Um padre viajava, certa vez, pelas aldeias, escarranchado* numa velha besta ruça. À margem de um rio largo, encontrou um moleque brincando.
– Menino! – Perguntou ele, querendo passar para o outro lado. – Esse rio é fundo?
– Que esperança! – respondeu o menino com uma carinha de anjo. - O gado do meu pai atravessa aí, com a água pelo peito.
O padre, em vista dessa informação, tocou a besta para a água, mas o rio era de uma fundura sem fim, e a besta perdeu o pé. Ela e o padre desapareceram rio adentro, rodaram arrastados pela correnteza, e somente a muito custo conseguiram se salvar. Quando o padre atingiu a margem onde estava o menino, perguntou:
- Onde você mora?
- Perto daqui.
– Quero ir lá.
Foram, mas não encontraram ninguém em casa.
– Onde está seu pai, menino?
- Papai foi plantar o que não nasce.
– E sua mãe?
- Foi trabalhar para comer ontem.
– Esperarei que eles cheguem – declarou o padre, fechando a carranca.
Os pais do menino se demoraram muito, porém quando apareceram, lá estava o padre sentado, esperando, e aí não mais de carranca fechada, e sim todo sorridente.
– Que menino esperto esse seu filho! – disse ele ao casal. – É muito inteligente. Quando eu vinha para cá, ele me disse que o gado do seu pai atravessava o rio com água pelo peito.
– É verdade, – falou o pai - nós criamos patos, eles não afundam.
O padre disfarçou uma careta.
– Pois é – disse ele, sorrindo amarelo. – Ele disse que a senhora tinha ido trabalhar para a família comer ontem.
– Está certo – disse a mãe. – Fui fazer pães para pagar uns que tomei de empréstimo.
– Ele disse também que o senhor foi plantar o que não nasce.
– É isso mesmo – disse o pai. – Fui ao enterro de um dos meus amigos.
"Esse moleque me fez tomar um banho no rio, e quase morrer afogado, mas ele me paga" – pensou o padre. E continuou em voz alta:
- Se os senhores não se incomodassem, eu levaria o menino comigo. Ele é tão inteligente, que é pena deixá-lo na roça, onde o mais que poderá aprender é carpir, cuidar de plantações de milho e feijão miúdo. Se for comigo, será diferente. Frequentará escolas, e poderá vir a ser um grande homem…
Tanto falou, tanto insistiu, que conseguiu o consentimento dos pais do menino e o levou para a cidade. Mal chegaram, o padre perguntou:
- O que é isto onde moro?
- Casa – respondeu o garoto, prontamente, um pouco admirado da pergunta.
– Não é casa, é traficância. Você vai apanhar, para não falar mais bobagem.
Pegou um chicote e deu-lhe umas lambadas na perna.
- O que é que eu sou?
- Padre.
- Não está certo. Sou papa-cristo.
- O que é minha empregada?
- Mulher.
– Não é mulher, é folgazona.
E dava-lhe de chicote.
– O que é isso, menino? – dizia, abrindo a torneira.
– Água.
– Não é água, é abundância.
– Que é isto?
- É um gato – dizia o menino amedrontado.
– Não é gato, é papa-rato.
– E isto?
- Fogo.
– Não é fogo, é esquenta-mundo.
E batia de chicote no garoto. Quando se cansou, guardou o rabo-de-gato e foi dormir a sesta.
Então, o menino pegou o gato, amarrou-lhe um feixe de sapé no rabo e pôs fogo. O bichano, sentindo o rabo queimar, correu pela casa, espantado, e foi parar no telhado, miando desesperadamente. Em pouco tempo, ateou fogo à casa. O menino, vendo o estrago feito, trancou a porta do quarto onde dormia o padre, amontoou os móveis diante dela, e começou a gritar, com toda a força dos pulmões:
"Acorda seu papa-cristo,
que lá vai o papa-rato
com o esquenta–mundo no rabo!
Acorde com a abundância,
Que leva o diabo à traficância!"
O padre acordou e começou a berrar:
- Menino, destranque a porta! – gritava quase asfixiado pela fumaça.
E o menino, sem piedade:
- Não é porta, é batedeira.
– Menino, põe a chave por baixo da porta!
- Não é chave, é giradeira.
– Menino, traga água.
– Não é agua, é abundância.
– Apague o fogo, menino!
- Não é fogo, é esquenta-mundo.
O menino, então, pegou a trouxinha de roupas, e saiu correndo para a sua casa, sem nem olhar para trás.
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