Capítulo XIV
Paulo estava à janela quando uma carrocinha de mão parou à porta. O carroceiro adiantou-se e ele, antes que o homem falasse, disse: "É aqui mesmo." Era a bagagem de Ritinha: um baú de couro, uma pequena lata, dois caixotes e a gaiola do canário que esvoaçava, assustado. Justamente o carroceiro arrastava a baú pesado, tombando-o sobre a calçada, quando a mulata apareceu risonha. Paulo recebeu-a e, dizendo ao carroceiro que deixasse tudo na sala, levou-a para o sofá. Ela queixou-se de cansaço.
— Vieste a pé?
— Não, vim de bonde até o Largo da Lapa, mas de lá toquei-me numa batida até aqui e com este calor... E sua mãe?
— Está lá dentro. Nós precisamos conversar. Deixa o homem acabar o serviço. Temos uma combinaçãozinha. - E, voltando-se para o carroceiro, que deixara a gaiola a um canto: Pronto?
— Sim, senhor.
— Ajustaste? perguntou à Ritinha.
Ela disse-lhe o preço. Pagou, fechou a porta e tornou ao sofá sentando-se muito chegado à mulata que parecia examinar a sala, escura àquela hora da tarde.
— Ouve, eu falei à mamãe: disse-lhe que vinhas a mandado do Mamede. Tendo-lhe eu dito que ela estava sem uma pessoa de confiança em casa, ele fez questão de que viesses para tratá-la. Dormes no meu quarto, eu vou lá para dentro... Isto é só nas primeiras dias, já se vê; depois... fica por minha conta. - E beijou-a. - Agora vamos lá, quero apresentar-te á velha. Hás de gostar dela.
Ritinha estava receosa, e, no sofá, retorcendo o lenço, parecia meditar.
— Anda!
— Olhe lá! Veja bem o que vai fazer...!
— Não tenhas medo. Deixa de tolice. Mamãe está doente, não se levanta. Anda.
— Se ela me disser alguma coisa eu volto, vou-me embora. Isso tão certo...
— Ora... Vamos.
A mulata levantou-se e foram juntos pelo corredor escuro. Paulo acendeu o gás na sala de jantar e, chegando à porta da quarto, anunciou:
— Mamãe, está aqui a moça de que lhe falei. Ela pode entrar? A velha desculpou-se:
— Oh! meu filho, isto está num desarranjo... nem foi varrido. Pede desculpa.
— Ela sabe, mamãe.
— Não sou de cerimônia, - disse Ritinha já no quarto.
A luz da lamparina mal aclarava uma parte do aposento. A enferma sentou-se na cama e procurou ver a mulata que se adiantava, estendendo a mão. Houve um momento de travado silêncio - as duas mulheres pareciam examinar-se. Por fim Dona Júlia falou tranqüilizada, como se a fisionomia de Ritinha a houvesse serenado:
— É ainda muita mocinha.
— É o que parece. Então que é isso?
— Eu sei, minha filha?! Estou fazendo horas para seguir o meu destino. E queira Deus que não demore porque já estou cansada de sofrer.
— Qual! a senhora fica boa. Eu estou aqui para o que for preciso. Não valho muito, mas os meus préstimos ficam às suas ordens. Antes mesmo de Mamede me falar eu já tinha dito a seu filho que, se fosse preciso...
— Obrigada. Nem sei como a senhora vai se arranjar nesta barafunda. Isso lá por fora está que é uma vergonha. Eu imagino! A nossa criada, coitada! lá está na cozinha gemendo, gritando.
— Ainda!
— Ora!
— Se eu digo à mamãe que o melhor é pedir que a mandem tirar daqui...
— Tenho pena... - E tomando à Ritinha: A senhora compreende, foi uma criatura que sempre nos acompanhou com a maior dedicação, muita amiga de todos. Teve a infelicidade de ficar assim e eu, francamente, não tenho coração para tocá-la de casa.
— Aqui é que ela não pode ficar, mamãe. É impossível. Não há tanta gente boa no Hospício? Aquilo não é um presídio, é uma casa de caridade.
— Sim, mas a gente sempre tem pena. Enfim, tu é que sabes. Eu não digo nada.
Paulo convidou Ritinha para ver o quarto, ela devia querer ficar a gosto.
Levou-a à sala e, ligeiramente, atirando-lhe os braços ao pescoço, rosto contra rosto, perguntou:
— Então?
— Parece uma boa criatura.
E na sombra uniram as bocas demoradamente.
Instalando-se no quarto de Paulo, Ritinha pôs-se logo à vontade e, cheia de solicitude, muito carinhosa com a enferma, insistiu com ela para que tomasse alguma coisa: um pouco de chá, ao menos.
Dona Júlia cedeu ao carinho e a mulata entrou na despensa, acompanhada de Paulo, que fazia empenho em que ela tudo visse. Abria latas, pacotes, com uma grande vaidade de dono de casa a exibir a abundância. Foram à cozinha. A um canto, encolhida, Felícia resmungava como um animal medroso. Os seus olhos luziam na sombra, de quando em quando um suspiro subia-lhe do peito. Arrepanhava os molambos, fazia-se humilde, chegava-se à parede como se procurasse refúgio.
— Esta é que é a maluca? - perguntou Ritinha inclinando-se, com a vela muito chegada ao rosto da negra.
— É. Um diabo que só nos dá trabalho. É até capaz de morrer aqui. Não come, nem sei como vive. A noite é um horror.
— Coitada!
— Coitada!? Hás de ver logo mais: grita, sapateia, chora.
Ritinha pôs-se a acender o fogo juntando gravetos, Paulo ajudava e, passando por ela, sem importar-se com a louca que os olhava, beliscava-a, atirava-lhe beijos à nuca, emprazando-a para a noite alta, quando a velha dormisse.
— Olhe lá! não comece com imprudências. Eu não quero histórias comigo.
— Quê! pensas que eu hei de dormir sozinho tendo-te aqui em casa, minha, minha só?...
Num frenesi lúbrico agarrou-a, levantou-a nos braços e a sombra dos dois corpos enlaçados tremia nos muros negros da cozinha fuliginosa. Felícia foi-se arrastando, meteu-se debaixo da pia, sem sentir a umidade, ficou a olhar assombrada. Dona Júlia chamou:
— Paulo!
— Senhora!
— Dá-me um bocadinho d'água.
Ele foi pronto em servi-la. Depois de beber, a enferma perguntou:
— Que estás fazendo lá dentro?
— Fui mostrar a despensa, a cozinha.
Sentou-se e, meigo, perguntou:
— Então, que lhe parece?
A velha não respondeu; ele continuou:
— É uma excelente criatura e a senhora não imagina o que ela sofre do Mamede.
— Por quê?
— Ora! Não lhe dá vintém. Tudo quanto ganha é para o jogo; e ela, a bem dizer, quem sustenta a casa com o que faz lavando e engomando. A senhora há de gostar dela. Eu já lhe disse que vou tomar uma criada para o serviço pesado. Ela fica apenas para fazer-lhe companhia.
— E Violante? perguntou Dona Júlia.
— Que tem?
— Não tens tido notícias?
— Não. Talvez vá vê-la amanhã. Quer que ela venha cá?
— Sinto-me tão mal, esta falta de ar...
— Isso passa. É questão de dias. Foi uma felicidade acharmos esta moça, porque a senhora não imagina como ando agora cheio de trabalho. Se for feliz, como espero, em certos negócios em que me meti, talvez faça exame em março. Tudo depende de tranqüilidade.
Ritinha apareceu à porta perguntando onde estava o pão. Paulo precipitou-se, abriu o guarda-comida, solícito:
— Quer umas torradas, mamãe?
— Umas duas, não tenho fome.
A mulata tornou à cozinha. Pouco depois aparecia com a bandeja e, acendendo o gás no quarto, ficaram os dois juntos à enferma, vendo-a comer, animando-a. Distraíram-se em conversa. Ritinha a falar de uma moléstia que também a martirizara durante meses. Andara nas mãos de um bando de médicos e ficara boa com remédios caseiros.
— A gente não acredita, mas a verdade é que não é um caso nem dois, quantos!?
— Mas a minha moléstia não tem cura. Não imagina como estou inchada e esta aflição que me mata. As vezes, de noite, fico sem ar, levanto-me, abro as janelas. É uma agonia que só Deus sabe! Dizem que é o coração, não sei.
Palmas estrondaram na sala. Paulo saiu precipitadamente do quarto e, chegando ao corredor, viu a porta da rua escancarada e um vulto branco de pé no limiar: era a vizinha.
— A sua criada saiu correndo e deixou a porta aberta. Foi lá para baixo, atirando murros, desesperada.
— Há muito tempo?
— Não, senhor. Agora mesmo. Parece que ela não está muito boa da cabeça.
— Está perdida. Nós conservamo-la aqui por pena.
— Vai por aí à toa. São até capazes de prendê-la.
— Isso com certeza.
— Bom. Boa noite.
— Muito obrigado. Entrou, fechou a porta, exclamando: Melhor! Reaparecendo no quarto, deu logo a notícia de chofre: Felícia fugiu.
— Como? perguntou a enferma, emocionada.
— Sei lá. Foi a vizinha que bateu, porque a maluca deixou a porta escancarada.
— E agora, meu filho! - exclamou Dona Júlia de mãos postas.
— Agora o quê, mamãe?
— Que há de ser dela?
— Sei lá. Eu é que não me vou cansar por aí atrás de doidos. Foi melhor assim. Tinha de sair mesmo, se havia de ser com escândalo, à força, foi melhor assim. Acham-na, levam-na à polícia, mandam-na para o Hospício e está tudo acabado.
— Pobre coitada! - suspirou Dona Júlia e, voltando-se para Ritinha, murmurou: Filhos, vê a senhora? é o que eles fazem. Era uma criatura excelente, não imagina. Veio para aqui e, duma hora para outra, virou a cabeça. Deus tenha pena dela.
— Mas não se incomode. Que se há de fazer? Trate de descansar.
A velha revoltou-se contra a indiferença do filho.
— Ah! Paulo, tu não tens coração... Não sei a quem saíste assim.
— Hei de chorar?
— Não digo que chores, mas a gente tem pena: é uma infeliz.
Ele resmungou passando à sala e, sentando-se diante da janela, ficou a olhar a noite estrelada, ansioso pelo silêncio, pelo sono da enferma, para realizar o desejo tantas vezes sufocado no seu quarto quando, recolhendo ao leito, cansado da vida errante, excitado com o contato das mulheres que se roçavam lascivamente por ele, insone, punha-se a pensar em Ritinha, vivendo-a na imaginação.
Capítulo XV
No silêncio da casa, guiando-se por uma réstia de luz que vinha do quarto, cuja porta ficara entreaberta, Paulo, que se deitara na rede, armada no chamado quarto de Violante, levantou-se pé ante pé, contendo o hálito, as mãos estendidas, e atravessou a sala.
As suas articulações estalavam irritando-o - era o seu próprio corpo que o denunciava. Parava, apoiando-se às paredes, à escuta, e lá ia, vagaroso, cauteloso, excitado, como a farejar o almíscar lascivo da mulata. Seguiu pelo corredor. Na sala foi com o maior cuidado para evitar esbarros e, chegando à porta do quarto, empurrou-a de leve. Um estalo ríspido dos gonzos pareceu-lhe um estrondo; recuou, nervoso. A cama rangeu e Ritinha sussurrou no escuro:
— Que maluquice, meu Deus!
— Cala a boca!
Curvou-se, os braços estendidos, varrendo o vazio, a procurá-la; as mãos encontraram-se.
— E sua mãe?
— Está dormindo.
— Olhe lá.
Encolheu-se, chegando-se à parede. Ele meteu-se na cama. O mar rouquejava na praia. De espaço a espaço a casa estremecia, trepidava, à passagem de um elétrico.
Saiu cedo no dia seguinte. Sentiu-se como transfigurado - era outro, com outros gozos; homem, com uma mulher sua, inteiramente sua, vivendo sob as mesmas telhas.
Sentia necessidade de comunicar a sua ventura, de contá-la a todos, de ser invejado. As mesmas despesas, pelas quais se tornara responsável, como que lhe davam maior prestígio, engrandecendo-o aos seus próprios olhos. Mas a outra paixão chamava-o, atraía-o. Saciado um desejo, corria alucinadamente ao outro; mesmo porque o dinheiro começava a minguar. Era necessário refazer o maço, aumentá-lo, para que a mulata sentisse a sua superioridade sobre o amante que deixara.
Queria humilhar o outro, inutilizá-lo de vez, receoso de que ela pudesse vir a ter saudade do Mamede. Era necessário esmagá-lo, torná-lo esquecido, substituí-lo vantajosamente e ele havia de o fazer.
Já, então, conhecia os segredos da roleta, podia fazer jogo franco, dar um golpe de mestre que lhe assegurasse lucro de vulto e não miseriazinhas de contos de réis. Sabia de uma casa, na Rua Sete, onde se jogava forte durante o dia. Lá foi. Perdeu. Atirou-se ao dado: foi infeliz e, contendo-se, procurando justificativas para o caiporismo, descobriu um homem calvo, de casaco no fio, lenço ao pescoço, que seguia atentamente o seu jogo. Irritou-se. De ímpeto, deu a troco as fichas que lhe restavam e, resmungando, passou por diante do homem, carrancudo. Tomou o chapéu e saiu.
Na rua, sem destino, desesperado com o prejuízo, arrependido de haver entrado naquela "espelunca", seguiu direito ao Largo do Rócio, mas voltou à Rua do Teatro, dirigindo-se à do Ouvidor. Havia de encontrar amigos.
Entrou no Pascoal - todas as mesas estavam ocupadas; nenhum conhecido. Saiu, e depois de haver descido a rua, sempre a pensar no jogo que fizera, desconfiado da roleta, sem poder explicar a insistência do "pequeno", resolveu descansar um bocado para estar pronto, à noite, para a desforra. Mal entrou em casa, Ritinha, que demorara em abrir a porta, perguntou-lhe em tom receoso: "Se não vira o Mamede."
— Não. Por quê? Andou por aqui?
— Toda a manhã. Esteve muito tempo ali defronte, encostado ao cais, olhando para cá. Acho que me viu porque cheguei à janela para chamar um quitandeiro, quando ele vinha vindo. Tome cuidado. Mamede não é bom.
— Histórias...!
— Histórias!? O senhor pensa que ele é uma coisa e ele é outra. Eu é que posso falar. Basta que eu diga que vivi com ele dois anos, não foram dois dias.
Paulo sorriu; e ela ajuntou: que haviam aparecido duas criadas. Não ajustara por não saber o preço que convinha.
— É verdade! Nem me lembrei de prevenir-te. E... para onde foi ele?
— Não sei. Anda por aí rondando, com certeza. Mamede é mau; ouça o que lhe estou dizendo. Mamede tem maus bofes.
— Pois sim.
Fez-lhe uma festa no rosto e entrou para falar à mãe. Achou-a agitada, aflita, queixando-se de falta de ar, pedindo que abrissem largamente as portas do quarto; não podia respirar, sentia um peso enorme no peito.
— Quer que eu vá chamar o médico?
— Para que médico? Pede para me fazerem um pouco de chá.
Não lhe passou despercebido o mau humor de Dona Júlia, que evitava encará-lo, desviando o olhar. Teria ela desconfianças? Tê-lo-ia visto passar, à noite, sentido algum rumor através da parede que separava os dois quartos? Falou à Ritinha, comunicando o desejo da enferma e, para sondá-la, sem dar a perceber a sua suspeita, perguntou:
— Ela passou bem o dia?
— Não quis comer; está até agora com o café que tomou de manhã. Tem dormido muito; sempre que vou ao quarto encontro-a dormindo.
Paulo empalideceu, compreendendo que a velha descobrira a cena da noite e que começava a hostilizar a mulata. Resolveu defendê-la a pé firme, sustentá-la, custasse o que custasse. Não trocaram mais palavras toda a tarde. A noite, quando ele se foi despedir, ela mal o abençoou.
— A senhora está sentindo alguma coisa?
— Não.
— Eu tenho que fazer, mas se está incomodada, não saio.
— Não tenho nada.
— Então, até logo.
Ritinha não o acompanhou à porta, e ele, ao despedir-se, falou para que a mãe ouvisse:
— Pode dormir tranqüila, Dona Ritinha; eu levo o trinco. Boa noite.
Capítulo XVI
— Boa noite.
Eram 2 horas da manhã quando Dona Júlia, que não dormira, ouviu ranger de leve a porta da rua. Esperou atenta, o ouvido alerta ouviu os surdos passos do filho ao longo do corredor, sentiu-os junto ao quarto; compreendeu que ele a espreitava. A lamparina dava uma luz escassa que apenas manchava as paredes, fazendo bailar sinistramente as grandes sombras das imagens e dos mais objetos pousados na cômoda. Os passos continuaram, vagarosos, cautelosos, com um rangido de solas, e cessaram. Ela não se movia, decidida a certificar-se. Uma hora imensa passou, muda, no silêncio da casa escura e quieta.
Não sem cuidado, os olhos no quarto da velha, que parecia dormir tranqüila, Paulo atravessou devagarinho a sala e foi-se pelo corredor. Dona Júlia sentiu-o passar, chegou mesmo a mover-se, revoltada contra o desrespeito, mas conteve-se. Talvez se houvesse iludido. Tentou erguer-se e, com grande esforço, trêmula, sentou-se na cama, tocando o soalho frio com os pés nus. Custava-lhe acreditar que o filho a houvesse enganado, abusando do seu estado para meter em casa uma mulher perdida. Amparou-se à cama e ficou de pé. Sentia-se fraca, arvoada, oscilando. Sentou-se de novo, sem ânimo, mas a indignação impelia-a; fez o primeiro passo, chegou à porta e, no escuro, encaminhou-se para o quarto em que dormia o filho. Foi d’encontro a uma cadeira: com o rumor deteve-se, assustada; pensou em voltar e quedou hesitante, o ouvido atento, receosa de que o filho aparecesse e a encontrasse de pé, espionando.
Paulo, efetivamente, ouvira o barulho do esbarro e logo pensara nela. Sentando-se na cama, ficara à escuta, e os dois, mãe e filho, imóveis, temiam-se — um, sem coragem de deixar o leito em que se metera, outra sem ânimo de prosseguir. Ritinha perguntou baixinho:
— Que é?
Ele murmurou:
— Pareceu-me ter ouvido barulho lá dentro.
— Quem sabe se sua mãe precisa de alguma coisa?
Ele não respondeu. A velha atreveu-se a continuar na treva, mais cautelosa. As pernas tremiam-lhe violentamente, mal a sustinham. Quando chegou à porta do quarto, firmou-se ao umbral, respirando cansada, com o coração a bater sôfrego.
Entrou: os braços estendidos encontraram os punhos bambos da rede: não estava ali ninguém. Ainda curvou-se, apalpou e, convencida, aprumou-se e ficou inerte, em grande desânimo, de olhos muito abertos na escuridão.
Era a amante; ele lá estava com ela. Vivia com ela, trouxera-a para casa, instalara-a sob as mesmas telhas que a agasalhavam. Voltou-se e retrocedeu no mesmo passo cauteloso, entrou no quarto e deitou-se, chorando aflitivamente.
Estava explicada a repentina saída de Felícia. Fora ele que a expulsara para ficar à vontade, sem o testemunho incômodo da pobre louca. Onde andaria a infeliz? Pobrezinha!
Paulo não ousou sair da cama, certo de encontrar a mãe, porque era ela que andava lá dentro, tinha certeza. Ritinha, vendo-o indeciso, sentou-se também e ficaram os dois muito juntos, à escuta, como à espera de que se repetisse o rumor que os havia alarmado. Ela deitou-se, puxou-o.
— Não é nada. Deixa lá. Que pode ser? Se fosse ela, chamava.
— Não sei.
— Se quer, eu vou ver.
— Não; não vale a pena.
E deitou-se. Mas ficou imóvel, preocupado. Às vezes parecia-lhe ouvir passos no corredor, na sala; sentia empurrarem a porta do quarto; levantava vivamente a cabeça, atento.
— Que medo tolo!
— Não é medo.
— Então que é?
— Sei lá.
Falaram de Mamede: ela, pedindo que se acautelasse contra o mulato, que estava preparando alguma; ele, sempre indiferente, não ligando importância. Que havia ele de fazer? Se o ameaçasse, dava queixa à polícia e estava tudo acabado.
— Sim, mas ninguém se defende de uma traição.
— Qual traição! Mamede o que quer é dinheiro para jogar. Pensas que ele tem saudade de ti? Pois sim. Quem quer bem não faz o que ele fazia. Histórias!
— Eu não digo que ele me queira bem, nem que se vingue por amizade, mas por capricho é capaz de tudo, eu sei.
— Pois que venha!
— Eu aviso para que o senhor se previna. Quem anda avisado vale por dois. Ele não é bom, isso não é. Eu sei por que falo.
— Pois sim, mas deixemos Mamede; — e, lânguido, passou-lhe o braço por baixo da cabeça, atraindo-a.
Pela madrugada, voltando ao seu quarto, Paulo percebeu que a mãe estava acordada — sentia-a mexer-se na cama, voltar-se, arquejar na aflição. Esteve a embalar-se de leve na rede, preocupado, não com o que ela lhe pudesse dizer, mas com o que faria Ritinha se fosse maltratada.
A passividade da enferma, a resignação de que dava provas constantes tranqüilizaram-no.
“Ora! que há de fazer? Se duvidar digo-lhe tudo. Afinal quem paga a casa sou eu... Não posso ter liberdade? Não posso ter um gozo? Falta de respeito? Ainda faço muito em guardar reserva. Não sou uma criança. ”E adormeceu resolvido a manter a mulata, a lutar por ela, a defendê-la da mãe cuja animada aversão sentia. Despertou em sobressalto, com Ritinha que sacudia a rede, chamando-o.
— Sua mãe não está boa, venha vê-la.
— Que tem?
— Não sei.
Saltou da rede em ceroulas, descalço, correu ao quarto. Dona Júlia, imóvel, de olhos cerrados, a boca entreaberta, seca, deixando ver os dentes, ralava com o cirro. De instante a instante, com esforço, sorvia o ar que lhe passava pela garganta com um gargarejo rascante, difícil, estrangulado. As faces cavavam-se-lhe; as pomas do rosto, muito salientes, luziam; as têmporas afundavam; os olhos perdiam-se enterrados. Paulo ficou atordoado, e, com os olhos cheios d’água, arrependido, com um remorso a remordê-lo, inclinou-se sobre a moribunda, chamando-a:
— Mamãe! Mamãe!
Respondia-lhe, de espaço a espaço, a respiração estertorosa da agonia. Mamãe! Apalpou-lhe os pés, esfriavam; as mãos inertes, com os dedos encolhidos, repousavam no colo imenso que parecia crescer na angustia.
— Ah! Ritinha... Mas, como foi? Por que não me chamaste?
— Eu não sabia. Foi só agora que vi, entrando no quarto com o café. Pensei que estava dormindo, mas quando ouvi o cirro compreendi tudo e fui acordar o senhor. Não há uma vela?
Paulo chorava em silêncio e a moribunda, entre os dois, continuava a estertorar abrindo muito a boca para a respiração.
Ritinha acendeu uma vela e colocou-a à mesa de cabeceira, ao lado de um pequeno crucifixo. Paulo arrancava os cabelos, retorcia as mãos.
— Nem uma pessoa para avisar Violante, para chamar um médico. Eu não tenho coragem de sair deixando-a assim. Como há de ser, meu Deus! Se tu pudesses, Ritinha... É perto, na Praia de Botafogo. Minha pobre mãe, coitada! Morrer assim, tão só. Vai, minha velha, faze-me este favor.
Ela ficou indecisa, receando um encontro com Mamede; por fim resolveu-se e murmurou:
— Pois sim.
— Tem paciência.
A mulata dirigiu-se para a sala, foi direito à janela, entreabriu-a e espiou. Ao longo do cais, ao sol, um homem passeava olhando o mar. Era o mulato.
Fechando vagarosamente a janela, Ritinha tomou ao quarto e, indiferente ao transe lúgubre, inclinou-se ao ouvido de Paulo, que se sentara à cabeceira da cama e lentamente enxotava as moscas que teimavam em pousar no rosto da moribunda e sussurrou:
— Ele está ali defronte.
O rapaz encarou-a pálido, transido de medo, e, em voz surda, num sopro, perguntou:
— Onde?
— Venha ver. Eu não dizia?
Ele lançou um triste olhar à agonizante. O ruído estertoroso continuava rouco, e, de quando em quando, com o enrijamento túmido do pescoço, a cabeça derreava-se no travesseiro.
— Ela pode morrer.
— É um momento.
Ele passou ao seu quarto, vestiu-se ligeiramente e seguiu a mulata.
Segredavam, pisavam devagarinho, em pontas de pés. Ele entreabriu cautelosamente a janela e deu logo com o mulato junto ao cais, ao sol, guardando a casa.
— E agora?
— Eu não lhe dizia? Olhe, o melhor é eu ir-me embora.
Ele voltou-se de repelão:
— Por quê? isso não! Então és obrigada a viver com um homem de quem não gosta?
— Não vou viver com ele. Vou por aí.
— E se eu o chamasse?
— Para quê?
Sem uma idéia, acabrunhado pela covardia, Paulo sentou-se no sofá, abatido, e ficou raspando o soalho com os pés nus. De repente. fitando a mulata, lembrou:
— Há um meio, Ritinha. — Olharam-se em silêncio e ele expôs a sua idéia: Eu chamo-o, digo-lhe que tu vieste para cá a meu pedido porque eu não tinha quem ficasse com mamãe...
— Pois sim!... — interrompeu incrédula a mulata esticando o beiço. — Não vê que ele é tolo!
— Então não sei, resmungou. Que faça o que quiser. Tu é que não devias ter medo, afinal não és escrava, não tens obrigação de viver com ele. Se não fosse o estado de mamãe eu sei o que faria, assim não posso. Não hei de deixar a pobre coitada sozinha para dar trela a Mamede.
E tornou para junto da velha. Ritinha ficou na sala.
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