Era uma vez um rei que tinha tres filhas e que, por algum motivo obscuro, não dava muita atenção à sua filha mais nova, mesmo sendo ela a mais adorável delas.
Esse rei gostava muito de festas e festivais e ia a quantos podia, sempre trazendo um presente às duas filhas mais velhas, mas nunca para a mais nova.
Até o dia em que ele, pondo-se a caminho pra uma grande festa num reino vizinho, lembrou-se da filha mais nova e disse a ela: eu jamais te trouxe uma prenda, como trago às tuas irmãs; mas desta vez, diz-me tu o que queres que te traga eu e to trarei.
A menina respondeu: mas não quero nada, papai!
- Mesmo assim, quero trazer-te algo. Diz-me o que te agradaria receber de mim!
- Pois que seja como o meu pai deseja. Traz-me uma flor, papai!
E o rei foi para a grande festa em outro reino onde ele riu e divertiu-se de mil modos e comprou um xale para a filha mais velha e um chapéu para a filha do meio mas esqueceu-se da filha mais nova.
Estava a caminho de seu palácio quando lembrou-se da caçulinha e pensou: onde encontrar uma flor para a minha pequenina agora, no meio do nada?
Foi quando viu um grande, belo castelo com um vasto jardim coberto de toda sorte de flores.
O rei sorriu para si mesmo e disse: bem, isso é que é mesmo sorte! Ninguém vai reclamar que de jardim tão grande, eu tire uma flor!
Adentrou no jardim e colheu as mais belas flores que encontrou, mas quando estava para sair, uma voz feia se fez ouvir: quem te deu permissão para roubar-me estas flores? Ouve bem, inconsequente: se em menos de um ano não me entregares uma de tuas filhas, eu te acharei e consumirei no fogo a ti e teu reino!
O rei tremia inteiro e como a voz silenciara tão bruscamente quanto soara, rápido ele pulou para a sela do cavalo e saiu dali em desesperada carreira.
Chegou no seu castelo e foi logo rodeado pelas filhas, a quem deu os devidos presentes, mas sem a alegria costumeira e, com o passar dos dias, seu silêncio e tristeza só fizeram crescer, o que chamou a atenção da filha mais velha, a qual o inquiriu sobre aquela tristeza grave e incomum.
O rei contou-lhe a aventura no jardim e a voz sem corpo e concluiu dizendo: imagina, filha minha, como estou, sabendo que já em menos de um ano devo entregar àquela voz tremenda uma de minhas filhas, ou eu e o reino seremos queimados até os ossos!
- Se o meu pai cometeu a imprudência tanta de invadir terra alheia por uma flor, queimar ‘té os ossos é bem feito. Seja como for, negoceie quem irá para tal voz com as outras duas, que eu por certo não vou entregar-me a um espírito mau!
Outro dia foi a filha do meio, também preocupada com a tristeza em seu pai que lhe perguntou a que vinha aquilo e o rei falou-lhe francamente, finalizando por dizer que não atinava que filha entregar.
A mocinha então lhe respondeu: resolva isso como lhe aprouver, mas nem morta vou entregar-me a uma voz sem corpo. Um corpo sem voz até vai, mas voz sem corpo?
Mais uns dias e veio a filha mais nova: que se passa, meu pai? Por que essa tristeza? Quem te fez mal?
- Pois ouve, minha filha, que a buscar flores para ti, adentrei num jardim onde achei as flores belas que te trouxe. Mas quando ia sair, uma voz vinda não sei de onde disse-me que lhe trouxesse uma das minhas filhas antes do ano findar; se não, a voz virá até nós e queimará a mim e ao reino.
A menina pensou por um segundo e disse ao pai: não te preocupes com isso. Eu vou até a voz.
E para não dar-se a chance de mudar de idéia, logo arrumou uma trouxa de roupa, providenciou um carro e se foi ao castelo.
Em frente a este, ainda hesitou um segundo mas entrou. Dentro, soava linda música sem músico algum presente. Houve jantar e ceia para a moça, mas ela não viu criado algum.
Veio a noute e ela dormiu e nova manhã com farto desjejum, mas ela ainda não viu ninguém.
Ouviu uma voz que lhe disse: fecha teus olhos que desejo repousar minha cabeça sobre os teus joelhos.
Ela respondeu: vem, não tenho medo.
E uma enorme serpente apareceu, rastejando para ela. A pobre menina ficou tão assustada que mal conteve um gritinho de horror. Isso foi o bastante para a serpe recuar para onde veio.
Sumindo nas sombras dum canto, a serpente disse: meu nome é Azor.
- E o meu, Fifine, murmurou ela.
Desde então a menina vivia no castelo habitado por vozes que lhe não deixavam faltar nada: banhos tépidos, a melhor comida, veste reais e muito mais.
Depois de muito tempo ela ouviu novamente a voz, que lhe disse: queres voltar para a casa de teu pai?
- Em verdade, tu me dás tudo e ainda mais do que preciso e nada me falta.
- Mas se quizeres, podes ir rever teu pai por tres dias. Vês o anel sobre a mesa? Veste-o enquanto estiveres fora. Se ele mudar de cor, é porque estou doente; se porém, ele sangrar, é porque estou em grande, grandíssima desgraça.
A menina vestiu o anel e tomou o rumo do castelo do rei, seu pai, o qual ficou cheio de alegria quando a viu.
As irmãs viram o quanto ela estava bela e bem vestida e perguntaram-lhe: com quem vives?
- Vivo com uma enorme serpente, a qual raramente vejo.
Elas não lhe creram.
Os tres dias passaram-se como um sonho breve e a menina esqueceu a serpente. No quarto dia ela olhou o anel e viu que ele estava com uma estranha cor de ferrugem. Pensando que estivesse sujo passou um dedo sobre ele e o anel começou a pingar sangue.
Muito assustada pelo que viu, ela correu ao rei seu pai, explicou-lhe o que se passava, tomou a carruagem e voltou para o castelo da serpente.
Ainda de fora, viu que o castelo estava tomado por sombras. Entrou, correu pelos salões tenebrosos e seu coração gelava em seu peito: as vozes tinham desaparecido!
Gritava: Azor! Azor!, mas tudo eram silêncio e trevas.
Atravessou o patio interno entre pranto e grito, até que chegou a um canto gelado, coberto de neve. Ali encontrou, em mil anéis, a enorme serpente, como morta.
Incontinenti, ela fez um fogo para aquecer o réptil que, aos poucos, recuperou a vida.
- Tu me esqueceste, disse a cobra. Não tivesses feito este fogo, por certo eu teria morrido.
Ainda em prantos, Fifine respondeu: de fato te esqueci, mas o anel me fez lembrar de ti.
- Não haja dor em teu coração nem lágrimas em teus olhos: eu sabia que isso iria acontecer; esta foi a razão de dar-te o anel.
Voltaram para dentro do castelo e as trevas se dissiparam, havia luz e calor, as vozes e a música se faziam ouvir novamente.
Alguns dias depois, Azor disse à moça: precisamos casar.
Fifine nada disse. Ele propôz de novo e de novo, mas ela permanecia em silêncio.
As trevas frias voltavam, lentamente, e as vozes e a música desapareceram em triste silêncio. A menina já não tinha comida pronta para comer, e um estranho inverno circundava o castelo.
Depois de muitos dias, ela disse: isso não pode continuar. Estamos todos a definhar e se não lhe tenho amor, ao menos gratidão eu tenho.
Um dia ouviu Azor: aceitas casar comigo?
Ela respondeu: aceito, mas com o homem, não a cobra!
Imediatamente o frio, as trevas, o silêncio triste desapareceram e voltaram o calor e a vida.
- Pois então, disse ele, casamos depois de amanhã. Por agora, vai à casa do rei teu pai e prepara o necessário para casarmos!
Ela fez como ordenado e pediu a benção e as devidas providências ao seu pai. Ele as deu, mas tanto o pai quanto as irmãs ficaram tomadas de vergonha de verem Fifine casar com um mostro!
Fifine retornou para Azor, contou-lhe o sucesso da empreitada e ele perguntou-lhe: queres uma serpente da casa para a igreja ou da igreja para casa?
- Gostava que fosse serpente de casa para a igreja.
- Também eu prefiro assim.
A riquíssima carruagem de Azor, puxada por quatro cavalos brancos com crinas doiradas esperava por eles. Dentro, a serpente poisou sua cabeça sobre os joelhos da moça e disse: feche as janelas da carruagem para que ninguém me veja.
- Mas todos te verão quando saires da carruagem.
- Faz como digo, meu coração!
Ela obedeceu e tiveram uma viagem tranquila.
Quando chegaram ao castelo do pai de Fifine, toda a corte estava reunida para receberem o tremendo monstro, mas heis que sai da carruagem o mais belo mancebo que já tinham visto.
Foram todos à igreja onde casaram-se os dois. Ao final, o rei ia levá-los a um grande banquete que preparara para as bodas, mas o esposo disse a todos:
- Não podemos ficar para a noite, mas antes, temos que voltar ao meu castelo para realizar u’a muito grande tarefa. Mas voltamos amanhã!
Todos, inclusive Fifine ficaram grandemente surpresos por essa novidade, mas ninguém quiz estragar a festa e aquiesceram todos.
Quando Azor e Fifine chegaram em seu castelo, era tarde da noite. Ele acendeu um fogo e apresentou a ela um grande cesto onde estava a pele da serpente e disse: quando ouvires a primeira badalada da meia-noite, deves queimar completamente a pele da serpente a ao soar da última badalada da meia-noite, deves jogar as cinzas pela janela e deixar que o vento as leve. Se falhares nisso, estarei condenado a ser, para sempre, a monstruosa serpente.
E assim ela fez; com grande diligência pôz a pele no fogo ao soar do primeiro toque e, com dois espetos, virava e revirava a pele para que queimasse toda. Ao décimo soar, a pele estava totalmente reduzida a cinzas e com uma pá e escova, a mulher recolheu as cinzas e jogou-as pela janela.
Isso feito, uma voz semelhante a um trovão, semelhante ao rugido duma fera atroou no salão: eu amaldioçôo tuda esperteza e o que fizeste!
Azor, seu marido, correu para ela entre mil lágrimas e jogou-se aos seus pés, sem parar de beijar-lhe as mãos e agradecer à sua esposa o grande, impagável bem que ela lhe fizera.
Dizia-lhe: agora nada mais temo na vida! Estou livre da maldição que me atormentava! Vamos amanhã à casa de teu pai celebrar nossas bodas!
Foram e tiveram magnífica acolhida onde todos os mistérios foram exclarecidos por Azor.
O rei ofereceu-lhes morada no castelo e o casal aceitou. Com o passar do tempo, Fifine teve dois meninos e duas meninas e, vendo sua boa fortuna, as suas irmãs cresciam em ciúmes e inveja e tanto fizeram que, ao final, o rei mandou-as embora do castelo.
Quando velho, o rei passou sua coroa a Azor que reinou com sabedoria e compaixão. Depois de muito tempo, Azor e Fifine morreram tão feliz morte quanto foram felizes as suas vidas.
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