Thursday, 12 December 2019

Thursday's Serial: "Memórias de um Sargento de Milícias" by Manuel Antônio de Almeida (in Portuguese) - III


XI - PROGRESSO E ATRASO         
Dadas as explicações do capitulo precedente, voltemos ao nosso memorando, de quem por um pouco nos esquecemos. Apressemo-nos a dar ao leitor uma boa noticia: o menino desempacara do F, e já se achava no P, onde por uma infelicidade empacou de novo. O padrinho anda contentíssimo com este progresso, e vê clarear-se o horizonte de suas esperanças; declara positivamente que nunca viu menino de melhor memória do que o afilhado, e cada lição que este da sabida de quatro em quatro dias pelo menos e para ele um triunfo. Há porem uma coisa que o entristece no meio de tudo: o menino tem para a reza, e em geral para tudo quanto diz respeito a religião, uma aversão decidida; não e capaz de fazer o pelo-sinal da esquerda para a direita fá-lo sempre da direita para a esquerda, e não foi possível ao padrinho, apesar de toda a paciência e boa vontade, fazê-lo repetir de cor sem errar ao menos a metade do padre-nosso; em vez de dizer "venha a nos o vosso reino" diz sempre "venha a nos o pão nosso". Ir a missa ou ao sermão e para ele o maior de todos os suplícios, isto faz que o padrinho desespere as vezes, e ate chegue a concordar com a comadre em que o menino não tem jeito para clérigo; porem são nuvens passageiras; sempre há isto ou aquilo que faz renascer todas as esperanças; e o homem caminha animado na sua obra.
O que ele porem esperava não esperavam todos, e ninguém via no menino senão um futuro peralta da primeira grandeza; quem mais contava com isso era a vizinha do barbeiro, aquela a quem ele chamava o agouro do pequeno. Era a tal vizinha uma dessas mulheres que se chamam de faca e calhau, valentona, presunçosa, e que se gabava de não ter papas na língua: era viúva, e importunava a todo o mundo com as virtudes do seu defunto. Serrazina e amiga de contrariar, não perdia ocasião de desmentir o vizinho em suas esperanças a respeito do afilhado, declarando que não lhe via jeito para coisa nenhuma, que não queria para coisa que lhe pertencesse o fim que ele havia de ter, e que quando ele crescesse o melhor remédio era dar-lhe com os ossos a bordo de um navio ou por-lhe o côvado e meio às costas. O barbeiro desesperava com isso; por muito tempo conseguiu conter-se, porém um dia não pôde mais, e disparatou com a sujeita. Chegando por acaso à porta da loja, a vizinha que estava à janela disse-lhe em tom de zombaria:
— Então, vizinho, como vai o seu reverendo?
Um velho que morava defronte, e que também se achava à janela, desatou a rir com a pergunta.
O compadre foi às nuvens, avermelhou-se-lhe a calva, franziu a testa, porém fez que não tinha ouvido. A vizinha pôs-se também a rir, percebendo o cavaco, e acrescentou
— Padre amigo do fado... tem que ver... Quando vai ele outra vez à casa dos ciganos?
O velho defronte redobrou a risada. A vizinha continuou:
— Então ele já encarrilha o padre-nosso?
O compadre exasperou-se completamente; e estudando uma injúria bem grande para responder, disse afinal:
— Já... já... senhora intrometida com a vida alheia... já sabe o padre-nosso, e eu o faço rezar todas as noites um pelo seu defunto marido que está a esta hora dando coices no inferno!...
— Hein?... o que é que você diz, senhor raspa-barbas? você mete terceiros na conversa? disse a vizinha encrespando-se; olhe que esse de quem você fala nunca foi sangrador, nem viveu de aparas de cabelos... Não se meta comigo que hei de lhe dizer das últimas e pôr-lhe os podres na rua... Coices no inferno!!! ora dá-se? um santo homem... Coices no inferno... Pois agora saiba, porque eu cá não tenho papas na língua, que o tal seu afilhado das dúzias é um pedaço de um malcriadão muito grande, que há de desonrar as barbas de quem o criou... E não tem que ver, porque ele é de má raça... já ouviu? não se meta comigo...
— E você, respondeu o compadre enquanto a vizinha tomava fôlego, por que se mete com o que não é da sua repartição?
Ela prosseguiu:
— Hei de me meter; não é da sua conta, nem venha cá dar regras, que eu não preciso de você...
— Mas o que tem você que entender com uma criança inocente que nunca lhe fez mal?...
— Tenho muito, porque não me deixa parar os telhados com pedras, faz-me caretas quando me vê na janela, e trata-me como se eu fosse alguma saloia ou mulher de barbeiro... Digo-lhe e repito-lhe... aquilo tem maus bofes, e não há de ter bom fim...
— Está bom, senhora, respondeu o compadre que tinha bom gênio, e que só fora levado àquele excesso pelo amor do afilhado; basta de rezingas, olhe a vizinhança.
— Ora, tomara a vizinhança ver-se livre do tal diabo...
O menino chegou nessa ocasião à porta, e pondo-se na ponta dos pés, esticando o pescoço, e abanando-o como a vizinha e imitando-lhe a voz, repetiu:
— Ver-se livre do tal diabo...
O compadre achou tanta graça, que deu-se por vingado, e desatou a rir por seu turno.
— Ah! disse a vizinha, agradece a boa vontade, meu diabo em figura de menino; tu não tens a culpa; a culpa tem quem te dá ousadias.
— A culpa tem quem te dá ousadias... repetiu o menino arremedando.
O compadre ria-se a perder.
A vizinha desesperada bateu com o postigo e recolheu-se, porém por muito tempo falou em voz alta, de maneira que toda a vizinhança ouvia, dizendo quanto impropério lhe veio à cabeça contra o barbeiro e o menino.
— O pequeno encheu-me as medidas, disse este consigo, vingou-me desta; agora falta-me aquele velho de defronte que também a acompanhou na risota; mas não faltará ocasião.
Esqueceu-nos dizer que o barbeiro, apesar de ter sabido, pouco se importara com a prisão do Leonardo, e referindo-se à causa da infelicidade deste, dissera apenas:
— É bem feito, para ele não se deixar arrastar para toda parte agarrado em quanto rabo-de-saia lhe aparece.
Nem foi à cadeia visitá-lo, nem levar-lhe o filho para tomar a bênção, o que a comadre muito reprovou quando soube.
O velho tenente-coronel, depois de ter posto na rua o Leonardo, informado miudamente, como sabe o leitor, pela comadre do destino da Maria, decidiu tomar o menino sob sua proteção, e acreditou que, se conseguisse felicitá-lo, lavaria seu filho do pecado de ter desonrado a Maria. Por intermédio da comadre mandou oferecer ao compadre seu préstimo em favor do pequeno, mandou-lhe propor até que o deixasse ir para a sua companhia. O compadre porém não esteve por isso de modo nenhum, e até se prometeu aceitar para qualquer outra coisa a proteção do tenente-coronel foi a instâncias da comadre.
— Não quero, dizia ele, que me roubem o gosto de tê-lo feito gente; comecei a minha obra, hei de acabá-la.
— Homem, retorquira-lhe a comadre, você faz mal; olhe que o velho é homem de representação; veja como ele com duas voltas e meia pôs o Leonardo na rua.
— Nada, não hei de dar o gostinho aqui a esta súcia da vizinhança; hei de eu mesmo fazer a coisa por minhas mãos. Lá se o tenente-coronel quiser fazer alguma coisa por ele, aceito; mas quanto a tirá-lo da minha companhia, isso nunca. Agora já é birra; hei de levar a minha avante.

XII - ENTRADA PARA A ESCOLA
É mister agora passar em silêncio sobre alguns anos da vida do nosso memorando para não cansar o leitor repetindo a história de mil travessuras de menino no gênero das que já se conhecem; foram diabruras de todo o tamanho que exasperaram a vizinha, desgostaram a comadre, mas que não alteraram em coisa alguma a amizade do barbeiro pelo afilhado: cada vez esta aumentava, se era possível, tornava-se mais cega. Com ele cresciam as esperanças do belo futuro com que o compadre sonhava para o pequeno, e tanto mais que durante este tempo fizera este alguns progressos: lia soletrado sofrivelmente, e por inaudito triunfo da paciência do compadre aprendera a ajudar missa. A primeira vez que ele conseguiu praticar com decência e exatidão semelhante ato, o padrinho exultou; foi um dia de orgulho e de prazer: era o primeiro passo no caminho para que ele o destinava.
— E dizem que não tem jeito para padre, pensou consigo; ora acertei o alvo, dei-lhe com a balda. Ele nasceu mesmo para aquilo, há de ser um clérigo de truz. Vou tratar de metê-lo na escola, e depois... toca.
Com efeito foi cuidar nisso e falar ao mestre para receber o pequeno; morava este em uma casa da rua da Vala, pequena e escura.
Foi o barbeiro recebido na sala, que era mobiliada por quatro ou cinco longos bancos de pinho sujos já pelo uso, uma mesa pequena que pertencia ao mestre, e outra maior onde escreviam os discípulos, toda cheia de pequenos buracos para os tinteiros; nas paredes e no teto havia penduradas uma porção enorme de gaiolas de todos os tamanhos e feitios, dentro das quais pulavam e cantavam passarinhos de diversas qualidades: era a paixão predileta do pedagogo.
Era este um homem todo em proporções infinitesimais, baixinho, magrinho, de carinha estreita e chupada, excessivamente calvo; usava de óculos, tinha pretensões de latinista, e dava bolos 6 nos discípulos por dá cá aquela palha. Por isso era um dos mais acreditados da cidade. O barbeiro entrou acompanhado pelo afilhado, que ficou um pouco escabriado à vista do aspecto da escola, que nunca tinha imaginado. Era em um sábado; os bancos estavam cheios de meninos, vestidos quase todos de jaqueta ou robissões de lila, calças de brim escuro e uma enorme pasta de couro ou papelão pendurada por um cordel a tiracolo: chegaram os dois exatamente na hora da tabuada cantada. Era uma espécie de ladainha de números que se usava então nos colégios, cantada todos os sábados em uma espécie de cantochão monótono e insuportável, mas de que os meninos gostavam muito.
As vozes dos meninos, juntas ao canto dos passarinhos, faziam uma algazarra de doer os ouvidos; o mestre, acostumado àquilo, escutava impassível, com uma enorme palmatória na mão, e o menor erro que algum dos discípulos cometia não lhe escapava no meio de todo o barulho; fazia parar o canto, chamava o infeliz, emendava cantando o erro cometido, e cascava-lhe pelo menos seis puxados bolos. Era o regente da orquestra ensinando a marcar o compasso. O compadre expôs, no meio do ruído, o objeto de sua visita, e apresentou o pequeno ao mestre.
— Tem muito boa memória; soletra já alguma coisa, não lhe há de dar muito trabalho, disse com orgulho.
— E se mo quiser dar, tenho aqui o remédio; santa férula! disse o mestre brandindo a palmatória.
O compadre sorriu-se, querendo dar a entender que tinha percebido o latim.
— É verdade: faz santos até as feras, disse traduzindo.
O mestre sorriu-se da tradução.
— Mas espero que não há de ser necessária, acrescentou o compadre.
O menino percebeu o que tudo isto queria dizer, e mostrou não gostar muito.
— Segunda-feira cá vem, e peço-lhe que não o poupe, disse por fim o compadre despedindo-se. Procurou pelo menino e já o viu na porta da rua prestes a sair, pois que ali não se julgava muito bem.
— Então, menino, sai sem tomar a bênção do mestre?...
O menino voltou constrangido, tomou de longe a bênção, e saíram então.
Na segunda-feira voltou o menino armado com a sua competente pasta a tiracolo, a sua lousa de escrever e o seu tinteiro de chifre; o padrinho o acompanhou até a porta. Logo nesse dia portou-se de tal maneira que o mestre não se pôde dispensar de lhe dar quatro bolos, o que lhe fez perder toda a folia com que entrara: declarou desde esse instante guerra viva à escola. Ao meio-dia veio o padrinho buscá-lo, e a primeira notícia que ele lhe deu foi que não voltaria no dia seguinte, nem mesmo aquela tarde.
— Mas você não sabe que é preciso aprender?...
— Mas não é preciso apanhar...
— Pois você já apanhou?...
— Não foi nada, não, senhor; foi porque entornei o tinteiro na calça de um menino que estava ao pé de mim; o mestre ralhou comigo, e eu comecei a rir muito...
— Pois você vai-se rir quando o mestre ralha...
Isto contrariou o mais que era possível ao barbeiro. Que diabo não diria a maldita vizinha quando soubesse que o menino tinha apanhado logo no primeiro dia de escola?... Mas não haviam reclamações, o que o mestre fazia era bem-feito. Custou-lhe bem a reduzir o menino a voltar nessa tarde à escola, o que só conseguiu com a promessa de que falaria ao mestre para que ele lhe não desse mais. Isto porém não era coisa que se fizesse, e não foi senão um engodo para arrastar o pequeno. Entrou este desesperado para a escola, e por princípio nenhum queria estar quieto e calado no seu banco; o mestre chamou-o e pô-lo de joelhos a poucos passos de si; passado pouco tempo voltou-se distraidamente, e surpreendeuo no momento em que ele erguia a mão para atirar-lhe uma bola de papel. Chamou-o de novo, e deu-lhe uma dúzia de bolos.
— Já no primeiro dia, disse, você promete muito...
O menino resmungando dirigiu-lhe quanta injúria sabia de cor.
Quando o padrinho voltou de novo a buscá-lo achou-o de tenção firme e decidida de não se deixar engodar por outra vez, e de nunca mais voltar, ainda que o rachassem. O pobre homem azuou com o caso.
— Ora logo no primeiro dia!... disse consigo; isto é praga daquela maldita mulher... mas hei de teimar, e vamos ver quem vence.

XIII - MUDANÇA DE VIDA            
A custa de muitos trabalhos, de muitas fadigas, e sobretudo de muita paciência, conseguiu o compadre que o menino freqüentasse a escola durante dois anos e que aprendesse a ler muito mal e escrever ainda pior. Em todo este tempo não se passou um só dia em que ele não levasse uma remessa maior ou menor de bolos; e apesar da fama que gozava o seu pedagogo de muito cruel e injusto, é preciso confessar que poucas vezes o fora para com ele: o menino tinha a bossa da desenvoltura, e isto, junto com as vontades que lhe fazia o padrinho, dava em resultado a mais refinada má-criação que se pode imaginar. Achava ele um prazer suavíssimo em desobedecer a tudo quanto se lhe ordenava; se se queria que estivesse sério, desatava a rir como um perdido com o maior gosto do mundo; se se queria que estivesse quieto, parece que uma meia oculta o impelia e fazia com que desse uma idéia pouco mais ou menos aproximada do moto-contínuo. Nunca uma pasta, um tinteiro, uma lousa lhe durou mais de 15 dias: era tido na escola pelo mais refinado velhaco; vendia aos colegas tudo que podia ter algum valor, fosse seu ou alheio, contanto que lhe caísse nas mãos: um lápis, uma pena, um registo, tudo lhe fazia conta; o dinheiro que apurava empregava sempre do pior modo que podia. Logo no fim dos primeiros cinco dias de escola declarou ao padrinho que já sabia as ruas, e não precisava mais de que ele o acompanhasse; no primeiro dia em que o padrinho anuiu a que ele fosse sozinho fez uma tremenda gazeta; tomou depois gosto a esse hábito, e em pouco tempo adquiriu entre os companheiros o apelido de gazeta-mor da escola, o que também queria dizer apanha-bolos-mor. Um dos principais pontos em que ele passava alegremente as manhãs e tardes em que fugia à escola era a igreja da Sé. O leitor compreende bem que isto não era de modo algum inclinação religiosa; na Sé à missa, e mesmo fora disso, reunia-se gente, sobretudo mulheres de mantilha, de quem tomara particular zanguinha por causa da semelhança com a madrinha, e é isso o que ele queria, porque internando-se na multidão dos que entravam e saíam, passava despercebido, e tinha segurança de que o não achariam com facilidade se o procurassem.
Pelo hábito de freqüentar a igreja tomara conhecimento e travara estreita amizade com um pequeno sacristão que, digamos de passagem, era tão boa peça como ele; apenas se encontravam limitavam-se a trocar olhares significativos enquanto o amigo andava ocupado no serviço da igreja; assim porém que se acabavam as missas, e que saíam as verdadeiras beatas, reuniam-se os dois, e começavam a contar suas diabruras mais recentes, travando o plano de mil outras novas. Por complacência, ou antes por prova de decidida amizade, o companheiro confiava ao nosso gazeador um caniço, e faziam juntos o serviço e as maroteiras: a mais pequena que faziam era irem de altar em altar escorropichando todas as galhetas, o que lhes incendia mais o desejo de traquinar.
Esta vida durou por muito tempo; porém afinal já eram as gazetas tão repetidas, que o padrinho se viu forçado a acompanhá-lo outra vez todos os dias para a escola, o que desfez todos os planos que os dois tinham concertado. O nosso futuro clérigo tinha muitas vezes pensado em como não lhe seria agradável ver-se revestido como o seu companheiro de uma batina e uma sobrepeliz, e feito também sacristão, ter a toda hora à sua disposição quantos caniços quisesse, ter por sua e de seu amigo toda a igreja, poder nos dias de festa, tomando o turíbulo, afogar em ondas de fumaça a cara da velha que mais perto lhe ficasse na ocasião da missa. Oh! isto era um sonho de venturas! Vendo-se privado, depois que o padrinho o acompanhava, de gozar parte destes prazeres, como fazia nos dias de fugida, atearam-se-lhe os desejos, e começou a confessá-los ao padrinho, dando a entender que nada havia de que agora gostasse tanto como fosse a igreja, para a qual, dizia ele, parecia ter nascido. Isto foi para o padrinho um alegrão, porque neste gosto recente do pequeno via furo aos seus projetos.
— Eu bem dizia... pensava consigo; não tem dúvida, vou adiante; o rapaz está-me enchendo as medidas.
Afinal o menino tomou um dia uma resolução última, e propôs ao padrinho que o fizesse sacristão.
— Isso seria muito bom, disse ele, a fim de acostumar-me para quando for padre.
A princípio a idéia deslumbrou ao padrinho, porém mais tarde acudiu-lhe a reflexão, e assentou que seria rebaixar o menino e comprometer a sua dignidade futura. Afinal porém tantas foram as rogativas e argumentos do pequeno, que se viu obrigado a ceder. O menino tinha nisso duas enormes vantagens; satisfazia seus desejos e saía da escola, poupando assim as remessas diárias de bolos.
— Está bem, dissera consigo o padrinho, ele já sabe ler alguma coisa e escrever: deixo-o, para fazer-lhe a vontade, algum tempo na Sé, para que também tome mais amor àquela vida, e depois, apenas o vir com o juízo mais assente, hei de ir adiante com a coisa. Foi em conseqüência procurar aquele sacristão da Sé que dançara o minuete na festa do batizado, que era nada menos do que o pai do sacristãozinho com que o nosso pequeno travara amizade, para arranjar o afilhado, que não queria outra igreja que não fosse a Sé. Felizmente pôde ele ser admitido; com a prática que tivera dos dias de gazeta aprendera pouco mais ou menos todo o cerimonial que é mister a um sacristão: ajudar a missa já ele sabia, às outras coisas aperfeiçoou-se em pouco tempo.
Em poucos dias aprontou-se, e em uma bela manhã saiu de casa vestido com a competente batina e sobrepeliz, e foi tomar posse do emprego. Ao vê-lo passar a vizinha dos maus agouros soltou uma exclamação de surpresa a princípio, supondo alguma asneira do compadre; porém reparando, compreendeu o que era, e desatou uma gargalhada.
— E que tal?!... Deus vos guarde, Sr. cura, disse fazendo um cumprimento.
O menino lançou-lhe um olhar de revés, e respondeu entre dentes:
— Eu sou cura, e hei de te curar...
Era aquilo uma promessa de vingança.
— Ora dá-se? continuou a vizinha consigo mesma; aquilo na igreja é um pecado!!
Chegou o menino à Sé impando de contente; parecia-lhe a batina um manto real. Por fortuna houve logo nesse dia dois batizados e um casamento, e ele teve assim ocasião de entrar no pleno exercício de suas funções, em que começou revestindo-se da maior gravidade deste mundo. No outro dia porém o negócio começou a mudar de figura, e as brejeiradas começaram.
A primeira foi em uma missa cantada. Coube ao pequeno o ficar com uma tocha, e ao companheiro o turíbulo ao pé do altar.
Por infelicidade a vizinha do compadre, a quem o menino prometera curar, sem pensar no que fazia colocou-se perto do altar junto aos dois. Assim que a avistou, o novo sacristão disse algumas palavras a seu companheiro, dando-lhe de olho para a mulher. Daí a pouco colocaram-se os dois disfarçadamente em distância conveniente, e de maneira tal, que ela ficasse pouco mais ou menos com um deles atrás e outro adiante. Começaram então os dois uma obra meritória: enquanto um, tendo enchido o turíbulo de incenso, e balançando-o convenientemente, fazia com que os rolos de fumaça que se desprendiam fossem bater de cheio na cara da pobre mulher, o outro com a tocha despejava-lhe sobre as costas da mantilha a cada passo plastradas de cera derretida, olhando disfarçado para o altar. A pobre mulher exasperou-se, e disse-lhes não sabemos o quê.
— Estamos te curando, respondeu o menino tranqüilamente.
Vendo que não tirava partido, quis a devota mudar de lugar e sair, porém o aperto era tão grande que o não pôde fazer, e teve de aturar o suplício até o fim. Acabada a festa, dirigiu-se ao mestre-de-cerimônias, e fez uma enorme queixa, que custou aos dois uma tremenda sarabanda. Pouco porém se importaram com isso, uma vez que tinham realizado o seu plano.

XIV - NOVA VINGANÇA E SEU RESULTADO          
A sarabanda que o mestre-de-cerimônias passara aos dois pequenos em razão do que haviam feito à pobre mulher não produziu, como dissemos, nenhum efeito sobre eles no sentido de os emendar; não perdoaram porém a humilhação que sofreram diante da sua vítima, e a vingança de que ela tinha gozado; na primeira ocasião que tiveram tiraram desforra, pregando também uma peça ao mestre-de-cerimônias.
Foi o caso assim:
O mestre-de-cerimônias era um padre de meia idade, de figura menos má, filho da Ilha Terceira, porém que se dava por puro alfacinha: tinha-se formado em Coimbra; por fora era um completo São Francisco de austeridade católica, por dentro refinado Sardanápalo, que podia por si só fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro; era pregador que buscava sempre por assunto a honestidade e a pureza corporal em todo o sentido; porém interiormente era sensual como um sectário de Mafona. O público ignorava talvez semelhante coisa, porém outro tanto não acontecia aos dois meninos, que andavam ao fato de tudo: o mestre-de-cerimônias, fiado em que pela sua pouca idade dariam eles pouca atenção a certas coisas, tinha-os algumas vezes empregado no seu serviço, mandando recados a uma certa pessoa que, saiba o leitor em segredo, era nada menos do que a cigana, objeto dos últimos cuidados do Leonardo, com que S. Rev.ma vivia há certo tempo em estreitas relações, salvando, é verdade, todas as aparências da decência.
Chegou o dia de uma das primeiras festas da igreja, em que o mestre-de-cerimônias era sempre o pregador: era no sermão desse dia que o homem se empregava, muito tempo antes, pondo abaixo a livraria, e fazendo um enorme esforço de inteligência (que não era nele coisa muito vigorosa). Já se vê pois que ele devia amar o seu sermão tanto que quase rebentou de raiva em um ano em que por doente o não pôde pregar. Entendia que todos o ouviam com sumo prazer, que o povo se abalava à sua voz: enfim, aquele sermão anual era o meio por que ele esperara chegar a todos os fins, a que contava dever toda a sua elevação futura; era o seu talismã. Digamos entretanto que era bem mau caminho o tal sermão, porque se podia ele demonstrar alguma coisa, era a insuficiência do padre para qualquer coisa desta vida, exceto para mestre-de-cerimônias, em que ninguém o desbancava. Pois foi nesse ponto delicado que os dois meninos buscaram feri-lo, e o acaso os favoreceu excedendo de muito os seus desejos e esperanças, e fazendo a sua vingança completíssima.
Chegou, como dissemos, o dia da festa; havia três ou quatro dias antes que o mestre-de-cerimônias não saia de casa, empregado em decorar a importante peça. Foi o nosso sacristão calouro encarregado de lhe ir avisar da hora do sermão. Chegou à casa da cigana, onde o padre costumava a estar; bateu, e, apesar de todas as recomendações que costumava ter, disse em voz alta:
— O Rev. mestre-de-cerimônias está aí?...
— Fale baixo, menino, disse a cigana de dentro da rótula... O que quer você com o Sr. padre?
— Precisava muito falar com ele por causa do sermão de amanhã.
— Entra, entra, disse o padre que o ouvira...
— Venho dizer a V. Rev.ma, disse o menino entrando, que amanhã às dez horas há de estar na igreja.
— Às dez? Uma hora mais tarde do que de costume...
— Justo, respondeu o menino sorrindo-se internamente de alegria, e saiu.
Foi logo dali dar parte ao companheiro de que o seu plano tinha saído completamente aos seus desejos, pois o que ele queria era que o padre faltasse ao sermão, e por isso, encarregado de lhe indicar a hora, a trocara, e em vez de nove dissera dez.
Dispuseram-se as coisas; postou-se a música de barbeiros na porta da igreja; andou tudo em rebuliço: às 9 horas começou a festa.
As festas daquele tempo eram feitas com tanta riqueza e com muito mais propriedade, a certos respeitos, do que as de hoje: tinham entretanto alguns lados cômicos; um deles era a música de barbeiros à porta. Não havia festa em que se passasse sem isso; era coisa reputada quase tão essencial como o sermão; o que valia porém é que nada havia mais fácil de arranjar-se; meia dúzia de aprendizes ou oficiais de barbeiro, ordinariamente negros, armados, este com um pistão desafinado, aquele com uma trompa diabolicamente rouca, formavam uma orquestra desconcertada, porém estrondosa, que fazia as delícias dos que não cabiam ou não queriam estar dentro da igreja.
A festa seguiu os seus trâmites regulares; porém apenas se foi aproximando a hora, começou a dar cuidados a tardança do pregador. Fez-se mais esta cerimônia, mais aquela, e nada de aparecer o homem. Despachou-se a toda pressa um dos meninos que não entrara na festa para ir procurar o padre; ele deu duas voltas pela vizinhança, e veio dizendo que o não tinha encontrado. Subiram os apuros; não havia remédio; era preciso um sermão, fosse como fosse.
Estava assistindo à festa um capuchinho italiano que por bondade, vendo o aperto geral, ofereceu-se para improvisar o sermão.
— Mas V. Rev.ma não fala a língua da gente, objetaram-lhe.
— Capisco! respondeu este, ed la necessità!...
Depois de alguma perplexidade aceitaram-se finalmente os bons ofícios do capuchinho, e foi ele levado ao púlpito. Os meninos triunfantes sorriam-se um para o outro. Apenas apareceu o pregador ao povo houve um murmúrio geral; os gaiatos sorriam-se contando já com o partido que dali tirariam para um bom par de risadas; algumas velhas prepararam-se para uma grande compunção ao aspecto das imensas barbas do pregador; outras menos crentes, vendo que não era o orador costumado, exclamaram despeitadas:
— Arrenego!
— Deus me perdoe.
— Pois aquilo é que prega hoje?...
Apesar porém de tudo isto, a atenção foi profunda e gera., animando a todos uma grande curiosidade. O orador começou: falava já há um quarto de hora sem que ninguém ainda o tivesse entendido: começavam já algumas velhas a protestar que o sermão todo em latim não tinha graça, quando de repente viu-se abrir a porta do púlpito e aparecer a figura do mestre-de-cerimônias adiantou-se, afastou com a mão o pregador italiano, que surpreendido parou um instante, e entoou com voz rouca e estrondosa o seu per signum crucis. Aquela voz conhecida o povo despertou do aborrecimento, benzeu-se, e se dispôs a escutá-la. Nem todos porém foram desta opinião; entenderam que se devia deixar acabar o capuchinho, e começaram a murmurar. O capuchinho não quis ceder de seu direito, e prosseguiu na sua arenga. Foi uma verdadeira cena de comédia, de que a maioria dos circunstantes ria-se a não poder mais; os dois meninos, autores principais da obra, nadavam em um mar de rosas.
— Ó mei cari fratelli! exclamava por um lado o capuchinho com voz aflautada e meiga, la voce de la Providenza...
— Semelhante às trombetas de Jericó, rouquejava por outro lado o mestre-de-cerimônias...
— Piage al cor... acrescentava o capuchinho.
— Anunciando a queda de Satanás, prosseguia o mestre-de-cerimônias.
E assim levaram por algum tempo os dois, acompanhados por um coro de risadas e confusão, até que o capuchinho se resolveu a abandonar o posto, murmurando despeitado:
— Che bestia, per Dio!
Acabado o sermão, desceu do púlpito o mestre-de-cerimônias já um pouco aplacado por ter conseguido fazer-se ouvir, porém ainda bastante furioso para vir protestando arrancar uma por uma as quatro orelhas dos dois pequenos, de quem desconfiava que partira o que acabava de sofrer. Chegou à sacristia, que estava cheia de gente; vendo os dois meninos investiu para eles, e prendendo a cada um com uma das mãos pela gola da sobrepeliz...
— Então... então... dizia com os dentes cerrados... a que horas é o sermão?
— Eu disse às nove, sim, senhor; pode perguntar à moça, que ela bem ouviu...
— Que moça, menino, que moça? disse o padre exasperado por estar tanta gente e ouvir aquilo.
— Aquela moça cigana, lá onde V. Rev. ma estava; ela ouviu, eu disse às nove.
— Oh! disseram os circunstantes.
— É falso, respondeu com força o mestre-de-cerimônias largando os meninos para evitar novas explicações, e dando satisfação aos circunstantes com protestos de ser falso o que os meninos acabavam de dizer.
Entretanto serenou o alvoroço, acabou-se a festa, o povo retirou-se. O mestre-de-cerimônias sentado a um canto pensava consigo:
— E que tal? não ia perdendo o meu sermão deste ano por causa daquele endiabrado?! Depois que o maldito menino entrou para esta igreja anda tudo aqui em uma poeira! Ainda em cima dizer à vista de tanta gente que eu estava em casa da cigana! Nada... vou dar com ele daqui para fora...
E com efeito tratou de fazer com que os dois meninos, ou pelo menos o mais novo, fosse despedido. Sem muito custo o conseguiu, porque por certo não gozava ele de grandes simpatias.
Foi esta a pior peça que se lhe podia pregar: ele estava como em um paraíso, e expeliam-no dele; e depois a maldita vizinha como não havia ficar satisfeita vendo-o despedido, e a madrinha que se opusera formalmente à sua entrada para a Sé... tudo isto fazia-o desesperar...
Não se tinha ele enganado em suas previsões; apenas chegou em casa, e que se soube pela vizinhança do que se tinha passado, a vizinha, pilhando de jeito o compadre:
— Então, disse-lhe, eu não lhe tenho dito que aquilo tem maus bofes?...
— Senhora, pelo amor de Deus, meta-se com a sua vida...
— Estou vingada... pensava que a minha mantilha nova havia de ficar assim...
O compadre retirou-se para evitar nova desordem.
A comadre, apenas soube também do sucesso, veio ter com o compadre para dizer-lhe:
— Eu bem lhe digo; ele não serve para aquilo; é melhor pô-lo na Conceição; lá há mais sujeição; olhe, eu podia arranjar isso com o tenente-coronel...
O compadre porém não pareceu resolvido a aceitar o conselho.

XV - ESTRALADA              
Apesar de tudo quanto havia já sofrido por amores, o Leonardo de modo algum queria emendar-se; enquanto se lembrou da cadeia, dos granadeiros e do Vidigal esqueceu-se da cigana, ou antes só pensava nela para jurar esquecê-la; quando porém as caçoadas dos companheiros foram cessando, começou a renovar-se a paixão, e teve lugar uma grande luta entre a sua ternura e a sua dignidade, em que esta última quase triunfava, quando uma descoberta maldita veio transtornar tudo. Não sabemos por que meio o Leonardo descobriu um dia que o rival feliz que o pusera fora de combate era o reverendo mestre-de-cerimônias da Sé! Subiu-lhe com isto o sangue à cabeça:
— Pois um padre!?... dizia ele; é preciso que eu salve aquela criatura do inferno, onde ela se está metendo já em vida...
E começou de novo em tentativas, em promessas, em partidos para com a cigana, que a coisa alguma queria dobrar-se. Um dia que a pilhou de jeito à janela abordou-a, e começou ex-abrupto a falar-lhe deste modo:
— Você está já em vida no inferno!... pois logo um padre?!...
A cigana interrompeu-o:
— Havia muitos meirinhos para escolher, mas nenhum me agradou...
— Mas você está cometendo um pecado mortal... está deitando sua alma a perder...
— Homem, sabe que mais? você para pregador não serve, não tem jeito... eu como estou, estou muito bem; não me dei bem com os meirinhos; eu nasci para coisa melhor...
— Pois então tem alguma coisa que dizer de mim?... Hei de me ver vingado... e bem vingado.
— Ora! respondeu a cigana rindo-se.
E começou a cantarolar o estribilho de uma modinha.
O Leonardo compreendeu que falando-lhe no inferno e em castigos da outra vida nada arranjava, e decidiu dar-lhe o castigo mesmo nesta vida. Retirou-se murmurando:
— Faço uma estralada, dê no que der...
Poucos dias depois aconteceu que a cigana fazia anos; segundo o costume, apenas apareceu este pretexto, armou-se logo uma função: não nos daremos ao trabalho de descrevê-la; em um dos capítulos antecedentes já viu o leitor o que isso era: viola, modinhas, fado, algazarra, e estava a festa completa. O Leonardo soube logo do que havia, e jurou que esse seria o dia da vingança.
Ser valentão foi em algum tempo ofício no Rio de Janeiro; havia homens que viviam disso: davam pancada por dinheiro, e iam a qualquer parte armar de propósito uma desordem, contanto que se lhes pagasse, fosse qual fosse o resultado.
Entre os honestos cidadãos que nisto se ocupavam, havia, na época desta história, um certo Chico-Juca, afamadíssimo e temível. Seu verdadeiro nome era Francisco, e por isso chamaram-no a princípio-Chico-; porém tendo acontecido que conseguisse ele pelo seu braço lançar por terra do trono da valentia a um companheiro que era no seu gênero a maior reputação do tempo, e a quem chamavam-Juca,-juntaram este apelido ao seu, como honra pela vitória, e chamaram-no daí em diante-Chico-Juca.
Este homem era o desespero do Vidigal; tinha-lhe já pregado umas poucas, porém ainda não tinha sido possível agarrá-lo. Os granadeiros conheciam-no às léguas, porém nunca conseguiram pôr-lhe as mãos.
Tendo levado todo o dia à espreita, o Leonardo viu entrar sorrateiramente o mestre-de-cerimônias, pela volta de ave-maria, quando ainda não tinha começado a função.
— Ah! nem esta noite quer perder?! Pois há de sair-lhe cara a funçanata...
Saiu dali e foi direito procurar o Chico-Juca, que era seu antigo conhecido; achou-o em uma taverna defronte do Bom Jesus. O Chico-Juca era um pardo, alto, corpulento, de olhos avermelhados, longa barba, cabelo cortado rente; trajava sempre jaqueta branca, calça muito larga nas pernas, chinelas pretas e um chapelinho branco muito à banda; ordinariamente era afável, gracejador, cheio de ditérios e chalaças; porém nas ocasiões de sarilho, como ele chamava, era quase feroz. Como outros têm o vicio da embriaguez, outros o do jogo, outros o do deboche, ele tinha o vicio da valentia; mesmo quando ninguém lhe pagava, bastava que lhe desse na cabeça, armava brigas, e só depois que dava pancadas a fartar é que ficava satisfeito; com isso muito lucrava: não havia taverneiro que lhe não fiasse e não o tratasse muito bem.
Estava na porta da taverna sentado sobre um saco quando apareceu-lhe o Leonardo.
— Olá, mestre pataca! disse ele apenas o viu, pensei que ainda estava de xilindró tomando fortuna por causa da cigana...
— É mesmo por causa desse diabo que te venho procurar.
— Homem, cabeçada e murro velho sei eu dar, porém fortuna! nunca tive tal habilidade...
— Não se trata de fortuna, disse-lhe o Leonardo baixinho, trata-se de pancada velha...
— Ui! temos dança?... vai-te embora... tu não és capaz de armar um sarilho... sempre foste um podre!...
— Bem sei, eu não sou capaz... mas tu... tu que és mestre disto...
— Eu... então por que diabo e onde queres tu que eu arme esse sarilho?. . .
— Não te hás de arrepender, disse o Leonardo batendo significativamente com os dedos no bolso do colete.
O Chico-Juca entendeu o verso; carregou o chapéu um pouco mais para o lado, e pôs-se a escutá-lo com curiosidade.
O Leonardo disse então o que queria: tratava-se nada menos do que de ir o Chico-Juca nessa mesma noite, fosse como fosse, à função da cigana, e de armar ali por alta noite uma grande desordem: preveniu-o logo que o Vidigal havia de estar por perto; e assim, apenas estivesse armada a história, era pôr-se ao fresco. A causa de tudo isto o Leonardo não lhe quis explicar, e também ele não teve grande curiosidade de saber: tratava-se de uma desordem; fosse qual fosse o motivo, estava sempre pronto. Assim, depois de se regatear um pouco o preço, chegaram os dois a um acordo, e ficou tudo tratado.
Deixando o Chico-Juca, o Leonardo foi procurar o Vidigal, e deu-lhe parte do que naquela noite havia em casa da cigana, e afiançou-lhe que a coisa acabava por força em desordem. Portanto cumpria que o Sr. major por lá aparecesse para o que desse e viesse.
— Está bem, disse-lhe o Vidigal; você quer tirar sua desforra; é justo. Lá hei de ir, e não precisava a sua advertência, pois já sabia que havia hoje por lá anos, e tinha tenção de aparecer.
O Leonardo retirou-se contente vendo que seu plano saía às mil maravilhas, e dispôs-se a gozar do resultado, pondo-se à espreita de lugar conveniente. Começou a brincadeira. Já se tinha cantado meia dúzia de modinhas e dançado por algum tempo a tirana, quando o Chico-Juca apareceu, e por intermédio de um conhecido (ele os tinha em toda parte) foi introduzido na sala, e começou a observar o que se passava. Havia na sala um quarto cuja porta estava fechada: de vez em quando a cigana lá entrava, demorava-se um pouco e saía; daí a pouco tornava a entrar levando consigo alguma das camaradas mais do peito, e tornava a sair; passado pouco tempo, entrava ainda levando outra amiga. Alguns faziam reparo nisso, outros porém não tinham desconfiança alguma. Ia a festa continuando, e lá pela meia-noite, quando começava a aferventar, foi de repente interrompida. Viu-se um dos rapazes que tocavam viola parar subitamente, e, interrompendo o estribilho da modinha que cantava, gritar enfurecido:
— Isto passa de mais... varro... menos essa, Sr. Chico-Juca; nada de graças pesadas com essa moça, que é cá coisa minha.
O Chico-Juca estava com efeito há mais de meia hora a dirigir graçolas das suas a uma moça que ele bem sabia que era coisa do rapaz que estava tocando: tanto fez, que este, tendo percebido, proferiu aquelas palavras que acabamos de ouvir.
— Você respinga?!... respondeu-lhe o Chico-Juca dirigindo-se para ele.
O rapaz, que não era peco, pôs-se em pé e replicou:
— Tenho dito, nada de graças com ela!...
Mal tinha pronunciado estas palavras quando o Chico-Juca, arrancando-lhe a viola da mão, bateu-lhe com ela em cheio sobre a cabeça; o rapaz reagiu, e começou a confusão.
O Chico-Juca foi acometido por um pouco; porém ligeiro e destemido, distribuía a cada qual o seu quinhão de cabeçadas e pontapés: algumas mulheres meteram-se na briga, e davam e levavam como qualquer; outras porém desfaziam-se em algazarra. De repente o Chico-Juca embarafustou pela porta fora, e desapareceu.
Era tempo, porque não se tinha passado muito tempo quando assomou na porta, que ele deixara aberta, a figura tranqüila do Vidigal, rodeada por uma porção de granadeiros. O Chico-Juca tinha-lhes escapado, apesar de o terem visto quando saía, porque o major, sendo nessa ocasião poucos os soldados, não quis mandar segui-lo com medo que lhe faltasse gente, pois via que dentro da casa o negócio estava feio. Entrou, pois, deixando-o passar.
Apenas o viram, pararam todos aterrados.
— Então que briga é esta?... disse ele descansadamente.
Começaram todos a desculpar-se como podiam; e segundo o crédito que mereciam pela sua reputação era-lhes distribuída a justiça: se era sujeito já conhecido, e que não era aquela a primeira em que entrava ficava de lado, e um granadeiro tomava conta dele; os outros eram mandados embora. Neste ínterim a cigana muito perturbada olhava repetidas vezes para a porta do quarto, dando sinais da mais viva inquietação. Não escapou isto ao Vidigal, que no fim de tudo disse a um granadeiro:
— Revista aquele quarto...
A cigana deu um grito; o granadeiro obedeceu e entrou no quarto: ouviu-se então um pequeno rumor, e o Vidigal disse logo cá de fora:
— Traz para cá quem estiver lá dentro.
No mesmo instante viu aparecer o granadeiro trazendo pelo braço o Rev. mestre-de-cerimônias em ceroulas curtas e largas, de meias pretas, sapatos de fivela, e solidéu à cabeça.
Apesar dos aparos em que se achavam, todos desataram a rir: só ele e a cigana choravam de envergonhados.
Esta última pôs-se aos pés do Vidigal, mas ele foi inflexível; e o Rev. foi conduzido com os outros para a casa da guarda na Sé, sendo-lhe apenas permitido pôr-se em hábitos mais decentes.

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