objectivo em si bom. A ciência deixa entrever outras vias de intervenção terapêutica, que não comportam a clonagem nem o uso de células embrionárias, bastando para essa finalidade a utilização de células estaminais extraídas de organismos adultos. É ao longo desta via que deverá progredir a investigação, se quiser ser respeitosa da dignidade de cada ser humano, mesmo na fase embrionária.
No estudo de todas estas questões, é importante  a  contribuição  dos  filósofos e teólogos, cuja atenta e competente reflexão sobre os problemas éticos ligados à terapia dos transplantes poderá levar a especificar melhor os critérios de juízo, com base nos quais avaliar que tipos de transplante se podem considerar moralmente admissíveis e sob que condições, sobretudo no que concerne à salvaguarda da identidade pessoal de cada indivíduo.
Faço votos por que os líderes sociais, políticos e educativos renovem o seu compromisso em promover uma genuína cultura da generosidade e da solidariedade. É preciso suscitar no coração de todos, e em particular dos jovens, uma autêntica e profunda consideração da necessidade da caridade fraterna, de um amor que se possa exprimir na decisão de se tornar doador de órgãos.
O Senhor ajude cada um de vós no próprio trabalho, orientando-vos para o serviço do autêntico progresso humano.

Tuesday, 4 February 2020

Tuesday's Serial: “Mistério do Natal” by Coelho Netto (in Portuguese) - I


A PARTIDA
Era a hora silenciosa e triste do crepúsculo.
Abrumados de ouro os montes, em duros perfis, esmaltavam de negro o horizonte abrazado. Abriam-se as primeiras estrelas. Subiam da terra, como o fumo das aras, panos alvos de névoa.
Pelos caminhos esbarrondados, em àspero aclive, beirando grotas espontadas de cardos, cântaro ao ombro, as túnicas arrepanhadas à cinta, desfilavam donzelas conversando e rindo.
Juntas, em passo miudo, trepidando nas pedras, com um cheiro de suarda e de silvas, passavam nas trilhas ovelhas em rebanhos. Um rude e mazorro pastor seguia-as cabisbaixo.
Esbatiam-se as nuvens de ouro quando José e Maria apareceram no limiar da casa prontos para a longa jornada, por vales e montanhas, em direção à terra farta de Belém onde iam cumprir a lei de Augusto.
Fechada a porta ainda demoraram um instante sob a vinha, contidos pela saudade.
O homem, por fim, decidiu-se, tomou a frente, vagaroso, pensativo e logo, limpando os olhos que as làgrimas nublavam, a donzela seguiu.
Ele grisalho, alto, robusto, ainda que um tanto curvado pelo pendor constante em que vivia, sempre inclinado sobre o lenho do ofício, falquejando-o, acepilhando-o, dando-lhe forma e lustro. Ela, meã de altura, fina e fràgil.
Suavemente morena, os olhos grandes e tristes eram dum límpido verde d'àgua, e como dois lagos puríssimos num areal, ao sol; e os cabellos, escapando-se do cairel do manto, punham-lhe na fronte uma frisa de ouro.
Mal se lhe adivinhava o colo abotoado.
Os pés, alvos e pequeninos, assentavam em sandàlias e toda a sua riqueza consistia em um par de braceletes de marfim que lhe cingiam graciosamente os pulsos finos.
Trilhando a estrada que ia ter à fonte e seguia direita aos campos, paravam para falar às moças, companheiras e amigas de Maria, para corresponder à saudação dos homens, para atender às crianças que deixavam os seixos tomando-lhes o passo, pedindo que lhes trouxessem das terras de além conchas, como as de Ascalon, que conservam no bojo o soluço das ondas.
E Maria, comovida, chorava sobre o sorriso.
Os campos toldavam-se de bruma e as oliveiras de pálida folhagem faziam no recosto das colinas como estendais de névoa.
Ainda havia quem trabalhasse a leira na ânsia do fruto. Chiava um carro de lavoura, o guieiro afalava aos bois animando-os no lance abrupto de uma rampa.
Chegando ao planalto estéril, que dominava os horizontes e onde o vento zunia, os viajantes fizeram uma parada olhando em redor o redente dos montes.
Là ficava Nazaré no vale feliz, com o seu casario, em cubos brancos, como um pacífico rebanho adormecido.
Ao longe tudo era carregado e lúgubre.
A noite chegava primeiro às alturas.
Isolado, com a lua pairando acima do seu viso, o Tabor era como um peito de gigante de onde houvesse espirrado aquela gota de leite.
Maria ignorava o mundo. Nunca houvera passado além da fronteira da terra natal. Alongando os olhos pela vastidão que a vista alcançava, montes, várzeas, esplanados desertos tristes, sentia-se mesquinha e com medo.
Voltou-se, ainda uma vez, para olhar o tranquilo recanto em que sempre vivera em pobreza e virtude. Mas a noite baixara; raros lumes picavam a treva. Ouvia-se vago murmúrio, como escachôo d'águas, subindo do fundo obscuro onde jazia a cidade. Saiu-lhe do coração um suspiro magoado:
—Onde fica Belém? José levantou o braço e estendia o cajado na direção da terra de David, quando uma estrela fulgurou, illuminando radiosamente o céu profundo.
—Ali! disse o patriarca, numa voz que tremia, compreendendo, maravilhado, que aquele astro surgira dentro da noite como uma resposta de Deus à moça predestinada.


O ANJO
A noite, profundamente escura e fria, atravessada de vento, atroava o fragor de ramagens estortegadas e d'águas precipitosas que se despenhavam, aos jorros, pelos algares. Nas chãs ainda o trânsito era fácil, sem o varejo da ventania que repulsava os caminhantes, como a impedir-lhes a marcha; mas nas gargantas, entre alcantis, as lufadas, abocando à entrada, esfusiavam desabridas, uivando com a furia de alcatéias famintas em ronda céva, a fariscar redis.
Todas as estrelas haviam-se apagado, apenas rutilava, enorme, como lumaréu de vigília em torre, a que surgira e brilhava sobre Belém.
Os passos estrepitavam nos seixos, estalavam nas folhas e no ramalho seco.
Um ramo que bolisse, o lento defluir de um fio d'água por entre pedras levantavam ruídos temerosos.
Às vezes José detinha-se, hesitante na bifurcação de duas trilhas, mas pouco durava a dúvida porque uma das veredas enegrecia ainda mais, ao passo que a outra rutilava fúlgida, como calçada a diamantes, oferecendo-se, clara e segura, aos peregrinos.
Como entrassem em sinuosa e esgalgada passagem, murada de rochas anfratuosas, eriçada de agaves e echoando como o âmbito de uma caverna, ouviram leve, frouxo ruído como de esfrolar d'azas.
Uma águia, talvez, que acordara em algum teso e de pé, atenta, alargando as azas, ficara em atitude hostil pronta a arremeter em defesa do ninho.
O patriarca, acolhendo a esposa meiga, cujas faces pareciam de neve, apertou com força o cajado e levantou os olhos.
Maria, sentindo o perigo, tartamudeou, tímida e trêmula, uma oração ao Senhor. O receio de um ataque em sítio tão desolado, longe de toda habitação, onde nem choça de pegureiro havia, deteve o homem.
Os corações batiam. Nela era o pavor do desconhecido, o grande medo trágico das sombras do Cheol, que erram, à noite, pelos descampados; nele era temor por ela.
Não falavam, de olhos muito abertos, quietos, imoveis como os rochedos que os emparedavam.
De repente um clarão fulgurou. A passagem iluminou-se, as pedras cintilaram e as palmouras dos cardos ficaram como de prata. E eles viram uma grande luz à flor da terra e clareando as rochas.
Aves despertando galreavam festivamente o canto da madrugada.
Levantando o olhar viram os dois a fonte do esplendor. Era um anjo que os precedia, ora trilhando os caminhos, ora voando acima das rochas, pousando nos alcandores quando o lento e fatigado andar de Maria retardava a marcha.
A virgem sorria de enlevo e José, tolhido de comoção, não se atrevia a encarar o guia resplandecente, cujo reflexo abria na terra um clarão de luar. E as azas aflavam docemente no silencio.
A virgem reconheceu no anjo o mancebo que a saudàra com as palavras misteriosas, cuja promessa cumpria-se e José reviu o divino emissario que lhe aparecera em sonho, sob a figueira do horto, defendendo a inocencia de Maria, em cujo seio, cemo em corola de flor, a Graça perpassava em gênese imareavel, fecundando-o como o sol fecunda a leiva, eternamente pura.


LÍRIOS
Clareava.
Manhã opaca, envolta em bruma que algodoava a terra, flutuando com um lento ondular, fluindo em frouxeis alvíssimos como penugem, esgarçando-se, diluindo-se em fumo tênue que se esvaia no ar silencioso.
A espaços frondes boiavam, ramarias exciduas irrompiam.
Ouvia-se o lentejo lacrimoso das folhas orvalhadas.
A terra dava-se avaramente, a trechos curtos, à medida que os viajantes avançavam e o caminho percorrido, como os dias da vida, eram logo fechados em branco pelos nevoeiros.
Branco era também o céu e triste, pesando sobre a terra, tão baixo que as nuvens, por vezes, envolviam os peregrinos.
Pássaros piavam nas taliscas, ocultos; vozes de gado, longínquas, evocativas, anunciavam casaes.
Maria tiritava.
A túnica pesava-lhe nos hombros, húmida, e as faces, rorejadas, tingiam-se em duas rosas como se as flores, transidas, houvessem procurado abrigo ao calor carinhoso daquela mocidade pura.
José distraia a companheira falando-lhe dos lugares que iam atravessando.
Todos aqueles atalhos tortuosos, aqueles carreiros ínvios haviam sido, em tempos remotos, trilhados por patriarcas.
Ali haviam-se travado batalhas sanguentas; ali alvejara a tenda, crescera, em louro estendal, o trigo, retorcera-se a vinha, pastara o armento, correra o azeite, fundira-se o ferro, britara-se a pedra, cosera-se o barro sob as vistas de Iavé onipotente.
Por ali andara Elias trovejando oraculos. Judite afiara o gládio libertador nas arestas daquelas penhas.
Em poeira de ouro foi-se mudando a névoa: era o sol.
Já aparecia uma nesga de azul; árvores, moutas destacavam-se: a mortalha rasgava-se para a resurreição.
Alegremente as aves, em claras vozes, cantaram a victoria da Luz. E Maria, contente, d'olhos em êxtase, esperava o astro anunciado pela fulguração das nuvens.
Num recanto, entre mirradas arvores de troncos retorcidos, uma água escura e quieta reluzia.
Pedras negras, cobertas de limo, escondiam-se sob ramos acenosos.
Maria, sentindo a dobrez da fadiga, os olhos pesados de sono, sentou-se tão perto d'água que toda ela refletiu-se na superficie espelhenta.
Viu-se sem vaidade, com a mesma inocencia com que se revê o passaro e, num momento, infantilmente, mergulhou, até o punho, as mãos ambas no paúl.
Quiz José repreendel-a, vendo-a, porém, sorrir, sorriu também.
Gotejando sairam as pequeninas mãos da água que tremia.
Olhavam os dois os círculos que se abriam quando viram duas flores subirem à tona, brancas, abertas em cinco pétalas, eretas em finas hastes, como se o reflexo das mãos da Imaculada se houvesse materialisado em memória da ablução ligeira.
Eram lírios e trescalavam.
Virtude, brilho das almas, que importa que desças à vasa? És impermeavel como a luz, purificadora como o raio de sol.
Não perdes a límpida pureza e, se entras no Vício, fazes desabrochar a Graça; se afundas no Crime, tiras o Arrependimento.
O pantano era lobrego, coberto de folhas mortas e as mãos de Maria, só com o aflorarem, tanto o purificaram que dele nasceu o lírio sem mácula, símbolo formoso e cândido da inocência.


A REFEIÇÃO
Suave som de frauta pastoril deu a Maria o encanto de uma égloga. Voltou a cabeça dourada e viu o rebanho que se aproximava em vagaroso passo.
Trazia-o um menino, guiando-o por entre as ervas de aroma. Um lindo menino, tão alvo que não despedia sombra, como as neves que os raios do sol atravessam; tão louro que a sua cabeça alumiava.
Vinha a frauta soando em suaves acentos e atraidas, enlevadas na música, abelhas voavam em volta do pastorinho, que assim apascentava dois rebanhos: um pela terra verde, outro pelos ares claros.
Ergueu-se Maria e, sem dizer palavra, olhando os ubres apojados das ovelhas, deu a sentir o seu desejo.
Como devia saber aquele leite que era a metamorfose das flores dos silvados! Como devia rescender na boca e aquecer e fartar!
Calou-se a frauta e o menino, fitando os olhos meigos no casal errante, como se de muito o conhecesse e amasse, deteve-se, e os animais pararam.
Ficou o rebanho unido, tão junto que não fazia mais que um velo e as abelhas, zumbindo, puzeram-se a esvoaçar em torno dos lírios alvos.
José adiantou-se e, oferecendo um óbulo ao menino, pediu-lhe um pouco de leite. Sorrindo, o pastorinho tomou o tarro que trazia ao flanco.
Logo, entre as ovelhas, houve um movimento ansioso. Balavam todas oferecendo as tetas refertas, atropelavam-se, saltavam querendo, cada qual, ser a escolhida e o pastorinho brandamente as afastava.
Foi à primeira, ordenhou-a. O leite esguichou em fio; outra chegou, depois outra e a todas ele atendia para que nenhuma ficasse preterida.
Já a espuma fervia crescendo em flor, transbordando do vaso e as ovelhas festejavam-se contentes.
Sorrindo, aceitou Maria a oferta do zagal; bebeu a lentos goles, saboreando. E foi a vez de José.
Refeito, o patriarca insistiu na dádiva da moeda, mas o menino negou-se a recebe-la:
«Que era um pouco de leite? Qualquer pastor faria o mesmo.»
Saudou-os, e, pondo-se à frente das ovelhas, levou a frauta aos lábios.
Os sons vibraram. Lento e manso o rebanho proseguiu. Foi então que Maria viu que as abelhas, tantas que ocultavam os lirios, deixavam as flores voando à música da frauta.
—Lindo pastor! Lindo rebanho! disse, enlevada, a Virgem. Mas logo, referindo-se às abelhas que fugiam, perguntou a José: Que terão elas buscado nas flores d'água?
—O aroma e o néctar, explicou o patriarca.
Chegaram-se os dois às flores e viram, maravilhados, que estavam cheias de mel cristalino e louro como o âmbar precioso e tão perfumado como se contivesse toda a essência das flores.
Tomou José um dos lírios e deu-o a Maria; a Virgem offereceu-lhe o outro. Depois, deliciados, contemplaram-se felizes.
—A frauta já não soa, vai muito longe o pastor, disse Maria.
—Vai muito longe! repetiu José contricto, levantando os olhos para o céu, como se procurasse nas nuvens o pastorinho louro e as ovelhinhas brancas.


A NUVEM
Sob a irradiação do sol a terra seca abrazava, exalando um bafio de rescaldo.
Triste, flagelada Samaria pagã!
Os deuses do Garizin, depois da destruição do templo, pareciam haver desertado o monte onde os homens subiam a retemperar a fé, de onde manava a seiva que se infiltrava nos campos e mantinha vivas todas as fontes, entre rochas úmidas.
Ermo o sagrado monte, esquecido o santuário antigo, as lavouras mirraram e um sol mais árdego crestou as ervas, sorveu as àguas outr'ora copiosas.
Nem as torrentes ligeiras conseguiram, fugindo, escapar à inclemência e os leitos dos córregos, em lodo seco, estalavam, fendiam-se em gretas fundas.
Um fio d'água rastejava nos lugares que, antigamente, rios largos alagavam.
Das fontes restavam apenas as pedras calvas sobre areias tórridas onde víboras esfusiavam, entaliscando-se ao rumor de passos.
De ponto em ponto uma cisterna funda oferecia ao caminhante a sua água salobra.
Às vezes o terebinto forte sombreava-a ou figueiras e mimosas formavam-lhe em torno um bosque ameno.
Mas os trilhos, arenosos e pedrentos, eram apenas habitados pelo cardo que esgalhava os ramos espinhosos, abertos em feridas, feios, disformes como aleijões. Não se ouvia cantar um pássaro—só o gípaeto atravessava o espaço fulgurante ou grandes águias hostis, pousadas no cabeço das penhas, devassavam os arredores buscando o que prear.
Maria ofegava seguindo o esposo. A areia escaldava-lhe os pés mimosos, o sol abrazava-lhe a cabeça.
Caminhavam como atravéz de chamas, sem que os olhos avistassem um colmado, a grata ramagem duma árvore.
Ó terras férteis da Galiléia! vales alfombrados e frescos de tanta beleza por onde correm numerosos ribeiros claros. Ó Galiléia!
Tudo era desolação na tristonha Samaria e o sol do outono queimava como nos incendidos dias estivaes.
Seria melhor esperarem a tarde, proseguirem com a brandura do crepúsculo; mas a pressa que levavam não lhes permittia demora.
José, mais robusto e afeito a rigores, resistia; a Virgem, porém, começava a sentir-se atordoada: faltava-lhe o ar, os olhos ardiam-lhe.
—Chega-te à sombra do meu corpo, disse-lhe o patriarca. Ela obedeceu. Mas o sol zombava da misericordia do amor e Maria continha as lágrimas, calava as dores dos delicados pés abertos em feridas, não querendo que o esposo sofresse com o seu sofrimento.
O sol subia, aumentava o calor e o ânimo da Virgem desfalecia quando uma nuvem cresceu acima do monte Ebal.
Era escura como os nimbus e apressava-se como impelida por um grande vento.
Barulho surdo anunciava-a, igual ao ronco soturno que precede as saraivadas de verão.
A terra entenebrecia à passagem obumbrada da nuvem, que vinha direita ao caminho trilhado pelo casal.
O ruido aumentava tornando-se como o escachôo das catadupas.
Detiveram-se os dois, pálidos, tolhidos de espanto.
Súbito Maria sorriu:
—São pombas, disse. Eram, efetivamente, milhares de pombas azuis que, muito juntas, formavam a nuvem escura. Pairaram, ficaram adejando sobre eles, com rumoroso arrulho, e o sol quebrava-se-lhes nas azas estendidas.
José baixou os olhos, dobraram-se-lhe os joelhos e a Virgem, olhando as aves, não deu pelo gesto piedoso nem ouviu as palavras devotas com que ele, em êxtase, adorava-a.
Então proseguiram à sombra do imenso palio azul e fora da nuvem viva a terra, quente e rútila, ardia e faiscava ao sol.


AO PÔR DO SOL
No céu desbotavam, esbatiam-se as cores vivas, o ouro e a púrpura fundiam-se em violete e, docemente, a melancolia vesperal envolvia a natureza e penetrava as almas. E Maria perguntou:
—Porque é mais triste do que a noite o breve instante do pôr do sol?
—Porque é uma agonia, respondeu José. Não é a morte que impressiona, é o morrer.
A luz que vasqueja é como o corpo que estrebucha. A noite é serena, tem a imobilidade do cadáver.
Quantas sombras havia na terra? Tantas quantas são os seres e as coisas que existem. O sol, porque é a vida, discrimina, dá a cada um a sua autonomia para o bem ou para o mal.
O homem tem a sua sombra, como a formiga; a cordilheira escurece uma região e o grão de areia destaca a sua mancha.
A noite condensa na mesma sombra todo o universo.
No instante da agonia a alma, como o saltador que recua para ganhar impulso na corrida e formar o pulo, regressa na reminescência recordando a vida, desde os dias primevos até à hora suprema.
O crepúsculo, que lembra o amanhecer, sem a alegria, é um recuo à madrugada para o salto dentro da noite.
—Aquele clarão que alveja nos montes é o luar. A lua é como uma lâmpada que o sol deixa acesa quando parte. Como a noite é linda!
—E purificadora. O sono é um mergulho na Eternidade.
—Quando eu era pequenina, mal anoitecia, punha-me a tremer de medo e só depois de rezar conseguia adormecer.
—Porque a Fé é uma claridade que desfaz as sombras interiores. O que não crê é como o cego que anda tateando, sempre arriscado a perigos, bastando resvalar num talude para precipitar-se no abismo.
A Fé é como a lampada dos templos: sempre acesa e fulgurando.
O homem de fé anda mais seguro na escuridão do que o incrédulo ao sol. O horizonte do crente é Deus.
—Porque bate com mais vigor o coração à noite?
—As águas murmuram mais alto no silencio? Não, a voz é a mesma, a calma é que isola fazendo-a parecer mais forte. Quando trabalhas à sombra da vinha ouves balar o rebanho? Não, entanto, à noite, soergues-te no leito à voz lamentosa duma ovelha perdida.
O coração parece pulsar com mais ímpeto nas horas de recolhimento.
Nas cavernas profundas as vozes reboam, o estellcídio de uma gota faz ruido. É essa uma das vantagens da noite—estabelecer o silencio, a quietude nalma para que a consciência faça o seu ato de contrição.
—E as estrelas? Quem as acende no céu?
—Aquele mesmo que abre as flores na terra.
—Ninguém o vê.
—E o Pensamento, quem o vê? Enunciado é um relampago, realisado é um esplendor; a sua essência é o genio, que gera a Ordem. O mundo é a realização do Pensamento de Deus; as obras efêmeras do mundo são a consubstânsiação do pensamento humano. O homem constrói, é o artista; Deus cria, é o Verbo.
—E eu?
—Tu és Maria, disse o patriarca, afagando-a paternalmente.
Iterativas, afinadas vozes murmuraram nos ares concluindo o dizer do ancião:

    ... cheia de Graça, o Senhor é contigo.
    Bendita és tu entre as mulheres.

Ela deteve-se assustada e interrogou o esposo, trêmulo:
—Que dizeis, meu senhor? José, que nada ouvira, respondeu:
—Digo que és uma creatura de Deus, como a flor, como a estrela.
Os chacais latiam no deserto ao doce clarão da lua.


A TENTAÇÃO
Numerosa estropeada de inúmeros corcéis atroou o silencio; tubas clangoraram e, repentinamente, como passassem entre duas alcantiladas penhas, que o luar vestia d'alvo, viram altos pilonos de basalto, sarapintados de hieroglifos, ante os quais esfinges monstruosas, deitadas sobre estelas negras, laivadas de sanguíneo, com os bicos dos rijos peitos incrustados de rubis, cravavam no céu os olhos misteriosos.
Mal chegaram à entrada portentosa logo uma luzente guarda de catafractos, com petrinas de prata, montando ginetes brancos de crinas rastejantes, hasteando lanças que alumiavam, formaram duas extensas alas ao longo do caminho areado de ouro, sobre o qual frescamente rociava uma serena pulverisação de aromas.
Os olhos perdiam-se na visão de uma vasta cidade mirífica, toda em mármores e pórfidos, com enormes templos, palácios que eram cidadelas, jardins de redolentes aléias, rios beirados de árvores, com as rampas em alcatifa de flores, rolando alisadas águas sobre as quais rebrilhava, em tremulina, o luar.
Barcos de proas curvas, transbordando brocados, cruzavam-se com músicos sob doceis de seda.
Nos bosques que os cisnes percorriam, alvos como vivos mármores, mulheres, veladas de gaze, coroadas de rosas, repousavam na fina relva ou balouçavam-se em redouças.
Os zimbórios dourados, os frontões dos templos tauxiados de ouro, as escadarias largas, de zebrados degraus de cipolino, subindo a pátios de mosaico, esplendiam.
Surdo rumor agitava a cidade onde a multidão, em festa, tumultuava numa variedade de trajos multicores.
Passavam palanques sob flabelos empunhados por grandes negros vestidos de saios rubros, com franjas de prata, adagas à cinta, emplumados turbantes à cabeça.
Plaustros rodavam com crepitações levantando uma névoa loura.
Fotinas de harpas respondiam-se de um eirado a outro e, num obelisco de onix canelado, mole serpente de escamas de ouro, vibrando a lingua bífida, enroscava-se, em lentas espiras, ficando, às vezes, pendente, a oscilar como uma grossa liana.
José olhava pasmado e Maria encolhia-se tímida, contemplando, deslumbrada, a cidade fulgente.
Não era a triste Siquém nem a sombria Jericó. Que cidade seria aquela tão rica, de tanta vida, isolada na tristonha e maninha região da Samaria?
Subitamente, com improvisa fulguração, abriram-se de par em par as portas do templo maior e um grave cortejo apareceu no peristilo e vagaroso, solene, poz-se a descer a fúlgida escaleira.
Vozes, ao ritmo de instrumentos litúrgicos, entoaram um cântico glorioso.
O povo prostrou-se na areia micante das alamedas bradando um nome forte.
Cerúleo clarão refulgiu celestialmente. Coalharam-se os ares de aves, armas lampejaram em meneio heróico e toda a turba templária formou no atrium, ergueu um sonoro louvor e rojou-se de bruços, com um tinir argentino de armilas e braceletes. E um homem alto, alado, com dois cornos de luz purpúrea ardendo-lhe entre os cabelos crespos, surgiu no limiar de ouro estendendo amorosamente os braços a Maria extática.
A voz com que a chamou reproduziu-se em eco no silêncio místico; o seu olhar ardia e, em torno do seu corpo atorreado, relumbrava um halo como se o emoldurassem chamas.
—Vem! O meu amor esperava-te ancioso. És a eleita de minh'alma. Chegaste no tempo em que as rosas florescem. As vinhas crespas dão fruto, as abelhas fazem o seu mel, o trigo redoura os campos, os lagos são açucenais extensos.
Eu puz em ordem a natureza para as nossas núpcias sagradas. Vem!
A terra em que pisas nunca recolheu cadaveres. Entraste no reino da ventura eterna. Vem! E estendeu os longos braços que alumiavam como caudas d'astros.
Houve um clamor ovante feito com o nome suave de Maria e outro que ribombava e os catafractos, levantando-se, a prumo, nos estribos, cruzaram as lanças formando uma abóbada de cintilações.
José olhava, mudo e receioso, acolhendo ao peito a tímida donzela. Um galo cantou em alguma herdade próxima.
Instantaneamente, com uma surda explosão, toda a cidade maravilhosa e os seres que a animavam subverteram-se.
Os ares ficaram nublados de fumo, estriges chirriaram.
De novo reapareceram os campos rasos, ermos, estéreis, calados, ao luar lívido.
Maria, com o coração sobresaltado, murmurou:
—Que lindo sonho, meu senhor.
—Não foi sonho, Maria, tornou sombriamente o patriarca. Vamos! Os lirios trescalam, os galos cantam; é a madrugada que vem.
Puzeram-se a caminho.
E, pelos ares, contorcendo-se em furor, uma sombra alada fugia, enorme, monstruosa, com dois cornos que coruscavam.


O MILAGRE DAS LÁGRIMAS
A estrada, a duas horas de Siquém, pelos montes, larga e suave, com aceitosas sombras de sicômoros e de amendoeiras, era toda orlada de anêmonas vermelhas e de margaridas brancas e amarelas.
Os khans sucediam-se sempre abrigados em hortos frondosos, com a cisterna ao lado ou perto de alguma fonte, com a alpendrada reverdecida pela vinha, debaixo da qual os mercadores, que desciam de Tiro ou do Líbano ou subiam de Jopé, comiam uma febra de anho regando-a com o vinho fresco de Engadi, emquanto os dromedários soltos iam e vinham vagarosamente ou deitados, ruminando, cerravam os olhos nostálgicos à vivida fulguração do sol.
Casas misérrimas, de muros de lodo, cobertas de palha, confundiam-se com a ramagem dos eloendros, perdiam-se nos olivais.
Caravanas desfilavam—os homens a cavalo, com as lanças altas, o albornoz ao vento; as mulheres em jumentos ou em carros, entre fardos e alcofas, agasalhando crianças sob as pontas dos mantos.
Por vezes um canto suave rompia da turba, rufavam tamboris, quinaretes vibravam, frautas desferiam e os cavaleiros alegres faziam caracolar os ginetes, as mulheres punham-se de pé nos carros olhando as muralhas que se aprumavam ao longe, fechando cidades, cujas casas, em cubos brancos, semelhavam túmulos.
José evitava os pousos, fugia aos rumorosos aduares, metendo por atalhos para evitar a chacota da gente nômade.
Justamente atravessavam uma trilha deserta quando ouviram um choro triste e deram de rosto com uma moça morena que trazia nos braços uma criança inerte.
Pós ela uma pequenita, já com abundância de flores, ainda varejava os matos procurando anêmonas.
Vendo-os, a mísera susteve o pranto e, fitando em José os olhos rasos d'água, perguntou:
«Se ainda distava muito Endor, onde vivia Baruc, o nazir, que conhecia a virtude das ervas e realisava curas maravilhosas. Vendera as suas ovelhas e levava oito ciclos de prata e um colar de ouro comprado em Jerusalém e, se tanto não bastasse, dar-se-ia como escrava pela saúde do filho.»
José estendeu o braço na direção do Levante:
—Era além, muito longe, através da montanha, num vale sombrio, a horas do Jordão.
Maria, comovida, quiz ver o infante.
A mãe descobriu-lhe o rosto.
Era lindo!
Os cabelos rolavam-lhe em cachos louros, os olhos jaziam como dois mortos sob as cúpulas tumbais das pálpebras, com os longos cílios repontando como a erva que viça no abandono.
A boca, de lábios cerrados, lívida, era como o leito seco de uma torrente que o sol exauriu e estalou.
Não se movia e, tão rígido, tão frio estava que só a ilusão do amor podia ainda emprestar-lhe vida.
A pequenita continuava a rebuscar anêmonas cantando.
—Ides debalde a Endor com o vosso filho, disse comiserado o patriarca, acrescentando: Baruc pode sarar enfermos, mas só Elias resuscitava os mortos.
—Quereis dizer que ele está morto!? exclamou a mulher tremendo. Se, ainda ontem, embalei-o nos braços... Se ainda estou com os peitos cheios de leite, manando copiosamente como as ribeiras das colinas.
Ai! de mim... Bem que eu não queria cantar a cantiga tristonha! Foi o canto triste que o fez fugir dos meus braços. Ai de mim!
Adormeci-o para sempre.
E agora? Quem terá piedade da minha solidão? Era ele só...
Nasceu em noite de luar, finou-se em manhã de névoa. E hei-de o deixar na terra justamente agora quando o inverno chega! Ai! de mim... A saudade mudará o leite dos meus peitos em lágrimas para os meus olhos. Pobre de mim! Coitada de mim!
E a moça deixou-se cair à beira do caminho apertando nos braços o corpo do filho morto.
A pequenita continuava a rebuscar anêmonas.
Maria inclinou-se compadecida sobre o cadáver e duas lágrimas da sua piedade rolaram na fronte gélida do defunto.
Logo abriram-se os olhos da criança. Eram azuis, cor do céu; renasceram-lhe as rosas das faces, os bracinhos inertes estenderam-se e, lindo, com o esplendor da vida, o pequeno sorria afogando a cabeça no colo materno.
O espanto emudecera, imobilisara a moça.
Súbito, ergueu-se com um grito d'alma, poz-se a rasgar a túnica na pressa sôfrega de amamentar o filho.
Os peitos saltaram túmidos. O pequeno abocou avidamente e a mãe, sentindo-o sugar, contente e com lágrimas, ajoelhou-se e, d'olhos no céu, ficou como petrificada.
Maria chorava por vê-la chorar venturosa e, como as suas lágrimas caissem na terra, a pequenita não teve mãos para colher as flores que nasciam, brotando como acima d'àgua borbulham, às mil, as bolhas de ar.