Tuesday, 7 November 2023

Tuesday's Serial: “A Cachoeira de Paulo Afonso” by Castro Alves (in Portuguese) - the end

 

A CANOA FANTÁSTICA

Pelas sombras temerosas

Onde vai esta canoa?

Vai tripulada ou perdida?

Vai ao certo ou vai à toa?

 

Semelha um tronco gigante

De palmeira, que s'escoa...

No dorso da correnteza,

Como bóia esta canoa!...

 

Mas não branqueja-lhe a vela!

N'água o remo não ressoa!

Serão fantasmas que descem

Na solitária canoa?

 

Que vulto é este sombrio

Gelado, imóvel, na proa?

Dir-se-ia o gênio das sombras

Do inferno sobre a canoa!...

 

Foi visão? Pobre criança!

À luz, que dos astros coa,

É teu, Maria, o cadáver,

Que desce nesta canoa?

 

Caída, pálida, branca!...

Não há quem dela se doa?!...

Vão-lhe os cabelos a rastos

Pela esteira da canoa!...

 

E as flores róseas dos golfos,

— Pobres flores da lagoa,

Enrolam-se em seus cabelos

E vão seguindo a canoa!...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

 

 

O SÃO FRANCISCO

Longe, bem longe, dos cantões bravios,

Abrindo em alas os barrancos fundos;

Dourando o colo aos perenais estios,

Que o sol atira nos modernos mundos;

Por entre a grita dos ferais gentios,

Que acampam sob os palmeirais profundos;

Do São Francisco a soberana vaga

Léguas e léguas triunfante alaga!

 

Antemanhã, sob o sendal da bruma,

Ele vagia na vertente ainda,

— Linfa amorosa — co'a nitente espuma

Orlava o seio da Mineira linda;

Ao meio-dia, quando o solo fuma

Ao bafo morto de lia calma infinda,

Viram-no aos beijos, delamber demente

As rijas formas da cabocla ardente.

 

Insano amante! Não lhe mata o fogo

O deleite da indígena lasciva...

Vem — à busca talvez de desafogo

Bater à porta da Baiana altiva.

Nas verdes canas o gemente rogo

Ouve-lhe à tarde a tabaroa esquiva...

E talvez por magia à luz da lua

Mole a criança na caudal flutua.

 

Rio soberbo! Tuas águas turvas

Por isso descem lentas, peregrinas...

Adormeces ao pé das palmas curvas

Ao músico chorar das casuarinas!

Os poldros soltos — retesando as curvas, —

Ao galope agitando as longas crinas,

Rasgam alegres — relinchando aos ventos —

De tua vaga os turbilhões barrentos.

 

E tu desces, ó Nilo brasileiro,

As largas ipueiras alagando,

E das aves o coro alvissareiro

Vai nas balças teu hino modilhando!

Como pontes aéreas — do coqueiro

Os cipós escarlates se atirando,

De grinaldas em flor tecendo a arcada

São arcos triunfais de tua estrada!...

 

 

A CACHOEIRA

Mas súbito da noite no arrepio

Um mugido soturno rompe as trevas...

Titubantes — no álveo do rio —

Tremem as lapas dos titães coevas!...

Que grito é este sepulcral, bravio,

Que espanta as sombras ululantes, sevas?

É o brado atroador da catadupa

Do penhasco batendo na garupa!...

 

Quando no lodo fértil das paragens

Onde o Paraguaçu rola profundo,

O vermelho novilho nas pastagens

Come os caniços do torrão fecundo;

Inquieto ele aspira nas bafagens

Da negra sucr'ruiúba o cheiro imundo...

Mas já tarde... silvando o monstro voa...

E o novilho preado os ares troa!

 

Então doido de dor, sânie babando,

Co'a serpente no dorso parte o touro...

Aos bramidos os vales vão clamando,

Fogem as aves em sentido choro...

Mas súbito ela às águas o arrastando

Contrai-se para o negro sorvedouro...

E enrolando-lhe o corpo quente, exangue,

Quebra-o nas roscas, donde jorra o sangue.

 

Assim dir-se-ia que a caudal gigante

— Larga sucuruiúba do infinito —

Co'as escamas das ondas coruscante

Ferrara o negro touro de granito!...

Hórrido, insano, triste, lacerante

Sobe do abismo um pavoroso grito...

E medonha a suar a rocha brava

As pontas negras na serpente crava!...

 

Dilacerado o rio espadanando

Chama as águas da extrema do deserto...

Atropela-se, empina, espuma o bando...

E em massa rui no precipício aberto...

Das grutas nas cavernas estourando

O coro dos trovões travam concerto...

E ao vê-lo as águias tontas, eriçadas

Caem de horror no abismo estateladas...

 

A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo!

A briga colossal dos elementos!

As garras do Centauro em paroxismo

Raspando os flancos dos parcéis sangrentos.

Relutantes na dor do cataclismo

Os braços do gigante suarentos

Agüentando a ranger (espanto! assombro!)

O rio inteiro, que lhe cai do ombro.

 

Grupo enorme do fero Laocoonte

Viva a Grécia acolá e a luta estranha!...

Do sacerdote o punho e a roxa fronte...

E as serpentes de Tênedos em sanha!...

Por hidra — um rio! Por áugure — um monte!

Por aras de Minerva — uma montanha!

E em torno ao pedestal laçados, tredos,

Como filhos — chorando-lhe — os penedos!!!...

 

 

UM RAIO DE LUAR

Alta noite ele ergueu-se. Hirto, solene.

Pegou na mão da moça. Olhou-a fito...

Que fundo olhar!

Ela estava gelada, como a garça

Que a tormenta ensopou longe do ninho,

No largo mar.

 

Tomou-a no regaço... assim no manto

Apanha a mãe a criancinha loura,

Tenra a dormir.

Apartou-lhe os cabelos sobre a testa...

Pálida e fria... Era talvez a morte...

Mas a sorrir.

 

Pendeu-lhe sobre os lábios. Como treme

No sono asa de pombo, assim tremia-lhe

O ressonar.

E como o beija-flor dentro do ovo,

Ia-lhe o coração no níveo seio

A titilar.

 

Morta não era! Enquanto um rir convulso

Contraíra as feições do homem silente

— Riso fatal.

Dir-se-ia que antes a quisera rija,

Inteiriçada pela mão da noite

Hirta, glacial!

 

Um momento de bruços sobre o abismo,

Ele, embalando-a, sobre o rio negro

Mais s'inclinou...

Nesse instante o luar bateu-lhe em cheio,

E um riso à flor dos lábios da criança

À flux boiou!

 

Qual o murzelo do penhasco à borda

Empina-se e cravando as ferraduras

Morde o escarcéu;

Um calafrio percorreu-lhe os músculos...

O vulto recuou!... A noite em meio

Ia no céu!

 

 

DESPERTAR PARA MORRER

— "Acorda!"

— "Quem me chama?"

— "Escuta!"

— "Escuto..."

— "Nada ouviste?"

— "Inda não..."

— "É porque o vento

Escasseou."

— "Ouço agora... da noite na calada

Uma voz que ressona cava e funda...

E após cansou!"

— "Sabes que voz é esta?"

— "Não! Dir-se-ia

Do agonizante o derradeiro engasgo,

Rouco estertor..."

E calados ficaram, mudos, quedos,

Mãos contraídas, bocas sem alento...

Hora de horror!...

 

 

LOUCURA DIVINA

— "Sabes que voz é esta?"

Ela cismava!...

— "Sabes, Maria?

— "É uma canção de amores.

Que além gemeu!"

— "É o abismo, criança!..."

A moça rindo

Enlaçou-lhe o pescoço:

— "Oh! não! não mintas!

Bem sei que é o céu!"

 

— "Doida! Doida! É a voragem que nos chama!..."

— "Eu ouço a Liberdade!"

— "É a morte, infante!"

— "Erraste. É a salvação!"

— "Negro fantasma é quem me embala o esquife!"

— "Loucura! É tua Mãe... O esquife é um berço,

Que bóia n'amplidão!..."

— "Não vês os panos d'água como alvejam

Nos penedos? Que gélido sudário

O rio nos talhou!"

— "Veste-me o cetim branco do noivado...

Roupas alvas de prata... albentes dobras...

Veste-me!... Eu aqui estou."

 

— Já na proa espadana, salta a espuma...

— São as flores gentis da laranjeira

Que o pego vem nos dar...

Oh! névoa! Eu amo teu sendal de gaze!...

Abram-se as ondas como virgens louras,

Para a Esposa passar!...

 

"As estrelas palpitam! — São as tochas!

Os rochedos murmuram!... - São os monges!

Reza um órgão nos céus!

Que incenso! — Os rolos que do abismo voam!

Que turíbulo enorme — Paulo Afonso!

Que sacerdote! — Deus..."

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

 

 

À BEIRA DO ABISMO E DO INFINITO

A celeste Africana, a Virgem-Noite

Cobria as faces... Gota a gota os astros

Caíam-lhe das mãos no peito seu...

Um beijo infindo suspirou nos ares...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

A canoa rolava!... Abriu-se a um tempo

O precipício!... e o céu!...

 

Santa Isabel, 12 de julho de 1870. Rosário do Orobó.

 

 

 

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