Thursday 5 December 2019

Thursday's Serial: "Memórias de um Sargento de Milícias" by Manuel Antônio de Almeida (in Portuguese) - II


V - O VIDIGAL   
O som daquela voz que dissera "abra a porta" lançara entre eles, como dissemos, o espanto e o medo. E não foi sem razão; era ela o anúncio de um grande aperto, de que por certo não poderiam escapar. Nesse tempo ainda não estava organizada a polícia da cidade, ou antes estava-o de um modo em harmonia com as tendências e idéias da época. O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial. Entretanto, façamos-lhe justiça, dados os descontos necessários às idéias do tempo, em verdade não abusava ele muito de seu poder, e o empregava em certos casos muito bem empregado.
Era o Vidigal um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, os movimentos lentos, e voz descansada e adocicada. Apesar deste aspecto de mansidão, não se encontraria por certo homem mais apto para o seu cargo, exercido pelo modo que acabamos de indicar.
Uma companhia ordinariamente de granadeiros, às vezes de outros soldados que ele escolhia nos corpos que haviam na cidade, armados todos de grossas chibatas, comandada pelo major Vidigal, fazia toda a ronda da cidade de noite, e toda a mais polícia de dia. Não havia beco nem travessa, rua nem praça, onde não se tivesse passado uma façanha do Sr. major para pilhar um maroto ou dar caça a um vagabundo. A sua sagacidade era proverbial, e por isso só o seu nome incutia grande terror em todos os que não tinham a consciência muito pura a respeito de falcatruas.
Se no meio da algazarra de um fado rigoroso, em que a decência e os ouvidos dos vizinhos não eram muito respeitados, ouvia-se dizer "está aí o Vidigal", mudavam-se repentinamente as cenas; serenava tudo em um momento, e a festa tomava logo um aspecto sério. Quando algum dos patuscos daquele tempo (que não gozava de grande reputação de ativo e trabalhador) era surpreendido de noite de capote sobre os ombros e viola a tiracolo, caminhando em busca de súcia, por uma voz branda que lhe dizia simplesmente "venha cá; onde vai?" o único remédio que tinha era fugir, se pudesse, porque com certeza não escapava por outro meio de alguns dias de cadeia, ou pelo menos da casa da guarda na Sé; quando não vinha o côvado e meio às costas, como conseqüência necessária.
Foi por isso que os nossos mágicos e a sua infeliz vítima puseram-se em debandada mal conheceram pela voz quem se achava com eles. Quiseram escapar-se pelos fundos da casa, porém ela estava toda cercada de granadeiros, em cujas mãos se viam a arma de que acima falamos. A porta abriu-se sem muita resistência, e o major Vidigal (porque era com efeito ele) com os seus granadeiros achou-os em flagrante delito de nigromancia: estava ainda acesa a fogueira, e os mais objetos que serviam ao sacrifício.
— Oh! disse ele, por aqui dá-se fortuna...
— Sr. major, pelo amor de Deus...
— Eu tinha desejos de ver como era isso; continuem... sem cerimônia, vamos.
Os infelizes hesitaram um pouco, porém vendo que resistir seria inútil, começaram de novo as cerimônias, de que os soldados se riam, antevendo talvez qual seria o resultado. O Leonardo estava corrido de vergonha, tanto mais porque o Vidigal o conhecia; e procurava cobrir-se do melhor modo com a sua imunda capa. Ajoelhou-se quase arrastado outra vez no mesmo lugar; e recomeçou a dança, a que o major assistia de braços cruzados e com ar pachorrento. Quando os sacrificadores, julgando que já tinham dançado suficientemente, tentaram parar, o major disse brandamente:
— Continuem.
Depois de muito tempo quiseram parar de novo.
— Continuem, disse outra vez o major.
Continuaram por mais meia hora; passado esse tempo, já muito cansados, tentaram dar fim.
— Ainda não; continuem.
Continuaram por tempos esquecidos, já estavam que não podiam de estafados; o nosso Leonardo, ajoelhado ao pé da fogueira, quase que se desfazia em suor. Afinal o major deu-se por satisfeito, mandou que parassem, e sem se alterar disse para os soldados, com a sua voz doce e pausada:
— Toca, granadeiros.
A esta voz todas as chibatas ergueram-se, e caíram de rijo sobre as costas daquela honesta gente, fizeram-na dançar, e sem querer, ainda por algum tempo.
— Pára, disse o major depois de um bom quarto de hora.
Começou então a fazer a cada um um sermão, em que se mostrava muito sentido por ter sido obrigado a chegar àquele excesso, e que terminava sempre por esta pergunta:
— Então você em que se ocupa?
Nenhum deles respondia. O major sorria-se e acrescentava com riso sardônico:
— Está bom!
Chegou a vez do Leonardo.
— Pois homem, você, um oficial de justiça, que devia dar o exemplo...-Sr. major, respondeu ele acabrunhado, é o diabo daquela rapariga que me obriga a tudo isto; já não sei de que meios use...
— Você há de ficar curado! Vamos para a casa da guarda.
Com esta última decisão o Leonardo desesperou. Perdoaria de bom grado as chibatadas que levara, contanto que elas ficassem em segredo; mas ir para a casa da guarda, e dela talvez para a cadeia... isso é que ele não podia tolerar. Rogou ao major que o poupasse; o major foi inflexível. Desfez então a vergonha em pragas à maldita cigana que tanto o fazia sofrer.
A casa da guarda era no largo da Sé; era uma espécie de depósito onde se guardavam os presos que se faziam de noite, para se lhes dar depois conveniente destino. Já se sabe que os amigos de novidades iam por ali de manhã e sabiam com facilidade tudo que se tinha passado na noite antecedente.
Aí esteve o Leonardo o resto da noite e grande parte da manhã, exposto à vistoria dos curiosos. Por infelicidade sua passou por acaso um colega, e vendo-o entrou para falar-lhe, isto quer dizer que daí a pouco toda a ilustre corporação dos meirinhos da cidade sabia do ocorrido com o Leonardo, e já se preparava para dar-lhe uma solene pateada quando o negócio mudou de aspecto e o Leonardo foi mandado para a cadeia.
Aparentemente os companheiros mostraram-se sentidos, porém secretamente não deixaram de estimar o contratempo porque o Leonardo era muito afreguesado, e enquanto estava ele preso as partes os procuravam.

VI - O VIDIGAL  
O som daquela voz que dissera "abra a porta" lançara entre eles, como dissemos, o espanto e o medo. E não foi sem razão; era ela o anúncio de um grande aperto, de que por certo não poderiam escapar. Nesse tempo ainda não estava organizada a polícia da cidade, ou antes estava-o de um modo em harmonia com as tendências e idéias da época. O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial. Entretanto, façamos-lhe justiça, dados os descontos necessários às idéias do tempo, em verdade não abusava ele muito de seu poder, e o empregava em certos casos muito bem empregado.
Era o Vidigal um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, os movimentos lentos, e voz descansada e adocicada. Apesar deste aspecto de mansidão, não se encontraria por certo homem mais apto para o seu cargo, exercido pelo modo que acabamos de indicar.
Uma companhia ordinariamente de granadeiros, às vezes de outros soldados que ele escolhia nos corpos que haviam na cidade, armados todos de grossas chibatas, comandada pelo major Vidigal, fazia toda a ronda da cidade de noite, e toda a mais polícia de dia. Não havia beco nem travessa, rua nem praça, onde não se tivesse passado uma façanha do Sr. major para pilhar um maroto ou dar caça a um vagabundo. A sua sagacidade era proverbial, e por isso só o seu nome incutia grande terror em todos os que não tinham a consciência muito pura a respeito de falcatruas.
Se no meio da algazarra de um fado rigoroso, em que a decência e os ouvidos dos vizinhos não eram muito respeitados, ouvia-se dizer "está aí o Vidigal", mudavam-se repentinamente as cenas; serenava tudo em um momento, e a festa tomava logo um aspecto sério. Quando algum dos patuscos daquele tempo (que não gozava de grande reputação de ativo e trabalhador) era surpreendido de noite de capote sobre os ombros e viola a tiracolo, caminhando em busca de súcia, por uma voz branda que lhe dizia simplesmente "venha cá; onde vai?" o único remédio que tinha era fugir, se pudesse, porque com certeza não escapava por outro meio de alguns dias de cadeia, ou pelo menos da casa da guarda na Sé; quando não vinha o côvado e meio às costas, como conseqüência necessária.
Foi por isso que os nossos mágicos e a sua infeliz vítima puseram-se em debandada mal conheceram pela voz quem se achava com eles. Quiseram escapar-se pelos fundos da casa, porém ela estava toda cercada de granadeiros, em cujas mãos se viam a arma de que acima falamos. A porta abriu-se sem muita resistência, e o major Vidigal (porque era com efeito ele) com os seus granadeiros achou-os em flagrante delito de nigromancia: estava ainda acesa a fogueira, e os mais objetos que serviam ao sacrifício.
— Oh! disse ele, por aqui dá-se fortuna...
— Sr. major, pelo amor de Deus...
— Eu tinha desejos de ver como era isso; continuem... sem cerimônia, vamos.
Os infelizes hesitaram um pouco, porém vendo que resistir seria inútil, começaram de novo as cerimônias, de que os soldados se riam, antevendo talvez qual seria o resultado. O Leonardo estava corrido de vergonha, tanto mais porque o Vidigal o conhecia; e procurava cobrir-se do melhor modo com a sua imunda capa. Ajoelhou-se quase arrastado outra vez no mesmo lugar; e recomeçou a dança, a que o major assistia de braços cruzados e com ar pachorrento. Quando os sacrificadores, julgando que já tinham dançado suficientemente, tentaram parar, o major disse brandamente:
— Continuem.
Depois de muito tempo quiseram parar de novo.
— Continuem, disse outra vez o major.
Continuaram por mais meia hora; passado esse tempo, já muito cansados, tentaram dar fim.
— Ainda não; continuem.
Continuaram por tempos esquecidos, já estavam que não podiam de estafados; o nosso Leonardo, ajoelhado ao pé da fogueira, quase que se desfazia em suor. Afinal o major deu-se por satisfeito, mandou que parassem, e sem se alterar disse para os soldados, com a sua voz doce e pausada:
— Toca, granadeiros.
A esta voz todas as chibatas ergueram-se, e caíram de rijo sobre as costas daquela honesta gente, fizeram-na dançar, e sem querer, ainda por algum tempo.
— Pára, disse o major depois de um bom quarto de hora.
Começou então a fazer a cada um um sermão, em que se mostrava muito sentido por ter sido obrigado a chegar àquele excesso, e que terminava sempre por esta pergunta:
— Então você em que se ocupa?
Nenhum deles respondia. O major sorria-se e acrescentava com riso sardônico:
— Está bom!
Chegou a vez do Leonardo.
— Pois homem, você, um oficial de justiça, que devia dar o exemplo...-Sr. major, respondeu ele acabrunhado, é o diabo daquela rapariga que me obriga a tudo isto; já não sei de que meios use...
— Você há de ficar curado! Vamos para a casa da guarda.
Com esta última decisão o Leonardo desesperou. Perdoaria de bom grado as chibatadas que levara, contanto que elas ficassem em segredo; mas ir para a casa da guarda, e dela talvez para a cadeia... isso é que ele não podia tolerar. Rogou ao major que o poupasse; o major foi inflexível. Desfez então a vergonha em pragas à maldita cigana que tanto o fazia sofrer.
A casa da guarda era no largo da Sé; era uma espécie de depósito onde se guardavam os presos que se faziam de noite, para se lhes dar depois conveniente destino. Já se sabe que os amigos de novidades iam por ali de manhã e sabiam com facilidade tudo que se tinha passado na noite antecedente.
Aí esteve o Leonardo o resto da noite e grande parte da manhã, exposto à vistoria dos curiosos. Por infelicidade sua passou por acaso um colega, e vendo-o entrou para falar-lhe, isto quer dizer que daí a pouco toda a ilustre corporação dos meirinhos da cidade sabia do ocorrido com o Leonardo, e já se preparava para dar-lhe uma solene pateada quando o negócio mudou de aspecto e o Leonardo foi mandado para a cadeia.
Aparentemente os companheiros mostraram-se sentidos, porém secretamente não deixaram de estimar o contratempo porque o Leonardo era muito afreguesado, e enquanto estava ele preso as partes os procuravam.

VII– A COMADRE
Cumpre-nos agora dizer alguma coisa a respeito de uma personagem que representará no correr desta história um importante papel, e que o leitor apenas conhece, porque nela tocamos de passagem no primeiro capitulo: é a comadre, a parteira que, como dissemos, servira de madrinha ao nosso memorando.
Era a comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até um certo ponto, e finória até outro; vivia do oficio de parteira, que adotara por curiosidade, e benzia de quebranto; todos a conheciam por muito beata e pela mais desabrida papa-missas da cidade. Era a folhinha mais exata de todas as festas religiosas que aqui se faziam; sabia de cor os dias em que se dizia missa em tal ou tal igreja, como a hora e até o nome do padre; era pontual à ladainha, ao terço, à novena, ao setenário; não lhe escapava via-sacra, procissão, nem sermão; trazia o tempo habilmente distribuído e as horas combinadas, de maneira que nunca lhe aconteceu chegar à igreja e achar já a missa no altar. De madrugada começava pela missa da Lapa; apenas acabava ia à das 8 na Sé, e daí saindo pilhava ainda a das 9 em Santo Antônio. O seu traje habitual era, como o de todas as mulheres da sua condição e esfera, uma saia de lila preta, que se vestia sobre um vestido qualquer, um lenço branco muito teso e engomado ao pescoço, outro na cabeça, um rosário pendurado no cós da saia, um raminho de arruda atrás da orelha, tudo isto coberto por uma clássica mantilha, junto à renda da qual se pregava uma pequena figa de ouro ou de osso. Nos dias dúplices, em vez de lenço à cabeça, o cabelo era penteado, e seguro por um enorme pente cravejado de crisólitas.
Este uso da mantilha era um arremedo do uso espanhol; porém a mantilha espanhola, temos ouvido dizer, é uma coisa poética que reveste as mulheres de um certo mistério, e que lhes realça a beleza; a mantilha das nossas mulheres, não; era a coisa mais prosaica que se pode imaginar, especialmente quando as que as traziam eram baixas e gordas como a comadre. A mais brilhante festa religiosa (que eram as mais freqüentadas então) tomava um aspecto lúgubre logo que a igreja se enchia daqueles vultos negros, que se uniam uns aos outros, que se inclinavam cochichando a cada momento.
Mas a mantilha era o traje mais conveniente aos costumes da época; sendo as ações dos outros o principal cuidado de quase todos, era muito necessário ver sem ser visto. A mantilha para as mulheres estava na razão das rótulas para as casas; eram o observatório da vida alheia. Muito agitada e cheia de acidentes era a vida que levava a comadre, de parteira, beata e curandeira de quebranto; não tinha por isso muito tempo de fazer visitas e procurar os conhecidos e amigos. Assim não procurava o Leonardo muitas vezes; havia muito tempo que não sabia notícia dele, nem da Maria, nem do afilhado, quando um dia na Sé ouviu entre duas beatas de mantilha a seguinte conversa:
— É o que lhe digo: a saloiazinha era da pele do tinhoso!
— E parecia uma santinha... e o Leonardo o que lhe fez?
— Ora, desancou-a de murros, e foi o que fez com que ela abalasse mais depressa com o capitão... pois olhe, não teve razão; o Leonardo é um rapagão; ganhava boas patacas, e tratava dela como de uma senhora!...
— E o filho... que assim mesmo pequeno era um malcriadão...
— O padrinho tomou conta dele; quer-lhe um bem extraordinário... está maluco o coitado do homem, diz que o menino há de por força ser padre... mas qual padre, se ele é um endiabrado!...
Nesta ocasião levantava-se a Deus, e as duas beatas interromperam a conversa para bater nos peitos.
Era uma delas a vizinha do compadre, que prognosticava mau fim ao menino, e com quem ele prometera fazer uma estralada; a outra era uma das que tinham estado na função do batizado.
A comadre, apenas ouviu isso, foi procurar o compadre; não se pense porém que a levara a isso outro interesse que não fosse a curiosidade, queria saber o caso com todos os menores detalhes; isso lhe dava longa matéria para a conversa na igreja, e para entreter as parturientes que se confiavam aos seus cuidados. Entrou pela loja do barbeiro; e apenas o avistou foi-lhe dizendo:
— Então, com que a tal comadre pregou-nos o mono? Veja o que são doidices; fazer aquilo ao Leonardo, um homem que não é mal-arranjado... filho do Reino...
— Apertaram-lhe as saudades da terra, disse o compadre com sorriso maligno.
— Apertada se veja ela entre as unhas do tinhoso! Olhem que joiazinha... E você, mestre, ficou com a carga às costas...
— Carga, não... eu quero-lhe bem, ele é sossegadinho...
Começou então um interrogatório minucioso acerca do que tinha sucedido em casa do Leonardo; e os dois, compadre e comadre, desabafaram a seu gosto. Depois o compadre narrou, mesmo sem ser interrogado, todas as gentilezas do afilhado, e contou suas intenções a respeito dele. A comadre não concordou com elas (o que nada agradou ao compadre), não via o menino com jeito para padre; achava melhor metê-lo na Conceição a aprender um ofício. O compadre porém persistiu em seus intentos, que tinha muita esperança de ver realizados. Afinal a comadre retirou-se.
Pelo caminho foi repetindo o que acabara de saber a quanto conhecido encontrou, sem escrupulizar muito em acrescentar mais uma ou outra circunstância com que carregava as cores do quadro.
Entretanto o compadre aplicava-se a trabalhar na realização de seus intentos, e começou por ensinar o ABC ao menino; porém, por primeira contrariedade, este empacou no F, e nada o fazia passar adiante.
A comadre continuou a aparecer daí em diante por um motivo que mais tarde se saberá.
Por agora vamos continuar a contar o que era feito do Leonardo.

VII - O PÁTIO DOS BICHOS          
Ainda hoje existe no saguão do paço imperial, que no tempo em que se passou esta nossa história se chamava palácio del-rei, uma saleta ou quarto que os gaiatos e o povo com eles denominavam o Pátio dos Bichos. Este apelido lhe fora dado em conseqüência do fim para que ele então servia: passavam ali todos os dias do ano três ou quatro oficiais superiores, velhos, incapazes para a guerra e inúteis na paz, que o rei tinha a seu serviço não sabemos se com mais alguma vantagem de soldo, ou se só com mais a honra de serem empregados no real serviço. Bem poucas vezes havia ocasião de serem eles chamados por ordem real para qualquer coisa, e todo o tempo passavam em santo ócio, ora mudos e silenciosos, ora conversando sobre coisas do seu tempo, e censurando as do que com razão já não supunham seu, porque nenhum deles era menor de 60 anos. Às vezes acontecia adormecerem todos ao mesmo tempo, e então com a ressonância de suas respirações passando pelos narizes atabacados, entoavam um quarteto, pedaço impagável, que os oficiais e soldados que estavam de guarda, criados e mais pessoas que passavam, vinham apreciar à porta. Eram os pobres homens muitas vezes vítimas de caçoadas que naquele tempo de poucas preocupações eram o objeto de estudo de muita gente.
Às vezes qualquer que os pilhava dormindo chegava à porta e gritava:
— Sr. tenente-coronel, el-rei procura por V.S.
Qualquer deles acordava espantado, tomava o chapéu armado, punha o talim, acontecendo às vezes com a pressa ficar o chapéu torto ou a espada do lado direito, e lá corria a ter com el-rei.
— Às vossas ordens, real senhor, dizia ainda bocejando.
O rei, que percebia o negócio, desatava a rir e o mandava embora.
Quando chegava o pobre homem abaixo, ia cada um dos que por ali se achavam indagar, o mais seriamente que era possível, qual tinha sido o objeto do chamado del-rei.
Faziam-lhes destas e doutras, mas daí a pouco deixavam-se eles enganar de novo.
Vamos fazer o leitor tomar conhecimento com um desses ativos militares, que entra também na nossa história.
Era velho como seus companheiros, porém decerto por ele não é que tinha vindo ao quarto o apelido que lhe davam: suas feições quebradas pela idade tinham ainda certa regularidade de contorno que bem devotava que seu tempo de rapaz não fora a respeito de beleza mal favorecido; de seus cabelos que o tempo levara restavam apenas orlando-lhe as têmporas e a nuca alguns anéis crespos e prateados; sua calva era nobre e imponente. Fora valente; ganhara por seus feitos as dragonas de tenente-coronel; era filho de Portugal, e acompanhara el-rei na sua vinda ao Brasil.
Estas qualidades porém não lhe serviam de salvaguarda, e sofria como os outros as caçoadas dos gaiatos.
Assim um dia que uma mulher de mantilha o foi procurar, e se pôs com ele a conversar por algum tempo em particular, passavam uns e outros e escarravam junto da porta, ou deixavam escapar uma ou outra chalaça análoga.
— Amores velhos nunca se esquecem, dizia um.
— Bravo! gosto do bom gosto, dizia outro.
A mulher de mantilha é nossa conhecida, porque nem mais nem menos é a comadre; e o negócio que aí a levou também nos interessa, pois que se trata da soltura do pobre Leonardo. Ouça portanto o leitor a conversa dos dois.
— Sr. Tenente-coronel, disse a comadre ao chegar, venho me valer de V.S.: meu compadre Leonardo está na cadeia.
— O Leonardo?! mas então por quê?
— Ora! maluquices!
E chegando-se ao ouvido do velho, contou-lhe a comadre baixinho a causa da prisão do Leonardo.
O velho desatou a rir.
— Bem pregado!... disse.
— Agora eu queria que V.S. fizesse o favor de falar por ele ao Sr. major Vidigal, que foi quem o prendeu... coitado do homem: é uma vergonha; mas também ele não se emenda!
E prosseguindo, a comadre contou muito em segredo, como já o tinha feito a todos os seus conhecidos, toda a história dos infelizes amores do Leonardo com a Maria, todas as diabruras do menino que ela deixara e de que o padrinho tomara conta: passou depois a relatar todo o ocorrido com a cigana, e voltou de novo à história da prisão, que contou e recontou vinte vezes, sem lhe escapar a mais pequenina circunstância. No fim tornou a fazer o seu pedido, a que o velho prometeu satisfazer, e então saiu ela recebendo no saguão muitos cumprimentos e sorrisos maliciosos. Na porta por onde saiu estava encostado um cadete que lhe disse:
— Estimo que fosse feliz; no dia do batizado neo se esqueça da gente.
— Arrenego! foi a única resposta que ela deu, e passou.
Como o velho tenente-coronel conhecia a comadre e o Leonardo, e por que se interessava por ele, o leitor saberá mais para diante.
Esse conhecimento era antigo, e o Leonardo apenas se achou na cadeia lembrou-se da proteção que o velho lhe podia prestar em semelhante aperto; mandou por um colega chamar a comadre, e a encarregou da missão de ir ter com ele, missão que ela aceitou de bom grado, e que desempenhou, segundo vimos, satisfatoriamente.
O velho, apenas a comadre saiu, tomou o chapéu armado, pôs a espada à cinta e saiu, depois de ter contado aos companheiros o que sucede a quem vai tomar fortuna. Um deles, que era crédulo até ao entusiasmo a respeito de feitiçarias, ficou muito indignado com o caso, e prometeu também empenhar-se pelo Leonardo.
Já vê pois o leitor que o negócio não estava mal parado, e em breve saberá o resultado de tudoisto.

IX – O “ARRANJEI-ME” DO COMPADRE
Os leitores estarão lembrados do que o compadre dissera quando estava a fazer castelos no ar a respeito do afilhado, e pensando em dar-lhe o mesmo oficio que exercia, isto é, daquele arranjei-me, cuja explicação prometemos dar. Vamos agora cumprir a promessa.
Se alguém perguntasse ao compadre por seus pais, por seus parentes, por seu nascimento, nada saberia responder, porque nada sabia a respeito. Tudo de que se recordava de sua história reduzia-se a bem pouco. Quando chegara à idade de dar acordo da vida achou-se em casa de um barbeiro que dele cuidava, porém que nunca lhe disse se era ou não seu pai ou seu parente, nem tampouco o motivo por que tratava da sua pessoa. Também nunca isso lhe dera cuidado, nem lhe veio à curiosidade indagá-lo.
Esse homem ensinara-lhe o oficio, e por inaudito milagre também a ler e a escrever. Enquanto foi aprendiz passou em casa do seu... mestre, em falta de outro nome, uma vida que por um lado se parecia com a do fâmulo, por outro com a do filho, por outro com a do agregado, e que afinal não era senão vida de enjeitado, que o leitor sem dúvida já adivinhou que ele o era. A troco disso dava-lhe o mestre sustento e morada, e pagava-se do que por ele tinha já feito.
Quando passou de menino a rapaz, e chegou a saber barbear e sangrar sofrivelmente, foi obrigado a manter-se à sua custa e a pagar a morada com os ganchos que fazia, porque o produto do mais trabalho pertencia ainda ao mestre. Sujeitou-se a isso. Porém queriam ainda mais: exigiam que continuasse a empregar-se no serviço doméstico. Lavrou-lhe então n’alma um arrepio de dignidade: já era oficial, e não queria rebaixar o seu oficio. Virou mareta; fez-se duro, e safou-se de casa sem escrúpulos nem remorsos, pois bem sabia que estavam saldas as contas de parte a parte. Tinham-no criado; ele tinha servido. Também não encontrou grande resistência à sua deliberação.
Apenas passou o primeiro ímpeto e teve tempo de reflexionar, quase que começou a arrepender-se por não saber qual o meio de achar arranjo. Viu-se na rua, sem saber para onde ir, tendo por única fortuna uma bacia de barbear embaixo do braço, um par de navalhas e outro de lancetas na algibeira. Verdade é que quem tinha consigo estes trastes estava com as armas e uniforme do oficio; porém isso não bastava; o pobre rapaz estava em apertos.
Passou a primeira noite em casa de um colega, e no dia seguinte ao amanhecer, tomando os seus apetrechos, saiu em busca de que fazer para aquele dia, e de destino para os mais que se iam seguir.
Achou ambas as coisas: uma trouxe a outra.
No largo do Paço um marujo que estava sentado em uma pedra junto ao mar chamou-o para que lhe fizesse a barba: mãos à obra, que já naquele dia não morria de fome.
Todo barbeiro é tagarela, e principalmente quando tem pouco que fazer; começou portanto a puxar conversa com o freguês. Foi a sua salvação e fortuna.
O navio a que o marujo pertencia viajava para a Costa e ocupava-se no comércio de negros; era um dos comboios que traziam fornecimento para o Valongo, e estava pronto a largar.
— Ó mestre! disse o marujo no meio da conversa, você também não é sangrador?
— Sim, eu também sangro...
— Pois olhe, você estava bem bom, se quisesse ir conosco... para curar a gente a bordo; morre-se ali que é uma praga.
— Homem, eu da cirurgia não entendo muito...
— Pois já não disse que sabe também sangrar?
— Sim...
— Então já sabe até demais.
No dia seguinte saiu o nosso homem pela barra fora: a fortuna tinha-lhe dado o meio, cumpria sabê-lo aproveitar; de oficial de barbeiro dava um salto mortal a médico de navio negreiro; restava unicamente saber fazer render a nova posição. Isso ficou por sua conta.
Por um feliz acaso logo nos primeiros dias de viagem adoeceram dois marinheiros; chamou-se o médico; ele fez tudo o que sabia... sangrou os doentes, e em pouco tempo estavam bons, perfeitos. Com isto ganhou imensa reputação, e começou a ser estimado.
Chegaram com feliz viagem ao seu destino; tomaram o seu carregamento de gente, e voltaram para o Rio. Graças à lanceta do nosso homem, nem um só negro morreu, o que muito contribuiu para aumentar-lhe a sólida reputação de entendedor do riscado.
Poucos dias antes de chegar ao Rio o capitão do navio adoeceu; a princípio nem ele nem alguém teve a menor dúvida de que ficaria bom logo depois da primeira sangria; porém repentinamente o negócio complicou-se, e nem com a terceira e quarta se pôde conseguir coisa alguma. No fim do quarto dia convenceram-se todos e o próprio doente capitão de que estava chegada a sua hora. Nem por isso porém inculparam o nosso homem.
— Ali não há sangria que o salve, diziam; chegou a sua vez de dar à costa... há de ir.
O capitão teve de fazer suas últimas disposições, e, como dissemos, tendo o médico granjeado grande amizade e confiança, foi escolhido para desempenhá-las.
O capitão chamou-o à parte, e em segredo lhe fez entrega de uma cinta de couro e uma caixa de pau pejadas de um bom par de doblas em ouro e prata, pedindo que fielmente as fosse entregar, apenas chegasse à terra, a uma filha sua, cuja morada lhe indicou. Além deste dinheiro encarregou-o também de receber a soldada daquela viagem e lhe dar o mesmo destino. Eram estas as suas únicas e últimas vontades que o encarregava de cumprir, declarando-lhe que lá do outro mundo o espiaria para ver como cuidava disso.
Poucas horas depois expirou.
Desse dia em diante nenhum só doente escapou mais, porque o médico já não sangrava tanto; andava preocupado, distraído, e assim levou até chegar à terra.
Apenas saltou, declarou que não se tinha dado bem, e que não embarcaria mais.
Quanto às ordens do capitão... histórias; quem é que lhe havia de vir tomar contas disso? Ninguém viu o que se passou; de nada se sabia.
Os únicos que podiam ter desconfiado e fazer alguma coisa eram os marinheiros; porém estes partiram em breve de novo para a Costa.
O compadre decidiu-se a instituir-se herdeiro do capitão, e assim o fez.
Eis aqui como se explica o arranjei-me, e como se explicam muitos outros que vão aí pelo mundo.

X - EXPLICAÇÕES             
O velho tenente-coronel, apesar de virtuoso e bom, não deixava de ter na consciência um sofrível par de pecados, desses que se chamam da carne, e que não hão de ser levados em conta, não de hoje, que a idade o tornara inofensivo, porém do tempo da sua mocidade: o resultado de um deles fora um filho que deixara em Lisboa, fruto de um derradeiro amor que tivera aos 36 anos. Por castigo em nada havia ele saído ao pai, e nem os conselhos, nem os cuidados e nem o exemplo deste puderam encaminhá-lo por boa vereda, Aos 20 anos, tendo sentado praça, era um cadete desordeiro, jogador e o mais insubordinado do seu regimento. Bastantes vergonhas custara ao pobre pai, que cuidadoso procurava sempre por todos os meios encobrir-lhe os defeitos e remediar as gentilezas que fazia, já pagando por ele dívidas de jogo, já atabafando-lhe as desordens e curando com ouro as brechas que ele fazia na cabeça de seus adversários. Houve porém uma que as circunstâncias e mesmo a natureza do caso não permitiram que tivesse remédio. Poucos dias antes de embarcar para o Brasil em companhia del-rei, estando o infeliz pai em preparativos de viagem, viu entrar-lhe pela porta adentro uma mulher velha, baixa, gorda, vermelha, vestida, segundo o costume das mulheres da baixa classe do país, com uma saia de ganga azul por cima de um vestido de chita, um lenço branco dobrado triangularmente posto sobre a cabeça e preso embaixo do queixo, e uns grossos sapatões nos pés. Parecia presa de grande agitação e de raiva: seus olhos pequenos e azuis faiscavam de dentro das órbitas afundadas pela idade, suas faces estavam rubras e reluzentes, seus lábios franzinos e franzidos apertavam-se violentamente um contra o outro como prendendo uma torrente de injúrias, e tornando mais sensível ainda seu queixo pontudo e um pouco revirado.
Apenas se achou ela em frente do capitão (era este o posto que tinha nesse tempo o velho) foi-se chegando para ele com ar resoluto e enfurecido, O capitão recuou instintivamente um passo.
— Ah! Sr. capitão, disse ela por fim pondo as mãos nas cadeiras, chegando a boca muito perto do rosto dele e abanando raivosa a cabeça: olhe que isto assim não vai direito; fazer-me andar a cabeça à roda... põe-me os miolos a ferver... e eu estouro... já viu!...
— Mas o que há então, mulher?... Eu não lhe conheço...
— Não quero cá saber de nada... Já lhe disse que isto não vai bem... e eu estouro...
— Mas por quê?... o que é que tem?... É preciso que você diga...
— Não tenho nada que dizer... Estouro, já lhe disse, Sr. capitão!...
— Pois estoure com trezentos diabos! mas ao menos diga pelo que é que estoura.
— Não tenho nada que dizer... já lhe disse... isto põe a cabeça da gente como uma cebola podre, não tem lugar nenhum... Ir-me por lá com ares de santarrão comprar frutas...
— Quem, mulher de Deus? Você não se explicará?
— Qual explicar, nem meio explicar! Pois então por ser cá a gente uma mulher velha, que já perdeu os achegos ao mundo, e ela uma pobre rapariga tola e bisbilhoteira, com vontade de saber de tudo, vir-me cá a mim pregar o mono na bochecha, e a ela em lugar ainda mais melindroso...
— Mas quem é que pregou monos a você mais a ela? e quem é ela?...
— Faz-se de novo! continuou a mulher exasperando-se; pois o Sr. capitão já não tinha consentido no casamento?...
— Que casamento? com quem?
— Ai, ai, ai, que cá me anda a cabeça como uma nora solta... Pois o Sr. capitão não sabe que tem um filho?...
— Sim, sei, respondeu este começando a descobrir o mistério.
— E não sabe que ele é um pedaço de um mariola!... A isto o capitão podia, porém não se animou a responder afirmativamente, e perguntou somente:
— E que mais?...
— E não sabe também que eu tenho uma filha que trouxe do Lumiar, a Mariazinha?
— Como, se eu nem a conheço?...
— Pois é uma rapariga muito capaz... e o diabo do tal cadete do seu filho andou por lá a entender com ela muito tempo: namoro para cá, namoro para lá, presentes daqui, promessas dacolá... e afinal de contas... brás!... E então que lhe parece?
O capitão foi às nuvens.
— Até lhe prometeu casamento, dizendo que o Sr. Capitão consentia... Ora eu bem sei que ela também teve a sua culpa... mas eu desculpo isso, porque também já fui rapariga... e sei que quando começa cá o diabo no corpo, adeus! Mas isto põe a gente tonta, porque... enfim a rapariga podia vir a fazer fortuna.
O capitão tinha compreendido tudo, e por mais algumas explicações que se seguiram viu-se reduzido ao maior aperto. Desta vez a diabrura do rapaz era irremediável. A mulher tinha toda a razão; porém casar seu filho com a filha de uma colareja... isso não poderia ser; além de que nada tinha que deixar ao filho, e só com o soldo de cadete não poderia sustentar mulher e casa, restando além disso a dúvida se ele estaria ou não pelos autos...
Despediu a velha, não sem lhe prometer que providenciaria sobre o caso.
— Olhe, veja lá, disse ela ao sair; se o negócio não se arranja, eu estouro! ...
O pobre homem ficou nos apuros; foi ter com a ofendida, e procurou, oferecendo-lhe alguma coisa para seu dote, obter que ela se calasse, e que desistisse de suas pretensões; esta quis a princípio recusar, porém a mãe aconselhou-a que aceitasse, sem dúvida com medo de estourar. Deste modo ficou o caso um pouco remediado, posto que a consciência do capitão, que era de homem de honra, não ficara de modo algum satisfeita. O tempo porém não dava lugar a mais; era chegado o momento de acompanhar a el-rei, e ele partiu deixando o filho recomendado a quantos amigos tinha. Decorreram os anos, e quando menos esperava soube ele que se achava no Rio de Janeiro em companhia do Leonardo a tal Mariazinha, que então já era a Maria que os leitores bem conhecem. Procurou fazer o que pudesse por ela para satisfazer todos os seus escrúpulos de pai honrado, porém quis fazê-lo ocultamente. Foi ter com a comadre, a quem já conhecia, e a encarregou de o avisar apenas sentisse que a Maria sofria qualquer necessidade. Nunca porém teve ocasião de exercer a sua boa vontade diretamente para com ela. Apenas tinha feito ao Leonardo um pequeno favor em ocasião em que este se achava embaraçado por causa de umas irregularidades em uns autos que se lhe atribuía, e que a comadre o aconselhou de procurá-lo mesmo sem o conhecer, a titulo de que era muito bom homem e amigo de servir a todos.
Eis aqui por que o Leonardo se dirigiu no seu segundo apuro ao velho tenente-coronel por intermédio da comadre, e por que este prometeu empenhar-se por ele, o que com efeito tratou de cumprir.
Como dissemos, apenas a comadre saiu, saiu ele também, e foi tratar de pôr o Leonardo na rua. Dirigiu-se primeiro à cadeia para colher do próprio Leonardo todas as informações, e então pôde ver que as que lhe tinha dado a comadre eram exatíssimas, e que ela não deixara escapar a menor circunstância. O Leonardo repetiu e confessou tudo o que ele já sabia, corrido de embaraço e de vergonha; e ao despedir-se o velho:
— Sr. tenente-coronel, disse-lhe ele, V.S. já me livrou de uma que não era culpa minha; livre-me desta também... olhe que está comprometida a minha honra...
O Leonardo esquecia-se da teoria da Maria.
— A honra não, respondeu o velho, o que está comprometido é o seu juízo: hão de dizer (e eu sou o primeiro) que você está doido.
— Fugi de uma saloia e fui cair numa cigana... tem razão!...
O velho saiu sorrindo-se. Daí dirigiu-se à casa de um seu amigo, fidalgo de valimento, para dele obter a soltura do Leonardo. Morava ele em uma das ruas mais estreitas da cidade, em um sobrado de sacada de rótulas de pau com pequenos postigos que se abriam às furtadelas, sem que ninguém de fora pudesse ver quem a eles chegava.
A poeira amontoada nos cordões da rótula e as paredes encardidas pelo tempo davam à casa um aspecto triste no exterior; quando ao interior, andava pelo mesmo conseguinte. A sala era pequena e baixa; a mobília que a guarnecia era toda de jacarandá e feita no gosto antigo; todas as peças eram enormes e pesadas; as cadeiras e o canapé, de pés arcados e espaldares altíssimos, tinham os assentos de couro, que era a moda da transição entre o estofo e a palhinha. Quem quiser ter idéia exata destes móveis procure no consistório de alguma irmandade antiga, onde temos visto alguns deles.
As paredes eram ornadas por uma dúzia de quadros, ou antes de caixas de vidro que deixavam ver em seu interior paisagens e flores feitas de conchinhas de todas as cores, que não eram totalmente feios, porém que não tinham decerto o subido valor que se lhes dava naquele tempo. À direita da sala havia sobre uma mesa um enorme oratório no mesmo gosto da mobília.
Havia finalmente em um canto uma palma benta, destas que se distribuem no domingo de ramos; e se o leitor agora supuser tudo isto coberto por uma densa camada de poeira, terá idéia perfeita do lugar em que foi recebido o velho tenente-coronel, que era pouco mais ou menos semelhante em todas as casas ricas de então, e por isso nos demoramos em descrevê-lo.
Sem se fazer esperar muito, apareceu o dono da casa: era um homem já velho e de cara um pouco ingrata; vinha de tamancos, sem meias, em mangas de camisa, com um capote de lã xadrez sobre os ombros, caixa de rapé e lenço encarnado na mão.
Em poucas palavras o velho expôs-lhe o caso e lhe pediu que fosse falar a el-rei em favor de Leonardo.
A princípio opôs ele algumas dúvidas, dizendo:
— Homem, pois eu hei de ir a palácio por causa de um meirinho? El-rei há de rir-se do meu afilhado.
Afinal, porém, teve de ceder a instâncias da amizade, e prometeu tudo. O velho saiu satisfeito e foi levar a nova ao Leonardo, que pulou de contente. Poucos dias depois chegou a ordem de soltura, e ele foi posto na rua. Acreditara que tinha acabado de passar pelo pior dos suplícios, porém insuportáveis torturas começaram para ele no dia em que saiu da cadeia: a mofa, o escárnio, o riso dos companheiros seguiu-o por muitos dias, incessante e martirizador.

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