Capítulo II
Eram seis horas da manhan quando acordou em sobresalto, como se houvesse sido violentamente despertado. Sentou-se na cama esfregando os olhos, moído de fadiga e os factos da vespera repassaram-lhe na memoria, nitidos e rapidos: A scena em casa, a caminhada atravéz. da noite tormentosa, a subida á policia, o delegado somnolento. Mas pensando na mãi, poz-se de pé, descalço e sahiu para a sala, já aberta e em ordem.
Tiniam na rua as campainhas das vaccas, trens bufavam rodando pesadamente; ás vezes um silvo varava o silencio. Havia sol. A luz dourada entrava pelas brechas das persianas brilhando no verniz dos moveis e, muito longe, soavam sinos, cornetas vibravam.
Ia para a janella, mas recuou pensando nos visinhos, receioso de alguma pergunta e estava parado, enrolando um cigarro, quando bateram à porta: era o lixeiro. Abriu; o homem passou às pressas, meio curvado, murmurando "Bom dia" e foi-se pelo corredor, com o balde à cabeça. Ele deixou-se estar, indo e vindo na sala estreita, até que o lixeiro tornou, sempre apressado, e saiu. Pareceu-lhe tê-lo visto sorrir, um sorriso irônico de quem se regozija com o sofrimento alheio. Teria ele sabido? Encostou-se à rótula olhando pelas rexas - o homem, trepado a uma das rodas da carroça, despejou o balde e dobrou a tampa que bateu com estrépito, saltou à calçada, deu volta, a correr, e, tomando as rédeas, incitou o animal que arrancou.
Na rua havia ainda grandes poças d'água, posto que os paralelepípedos, já enxutos, aparecessem muito brancos, lavados. O céu, limpidamente azul, resplandecia com um brilho de seda; subiam tufos de fumo das locomotivas, grossos, em rolos muito brancos, aos jatos, como flocos que se iam esgarçando, diluindo-se no ar.
Irresoluto, tão alquebrado d'alma como de corpo, com o desânimo, que é a fadiga moral, onde parava deixava-se ficar inerte, d'olhos imóveis, abandonado. Idéias contrárias debatiam-se-lhe no espírito, sentimentos diversos disputavam: ora o ódio irritava-lhe os nervos, ora a piedade umedecia-lhe os olhos.
Cabisbaixo, lentamente, com as mãos para as costas, seguiu pelo corredor e, na sala de jantar, levantando a cabeça, viu, com surpresa, a mãe parada à ponta do quarto de Violante, a chorar em silêncio, como se já não tivesse gemidos. Não lhe deu palavra; deixou-se cair em uma cadeira e ficou-se a olhar, absorto. Felícia trouxe-lhe o café e ele, distraído, pôs-se a mexê-lo vagarosamente.
Ouvindo bater à porta voltou-se ligeiro e disse à negra: que fosse ver, devia ser o caixeiro. Que lhe falasse lá mesmo, não queria ninguém em casa. A negra seguiu pelo corredor enrolando a trunfa em volta da carapinha grisalha e dura. Dona Júlia, sentando-se, disse, com uma doce expressão de ternura:
— Ela não levou as jóias, Paulo,- foi só com os brincos e com o anel que usava sempre.
— Como não levou?!
— Não, estão aqui; - e mostrou uma caixa verde, que fora de sabonetes, explicando:
— Estavam no guarda-vestidos. Nem as jóias, nem a roupa: está tudo aí. - Paulo conservou-se calado, d'olhos baixos, raspando o soalho com os pés. - Vais à polícia outra vez, não?
— Para quê?
A velha encarou-o boquiaberta.
— Como? Pois não vais?
— Eu, não. Que vou lá fazer? Para o homem dizer-me de novo: Que vai ver? Eu não.
— Mas, meu filho, se a polícia não fizer alguma coisa, quem poderá fazer? Queres que tua irmã fique para aí, atirada no mundo, sem uma pessoa que tome as dores por ela? Se não queres ir eu vou e tenho certeza de que hei de conseguir alguma coisa.
Felícia tornou à sala com os jornais que recebera do entregador. Paulo, em dois goles, sorveu o café morno e, cruzando as pemas, tomou as folhas que a negra deixara sobre a mesa. Lançou os olhos, com ânsia, à primeira página, percorrendo todas as colunas, à procura da notícia da fuga de Violante. Bem podia algum repórter ter aparecido na polícia depois da sua saída levando a informação escandalosa. Tranqüilizou-se, porém, lembrando-se da hora adiantada em que se dera o crime - já todos os jornais deviam estar prontos e nem tão importante era o caso para que o plantonista se arriscasse, por ele, a perder o correio.
Mais calmo, acendendo o cigarro, pôs-se a ler o Equador, achando aqui, ali, notícias que revisara: um desastre no mar, uma tentativa de suicídio e o conto de Aurélio Mendes, ao alto da primeira página, enchendo densamente as duas primeiras colunas.
Com o jornal diante dos olhos pensava nos companheiros. Que diriam eles quando a notícia, saindo da composição, lhes chegasse às mãos? O Brites conhecia Violante, e o Bruno, que a vira, uma vez, na redação, numa terça-feira gorda, ficara impressionado pelos seus olhos "que ardiam" - Que diriam eles quando lessem a prova infame? E, como se já sentisse a vergonha que lhe estava reservada, passou a mão pela fronte, depois, atirando um murro à mesa, ergueu-se: "Não! Não volto!" exclamou respondendo a um pensamento. Dona Júlia levantou os olhos marejados encarando-o em silêncio. "Não volto!" repetiu debruçando-se à janela que abria sobre o quintalejo. Lá estavam os caixotes com violetas e malvas, à sombra do muro. Eram os canteiros de Violante.
Ao fundo, num cercado de ripas, as galinhas cacarejavam assanhadas, com fome. Um gato caminhava lentamente pelo muro, ao sol e, entre as folhas miúdas duma esponjeira, uma camaxirra chilreava trêfega, na alegria da luz, entre o brilho das gotas da chuva, engastadas nas folhas.
Paulo, com o rosto nas mãos, os cotovelos no beiral da janela, elevou o olhar pensativo. De vez em vez sacudia a cabeça com um sorriso magoado. Amofinava-o aquela idéia dum possível comentário dos companheiros na sala da revisão, perto dele: o Bruno, sensual, a invejar o homem que arrebatara Violante; o Amaro, com quem tivera uma rusga, a rejubilar vingativo; o Malheiros a rir, com a sua eterna ironia, e os compositores, até o Lúcio, retranca, toda aquela gente a espetá-lo com olhares perversos ou curiosos. Talvez mesmo algum, mais ousado, lhe pedisse pormenores oferecendo-se para ajudá-lo na pesquisa ou com um empenho para o chefe, não porque o quisesse auxiliar, em desinteressada camaradagem, mas para entranhar-se no escândalo, conhecer as minúcias, todos os pequeninos incidentes. "Não! Não volto!" E encolheu os ombros.
Não eram somente os revisores do Equador, toda aquela multidão promíscua do jornal que lhe aparecia, inclemente, a rir, num surdo remoque: eram os estudantes, seus colegas da Escola, troçando o caso em volta do tabuleiro da Sabina, nos anfiteatros, nos corredores, até diante das mesas de dissecção.
Nas ruas também, quando passasse, haviam de mostrá-lo: "É aquele!" E ririam, com escárnio, da sua desonra; talvez o responsabilizassem por ela. Fariam dele um carrasco e da irmã uma vítima - que fugira para evitar tormentos, que se libertara do verdugo, preferindo as misérias do meretrício à vida humilhada e torturada. E ele, inocente, seguia, vexado, sob a dureza daqueles olhares que lhe infligiam um injusto castigo. Teve um novo movimento de cólera e Dona Júlia, que o olhava, perguntou:
— Que é?
Encolheu os ombros, deixando a janela e, molemente, abandonadamente, encostou-se à mesa brincando com a colher que ficara na salva de metal. De repente, numa inspiração, exclamou:
— Vou procurar o Mamede.
— Mamede?! Para quê? perguntou a mãe.
— Para descobrir Violante.
— E Mamede sabe, meu filho!?
— Mamede? Mamede conhece toda a cidade, é íntimo dessa gente da polícia. Se com ele eu não descobrir Violante, então... - esticou o beiço, desanimado. - A senhora bem sabe que ele foi agente de polícia, era um dos melhores; saiu por causa do gênio.
— E sabes onde ele mora?
— Mora em uma estalagem, na Rua do Riachuelo. Vou já. Hoje é domingo; ele deve estar em casa.
— Então, vai. E a polícia?
— Qual polícia! Penso lá em polícia!? Descanse. - Deu alguns passos e voltou-se: Olhe, se eu tivesse dinheiro ainda bem, mas assim...
E caminhou para a cozinha. Felícia talhava a carne sobre a mesa encardida e acumulada; o gato miava, fazendo voltas, com a cauda hirta e, numa gaiola, o gaturamo gorjeava, pulando, todo arrufado e úmido do banho. Paulo saiu ao quintal e, descalço como estava, foi seguindo direito ao banheiro. Felícia, vendo-o passar, correu com um par de tamancos e uma toalha felpuda:
— Olhe, nhonhô.
Ele tomou os tamancos, atirou a toalha ao ombro e empurrou a porta do banheiro sombrio e úmido. Despiu-se e, nu, passeando, a esfregar o peito, d'olhos no chão, esteve algum tempo a pensar.
Na vizinhança, uma voz de mulher cantava; estalavam roupas batidas e, de instante a instante, eram berros de locomotivas que chegavam, que partiam, arrastando comboios. Ficou debaixo do chuveiro, hesitante, com frio; esteve um momento parado a olhar o crivo que pingava, depois uma aranha, que se balançava na teia, a um canto, junto à caixa d'água; por fim, resoluto, puxou a corrente e a água jorrou copiosa. Refrescado, saltou para a tábua e, envolvendo-se na toalha, pôs-se a esfregar-se. Vestiu-se, calçou os tamancos e saiu.
Passando pela cozinha recomendou à Felícia que lhe arranjasse qualquer coisa para almoçar: um bife e ovos - e, apressado, fechou-se no quarto para vestir-se. As botinas estavam encharcadas; tomou uns sapatos amarelos e surpreendeu-se a assobiar, esquecido da agonia que lhe toldava a vida, dantes tão calma e feliz naquela casinha alegre. Vestido, mirou-se rapidamente ao espelho, compôs a gravata e passou à sala de jantar.
Felícia estendera a toalha e já o prato o esperava. Sentou-se; e arrastando uma cadeira para junto dele, ficou a enrolar uma ponta da toalha, suspirando a espaços. Quando a negra apareceu com o bife e os ovos ainda rechinando na frigideira, Paulo partiu o pão e pôs-se a comer às pressas, sem levantar os olhos. Cigarras chiavam nas árvores vizinhas e na rua um vendedor de frutas prolongava um pregão monótono.
— Que vais dizer ao Mamede?
— A verdade.
— Que ela fugiu de casa?
— Então?
Calou-se, pensativa. e tornou por fim, receosa:
— Não sei. Eu, por mim, não dizia. Mamede, com aquele vicio...
— Ora, vício. Mamãe há de ver.
— Enfim...
— A senhora pensa que a polícia é uma coisa e ela é outra. Olhe o Alves.
— Que Alves?
— Um colega meu. Um copeiro levou-lhe de casa todas as jóias da mãe e das irmãs e depois? O Alves fez tudo e, até hoje, não conseguiu da polícia outra resposta senão: "Que os agentes estão na pista do gatuno!" Vai já para um ano, e o Alves tem dinheiro para gastar. A senhora pensa que é só chegar lá e pedir? Pois sim! Vou arranjar-me com o Mamede. Se hei de gastar com um desconhecido, gasto com ele, que é amigo, e com mais probabilidade de êxito, porque Mamede pode ser tudo, mas estima-nos.
— Isso é verdade, concordou Dona Júlia, ajuntando: e tem obrigação. Seria um ingrato se não nos estimasse.
A palestra foi-se tornando calma entre mãe e filho, como se houvessem esquecido o desgosto. Dona Júlia chegou a notar que um dos punhos do filho tinha uma mancha de ferro e propôs substituí-lo.
— Não, serve este mesmo, - disse ele levantando-se e batendo forte com os pés para ajeitar os sapatos. Ainda mastigando, recebeu de Felícia a xícara de café; tomou-o em três goles e, dirigindo-se a Dona Júlia, disse-lhe: E agora não fique para aí chorando: almoce descansada. Eu vou ver. Tenho esperança de conseguir alguma coisa com o Mamede.
Tomou o chapéu, mas Dona Júlia adiantou-se com a escova.
— Espera um pouco, não vás assim! - e pôs-se a escová-lo vagarosamente.
— Lembre-se de sua saúde; a senhora anda doente. Eu estou aqui. Não vá agora amofinar-se por uma ingrata, que nem é digna da sua amizade. Eu, palavra de honra, se não fosse pela senhora, nem me abalava - que se arranjasse. - Dona Júlia curvara-se para escovar-lhe as calças.
— Isso não! É minha filha, é tua irmã!
— Pois sim...
— É teu sangue.
— Meu sangue, não! - negou indignado. - Não, que eu trabalho, faço pela vida. não ando a embonecar-me. Mas ela há de ver o bonito... - Oh!
— Não fales assim, Paulo! Deixa-a. Deus é grande! - E passando-lhe a mão pelas costas, para tirar um fiapo que esvoaçava repetiu: Deus é grande e é pai.
Paulo tomou a bengala e partiu.
— Deus te acompanhe! murmurou a velha.
Ele esteve um momento indeciso, a pensar nos vizinhos, imaginando uma resposta para os que lhe perguntassem pela irmã, mas resolvendo-se, abriu a porta e saiu, de cabeça baixa, como preocupado, para evitar os cumprimentos.
A cidade, depois da noite de chuva, muito arejada e lavada, tinha um aspecto asseado e agradável. O sol tépido brilhava num puro azul e, pelos telhados vermelhos do casario, aqui, ali, clarabóias dardejavam ofuscantes. Um realejo melancólico resmoneava ao longe. Paulo atravessou a rua sem voltar os olhos. Ouvia vozes na vizinhança - uma mulher que silvava psius! os gritos frenéticos de uma criança, latidos de cães. Quando dobrou a esquina sentiu-se aliviado, tranqüilo, como se houvesse escapado a um perigo; moderou o andar.
No quartel estrondava um dobrado entusiástico. Instintivamente foi ritmando os passos pela música; de repente, porém, como se se sentisse observado, fez uma leve parada e seguiu devagar, fugindo aos compassos, até que se achou diante da estação Central.
Gente escoava em massa para o largo, chalrando: pequenos apregoavam jornais, perseguindo os passageiros que chegavam dos subúrbios. Homens, sentados ou acocorados diante de cestas de frutas, acamavam maçãs rosadas ou conversavam alegremente. Grandes tabuleiros de doces atraíam a garotada, os doceiros apregoavam, afugentando as moscas que esvoaçavam em torno dos pães louros, lentejoulados d'açúcar cristalizado e os engraxates, de joelhos junto das caixas, que batiam, chamavam os transeuntes. Bondes faziam a curva, outros seguiam cheios e os de São Cristóvão cruzavam-se, apinhados, com gente nos estribos.
Os carros, em fila, estendiam-se ao longo do terreno vago e em torno de um quiosque cocheiros discutiam em algazarra; outros, atracados, mediam forças ou gingavam em meneios capoeirosos, enquanto um pequeno, junto a um dos carros, estalava um chicote, rindo-se quando a água de uma poça espirrava para os lados, lamacenta e negra.
Os montes, muito azuis, tinham uma nova alegria. A Tijuca, desanuviada, cravava o seu cimo no céu; e o parque em frente, denso e verde, parecia de um arvoredo tenro: lisa era toda a folhagem, como nascida naquela manhã; a grama verdejava viçosa, como se por ali houvesse andado a primavera mondando as plantas, recolhendo versas e ramalho para mostrar, em todo o esplendor da beleza, a sua residência mais amada.
Ia atravessando a rua quando uma matula de garotos arremangados, descalços, brandindo paus, aos berros, abalou da estação, a correr em direção ao quartel, donde partiam, vibrando na serenidade da manhã luminosa, clangores fortes de metais. Deteve-se, empolgado por aquele troar de guerra, que os ecos iam prolongando gloriosamente. Era um batalhão que saía, precedido pela cainçada lépida, que ladrava.
A molecada esperta, aos saltos, corcoveando, em destros arremessos, bradava atirando, desviando golpes, numa excitação de luta e a banda rompeu estrondosa como uma muralha resplandecente que se movesse, seguindo para o campo fronteiro, onde já se haviam reunido grupos de curiosos.
Apareceram depois os oficiais a cavalo - um dos ginetes, negro e luzidio, caracolava garboso: logo depois o primeiro pelotão, com as baionetas rútilas inclinadas, formando um revérbero e passavam, com intervalos, serenamente, pelotões sobre pelotões, até que houve um claro e a bandeira verde, solta ao vento, palpitou vitoriosa. Retiniram cometas, novos pelotões desfilaram: por fim vários soldados, num bando desordenado, saíram na coda e um carneiro, lanzudo e gordo, precipitou-se rebolando entre cães que ladravam, engalfinhando-se, numa alegria estróina. Bondes esperavam travados até que o batalhão atravessou a rua airosamente.
A um brado do comandante, que sofreava o corcel, os pelotões recuaram ficando toda a tropa em linha, imóvel e direita. Súbito, num relâmpago, moveram-se as baionetas fazendo uma linha perpendicular, cintilante. Uma pancada atroou, os tambores rufaram e um dos oficiais, à rédea frouxa, partiu em revista à formatura.
Os passageiros voltavam-se nos bondes para olhar e Paulo, entretido, acompanhava as manobras quando se lembrou do Mamede. Lançou um olhar rápido ao relógio da estação - eram oito e meia. Foi-se lentamente até ao portão do parque, sempre a ouvir a música guerreira que estrugia como um hino forte à luz magnífica do sol.
As aléias estavam ainda úmidas e marcadas de pegadas, mas que frescor na folhagem! O lago, liso e cristalino, refletia o céu e um ganso, alvo de neve, nadava sem mesmo frisar a água dormida. O relvado cintilava emperlado de gotas límpidas e um aroma silvestre de bosque virgem saturava o ar fino.
Ele seguia contemplativo, sentindo o hálito das árvores, cercado pela vegetação forte, refeita com a rega farta da noite.
Passarinhos cantavam nos ramos, iam dum a outro, perseguindo-se; uniam-se no ar como trocando beijos e lá iam, de novo, juntos, d'asas frementes, metiam-se num meandro folhudo, onde, por certo, tinham o ninho agasalhado. Folhas caíam girogirando, flores murchas manchavam a relva, amareleciam ou ensangüentavam as alamedas.
Num banco um casal espairecia vendo o filho, um pequenito enfezado, ir e vir, arrastando a bengala, a fazer garatujas na areia. Súbito, porém, um som rouco e fanho de buzina e um retinir de tímpano alarmaram os dois felizes: o homem levantou-se, tomou o petiz nos braços, mas não teve tempo de voltar ao banco porque dois ciclistas, curvados sobre as máquinas, pedalando com fúria, passaram rápidos, com uma leve crepitação da areia.
Homens caminhavam passo a passo, como convalescentes e uma velha negra, abordoada a um pau, trêmula e tarda, passou com resmungos, num solilóquio de idiota, a cabeça toda branca, a pele engelhada, os olhos sumidos, enevoados no fundo das órbitas. Paulo chegava à praça central quando alguém lhe falou. Era um vizinho, empregado no Correio:
— Por aqui?
— É verdade.
— Os seus, bons?
— Graças a Deus. E os seus?
— Assim... - tocou no boné e seguiu ligeiro, gingando. Outros ciclistas deslizavam, uns céleres, como em vôo rasteiro, outros lentamente, ziguezagueando, oscilando ora à direita, ora à esquerda, esbaforidos, suados.
Bem felizes eram aqueles que por ali andavam descuidados! Para eles a natureza ria, o sol era alegre, jacundos os passarinhos, as flores obrantes e no sorriso de enlevo manifestavam a alegria de viver. Tudo, em torno, acenava-lhes afortunadamente. Só ele ia magoado, com a alma denegrida, fugindo aos homens, receoso das próprias coisas, porque aquelas mesmas árvores, aquele mesmo céu, aqueles mesmos pássaros pareciam recebê-lo com ironia pungente vendo-o infeliz, toldando com a sua tristeza a alacridade daquela manhã triunfal.
Um velho maltrapilho cochilava num banco, sob a ramagem verde e basta duma árvore em flor, com o cajado entre as mãos engelhadas. Era um triste, talvez, tinha também o seu drama; mas abriu os olhos lentamente, cravou-os no céu e, como um sino ressoasse perto, sonoro e grave, tirou o chapéu desabado, descansou-o no banco, persignou-se e, baixando a cabeça branca, de emaranhados e amarelecidos cabelos, ficou imóvel.
Dominado por aquela figura venerável de crente, Paulo descobriu-se, mas com vergonha dos transeuntes, que o podiam tomar por um carola, pôs-se a passar a mão pelos cabelos - no íntimo, porém, fazia votos a Deus, àquele Deus de Misericórdia que a voz grave do sino recordava no esplendor da manhã.
Vivamente outros sinos, mais límpidos, bimbalharam em festivo repique, e lá iam os devotos ao som do reclamo, como ovelhas correndo à buzina do pastor, por entre os pedrouços e a urze brava do monte, aos quais bem podem ser comparadas as agruras da vida.
Quando chegou ao portão, em frente aos Bombeiros, teve de recuar à zoada das trompas de outros ciclistas, que vinham em caravana, apostando, uns mais avançados, rindo, galhofando em tom de vitória. Atravessou a rua e, fustigado pela preocupação, amiudou os passos.
Subindo a Rua do Senado por entre o casario pobre, vendo às janelas os bustos arremangados das caseiras e, na calçada, os homens que gozavam a sua manhã de folga, em mangas de camisa, os braços nus, guedelhudos e fortes, tinha, por vezes, palpites de que a irmã estava refugiada em uma daquelas casas. Ouvia-lhe o riso, reconhecia-lhe o timbre da voz fresca e lânguida; voltava os olhos e, rapidamente, devassava interiores modestos.
Num botequim, junto à barreira esbarrondada, abancados a mesas sórdidas, preguiçavam madraços, e, mais adiante, numa casa de pasto, escura e lôbrega, ao longo de compridos bancos, trabalhadores almoçavam chalrando estrondosamente.
Enxames de moscas esvoaçavam na calçada e um velho, sentado no limiar de uma casa, com a perna esticada, envolta em estropalho imundo, alrotava, estendendo a mão aos transeuntes. Paulo atirou-lhe uma moeda.
Ganhando o aclive da Rua do Riachuelo, seguiu lentamente, curvado, chegando ao alto alagado em suor.
Capítulo III
A estalagen em que morava o Mamede, antiga chacara senhorial, abria por um portão nobre, com leões de louça nos pilares de pedra. Era um immenso e rumoroso viveiro, alveolado de renquies de casotas baixas, de porta e janella, ao fundo de um jardinete, em umas escavacado secco, em outras caprichosanente plantado até a cerca de ripas que o limitava.
Largo, vasto, subindo em capinzal para a montanha, o terreno era o logradouro commum, graminado em pontos ou com coradouros de pedra sob uma verdadeira teia de cordas onde trapejavam roupas.
No acclive, encostado á barranca, havia um estábulo e mais ao fundo, num cercado de pau a pique, muares soltos espojavam-se entre carroças tombadas sobre os varaes. Tinas, encanteiradas em fila ou de borco. Sentia-se o descanso domingueiro.
Só uma mulher, vermelha, anafada, com um largo chapéu de homem à cabeça, as saias arrepanhadas na cintura grossa, mostrando as pernas fortes e os pés rijos, em tamancos, ensaboava, jogando violentamente o busto, rebolindo os quadris nutridos. Os seios desabavam-se-lhe, moles e trêmulos, no papo da camisa e os seus braços másculos mergulhavam e reapareciam enluvados d'espuma.
Um mulato calvo, d'óculos, quase no limiar de um dos casebres, aproveitando a luz, cosia à máquina, cantarolando; e uma negra, sentada acaçapadamente, com o pito nos beiços, chupava fumaças distraídas, olhando o céu azul.
Ao fundo, alta e agreste, a montanha impunha-se e, por um caminho íngreme, escavado, uma cabra, aos galões, galgava o alcândor.
Fortum acre de barrela saturava o ar. Poças d'água cinzenta alumiavam ao sol em todo o vasto enxurdeiro.
Paulo sabia que a casa do Mamede era uma das últimas, querendo, porém, certificar-se perguntou a um pequeno que, em camisola e descalço, arrastava um comboio feito com caixas de fósforos. O interrogado partiu correndo e estendeu o braço indicando uma casinha pintada de azul, a cuja frente, além da cerca de ripas, verdejava uma latada.
— É ali.
Paulo agradeceu e encaminhou-se saltando um rego onde dormia, estagnada, uma água negra, velada e pútrida. Antes de bater esteve a olhar, como à espera de alguém. Cantavam na vizinhança, em tom monótono de acalento. Adiantou-se e bateu, tímido a principio, depois forte, bradando:
— Ó de casa!
— Quem é? - rosnaram de dentro, e um mulato espadaúdo, picado de bexigas, em mangas de camisa, cabelo em poupa, apareceu à porta, sungando as calças. Logo que viu o estudante abriu os braços, com alegria ruidosa:
— Ó nhozinho! Que milagre! Vosmecê por aqui? - E, sério, inclinando-se, com o sobrolho carregado: Alguma novidade lá em casa?
Paulo afirmou com a cabeça e o mulato, boquiaberto, num assombro, ficou algum tempo a mirá-lo; de repente, porém, passando-lhe o braço pelas costas, chamou-o: Mas entre, nhozinho; entre. Fez uma volta repentina na soleira e, sorrindo, com os dentes muito brancos, observou, pernóstico: não repare, isto é casa de pobre... e Ritinha ainda nem fez a limpeza.
Paulo encolheu os ombros e, deixando o chapéu a um canto, sentou-se numa cadeira tosca, que tinha o forro de palha muito esgaçado.
— Vai um golinho de café? - Paulo aceitou. - Isto é que é... Sempre o mesmo, hem, nhozinho? Bom como o velho. - E, atirando o corpo para trás, com um gesto largo do braço, descaído e lépido: Em casa de pobre não há outra coisa. Mas é bom! - afirmou com seriedade cômica. - Um instantinho.
Correu um leve reposteiro de chita escura, de ramagens, e desapareceu, gingando.
Paulo lançou os olhos à sala. Estreita, com uma janela e a porta à frente, duas portas ao fundo, encobertas pelos reposteiros de chita que o vento tufava; uma mesa de pinho, a cômoda com imagens de gesso e quinquilharias, quatro cadeiras e um banco com assento de couro. Nas paredes: cromos de antigas folhinhas, gravuras recortadas e uma cópia da Batalha de Avaí. A um canto, um feixe de bengalões mosqueados.
Na janela, empanada por uma cortina de filó, dois vasos de barro com malvas e, numa gaiola, um pássaro triste, amorrinhado, olhava o céu, piando. Um gato cinzento, esgrouviado, espichou-se, corcoveou e veio vindo, com preguiça, pelos varais da latada; ao vê-lo, porém, deteve-se, desconfiado, fitando-o, e, sem perdê-lo de vista, agachou-se, cravou as unhas nas ripas, raspando com frenesi; de repente, num salto, desapareceu no telhado.
Mas o mulato tornou, com a sua alegria ruidosa: "Que Ritinha estava arranjando o café", e, tomando de cima da mesa uma ponta de cigarro, acendeu-a e sentou-se cavalgando o banco, de pernas abertas, descaído, os cotovelos nos joelhos, o queixo entalado nas mãos, e perguntou com mistério:
— Então que houve, nhozinho?
— Violante fugiu de casa, Mamede.
O mulato empinou-se num ímpeto de espanto e, hirto, d'olhos esbugalhados, exclamou:
— Como, nhozinho!? Não me diga isto! Nhá Violante...! Com quem?
— Não sei.
— Quando, nhozinho?
— Ontem à noite.
— E vosmecê não desconfia de alguém?
— Ora, Mamede, eu, com a vida que tenho, pouco paro em casa. Não sei.
— E a velha?
— Mamãe, coitada!
— Ora, Nhá Violante! Uma menina que parecia uma santa... Vosmecê já foi à polícia?
— Fui ontem. Mas não confio naquela gente. O que eu quero é que tu me auxilies. Só conto contigo.
— Comigo!? - exclamou o mulato vaidoso, espalmando a mão no peito.
— Sim, tu conheces essas coisas. Contigo tenho certeza de descobrir o patife.
O mulato encolheu-se, modesto.
— Ah! nhozinho, também não é assim como vosmecê pensa, - disse escarvando a cabeça; - não é assim. Se a gente ainda tivesse uma dica... - Encolheu-se, pensativo, mordicando os grossos beiços, levantando o bico das chinelas. De repente, firmando-se, explicou: Aqui só há um meio - é a gente conversar com os cocheiros. Ela, com certeza, foi de carro, eu sei; ninguém faz essas coisas senão de carro e cocheiro é como mulher: não guarda segredo - o que um faz está na boca de todos. O meio é a gente sair pescando aqui, ali, nos pontos. Mas para isso é preciso andar com essa malandragem e esse serviço não é para um moço como vosmecê.
— Como não? Por quê?
O mulato sorriu superiormente, bambaleando-se:
— Não, nhozinho, eu mexo as coisas cá no meu lado, vá vosmecê tocando lá por cima. Essa gente miúda é o diabo! repetiu. Perto dum moço como vosmecê nenhum abre o bico, não se arranca isto, - e mostrou a unha aguda do polegar. - Comigo não, sou cabra da mesma romaria, ando no lote com eles e com uma misturadinha e uma pabulagem destripo o mais mitrado. Para mim o melhor mesmo é pegar os cocheiros. A gente vai no rasto, farejando, até botar a mão em cima do mestre, depois... o resto é nada. Mas com vosmecê, não. Vosmecê atrapalha os cálculos. Moço assim direito... qual! dizem logo, isso é tira, está sondando. Eu conheço os casos; - e riu. Logo, porém, reassumindo a gravidade, perguntou: E na vizinhança? A gente não pode apanhar alguma coisa? Vosmecê não tentou?
— Não.
— Pois é preciso, nhozinho. Então é assim que vosmecê quer pegar o meco? É preciso.
Nesse momento uma mulatinha cor de canela, afastando o reposteiro, apareceu com a bandejinha de café.
Muito nova, teria dezoito anos, pele fina, cetínea, olhos negros, faceiros e pestanudos, cabelo liso, abundante, roliça e lânguida. Os seios rijos espetavam o corpinho de cassa, e, pelas mangas frouxas, viam-se-lhe os braços morenos, torneados e nos punhos finas pulseiras de prata com berloques tinindo. Mamede apresentou-a:
— Esta é a minha barbiana, Ritinha, a mulata de mais caídos que eu conheço; - e atirou uma palmada ao quadril da rapariga, que fugiu com o corpo graciosamente.
— Olha, Rita, este é o filho do meu major. Eu vi este menino assim - e esticou o braço forte mostrando a altura - brincou muito aqui nos meus joelhos, era doido por mim. Nem vosmecê se lembra, hem, nhozinho?
Paulo, sorvendo o café, fez um aceno afirmativo; mas o mulato, estirando as pernas, arregaçando as calças, duvidou:
— Qual! Vosmecê era muito miúdo. - Ritinha sentou-se com a bandeja nos joelhos, mirando-o. Mamede, porém, entregando-lhe as xícaras, atirou-lhe nova palmada, que ela rebateu, ligeira, com um momo. - Vai um bocadinho lá dentro, mulata; nós estamos aqui numa menestra.
Ritinha levantou-se molemente e, com o seu andar quebrado, desapareceu; pouco depois a sua garganta mandou à sala a melodia de uma modinha sertaneja.
— Então, nhozinho, vosmecê não acha que eu penso bem? Eu vejo fundo nessas coisas. Vosmecê toca lá de cima, eu vou trabalhando cá por baixo, com o meu povo: assim, sim. Fechamos o bicho num cerco e, seja ele quem for, quanto mais graúdo melhor, há de chegar à fala. E depois, se eu puser os luzios nele, vosmecê pode ficar certo de que o mestre cumpre a obrigação. Ah! isso cumpre! Olhe, nhozinho, não é por vosmecê estar presente, mas pergunte à Ritinha se eu não vivo aqui falando lá de casa: do velho, da velha, de vosmecê, de Nhá Violante. Eu estimo vosmecês mesmo, não é prosa, estimo! Vosmecês cresceram nos meus braços, e então? Deus me livre! Achando, vosmecê pode ficar tranqüilo, porque o trucha ou cumpre a obrigação apagando a mancha, ou eu... ahn! Vosmecê não me conhece ainda, nhozinho. Eu não sou homem de muita conversa, esteja certo disso; não sou, mas quando digo, faço, nem que saiba ir parar no inferno. Assim como assim, a gente vive em qualquer parte, vive mesmo, mas com uma ânsia no coração, isso é que não, não é comigo.
Encolheu os ombros, esguichou, por entredentes, uma cusparada para o quintalejo e ergueu-se.
— Vou pôr os manos em serviço e se eu, com eles, não descobrir, também a polícia não descobre, isso juro!
Afastou a cortina e bradou:
— Ritinha, que é da cana? Vosmecê não bebe?
— Não.
— Pois fique descansado, nhozinho, que eu vou trabalhar com gosto. Hoje mesmo começo, hoje é bom dia, que é domingo. É verdade que eu tenho um negocinho nas corridas, mas não há dúvida: primeiro a minha gente. Mas que maluquice de Nhá Violante! Uma moça bonita, que podia fazer um casamento importante...
"Mas é essa malandragem que anda por aí solta, desencaminhando as moças. A cidade está perdida, só mesmo um chefe teso, que mande varrer tudo, a torto e a direito. É uma pelintragem que faz medo: uns pindaíbas, sem lasca de guita, muito engravatados, batendo a calçada e fazendo estrupícios. E por isso que há tanta perdição por aí.
"Muitas vezes vosmecê lê nos jamais que um homem enfiou uma língua de ferro no bucho do outro, à toa. À toa?! pois sim, trate de indagar e há de ver. Só um maluco mata por matar, há sempre uma razão. Eu mesmo já tenho estado para esfriar mais de um, por causa de desaforos, não com a Ritinha, qu'isso, então, era logo; por causa de outras coisas. Foi algum vagabundo que virou a cabeça de Nhá Violante, mocinha nova, sem experiência do mundo... - Suspirou: Eu, de quem tenho mais pena é da velha... Tão boa, coitada! Uma santa!"
— Passou toda noite em claro, chorando.
— Imagino! Eu sei como ela é para vosmecês! Eh! quando um dos filhos tinha qualquer coisa, uma febrinha de nada... Nossa Senhora! ficava que até fazia pena, quanto mais com isso agora. Eu nem sei, coitada!
Paulo pôs-se de pé.
— Então estamos ajustados? Vais trabalhar?
— Hoje mesmo, já não cuido de outra coisa. Vá vosmecê tocando de cima qu'eu espero cá embaixo.
— Achas que devo voltar à polícia?
— Acho. Vosmecê não conhece algum delegado?
— Não.
— Mas isso é fácil. Vosmecê arranja um cartão lá no jornal e vai mesmo ao chefe. E deixe correr o barco. - Ritinha, já íntima, entrou com a garrafa e dois cálices. Mamede, porém, foi logo dizendo: Nhozinho não bebe, - e serviu-se, pigarreando grosso, com o cálice entre os dedos. Virou de um trago, caramunhando, olhos semicerrados.
— Então até logo, Mamede. Ainda vou dar uns passos por aí.
O mulato deu um safanão às calças:
— Pois é: vosmecê faz por seu lado qu'eu vou mexendo cá no meu mundo. E vou trabalhar com gente direita - pode ficar certo de que se eu farejar o rasto, trago o mano nos grampos. Vá descansado.
E estendeu a mão ao estudante. Ritinha, sempre lânguida, encostada à cômoda, olhava-o com os seus grandes olhos negros, aveludados que, por vezes, pareciam adormecer à sombra dos longos cílios. Paulo adiantou-se para falar-lhe com reserva e ela, como a custo, levantou o braço e entregou-lhe a mão, passivamente, num abandono. Tomou o chapéu e, já no quintalejo, sob a folhagem lustrosa, disse:
— Então até logo, Mamede; e trabalha.
— Não precisa pedir, nhozinho: eu entro nisso com o coração. - Paulo, porém, atraía-o e, quando o viu fora, longe das vistas de Ritinha, entre os velhos caixotes de plantas, perguntou-lhe em segredo: Estás armado? - O mulato recuou, como ofendido; o estudante, porém, já com a mão no bolso, continuou: Sem cerimônia, meu velho; entre nós deve haver franqueza. Eu posso passar algum.
— Que é isso, nhozinho! Então eu vou receber dinheiro de vosmecê?! Isso não! não senhor!
— Tu precisas, Mamede.
— Ora quê! Dinheiro arranja-se.
— Qual arranja-se, - insistiu o rapaz, tirando do bolso algumas notas amarfanhadas.
O mulato sorria, meio vexado; e a voz fresca de Ritinha recomeçou languidamente a modinha sertaneja. O estudante dobrou uma nota e meteu-a, à força, na mão calosa do mulato, que recuava, sorrindo.
— Que é isso nhozinho! Tenha paciência, isso não.
— Ora... - Afastou-se e, voltando-se da cancela, recomendou: E trabalha! Vamos ver se conseguimos descobrir o miserável.
— Não há dúvida. Eu saio já; é só o tempo de botar alguma coisa na boca.
Paulo acenou um adeus, e o mulato, agarrado à cerca, sorrindo, inclinou-se, recomendando:
— Lembranças, nhozinho.
Descendo, sempre alvejado pelos olhares curiosos da gente da estalagem, o estudante sentia-se vexado. Dir-se-ia que aquele povo simples, olhando-o e cochichando, comentava, como se o conhecesse, o segredo que ali o levara. Precipitou os passos e, achando-se na rua, atirou-se a um bonde que passava sem saber ao certo o rumo que devia seguir.
Sentou-se, muito encolhido, e logo o tipo sensual de Ritinha surgia-lhe como uma visão. Onde a teria o Mamede encontrado, tão nova, tão linda, bem diferente da Libânia, sua antiga companheira, uma bexigosa relaxada, que andava em mangas de camisa, tresandando a sarro, cuspilhando nojosamente, sempre em rusgas com a vizinhança da casa da Rua do Conde? Invejou o mulato. Devia ser delicioso viver com uma rapariguinha como aquela, vê-la, senti-la sempre, dobrando-a a um ligeiro aceno, sujeitando-a com um ardente olhar, como uma humilde, submissa escrava do amor.
Tão distraído estava com os pensamentos lúbricos que não deu pelo condutor - foi necessário que ele lhe tocasse o braço; voltou-se e, precipitadamente, desculpando-se, meteu a mão no bolso e pagou.
Depois de uma curta parada, de muda, diante da estação, o bonde seguiu rápido, ladeira abaixo, aos trancos.
Quando avistou os Arcos o estudante perguntou a si mesmo: "Mas para onde vou eu?" Não sabia, deixava-se levar ao acaso, sem indagar. Talvez encontrasse Violante.
No Largo da Lapa esteve para descer vendo uma fila de bondes engatados que seguiam para Botafogo. Sim, naquele bairro é que ela devia estar, num chalezinho risonho, entre flores. Àquela hora dormia ainda, decerto, sobre as sedas macias do leito infame com a cabeça no braço do amante, nua e fatigada. E, lá em casa, consumida de angústia, a pobre velha andava pelos cantos, como uma trapeira, reunindo as lembranças: aqui um veludo que apertara as tranças da ingrata, um livro desmantelado, um lenço, um cromo, coisas que falavam dela, que conservavam a impressão dos seus dedos ou o aroma da sua carne. Pobre velha!
E foi com os olhos aguados que ele viu o Passeio, as grandes árvores, os tabuleiros verdes e aquela gente que ia para ali respirar a brisa saturada do aroma da folhagem ou a que vinha do mar, cheirando a salsugem.
Às janelas das casas, criadas batiam tapetes, levantando uma densa poeira. Das portas dalguns prédios corriam lençóis d'água negra para a calçada. Carros rodavam, tirados por trotadores de raça, cruzando-se com os apressados tílburis; passavam carroças, rangendo pesadamente e uma diligência, velha e imunda, desconjuntada, subia lenta, com oscilações, puxada por dois muares, atarracada de legumes que tufavam em grandes cestos, feixes de canas, jacás de galinhas, caixotes e, por entre a carga, agarrados aos balaustres, ou sentados em sacas, homens descalços, em mangas de camisa, oscilando com os solavancos da traquitana, que ameaçava desmanchar-se na primeira cova em que entrasse as suas rodas; mas lá ia, e as chicotadas sucediamse no lombo dos animais que arrancavam com esforço.
Quando o bonde chegou à praia de Santa Luzia, Paulo comoveu-se vendo as árvores, que fazem uma cerrada abóbada, coando a luz pelas abertas da folhagem, ao longo da rua, larga e direita, que enfrenta com a Misericórdia.
No terreno que desce para a praia redes secavam, estendidas em espeques; barcos, pintados de fresco, reluziam, emborcados; uma carena apodrecia ao sol, como um esqueleto monstruoso. Pescadores teciam malhas, outros remendavam velas que o forte vento do largo estraçalhara. E a vaga rumorejava, refervia na praia por entre as pedras aveludadas de sargaço.
Longe estacionavam os navios. Um rebocador cortava as águas lisas, levantando a mareta na qual jogavam as pirogas esguias dos pescadores praieiros. Roupas grossas secavam em cordas, panejando com o vento da barra. Gaivotas voavam ou, pousadas n'água, apareciam e desapareciam, com a arfadura do mar.
Voltando-se, porém, deu com o frontão da Misericórdia - a escadada, a grande porta, larga e alta, que levava à sala do banco. Havia gente, enfermos pobres que iam à consulta, outros à espera de remédios. Alguns, sentados nos degraus da escada, abatidos, melancólicos, a cabeça entre os joelhos, pareciam cochilar; mulheres com crianças ao colo, velhos subindo tremulamente os degraus e uma negra que descia, de cabeça alta, olhos escuros, tateando cautelosamente, às cegas. Um tílburi estacionava embaixo.
Paulo respirou angustiado. Era dali que ele devia sair para a vida, depois de praticar à beira dos leitos de sofrimento, esvurmando pústulas, talhando carnes, recebendo nas mãos a vasa imunda das podridões humanas, acudindo à agonia de um, ao estertor de outro, subjugando um delirante, animando um tímido, levando o cordial a um abatido, com o termômetro de axila em axila, a tomar a temperatura de corpos queimados pela febre, túmidos de inchaços ou descarnados pela tuberculose.
Era aquela estrumeira humana que fazia vicejar a flor sempre bela da ciência; era aquela infecção que preparava a saúde. Aqueles corpos eram como compêndios nos quais, logo que esmoreciam, mestres e alunos, abrindo-os a golpes, estudavam na morte os segredos da vida misteriosa. Dali devia ele levar o diploma desejado. Era daquela imensa alcaçova, espécie de presídio da Morte, que ele devia tirar o pão, o agasalho, o conforto, a riqueza e a glória de amanhã...
Mas o edifício da Escola apareceu e Paulo, pensando na irmã, receoso de ver um dos colegas, sem lembrar-se de que era domingo, baixou os olhos e só descansou quando o bonde deu volta para o Largo do Moura.
Um brado chamou-lhe a atenção: partira de um beco, em cujo fundo, entaipado por uma muralha, abria-se o largo portão do Arsenal de Guerra. A esquerda, ficava o velho quartel, com o muro baixo, apuado de baionetas simbólicas, entre as quais, de espaço a espaço, desta cavam-se pequenos canhões e, em frente, todo de branco mármore, avultava o sacelo fúnebre do Necrotério.
Os passageiros descobriram-se respeitosamente. Uma velha mulher, baixando a cabeça, fez o sinal-da-cruz; ele lançou os olhos à capelinha e viu um cadáver ocupando uma das primeiras mesas.
Por uma rápida associação de idéias lembrou-se da Roda e já o bonde ia longe, através do largo, por onde andavam lavadeiras, quando ele se voltou para lançar um derradeiro olhar à capelinha.
A Roda... e foi pensando nos dois abrigos que se ligam pela mesma misericórdia - um recolhendo os inocentes anônimos, repulsas da miséria e do crime, outro dando guarida aos mortos desprezados ou desconhecidos. São como duas conchas de uma balança - em uma a creche, em outra o esquife - e a mesma Senhora da Piedade, que velava à cabeceira dos que não haviam contemplado a luz da última hora, que haviam expirado em devesas escuras, vasquejando prostrados pelo homicida ou no fundo das águas, presidia o dormitório dos desamparados, acalentando os pequenitos, cujos vagidos não acham o carinho do colo e dos lábios maternais.
Tão preocupado seguia que só levantou os olhos na Praça 15 de Novembro, diante da estátua de Osório que, em atitude enérgica, contendo o ginete, parece esperar os esquadrões gaúchos para arremeter com a fúria que o tornou lendário.
Em várias igrejas os sinos tintinabulavam e um carrilhão ressoava uma ária profana como se os próprios templos, esquecidos do misticismo, despegados do mistério, viessem, com desplante, confabular na orgia humana, repetindo, com as vozes dos seus campanários, os estribilhos devassos.
Desceu diante do Carceller e esteve um momento irresoluto, a olhar os que passavam - uns de volta do mercado, com as compras, outros a caminho das igrejas em formigar rumoroso.
Para onde iria? Pôs-se a olhar as casas, os bondes que chegavam, os vendedores de frutas que arranjavam as suas cestas. De repente sentiu-se agarrado - voltou-se. Era o Bruno.
— Que é isto?! - O "decadente" estava amarfanhado, d'olhos vermelhos e esmorecidos; um hálito quente, nidoroso, saía-lhe da boca seca. O colarinho estava todo esmagado, em gelhas, a gravata espocava. - Ah! meu amigo, que noite! Vamos tomar alguma coisa. - E, passando-lhe um braço pelas costas, lá o foi levando para o botequim. Sentou-se, tirou o chapéu. Estava com os cabelos empastados como se houvesse saído dum banho. - Dois cognacs! - pediu e, inclinando-se, com os cotovelos na mesa, exclamou de novo: Que noite, Paulo!
— Mas donde vem você?
— Imagina! Ontem, depois que saí da revisão, bati para os Fenianos, com o Brites.
— Com o Brites?
— Então? Ah! pensas que o Brites é sempre aquele mazorro que prega a moral de Corate? Fora da filosofia é um pândego de marca. Fizemos o diabo! Não imaginas. Encontrei lá uma rapariga, a Lívia, conheces? uma morena, que tem um sinal no canto da boca... Ora! Uma que esteve com o Bastos!...
— Não conheço.
— Ora, não conheces!...
— Palavra!
— Conheces! - afirmou o Bruno nervoso e, depois de haver virado o cognac, continuou: Dancei com ela e... coisas... tu sabes. - E. com os olhos lampejantes: quase viro aquilo tudo! Se não fosse o Brites... não sei. Tu sabes, eu não sou mole e com alguma coisa na cabeça não vejo nada diante de mim. Pois um sujeito, um tipo, porque me viu com a Lívia, e entendeu que me devia tomar à sua conta. Eu... ahn!
— Brigaste?
— Não, não briguei porque, tu sabes, aparecem sempre pacificadores, os tais da ordem. Mas que mulher, Paulo! Venho de lá agora. Não imaginas!
— E para onde vais?
— Vou descansar um bocado. Hoje tenho folga. E tu?
— Estou de serviço.
— Pois é verdade... - O Bruno, porém, lançou um olhar inteligente ao amigo e, com malícia, sorrindo: Tu também, aqui entre nós, não passaste a noite em oratório... Estás com uma cara!...
Paulo estremeceu e mirou-se ao espelho achando-se pálido, desfigurado.
— Não, passei a noite em casa.
— De quem?
— Na minha.
— Pois sim. Todos vocês são uns santos, eu é que sou o debochado, porque conto o que faço. Eu devia fazer como vocês - não há como a hipocrisia. O Brites também é um homem sério, filósofo, abstinente... Vai vê-lo nos Fenianos.
— Mas tu nunca me viste em bailes.
— Mas há outras coisas e... piores. Enfim, isso não é da minha conta. E vou-me embora que estou morto. Imagina, depois daquele trabalho estúpido que tivemos ontem, um deboche até às seis... Ainda não preguei olho: também caio agora na cama e vou até às quatro. Adeus.
Chamou o caixeiro, pagou e saíram. Justamente havia um bonde de Riachuelo. O Bruno despediu-se e precipitou-se esbaforido.
De novo só, recaindo na preocupação, Paulo resolveu chegar à polícia para saber alguma coisa: talvez já estivessem na pista do raptor. Teve uma repentina decisão, partindo imediatamente para a Rua do Ouvidor. A esquina, porém, deteve-se indeciso:
"Não, não podiam ter ainda encontrado o homem. Certamente a diligencia começara de manhã e não era assim tão fácil descobrir um criminoso que, sem dúvida, procurara, com tempo, refúgio seguro para gozar as primícias de um corpo jovem e formoso. Iria à noite saber. Conversaria com o delegado ou com o próprio chefe." Demais, sentia-se fatigado como se, só então, lhe pesasse o cansaço da grande agitação da véspera: as pernas vergavam-se-lhe, ardiam-lhe os pés e um suor viscoso untava-lhe todo o corpo; tinha uma sensação de febre, pulso agitado, boca ressecada e saburrosa. Saía um bonde da Rua da América, tomou-o.
Até a casa foi numa inércia mole, como adormecido, sem sentir a viagem, pensando vagamente em coisas diversas: ora nos próximos exames, ora na mãe, na irmã ou em Idalina, uma loura a quem fazia versos e que o esperava à janela, com flores e bilhetinhos, tresandando a essências reles. Outra como Violante...
Repentinamente, porém, numa mutação introspectiva, viu o Bruno e o Brites, afogueados, girando como dois convulsionários, agarrados a mulheres. Teve uma súbita irritação, uma revolta surda contra a imaginação desvairada - queria apenas cuidar da irmã e o seu espírito cambiava em ziguezagues, avançando, retrocedendo, ora em sonhos, ora em recordações. Mas já o bonde ia perto da casa. Estavam vizinhos à janela e ele descobriu Felícia conversando com uma mulher gorda que comprava a um quitandeiro. O sangue ferveu-lhe no coração e seus olhos cravaram-se, com furor, na velha negra.
Já no estribo, sem corresponder aos cumprimentos dos vizinhos, fitava-a duramente. Quando ela o viu saltar, despediu-se da mulher, à pressa. Ele amiudou os passos para alcançá-la e, à porta, enquanto ela metia a mão pelo postigo para dar volta à taramela, interpelou-a em voz surda e colérica:
— Já foste bater língua pela vizinhança, Felícia!...
— Eu?! Eu não, nhozinho. Minha boca não se abriu pra falar em Nhá Violante. Eu estava falando dumas costuras.
Entraram e Paulo irrompeu explodindo:
— Pois eu não quero conversas com vizinhos. Não tenho nada com essa corja.
A negra foi-se resmungando e Dona Júlia, que ouvira a voz do filho, apareceu arrastando os passos, ansiosa e abatida como se saísse de longa enfermidade; e perguntou:
— Então, Paulo?
— Falei ao Mamede.
— E a polícia?
— Qual polícia! - Atirou o chapéu para cima da mesa e sentou-se. Olhe, estou aqui que não posso comigo, já não tenho pernas e a senhora... nem como coisa. Eu posso morrer porque mamãe, apesar de tudo, ainda há de ter mais pena de Violante. É assim mesmo; - e amuou.
— Mas que é isso agora? Que te fiz eu? Pois então não hei de pensar nela? - Já os seus olhos iam-se alagando e, dirigindo-se a Deus, a pobre velha pôs-se a dizer: Eu não mereço isto, meu Senhor! não mereço. Se eu havia de sofrer assim, por que não me levastes em lugar dele? Que fico fazendo no mundo, se os meus próprios filhos não me estimam? - Pôs-se de pé, grossas lágrimas rolaram-lhe dos olhos.
— Eu não mereço isto!
Paulo teve um movimento frenético e, sem dizer palavra, encaminhou-se para o quarto. Dona Júlia, prostrada, ficou soluçando na sala, baixinho, para não incomodá-lo. Ele, porém, reaparecendo em mangas de camisa, esbravejou:
— Que não se podia ter um segredo naquela casa que a senhora Dona Felícia não fosse logo bater boca na vizinhança. Vira-a de prosa com a tal Dona Lucinda, a maior enredadeira do quarteirão, com certeza a contar que Violante saíra, que ele fora à polícia, tudo, enfim.
E, aos berros, para que a negra ouvisse na cozinha:
— Pois fique sabendo que não quero trela com vizinho. Viva cada um em sua casa, com as suas mazelas. Que tem Dona Lucinda com o que se passa aqui? É melhor que cuide do filho, um vagabundo, que vive com a molecagem, a assaltar os bondes e a apedrejar quintais. Súcia!
Dona Júlia, levantando a cabeça, exclamou:
— E eu não quero ficar mais nesta casa, vou procurar um canto por aí. Aqui não fico mais. Não estou para essa gente vir perguntar por Violante. Eu sei... Se não a virem hoje começam logo com recadinhos: Que tem? por que não aparece? se está doente. Eu já disse à Felícia que respondesse a todos - que ela foi passar uns dias no Engenho Novo, com o padrinho. Só assim...
— Pelo que ouço, a senhora entende que somos obrigados a dar satisfação da nossa vida à vizinhança... Por quê? Não faltava mais nada! Não é por meu gosto que a senhora conversa com essa gente. Quando nos mudamos para aqui eu lhe disse, lembre-se bem: nada de relações com vizinhos, vamos viver independentes: "Bom dia, Boa noite" e mais nada, senão começam os presentinhos, as visitas e os empréstimos de coisas e, um dia, metem-se-nos em casa. Dito e feito. Eu não posso andar à minha vontade porque, volta e meia, está aí gente à porta pedindo uma coisa e outra.
— Mas que queres, Paulo? eu nem à janela chego. Quem fez amizade por aí foi Violante; eu estou sempre metida aqui dentro, cuidando do meu serviço. Elas vêm aí, que hei de fazer?
— Pensam que não sei que me chamam de orgulhoso? Pois sou, sou mesmo! Não quero saber de amizades, vivo muito bem só. Está aí em que deram as amizades. Quer mudar-se?
— Decerto. Não tenho cara para ficar aqui.
— Nem eu. Mas eu sei que, onde quer que estejamos, há de ser sempre a mesma coisa: conversas, visitas...
— Comigo!? - exclamou a velha espalmando a mão no peito.
— Não, comigo...
— Estás enganado. Eu, tenho o meu descanso, pouco me importo com o mundo.
Houve um silêncio. Paulo passeava nervosamente pela sala, arrepelando os cabelos, arrependido de haver magoado a boa velha, que ainda os soluços agitavam como os últimos relâmpagos de uma tormenta. De repente, estacando, perguntou:
— A senhora já almoçou?
— Eu tenho lá fome...! Tomei uma xícara de café.
Calaram-se.
Comovido, apuado pelo remorso, Paulo sentou-se perto dela, e meigo, adormecendo a cólera que o agitara, pôs-se a falar da mudança:
"Que não podiam continuar naquela casa, mesmo por ela, que havia de estar constantemente a lembrar-se de Violante."
— Ah! meu filho, ainda me parece um sonho. Há pouco estava lá dentro na sala de jantar quando ouvi rumor no quarto dela. E estremeci toda, fiquei fria, gelada e deu-me uma pancada no coração, tão forte que pensei que ia morrer. Fui devagarinho e espiei. - Suspirou e calou-se, dizendo depois duma pausa angustiosa: Como é que uma filha faz uma coisa assim? E não há lei?! Pois então um malvado seduz uma moça, atira-a na desgraça e fica muito bem sem um castigo? - Elevou então os olhos e, de mãos postas, erguendo-se tremulamente, tomou Deus por juiz: Ah! mas quem faz paga... Deus é grande! Deus não dorme. Só se eu não a criei nestes peitos com o meu sangue.
Paulo passeava sem dizer palavra, enternecido com aquelas doloridas queixas.
Um sino dobrou lentamente e Dona Júlia, agarrando-se aos braços da cadeira, foi derreando o corpo, ajoelhou-se e ficou a rezar. Nova badalada rolou e um galo cantou no fundo do quintal.
Era a hora maior do sol, a hora do esplendor máximo. Como que a natureza quedava em humilhação estática, adorando silenciosamente o grande astro a pino, na glória de toda a sua magnitude, dominando d'alto a terra que se prostrava como uma fêmea que se agacha sentindo o peso do macho sobre o seu corpo vibrante de emoção lúbrica.
O silêncio dilatava-se abafando todos os rumores como se a vida fosse, aos poucos, parando - só um piano, na vizinhança, zaragalhava em notas fanhas, que discordavam do grande e solene arroubo daquele luminoso espasmo.
Paulo pisava de leve como para não interromper a oração da mãe, mas bateram à porta apressadamente. Dona Júlia ergueu-se e saiu em pontas de pés, ele meteu-se no quarto, revoltado e, quando Felícia acudiu para ver quem era, entreabriu a porta e ficou à escuta, retorcendo nervosamente o buço. Era um pequeno da vizinhança que pedia o jornal emprestado.
Felícia fechou a janela enquanto ia buscar a folha e, quando tornou, disse amuadamente: "que tinha ido passar uns dias fora, no Engenho Novo, com o padrinho."
Tratava-se de Violante - era a curiosidade da vizinhança que começava a aguçar-se. Paulo estremeceu de furor e pôs-se a resmungar contra a corja e, quando a negra fechou a janela, rompeu do quarto. colérico:
— Quem é?
— É o filho da viúva, nhonhô.
— Que viúva?
— A mãe de Dona Isaura, aquela mocinha bexigosa.
— Veio para indagar?...
— Não, senhor; veio pedir o jornal. Perguntou por Nhá Violante, mas eu respondi como sinhá mandou: Que ela tinha ido passar uns dias no Engenho Novo, com o padrinho.
E foi-se pelo corredor, como a fugir à fúria do estudante que a seguia, sempre a invectivar aquela súcia de bisbilhoteiros. Dona Júlia, na sala de jantar, encostada à mesa, esperava a negra; vendo, porém, o filho não teve ânimo de fazer a pergunta que já lhe estava nos lábios e pôs-se a disfarçar, arranjando uns embrulhos. Paulo adiantou-se:
— Vê a senhora? Já querem saber. Até parece que essa gente fareja. Só porque Violante não apareceu hoje já estão todos de orelha em pé. É um horror! Às vezes tenho ímpeto de responder com uma grosseria. Pois não! é demais! Não vou à casa de ninguém, vivo aqui metido, nem à janela chego e estou sempre com a casa cheia. A amizade é um pretexto, o que eles querem é ver como vivemos, que comemos, como nos arranjamos e lá se vai a nossa vida comentada, discutida de casa em casa como um trapo filado e estraçalhado por uma matilha de cães. Não quero saber de relações, dispenso-as. Amanhã, bem cedo, ponho-me na rua procurando casa e hei de achar, seja onde for.
Dona Júlia concordou passivamente:
— É mesmo.
— Quando mamãe está doente nem aqui aparecem. Muito bons para os pagodes e para a maledicência. Não quero! Se não fosse o meu trabalho no jornal eu procurava casa bem longe, num arrabalde, para livrar-me dos tais conhecidos. Infelizmente não posso: estou preso à cidade.
— Mas há tantas ruas...
Ele não respondeu. De repente, chegando à porta que levava à cozinha, chamou a negra. Felícia apareceu, de mangas arregaçadas, enxugando o braço ao avental.
— Como é o tipo do soldado? perguntou.
A negra baixou os olhos e ficou um momento imóvel, pensativa. como a recordar as feições do homem que ela tantas vezes vira na calçada fronteira, rente ao muro, indo e vindo, com os olhos em Violante. Dona Júlia voltou-se interessada encarando a negra que, por fim titubeou:
— É um moço assim como vosmecê, mais cheio de corpo. - Logo, porém, arrependida, como para o livrar de suspeitas, afirmou: Mas não foi ele não, nhonhô, não foi. Ind'agorinha mesmo, pouco antes de vosmecê chegar, ele passou por aqui, mais outro, e lá foram para os lados da Rua da América.
Paulo deu volta coçando a cabeça e Dona Júlia, perdida aquela esperança, sentou-se à mesa, raspando distraidamente umas migas de pão.
Os dois não achavam palavra. Paulo detinha-se, olhando as paisagens cinzentas do papel da sala, passava os dedos seguindo os contornos dos cães, dos caçadores que, em desabalada corrida, levando os cavalos a toda a rédea, seguiam um grande cervo ramalhudo. Súbito um som fanhoso rompeu o silêncio - era um realejo que soava na rua, perto, tristemente, vagarosamente.
Dona Júlia levantou a cabeça e ficou imóvel, a ouvir. Paulo voltou-se também para a porta, olhou depois para o quarto de Violante. Logo, porém, vendo a mãe debruçar-se sobre a mesa, sacudida por um pranto nervoso, arrojou-se para a sala, revoltado contra aquela música pecadora que despertava tantas saudades, toda a sua infância e a dela...
Ah! se Violante ali estivesse já andaria, como uma criança, a fazer voltas de dança rindo às gargalhadas. Era doida por aquela música fanhosa, chegava até a mandar dinheiro ao homem para que a prolongasse monotonamente e a rir, muitas vezes descalça, cabelos soltos, trincando fatias de pão, volteava, volteava, indo, não raro, buscar Felícia à cozinha, quando não arrastava a mãe que com o seu enorme corpo, as pernas muito inchadas, encolhia-se toda, tomada de riso, a agarrar-se aos móveis para opor-se àquela maluca.
E o realejo gemia. Era o homem que a chamava como se também a quisesse arrancar da miséria. E como que o instrumento sentia, porque se ia tornando cada vez mais triste, mais triste, na rua clara e silente, toda em sol. Faltava o riso de Violante, faltava a sua linda mocidade alegre.
De repente Dona Júlia levantou a cabeça e, passando a mão pelo rosto, desfeito e molhado, disse arrancadamente, em arquejo doloroso:
— Não! Não fico mais aqui... Não posso!
E o realejo tristonho, depois duma pausa, recomeçou a ária melancólica.
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