Capítulo IV: Utilidades da História do Futuro
§ I Se o fim desta
escritura fora só a satisfação da curiosidade humana, e o gosto ou lisonja
daquele apetite com que a impaciência do nosso desejo se adianta em querer
saber as cousas futuras; e se as esperanças que temos prometido foram só flores
sem outro fruto mais que o alvoroço e alegria com que as felicidades grandes e
próprias se costumam esperar, certamente eu suspendera logo a pena e a lançara
da mão, tendo este meu trabalho por inútil, impertinente e ocioso, e por
indigno não só de o comunicar ao Mundo, mas de gastar nele o tempo e o cuidado.
Mas se a história das cousas passadas (a que os
sábios chamaram mestra da vida) tem esta e tantas. outras utilidades
necessárias ao governo e bem comum do gênero humano e ao particular de todos os
homens, e se como tal empregaram nela sua indústria tantos sujeitos em ciência,
engenho e juízo eminentes, como foram os que em todos os tempos imortalizaram a
memória deles com seus escritos; porque não será igualmente útil e proveitosa,
e ainda com vantagem, esta nossa História do Futuro, quanto é mais poderosa e
eficaz para mover os ânimos dos. homens a esperança das cousas próprias, que a
memória das alheias?
Se em todos os Livros Sagrados contarmos os
escritores de cousas passadas (como foram, na Lei da Graça, os quatro
Evangelistas, e na Escrita, Moisés, Josué, Samuel, Esdras e alguns outros,
cujos nomes ;e não sabem com tão averiguada certeza), acharemos que são em
muito maior número os que escreveram das futuras: diferença que de nenhum modo
fizera Deus, que é o verdadeiro Autor de todas as .Escrituras (sendo todas elas
como diz S. Paulo escritas para nossa doutrina, se não fora igual e ainda maior
a utilidade que podemos e devemos tirar do conhecimento das cousas futuras, que
da noticiaria das passadas. E verdadeiramente que se os bens da ciência se
colhem e conhecem melhor pelos males da ignorância, achará facilmente quem
discorrer pelos sucessos do Mundo, desde seu princípio até hoje, que foram
muito menos os danos em que caíam os homens por lhes faltar a notícia do
passado, que aqueles que cegamente se precipitaram pela ignorância do futuro.
Em conseqüência desta verdade e em consideração das
cousas que tenho disposto escrever, digo, leitor cristão, que todos aqueles
fins que sabemos teve a Providência Divina em diversos tempos, lugares e nações
para lhes revelar antecedentemente o sucesso das cousas que estavam por vir,
concorrem com particular influxo nesta nossa História e se acham juntos nela.
Esta é não só a principal razão, nas a única e total, por que nos sujeitamos ao
trabalho de tão molesto gênero de escritura, esperando que será grato e aceito
a Deus, a quem só pretende nos servir; e entendendo que foram vontade,
inspiração e ainda força suave da mesma Providência os impulsos que a isto (não
sem alguma violência) nos levaram, para que estes secretos de seu oculto juízo
e conselho se descobrissem e publicassem ao Mundo e em todo ele produzissem
proporcionadamente os efeitos de mudança, melhoria e reformação a que são
encaminhados e dirigidos. A mesma Majestade divina, humildemente prostrados
diante de seu infinito acatamento, pedimos com todo o afeto de coração, agora
que entramos na maior importância desta matéria, se sirva de nos comunicar
aquela luz, graça e espírito que para negócio tão árduo nos é necessário,
conhecendo e confessando que sem assistência deste soberano auxílio, nem nós
saberemos explicar a outros o pouco que por mercê do Céu temos alcançado e
conhecido, nem menos poderemos descobrir e alcançar ao diante o muito que nos
resta por conhecer.
§ II
Primeira utilidade.
O primeiro motivo e mui principal por que Deus
costuma revelar as cousas futuras (ou sejam benefícios ou castigos) muito tempo
antes de sucederem, é para que conheçam clara e firmemente os homens, que todas
vêm dispensadas por sua mão. Arma-se assim a sabedoria eterna contra a natureza
humana, sempre soberba, rebelde e ingrata, ou porque se não levante a maiores
com os benefícios divinos, e se beije as mãos a si mesma, como dizia Job, ou
porque não atribua a cousas naturais (e muito menos ao caso) os efeitos que vêm
sentenciados como castigo por sua justiça, ou ordenados para mais altos e
ocultos fins por sua providência.
Foram mostradas a Faraó em sonhos .as sete espigas
gradas e as sete falidas, as sete vacas fracas e as sete robustas, e logo
ordenou a Providência divina que estivesse em Egito um José (posto que vendido
e desterrado), que lhe declarasse o mistério dos sete anos da fartura e sete de
fome, para que conhecesse o bárbaro que Deus, e não o seu adorado Nilo, era o autor
da abundância e da esterilidade, e que a ele havia de agradecer no benefício
dos sete anos o remédio dos catorze. Como na terra do Egito não chove jamais e
se regam e fertilizam os campos com as inundações do rio Nilo, disse
discretamente Plínio que só os Egípcios não olhavam para o céu, porque não
esperavam de lá o sustento, como as outras nações.
Oh quantos cristãos há egípcios, que nem esperando,
nem temendo, levantam os olhos ao Céu, e em lugar de reverenciarem em ,todos os
sucessos a primeira causa, só adoram as segundas! Por isso mostra Deus a Faraó,
tantos anos antes, quais hão-de ser os da fome e quais os da fartura; para que
conheça a ignorante sabedoria do Egito que os meios da conservação ou ruína dos
reinos, a mão onipotente de Deus é a que os distribui, quando são, pois só ele
os pode determinar antes que sejam.
Quis a mesma Providência, como acima dizíamos tirar o
império a Baltasar e dá-lo a Dario; mas apareceu primeiro a sentença escrita no
paço de Babilônia, e houve logo um Daniel (também cativo e desterrado), que
interpretasse ao rei os mistérios dela, para que Baltasar, que perdia o reino,
conhecesse que o perdia, porque Deus lho tirava; e para que Dario, que o havia
de receber, entendesse que o recebia, porque Deus lho dava. Deus é o que dá e
tira os reinos e os impérios, quando e a quem é servido. E não bastam, se Deus
dispõe outra cousa, nem as armas de Dario para os adquirir, nem o direito e
herança de Baltasar para os conservar; por isso quer a mesma Providência Divina
que as sentenças estejam escritas antes da execução, e que haja quem as
interprete antes do sucesso.
Os futuros portentosos do Mundo e Portugal, de que
há-de tratar a nossa História, muitos anos há que estão sonhados como os de
Faraó e escritos como os de Baltasar; mas não houve até agora nem José que
interpretasse os sonhos, nem Daniel que construísse as escrituras; e isto é o
que eu começo a fazer (com a graça daquele Senhor que sempre se serve de
instrumentos pequenos em cousas grandes), para que conheça o Mundo e Portugal,
com os olhos sempre no Céu e em Deus, que tudo são efeitos de seu poder e
conselhos da sua providência; e para que não haja ignorância tão cega nem
ambição tão presumida, que tire a Deus o que é de Deus, por dar a César o que
não é de César, atribuindo à fortuna ou indústria humana o que se deve só à
disposição divina.
Estilo foi este que sempre Deus usou com Portugal,
receoso porventura de que uma nação tão amiga da honra e da glória lhe quisesse
roubar a sua. Quem considerar o Reino de Portugal no tempo passado, no presente
e no futuro, no passado o verá vencido, no presente ressuscitado e no futuro
glorioso; e em todas estas três diferenças de tempos e estilos lhe revelou e
mandou primeiro interpretar o. favores e as mercês tão notáveis com que o
determinava enobrecer: na primeira, fazendo-o, na segunda restituindo-o, na
terceira, sublimando-o.
Antes do nascimento de Portugal, apareceu o mesmo
Cristo a El-Rei (que ainda o não era) D. Afonso Henriques, e lhe revelou como
era servido de o fazei rei, e a Portugal reino; a vitória que lhe havia de dar
em batalha tão duvidosa e as armas de tanta glória com que o queria
singularizar entre todos os reinos do Mundo. E o embaixador e intérprete deste
e de outros futuros, que depois se viram cumpridos, foi aquele velho,
desconhecido e retirado do Mundo o ermitão do campo de Ourique; para que
conhecesse e não pudesse negar Portugal que devia a Deus a vitória e a coroa, e
que era todo seu desde seu nascimento. Antes da sua ressurreição, que todos
vimos também, foi revelado o sucesso dela com todas suas circunstancias, não
havendo quem ignorasse ou quem não tivesse lido que no ano de quarenta se havia
de levantar em Portugal um rei novo e que se havia de chamar João. E o
intérprete deste futuro que parecia tão impossível, e de tantos outros que logo
se cumpriram e vão cumprindo, foi a nossa experiência, para que conhecesse
outra vez Portugal que a Deus e não a outrem devia a restituição da coroa que
havia sessenta anos lhe caíra da cabeça ou lhe fora arrancada dela.
Antes das glórias de Portugal, que é o tempo futuro,
e muitos centos e ainda milhares de anos antes (como depois mostraremos),
também está prometido este terceiro e mais feliz estado do nosso Reino, e
prometidos juntamente os meios e instrumentos prodigiosos por onde há-de subir
e ser levantado ao cume mais alto e sublime de toda a felicidade humana; e o
intérprete deste último e glorioso estado de Portugal já tenho dito quem é, e
quão indigno de o ser. e por isso mui proporcionado (segundo o estilo de Deus)
para tão grande e dificultosa empresa; para que até por esta circunstancia
conheçam os Portugueses que a mesma mão onipotente que há vinte e quatro anos
conserva e defende tão constante e vitoriosamente o Reino de Portugal, é a que
há-de levantar e sublimar ao estado felicíssimo e glorioso que lhe está
prometido.
Considerem agora os Portugueses, e leiam tudo o que
daqui por diante formos escrevendo com este pressuposto e importantíssima
advertência: que, se alguma cousa lhes poderia retardar o cumprimento destas
promessas, seria só o esquecimento ou desconhecimento do soberano Autor delas,
quando por nossa desgraça fôssemos tão injuriosamente ingratos a Deus, que ou
referíssemos os benefícios passados, ou esperássemos os futuros de outra mão que
a sua.
Prometeu Deus de livrar os filhos de Israel do
cativeiro do Egito, como tinha jurado aos seus maiores, e de os levar e meter
de posse da terra da Promissão; e posto que todas viram o cumprimento da
primeira promessa, conseguindo milagrosamente a liberdade, e sacudiram sem
sangue nem golpe de espada a sujeição de tão poderoso domínio, sendo contudo
mais de seiscentos mil homens os que triunfaram de Faraó e passaram da outra
parte do mar Vermelho, de todos eles não entraram na Terra da Promissão nem chegaram
a lograr a felicidade e descanso da segunda promessa mais que Josué e Calef,
dois daqueles aventureiros que, escolhidos pelos Doze Tribos, foram diante a
explorar a terra. Raro exemplo de severidade na misericórdia de Deus , mas bem
merecido castigo; porque, se buscarmos no Texto Sagrado as causas deste desvio
e dilação (a qual durou quarenta anos inteiros, sendo a distancia do caminho
breve, e que se podia vencer em poucos dias) acharemos que foram ,três. Agora
nos servem as duas, depois diremos a terceira.
A primeira causa foi atribuírem a liberdade do
cativeiro a Moisés; assim o disseram no cap. XXXII. Moysi enim huic viro, qui
nos eduxit de terra Aegypti, ignoramus quid acciderit. A segunda, e ainda mais
ignorante (sobre ímpia e blasfema), foi atribuírem a mesma liberdade ao ídolo
que de seu ouro tinham fundido no deserto. Assim o disseram também no mesmo
capítulo e o apregoaram impiamente a altas vozes: Hi sunt dii tui, Israel, qui
te eduxerunt de terra AEgypti.
Basta, povo descortês, ingrato e blasfemo! Que Moisés
e o vosso ídolo foram os que vos livraram do cativeiro do Egito?! Por certo que
o não disse assim Deus ao mesmo Moisés, quando lhe deu o ofício e a vara, e o
fez com ,tanta repugnância sua instrumento de seus poderes: Vidi afflictionem
populi mei in AEgypto et clamorem ejus audivi; et sciens dolorem ejus, descendi
ut liberem eum de manibus AEgyptorum, et deducam de terra illa in terram bonam
et spatiosam, in terram quae fluit lacte et melle: «Vi — diz Deus — a aflição
do meu povo, e ouvi os seus clamores; e porque sei com quão justa razão se
queixam, desci em pessoa a livrá-lo das mãos dos Egípcios e tirá-lo daquela
terra para outra, que lhe hei-de dar, boa, espaçosa, abundante e cheia de todos
os regalos e delícias». De maneira que quem tirou os filhos de Israel do Egito
foi Deus, e quem fez os portentos e maravilhas foi Deus, e quem abriu o Mar
Vermelho e afogou nele Faraó e seus exércitos foi Deus; e os que atribuem as
obras de Deus e os benefícios (de que só a Ele se devem as graças) a Moisés e
ao ídolo não merecem ter vida nem olhos para chegar a ver a Terra de Promissão;
sendo muito justo e muito justificado castigo que morram e acabem todos antes
de chegar o prazo das felicidades, e que, pois tão ingrata e impiamente
interpretaram o benefício da primeira promessa, sejam privados de gozar a
segunda.
Eu não nego que em bom sentido se podia chamar Moisés
libertador do cativeiro, como também Deus pelo honrar lhe dava esse nome; mas
nos homens que deviam dar a Deus toda a glória (pois toda era sua),
referirem-se a Moisés, era descortesia; atribuírem-na ao ídolo, era blasfêmia,
e não a darem a Deus toda, era ingratidão suma.
Já Deus, Portugueses, nos livrou do cativeiro, já por
mercê de Deus triunfamos de Faraó e do poder de seus exércitos; já os vimos,
não uma, mas muitas vezes, afogados no Mar Vermelho de seu próprio sangue. Imos
caminhando pelo deserto para a Terra da Promissão, e pode ser que estejamos já
muito perto dela, e do último cumprimento das prometidas felicidades. Se há algum
tão invejoso dos bens da Pátria e tão inimigo de si mesmo, que queira retardar
o curso de tão próspera e feliz jornada e acabar infelizmente, ainda antes de
ver o fim desejado dela, negue a Deus o que é de Deus e atribua à liberdade as
vitórias e o cumprimento das primeiras promessas que temos visto, ou a Moisés
ou ao ídolo. Quem refere a glória dos bons sucessos ao seu valor, à sua ciência
militar, ao seu braço, ao seu talento, dá a glória de Deus ao ídolo; por isso
se vos escrevem aqui essa mesma liberdade, essas mesmas vitórias e esses mesmos
sucessos, assim os que já se viram, como os que restam para se ver, tantos anos
antes revelados por Deus. Para que conheça por nossa confissão todo o Mundo que
são misericórdias suas e não obras do nosso poder; e para que nós, como efeitos
da providência, da bondade e onipotência divina, a Deus só as refiramos todas,
e a Deus só louvemos e demos as graças.
Os inimigos que mais temo a Portugal são soberba e
ingratidão, vícios tão naturais da próspera fortuna, que, como filhos da
víbora, juntamente nascem dela e a corrompem. A humildade e agradecimento, a
desconfiança de nós, a confiança em Deus e o zelo e desejo puríssimo de sua
glória, dando-lha em tudo e por tudo, sempre são os meios seguros que nos
hão-de sustentar, levar e meter de posse daquelas segundas promessas. E este
conhecimento tão grato a Deus, que aprendemos nas noticias de seus futuros, é o
primeiro fruto e utilidade que da lição desta nossa História se pode tirar, tão
importantemente para a vida como para a vista.
Breve Advertência aos
incrédulos
Mas antes que passemos às outras utilidades, que
ficarão para os capítulos seguintes, justo será que fechemos este com a
terceira causa do castigo que ponderávamos, a qual refere o Texto Sagrado no
cap. XIV dos Números, e pode ser de grande exemplo para outra casta de gente,
que são os que a Escritura chama filhos da desconfiança.
Chegados os doze exploradores da Terra da Promissão,
concordaram todos na largueza, bondade e fertilidade da terra; mas exceto Josué
e Calef, que - facilitaram a conquista e animavam o povo a ela, os outros,
conformemente, instavam que era impossível, assim pela fortaleza e sitio das
cidades, como pela valentia, forças e corpulências dos homens, que, comparados
com os Hebreus (diziam eles) pareciam gigantes. Enfim, prevaleceu o número
contra a razão) (como as mais vezes sucede). Deliberou o povo eleger capitão e
voltar-se com ele ao cativeiro do Egito, não bastando a experiência de tantas
vitórias passadas e de tantos sucessos e prodígios inauditos, e sobre tudo as
promessas divinas tão repetidamente inculcadas, de que Deus os havia de meter
de posse daquela terra, para crerem e confiarem que assim havia de ser.
Esta tão covarde incredulidade foi a última ou a
última sem-razão com que acabou de se apurar a paciência divina. E resoluto
Deus a não sofrer mais tal gente, nem os perdoar ou dissimular como até ali
tinha feito, resolveu que fosse executada neles a sentença de sua própria
incredulidade; e pois criam que Deus os não havia de meter de posse da Terra da
Promissão, que nenhum deles entrasse nela nem a visse, e que todos morressem
primeiro e fossem sepultados naquele deserto. Assim o disse e assim se
executou.
As palavras da queixa de Deus e da sentença, foram
estas: Usque quo detrahet mibi populus iste? Quosque non credent mihi in
omnibus signis, qae feci coram eis? [...] Vivo ego, ait Dominus, sicut locuti
estis, audiente me, sic faciam vobis. In solitudine hac jacebunt cadavera
vestra; [...] non intrabitis terram, super quam levavi manum meam, ut habitare
vos facerem...
Leiam e pesem bem estas palavras de Deus os
incrédulos e desanimados (vícios ambos, não sei se de pouco, se de mau coração)
e vejam o perigo em que os pode meter ou tem metido a sua incredulidade:
Sicut locuti estis, sic faciam vobis. Os que pela
experiência do que têm visto crêem o que está prometido, vê-lo-ão, porque são
dignos de o verem; os que não crêem, ou não querem crer, a sua mesma
incredulidade será a sua sentenc: já que o não creram, não o verão. Diz Santo
Agostinho (cujas excelentes palavras adiante citaremos) que, depois de cumprida
uma parte das promessas, não crer que se hão-de cumprir as outras, é não só
pertinácia de incredulidade racional, senão crime de ingratidão grande contra o
divino Autor dos mesmos benefícios; e a estes incrédulos e ingratos castiga
justissimamente sua Providência, com que não cheguem a ver nem gozar o que não
querem crer de sua bondade:
Quo usque non credent mihi in omnibus signis, quae
feci coram eis?
Antes da
experiência das primeiras maravilhas, alguma desculpa parece que podia ter a
incredulidade na fraqueza do receio e desconfiança humana; mas depois de
cumpridas e vistas com os olhos tantas cousas, tão grandes, tão maravilhosas e
tão raras, não crer ainda as que estão por vir, é rebeldia de ingratidão e
dureza da incredulidade, merecedoras ambas de que Deus as castigue com se
conformar com elas: Sicut locuti estis, sic faciam vobis.
Quem quiser saber (segundo o estilo ordinário da
justiça e providência divina) se há-de chegar a ver as felicidades que debaixo
de sua palavra aqui lhe prometemos, examine o seu coração e consulte a sua fé;
do nosso próprio coração nos conta Deus a sentença e de nossas próprias
palavras a forma: Exore tuo te judico. Aos que crêem, como ao Centurião, diz
Cristo: Sicut credidisti, fiat tibi. E aos que não crêem como os Israelitas do
deserto, diz Deus: Sicut locuti estis. Quem crê que se hão-de cumprir aquelas
,tão felizes promessas, para ele será o vê-las e gozá-las: Sicut creditisti,
fiat tibi. E quem não crê que se hão-de cumprir, será também para ele não
gozá-las, nem vê-las. É lei da liberalidade de Deus pagar a fé com a vista, por
isso havemos de ver no Céu os mistérios que vemos na Terra. E este estilo que
Deus costuma guardar na glória da outra vida, guarda também ordinariamente nas
felicidades desta, quando as tem prometido: os que as crêem, terão vida para as
verem; os que as não crerem, morrerão, para que as não vejam. Assim o
sentenciou o mesmo Deus outra vez em semelhante caso por boca do profeta
Habacuc: Ecce qui incredulus est, non erit recta anima ejus in semetipso,
justus autem in fide sua vivet. <O incrédulo - diz Deus - nem terá a vida
segura; e ao que crê, a sua mesma fé lhe conservará a vida > Assim sucedeu,
porque na guerra que Nabucodonosor fez a Jerusalém, os que creram aos profetas
com el-rei Iconias viveram; e os que não quiseram crer, com el-rei Sedecias
pereceram. Quem não crê, desmerece a vista; e para que não chegue a ver,
tira-lhe Deus a vida. Olhem por si os incrédulos, e se não crêem que havemos de
ver, creiam que não hão-de viver: Si non credideritis, non permanebitis — diz o
profeta Isaías.
Capítulo V: Segunda utilidade.
A
segunda utilidade desta História, e mais necessária aos tempos próximos e
presentes, é a paciência, constância e consolação nos trabalhos, perigos e
calamidades com que há-de ser allito e purificado o Mundo, antes que chegue a
esperada felicidade.
Quando o lavrador quer plantar de novo em mata brava,
mete primeiro o machado, corta, derriba, queima, arranca, alimpa, cava, e
depois planta e semeia. Quando o arquiteto quer fabricar de novo sobre edifício
velho e arruinado, também começa derribando, desfazendo, arrasando e arrancando
até os fundamentos, e depois sobre o novo alicerce levanta nova traça e novo
edifício. Assim o faz e fez sempre o supremo Criador e Artífice do Mundo,
quando quis plantar e edificar de novo. Assim o disse e mandou notificar a todo
o Mundo pelo profeta Jeremias: Ecce constitui te hodie super gentes et super
regna, ut evellas, et destruas, et disperdas, et dissites, et aedifices, et
plantes.
Ó gentes, ó reis, ó reinos! Quanto arrancar, quanto
destruir, quanto perder, quanto dissipar se verá em vossas terras, campos e
cidades, antes que Deus vos replante e reedifique, e se veja restaurado o
Universo! Maravilha é que há muitos anos está prometida para esta última idade
do Mundo por aquele supremo Monarca, que tem por assento o trono de todo ele:
Et dixit qui sedebut in throno: Ecce nova facio omnia. E porque ninguém o
duvidasse como cousa tão nova e desusada, acrescenta logo o Evangelista
Profeta: Haec verba fidelissima sunt et vera.
Se deste trabalho e castigo pode também caber alguma
parte a Portugal, e se é ele um dos reinos da Cristandade que merece ser mui
renovado e reformado, o mesmo Portugal o examine, e ele mesmo, se se conhece, o
julgue, lembrando-lhe que está escrito que o juízo e exemplo de Deus há-de
começar por sua casa: Judicium incipiet a domo Dei. Mas, ou sejam para
Portugal, ou para o resto do Mundo, ou para todos (como é mais certo) nenhuma
cousa poderão ter os homens de maior consolação, alívio, nem remédio para o
sofrimento e constante firmeza de tão fortes calamidades, do que a lição e
condição desta História do Futuro, não pelo que ela tem de nossa, mas pelas
escrituras originais de que foi tirada. Este é o fim, diz S. Paulo, e o fruto
muito principal .para que elas se escreveram: Quaecumque scripta sunt, ad
nostram doctrinam scripta sunt, ut per patientiam et consolationem Scrip
turarum spem habeamus.
A lição das Escrituras, do conhecimento e fé das
cousas futuras, é a que mais que tudo nos pode consolar nos trabalhos, porque a
paciência tem a sua consolação na esperança, a esperança tem o seu fundamento
na fé e a fé nas Escrituras.
Que maior trabalho ou perigo pode sobrevir a uma
república, que ver-se cercada e combatida por todas as partes de poderosíssimos
inimigos, só e desamparada, e sem amigo nem aliado que a socorra? Neste estado
se viram muitas vezes no tempo de seu governo os Macabeus, de que Deus . sempre
os livrou com maravilhosas vitórias e assistências do Céu, pelas quais lhes não
foi necessário valerem-se da confederação que naquele tempo tinham com os
Romanos e Esparcíatas; e dando conta disso aos mesmos Esparcíatas, Jónatas, que
então governava o povo, diz assim em uma epístola: Nos. cum nullo horum
indigeremus, habentes solatio sanctos libros qui sunt in manibus nostris,
maluimus mittere ad vos renovare fraternitatem et amicitiam: «Mandamos renovar
por este nosso embaixador (diz Jonatas) a antiga amizade e confederação» que
convosco fizeram nossos maiores, não porque tenhamos necessidade dela e dos
vossos socorros, posto que não nos faltam inimigos, guerras, opressões e
trabalhos, mas temos sempre em nossas mãos os Livros Santos, em que lemos as
promessas divinas, e com eles e com elas nos consolamos e animamos a resistir,
pelejar e vencer, como temos vencido e vencemos a todos nossos inimigos.
No cap. VIII se verá que sem atrevimento ou demasiada
confiança podemos chamar a esta nossa História do Futuro livro santo, se houver
(como há-de haver primeiro) trabalhos, perigos, opressões, tribulações,
assolações, e todo o gênero de calamidades, misérias e açoites, com que Deus
costuma castigar, emendar e domar a rebeldia dos corações humanos.
Para esta ocasião, e tão apertada sai a luz e se
oferece ao Mundo este livro santo, no qual acharão os aflitos alívio, os
tristes consolação, os atribulados esperança, paciência, constância e
fortaleza, tudo por meio da lição e fé das divinas promessas e consolação dos
felicíssimos fins a que todos estes trabalhos e tribulações pela providência do
Altíssimo são ordenadas.
É cousa muito digna de notar, que nunca no povo de
Israel concorreram tantos Profetas juntos como antes do cativeiro de Babilônia
e no mesmo cativeiro. Antes do cativeiro profetizaram por sua ordem Oseas,
Isaías, Joel e Amos; no cativeiro profetizou Miqueas, Habacuc Jeremias,
Ezequiel, Daniel e Solonias. De maneira que, sendo só doze os Profetas
canônicos, os dez deles tiveram por assunto e matéria muito principal de todas
suas profecias o cativeiro de Babilônia. Os quatro primeiros, que escreveram
mais de seis anos antes daquele tempo, profetizaram que o povo por seus pecados
havia de ir cativo, mas que por misericórdia de Deus seria depois restituído à
sua pátria. Os outros seis, que profetizaram no tempo do cativeiro, insistiram
constantemente em que ele havia de ter fim, determinando sinaladamente o ano da
liberdade.
A razão deste concurso tão extraordinário de Profetas
e profecias (nunca antes, nem depois visto) foi porque nunca o povo e reino de
Judá padeceu tão grande trabalho e calamidade como o cativeiro ou transmigração
de Babilônia, sendo cativos, presos e. despojados de seus bens, arrancados da
pátria e levados a terras de bárbaros, e lá oprimidos e tratados como escravos
em duríssima servidão.
Ordenou pois a providência e misericórdia divina, que
naquele tempo e estado tão calamitoso, houvesse muitos Profetas e muitas
profecias, uns que as tivessem escrito no tempo passado, e outros que as
pregassem no presente, para que o povo não desmaiasse com o peso da aflição, e
animado com a esperança da liberdade, pudesse com o trabalho do cativeiro. O
cativeiro e o tirano os oprimiam; os Profetas e as profecias os alentavam.
Cantavam-se as profecias ao som das cadeias, e com a brandura deste som os
ferros se tornavam menos duros e os corações mais fortes.
Foi mui particular neste caso entre todos os outros
Profetas o zelo e diligência de Jeremias, porque, tendo ficado em Jerusalém,
onde padeceu grandes trabalhos, prisões e perigos da vida por pregar e
profetizar a verdade (pela qual finalmente morreu apedrejado), no meio destas
opressões e perigos próprios, não esquecido dos alheios, antes mui lembrado do
que padeciam os desterrados de Babilônia, escreveu um livro das suas profecias,
em que por termos muito claros e palavras de grande consolação lhes anunciava a
liberdade e o tempo dela, como se pode ver no cap. XXIX do mesmo Profeta. Levou
este livro a Babilônia o Profeta Baruch, companheiro de Jeremias, leu-se em
presença de El-Rei Iconias e publicamente de todo o povo, que com ele vivia no
cativeiro, e nota o mesmo Baruch que todos com grande alvoroço corriam ao
livro. Assim o diz no primeiro capítulo da relação que fez desta jornada, e anda
no Texto Sagrado junta com as obras de Jeremias: Et legit Baruch verba libri
hujus ad aures Jechoniae, filii Joachim, regis Juda, et ad aures universi
populi venientis ad librum
Não sei se terá a mesma fortuna, e se será recebido e
lido com o mesmo animo e afeto este nosso livro da História do Futuro; mas sei
que nos trabalhos calamidades e aflições que há-de padecer o Mundo e pode ser
cheguem também a Portugal, nem Portugal nem o Mundo poderá ter outro alívio nem
outra consolação maior que a freqüente lição e consideração deste livro e das
profecias e promessas do futuro que nele se verão escritas. Ao menos não negará
Portugal que, no tempo da sua Babilônia e do cativeiro e opressões com que
tantas vezes se viu tão maltratado e apertado, nenhuma outra apelação tinha a
sua dor, nem outro alívio ou consolação a sua miséria, mais que a lição e
interpretação das profecias, e a esperança da liberdade e do ano dela, e do
termo e fim do cativeiro que nelas se lia.
Lia-se na carta e tradição de S. Bernardo que quando
Deus alguma hora permitisse que o reino viesse a mãos e poder de rei estranho,
não seria por espaço mais que de sessenta anos. Lia-se no juramento de El-Rei
D. Afonso Henriques e na promessa do santo ermitão, que, na décima sexta
geração atenuada, poria Deus os olhos de sua misericórdia no Reino. Lia-se nas
célebres tradições de Gregório de Almeida no seu Portugal Restaurado, que o
tempo desejado havia de chegar, e as esperanças dele se haviam de cumprir no
ano sinalado de quarenta; e no concurso de todas estas profecias se consolava e
animava Portugal a ir vivendo ou durando até ver o cumprimento delas.
Falando no mesmo cativeiro de Babilônia o mesmo
profeta Isaías, e do alívio e consolação que com suas profecias haviam de ter
em seus trabalhos aqueles cativos, diz com igual brandura e eloquência estas
notáveis palavras: Spiritus Domini super me [...] ut mederer contritis corde et
praedicarem captivis indulgentiam [...] ut praedicarem annum placabilem Domino
[...] ut consolarem omnes 1ugentes [...] et darem eis coronam pro cinere, oleum
gaudii pro luctu... «Desceu sobre mim o Senhor, e ungiu-me com seu espírito,
diz Isaías, para que como médico dos aflitos cativos de Babilônia, curasse com
o talento de minhas promessas e profecias, a tristeza e desmaio de seus
corações». E declarando mais em particular os remédios cordiais que lhes
aplicava, aponta nomeadamente dois que mais parecem receitados para o nosso
cativeiro que para o de Babilônia: o primeiro, era um ano de indulgência e
redenção, em que o cativeiro se havia de acabar: Et praedicarem captivis
indulgentiam, annum placabilem Domino; o segundo, era uma coroa trocada pelas
antigas cinzas, com que os lutos e tristezas passadas se convertessem em festas
e alegrias: Et darem eis coronam pro cinere, oleum gauudii pro luctu.
Assim o liam os cativos de Babilônia; a nas suas
profecias, e assim o líamos nós também nas nossas. E assim como eles não tinham
outro remédio na sua dor senão a esperança daquele desejado ano e a mudança
daquela prometida coroa, assim nós, com os olhos longos no suspirado ano de
quarenta e na esperada coroa do novo rei português, aliviávamos o peso do nosso
jugo e consolávamos a pena do nosso cativeiro. E pois este remédio das
profecias foi tão presente e eficaz para os trabalhos passados, razão tenho eu
(e razão sobre a experiência) para esperar e confirmar que o será também para
os futuros.
Eu não prometo nem espero infortúnios a Portugal; mas
ou sejam de Portugal, ou da Cristandade, ou do Mundo os que pode causar nele a
necessidade ou a adversidade dos tempos, para todos lhes prometo este remédio:
melhor é que sobejem os remédios à cautela, do que faltem à providência.
E porque não pareça que argumento só de casos e
profecias de tempos antigos, sejam os casos e profecias próprias dos nossos
tempos e escritas só para eles.
Ninguém ignora que as profecias do Apocalipse e mais
ainda as que estão por cumprir) são próprias dos tempos que hoje correm e
hão-de parar no fim do Mundo. Assim o dizem Padres e expositores, e nós o
mostraremos em seu próprio lugar. Mas a que fim, pergunto, ordenou a
Providência Divina que S. João tivesse aquelas revelações e escrevesse aquelas
profecias?
É pergunta esta de que foi respondida Santa Brígida,
como se lê no Livro VI de suas Revelações. Querendo Cristo, por particular
favor, que a santa ouvisse a resposta da boca do mesmo Profeta, apareceu ali S.
João e disse desta maneira: Tu, Domine, inspirasti mihi mysteria ejus, et ego
scrpsi ad consolationem futurorum, ne fideles tui propter futuros casus everterentur:
«Vós, Senhor, me revelastes aqueles mistérios, e eu escrevi as profecias deles
para consolação dos vindouros e para que os vossos fiéis com os casos futuros
se não perturbassem», antes confirmados com as mesmas profecias, estejam neles
constantes.
Este é o fim (posto que não só este) por que Deus
revela as cousas futuras, e por que os Profetas antigos, e o último de todos,
que foi S. João, as escreveram: para que se veja quão justa e quão útil é, e
quão conforme com a vontade e intento de Deus, a diligência com que eu me
disponho, e o trabalho de escolher entre todas as profecias que pertencem a
nossos tempos, e de as ajuntar, ordenar e tirar à luz para o benefício público.
E porque o fruto deste benefício se pode colher nas novidades que promete este
mesmo ano em que. somos entrados, aplicando o remédio à ferida ou aos ameaços
dela, digo assim com o profeta Amos: Leo rugiet; quis non timebit? Dominus Deus
locutus est quis non prophetabit ? Está o leão bramindo? Sim, está; pois agora
é o tempo de se ouvirem as profecias e de se saber e publicar o que Deus tem
dito: Dominus Deus locutus est. quis non prophetabit? Falem todos nas profecias
e entendam-nas todos, pratiquem-nas todos, que agora é o tempo.
Quando as bramidos do leão se ouvirem em suas caixas
e trombetas, soe também em nossos ouvidos por cima de todas elas, o trovão de
nossas profecias. Assim lhes chamei, porque são voz do Céu. Leo rugiet, quis
non timebit? «Quando bramir o leão, quem não tremerá?»
Responderão com razão os nossos soldados que não
temerão aqueles que tantas vezes os têm vencido; que não temerá Portugal, que é
o Sansão que tantas vezes o tem desqueixado. que não temerá Portugal, que é o
Hércules que tantas vezes se tem vestido de seus despojos; que não temerá
Portugal que é o David que tantas vezes lhe tem tirado das garras os seus
cordeiros. Esta é a resposta do valor, e esta pode ser também a da arrogância,
de que Deus se não agrada.
Não confie Portugal em si, porque se não ofenda Deus;
confie só no mesmo Deus e em suas promessas, e pelejará seguro. Oh! que bem
armados esperarão o leão na campanha os nossos soldados, se tiverem nas mãos as
armas e no coração as profecias! Leo rugiet, quis non prophetabit?
Estas são as trombetas do Céu, de cujo som tremem os
muros de Jericó e a cuja bateria nenhuma fortaleza resiste.
Mas se acaso (que pode ser) houver algum sucesso
adverso (que também depois do milagre de Jericó houve nos campos de Hai), não
perca Josué nem seus soldados o animo; recorram a Deus e a suas promessas, que
por isso nos tem prevenido com elas.
Costuma a Providência Divina começar suas maravilhas
por efeitos contrários, ou para provar nossa fé, ou para mais exaltar sua
onipotência. Ele pode mais que todos os poderes humanos, e só uma cousa não
pode, que é faltar ao que tem prometido. Deixou Cristo aos discípulos lutar com
a tempestade na primeira vigia, na segunda não lhos acudiu, nem na terceira; e
quando na quarta, depois de os atemorizar com fantasmas, os socorreu com sua
presença, ainda então os repreendeu de pouca confiança. Escureça-se a noite,
brame o mar, rompa-se o céu, enfureçam-se os ventos, que Deus há-de acudir por
sua palavra; seguro está o Reino em que ele e a palavra de Deus correm o mesmo
perigo.
Volume I, Capítulo VI: Terceira utilidade.
Finalmente
(e é a terceira e não menor utilidade desta História), lendo os príncipes da
Cristandade, e mais particularmente aqueles que foram ou estão já escolhidas
por Deus para instrumentos gloriosos de ,tão singulares maravilhas e
maravilhosas felicidades, lendo, digo, no discurso da História do Futuro, as
vitórias, os triunfos, as conquistas, os reinos, as coroas e o domínio e
sujeição de nações tantas e tão dilatadas, que lhes estão prometidas, na fé e
confiança das mesmas promessas se atreverão animosamente a empreendê-las, sendo
certo que, medidas só as forças da potência humana, sem ter por fiador a
palavra divina, nenhuma razão haveria no Mundo que se atrevesse a aconselhar,
nem ainda temeridade que se arrojasse a empreender a desigualdade de tamanhas
guerras e a desproporção de tão imensas conquistas. Mas as promessas e as
disposições divinas, antecedentemente conhecidas na previsão do futuro, tudo
facilitam e a tudo animam.
Para testemunho desta tão importante verdade e alento
dos que a lerem, porei aqui um só exemplo de guerras, outro de conquistas, mas
um e outro os maiores que até hoje se viram no Mundo.
Tinham vindo sobre o povo de Israel os exércitos dos
Filisteus com trinta mil carros de guerra e tanta multidão de soldados, que não
só compara a Escritura Sagrada q número deles com o da areia do mar, senão com
a areia muita: ...sicut arena, quae est in littore maris, plurima. Os
Israelitas, reconhecendo sua desigualdade para resistir a tão superior e
excessivo poder, diz o mesmo texto que se tinham escondido pelas brenhas, pelas
montanhas, pelas covas, pelas grutas, pelas cisternas e por todos os outros
lugares mais ocultos e secretos que .sabe inventar o medo e a necessidade.
.Neste estado de horror e miséria sai de noite o
príncipe Jónatas, filho de el-rei Saul, trata de consultar a Deus por um modo
de oráculo ou sorte, a que os Hebreus chamavam Phurim, pela qual a Providência
divina naquele tempo costumava responder e significar os sucessos futuros; e
encaminhando para os alojamentos do inimigo, disse assim ao seu pajem da lança,
que só o acompanhava:
Se quando formos sentidos do exército dos Filisteus,
disserem as sentinelas: — Esperai por nós — é sinal que responde Deus que
paremos, e que não convém acometer; mas se as sentinelas disserem: — Vinde para
cá — é sinal que responde Deus que acometamos, porque os tem entregues em
nossas mãos, e que havemos de prevalecer contra eles.
Ajustados os sinais nesta forma, prosseguiram seu
caminho, chegaram perto e foram sentidos. As sentinelas que deram fé dos dois
voltos, falaram entre si, concordando em que eram hebreus dos que estavam
metidos pelas covas; levantaram a voz e disseram para eles: — Vinde cá, que
temos certa cousa que vos dizer. Não foi necessário mais, para que Jónatas
entendesse a resposta do divino oráculo, interpretando-a (como verdadeiramente
era) conforme o sinal que tinha posto; e na fé e confiança desta profecia,
tendo por sem dúvida que havia de vencer, avança animosamente às tendas dos
Filisteus, começa ele e o companheiro a matar nos inimigos, toca-se arma,
cresce a confusão, perturbam-se os arraiais, trava-se uma brava peleja dos
mesmos Filisteus uns contra os outros, cuidando que eram os soldados de Saul.
Fogem, atropelam-se, matam-se. Saem das covas os Israelitas, seguem os Filisteus
fugitivos, e voltam carregados de despojos. Conhecem-se enfim com imortal
glória de Jónatas os autores de tão estupenda façanha, bastando só dois homens
armados da confiança de uma profecia, para porem em fugida o mais poderoso
exército e alcançarem a mais desigual e prodigiosa vitória.
A maior e mais nobre conquista que até hoje se
intentou e conseguiu no Mundo, foi a famosa de Alexandre Magno. O homem que a
empreendeu era o maior capitão que criou a natureza, formou o valor,
aperfeiçoou a arte e acompanhou a fortuna. mas se não fora ajudado da profecia,
nem ele se atrevera ao que se atreveu, nem obrara e levara ao cabo o que obrou.
Bem sei que no dia em que nasceu Alexandre, ardeu o famosíssimo templo de Diana
Efesina, onde prognosticaram os Magos que naquele dia entrara no Mundo quem
havia de ser o incêndio de toda Ásia.
Também sei que a quem desatasse o nó gordiano que
Alexandre cortou com a espada, estava prometido pelos oráculos de Apolo Délfico
o império de todo o Oriente; mas não chamo eu a isto profecias, nem assento
considerações e verdades tão sérias sobre fundamentos de tão pouca
subsistência, como são os vaticínios da Gentilidade.
Conta Josefo, no liv. XI de suas Antigüidades, que
entrando Alexandre em Jerusalém, saiu a o receber fora do templo o sumo
sacerdote Jado, revestido dos ornamentos pontificais, e que Alexandre, vendo-o,
se lançara a seus pés e o adorara; e perguntado pela causa de tão desusada
reverência, tão alheia de sua grandeza e majestade, respondeu que ele não
adorara aquele homem senão nele a Deus, porque reconhecera que aquele era o
hábito, o ornato e a representação em que Deus lhe tinha aparecido em Dio,
cidade de Macedônia, e exortando-o a que empreendesse a conquista da Pérsia,
que naquele tempo meditava, lhe segurara a vitória.
As palavras de Alexandre (que é bem se veja a sua
formalidade) são as seguintes: — Non hunc adoravi, sed Deum, cujus principa
desse a resposta do divino oráculo, interpretando-a (como verdadeiramente era)
conforme o sinal que tinha posto; e na fé e confiança desta profecia, tendo por
sem dúvida que havia de vencer, avança animosamente às tendas dos Filisteus,
começa ele e o: companheiro a matar nos inimigos, toca-se arma cresce a
confusão, perturbam-se os arraiais, trava-se uma brava peleja dos mesmos
Filisteus uns contra os outros, cuidando que eram GS soldados de Saul. Fogem,
atropelam-se, matam-se. Saem das covas os Israelitas, seguem GS Filisteus
fugitivos, e voltam carregados de despojos. Conhecem-se enfim com imortal
glória de Jónatas os autores de tão estupenda façanha' bastando só dois homens
armados da confiança de uma profecia, para porem em fugida o mais poderoso
exército e alcançarem a mais desigual e prodigiosa vitória.
A maior e mais nobre conquista que até hoje se
intentou e conseguiu no Mundo, foi a famosa de Alexandre Magno. o homem que a
empreendeu era o maior capitão que criou a natureza, formou o valor,
aperfeiçoou a arte e acompanhou a fortuna. mas se não fora ajudado da profecia,
nem ele se atrevera ao que se atreveu, nem obrara e levara ao cabo o que obrou.
Bem sei que no dia em que nasceu Alexandre, ardeu o famosíssimo templo de Diana
Efesina, onde prognosticaram os Magos que naquele dia entrara no Mundo quem
havia de ser o incêndio de toda Ásia.
Também sei que a quem desatasse o nó gordiano que
Alexandre cortou com a espada, estava prometido pelos oráculos de Apolo Délfico
o império de todo o Oriente; mas não chamo eu a isto profecias, nem assento
considerações e verdades tão sérias sobre fundamentos de tão pouca
subsistência, como são os vaticínios da Gentilidade.
Conta Josefo, no liv. XI de suas Antigüidades, que,
entrando Alexandre em Jerusalém, saiu a o receber fora do templo D sumo
sacerdote Jado, revestido dos ornamentos pontificais, e que Alexandre, vendo-o,
se lançara a seus pés e o adorara; e perguntado pela causa de tão desusada
reverência, tão alheia de sua grandeza e majestade, respondeu que ele não
adorara aquele homem, senão nele a Deus, porque reconhecera que aquele era o
hábito, o ornato e a representação em que Deus lhe tinha aparecido em Dio,
cidade de Macedônia, e exortando-o a que empreendesse a conquista da Pérsia,
que naquele tempo meditava, lhe segurara a vitória.
As palavras de Alexandre (que é bem se veja a sua
formalidade) são as seguintes:
Non hunc adoravi, sed Deum, cujus principatus
sacerdotii functus est. Nam per somnium in hujus modi eum habitu conspexi,
adhuc in Dio civitate Macedoniae constitutus. Dumque mecum cogitassem posse
Asiam vincere, incitavit me ut nequaqm negligerem, sed confidenter transirem.
Nam per se ducturum meum exercitum dicebat, et Persarum traditurum potentiam:
ideoque neminem alium in tali stola videns, cum huc advertissem, habens
visionis et probutionis nocturnae memoriam, salutavi. [...] Exinde arbitrar
Divino iuvamine me directum Dariumque vixisse, virtutemque solvisse Persarum.
Propterea et omnia quae meo.corde sperantur, pro ventura confido.
No mesmo templo de Jerusalém, refere também Josefo
que foram mostradas a Alexandre as profecias de Daniel, particularmente aquela
do cap. VIII. Conta ali o profeta que viu dois animais do campo: um, o maioral
das ovelhas, com dois cornos muito fortes; outro, o maioral das cabras, com um
só corno entre os olhos (o qual depois de quebrado se dividiu em quatro), e que
este segundo animal, correndo da parte do Ocidente contra o primeiro, sem pôr
os pés na terra, o investira e derribara e metera debaixo dos pés.
Nestas duas figuras é certo que estava profetizado,
na primeira, o império dos Persas e Medos (como explicou o anjo a Daniel), por
isso tinha a testa dividida em dois cornos; na segunda, o império dos Gregos,
que no princípio esteve unido em uma só pesca, que foi Alexandre, e depois de
sua morte se dividiu em quatro, que foram os quatro reinos em que ele o
repartiu entre seus capitães. Saiu pois Alexandre da parte ocidental, que é a
Macedônia, e sem pôr os pés na terra, pela velocidade com que vencia e
sujeitava tudo, investiu, derribou e meteu debaixo dos pés o império dos Persas
e Medos, acabando de se cumprir a profecia na última batalha do Tigranes, em
que venceu e desbaratou de todo os exércitos de Dario e tomou ou se deixou
saudar com o nome de Imperador da Ásia.
Não parou aqui Alexandre; porque não pararam aqui as
profecias de Daniel na visão dos quatro animais referidos no cap. VII. O
terceiro era Alexandre, significado no leopardo com quatro asas. Na visão da
estátua de Nabuco, referida no cap. II, o terceiro dos metais, que era o
bronze, significava também o império de Alexandre; e diz ali o Profeta que
reinaria e se faria obedecer de todo o Mundo: Et regnum tertium aliud aereum,
quod imperabit universae terrae.
Em seguimento e confiança destas profecias, partiu
Alexandre vitorioso para a conquista que lhe restava do mundo oriental, o qual
sujeitou e uniu todo ao seu império, passando o Tauro e o Cáucaso e chegando
até os fins do Ganges e praias do mar Índico, que eram então os últimos da
terra de onde Hércules e o padre Líbero os tinham colocado.
Mas foram ainda mais em número e grandeza as nações
que venceu e sujeitou Alexandre com a fama mais que com a espada; porque,
entrando da volta desta jornada em Babilônia, achou nela os embaixadores de
África, de Cartago Espanha, Gália, Itália, Sicília, Sardenha, as quais
províncias, em obséquio e reconhecimento de sua potência, se lhe mandaram
sujeitar e entregar espontaneamente e entre elas os mesmos Romanos (nome já
naquele: tempo famoso no Mundo), como é autor Clitarco, referido e louvado por
Plínio no liv. III da História Natural. Tudo certifica ainda com palavras
maiores o mesmo Texto Sagrado no exórdio do I Liv. dos Macabeus, dizendo:
...percussit Alexander [...] qui primus regnavit in Graecia, et Darium regem
Persarum et Medorum, constituit et praelia multa et oblinuit omnium munitiones,
et interfecit reges terrae, pertransiit usque ad fines terrae, et accepit
spolia mulitudinis gentium, et siluil terra in conspectu ejus.
Porém o que mais admira nas conquistas e vitórias de
Alexandre, é a desigualdade do poder e o limitado aparato de guerra com que
entrou em tão imensa empresa; porque, como refere Plutarco e o prova com graves
autores, saiu de Macedônia com menos de quarenta mil homens, bastimentos só
para trinta dias, e com setenta talentos para estipêndios, que fazem da nossa
moeda quarenta e dois mil cruzados.
Mas como Alexandre, antes de obrar todas estas
maravilhas, com que mereceu o nome e se fez verdadeiramente magno, se tivesse
visto a si mesmo melhor retratado nas profecias de Daniel, do que depois se viu
nas estátuas de Lisipo nem nas pinturas de Apeles, não é muito que, animado e
soprado do espírito das mesmas profecias e cheio da majestade delas, se
atrevesse a tão árduas e dificultosas empresas, das quais justamente se duvida
(como pôs em questão Justino) se foi maior façanha o intentá-las, ou vencê-las.
E de aqui se pode desculpar (cousa que não soube nem
pôde advertir nenhum dos historiadores de Alexandre, sendo tantos e tão
excelentes), de aqui, digo, se pode desculpar aquela mais temeridade que
audácia (qualidade, posto que honrosa, indigna de um general prudente e muito
mais de um rei, quando conquista o alheio e não defende o próprio), com que
Alexandre empenhava sua pessoa e vida e se precipitava muitas vezes aos perigos
por cousas leves, sendo a confiança ou o seguro de todos estes arrojamentos,
não o domínio que ele tivesse sobre a fortuna — Quam solus omnium mortalium sub
potestate habuit — como com discrição gentílica disse dele Cúrcio, mas a
previsão e presciência de suas futuras vitórias e do império que lhe estava
prometido, e havia necessariamente de conquistar, conforme as profecias de
Daniel. E como tinha a vida e as empresas firmadas por uma escritura de Deus ou
por três escrituras, e ao mesmo Deus por fiador de sua palavra e promessas, fé
era e não audácia, confiança e não temeridade empenhar-se Alexandre nos perigos
para conseguir as empresas, e dar exemplo de desprezo da vida a seus soldados
para os animar às vitórias. Tanta parte teve a profecia nas ações deste grande
capitão e no império deste grande monarca, o qual, se deve a Filipe o ser
Alexandre, deve a Daniel o ser Magno!
Os exemplos que temos domésticos desta mesma
utilidade, não são menos admiráveis que os estranhos, assim nas batalhas, como
nas conquistas. Era tão inumerável a multidão de Sarracenos que debaixo das
luas de Ismael, e dos outros quatro reis mouros, inundaram os campos de
Guadiana com intento de tomar Portugal naquele dia fatalíssimo, o primeiro de
nossa maior fortuna, que justamente estavam temerosos os poucos portugueses, e
seu valoroso príncipe duvidoso se aceitaria ou não a batalha; mas como o velho
ermitão, intérprete da Divina Providência, visto primeiro em sonhos e depois
realmente ouvido e conhecido, lhe assegurou da parte de Deus a vitória, com
aquelas tão expressas e animosas palavras Vinces, Alphonse, et non vinceris — socorrido
o animoso capitão e fortalecido o pequeno exército com esta promessa do Céu,
sem reparar em que era tão desigual o partido, que para cada lança cristã havia
no campo cem mouros, resolveu intrepidamente dar a batalha.
Na manhã, pois, da mesma noite em que tinha recebido
a profecia, acomete de fronte a fronte ao inimigo, sustenta quatro vezes o peso
imenso de todo seu poder, rompe os esquadrões, desbarata o exército, mata,
cativa, rende, despoja, triunfa; e alcançada na mesma hora a vitória, e libertada
a Pátria, pisa glorioso as cinco coroas mauritanas e põe na cabeça, já rei, a
portuguesa.
Isto obraram as profecias daquela noite na guerra,
mas ainda mostraram mais os poderes de sua influência na conquista. Quem duvida
que foram mais estendidas e gloriosas as conquistas dos Portugueses que as de
Alexandre Magno na mesma Índia? Desta conquista de Alexandre disse o seu grande
historiador ...Oriente perdomito, aditoque Oceano, quidquid mortalitas
cutiebut, impleret. «Domado o Oriente e navegado o Oceano, cumpriu e encheu
Alexandre tudo o que cabia na mortalidade.:> Que dissera, se vira as
navegações dos Portugueses no mesmo Oceano e suas conquistas no mesmo Oriente?
Obrigação tinha em boa conseqüência de lhes chamar imortais. Não chegaram os
Portugueses só às ribeiras do Ganges, como Alexandre; mas passaram e penetraram
adiante muito maior comprimento e terras do que há do mesmo Ganges a Macedônia,
donde Alexandre tinha saído.
Não venceram só a Poro, rei da Índia, e seus
exércitos; mas sujeitaram e fizeram tributárias mais coroas e mais reinos do
que Poro tinha cidades. Não navegaram só o mar Indico ou Eritreu, que é um seio
ou braço do Oceano, mas domaram o mesmo Oceano na sua maior largueza e
profundidade, aonde ele é mais bravo e mais pujante, mais poderoso e mais
indômito: o Atlântico, o Etiópico, o Pérsico, o Malabárico, e, sobre todos, o
Sínico, tão temeroso por seus tulões e tão infame por seus naufrágios. Que
perigos não desprezaram? Que dificuldades não venceram? Que terras, que céus,
que mares, que climas, que ventos, que tormentas, que promontórios não
contrastaram? Que gentes feras e belicosas não domaram? Que cidades e castelos
fortes na terra? Que armadas poderosíssimas no mar não renderam? Que trabalhos,
que vigias, que fomes, que sedes, que frios, que calores, que doenças, que
mortes não sofreram e suportaram, sem ceder, sem parar, sem tornar atrás,
insistindo sempre e indo avante, com mais pertinácia que com instancia?
Mas não obraram todas estas proezas aqueles
portugueses famosos por benefício só de seu valor, senão pela confiança e
seguro de suas profecias. Sabiam que tinha Cristo prometido a seu primeiro rei
que os escolhera para argonautas apostólicos de seu Evangelho e para levarem
seu nome e fundarem seu império entre gentes remotas e não conhecidas; e esta
fé os animava nos trabalhos; esta confiança os sustentava nos perigos; esta luz
do futuro era o norte que os guiava; e esta esperança a âncora e amarra firme,
que nas mais desfeitas tempestades os tinha seguros.
Maiores contrastes tiveram ainda as conquistas de
Portugal na nossa terra que nas estranhas, e mais fortes guerras experimentaram
nos naturais que resistência nos inimigos. Quem quiser ver com admiração a
tormenta de contradições populares , e de todo o Reino, que por espaço de dez
anos padeceram os primeiros descobrimentos das conquistas, leia o grande
cronista da Ásia, no IV cap. do I liv., e conhecerá quantas obrigações deve
Portugal e o Mundo ao sofrimento, valor e constância do Infante D. Henrique,
filho de El-Rei D. João I, autor desta heróica empresa, o qual, como
religiosíssimo príncipe que era, e nela principalmente pretendia a glória de
Deus, dilatação da Fé e conversão da Gentilidade, mereceu que o mesmo Deus com
uma voz do Céu o exortasse a levar por diante o começado, com promessa de seu
favor e luz dos gloriosíssimos fins, que por meio de tão dura porfia se haviam
de alcançar.
Assim se conta e escreve por fama e tradição daquele
tempo. Com este oráculo divino mais fortalecido o espírito do Infante, não só
pôde romper e abrir as portas tão cerradas do Oceano e deixá-las francas e
patentes aos que depois vieram, vencidas as primeiras e maiores dificuldades,
mas dar animo, valor, guia e esperança aos que, seguindo seu exemplo e empresa,
a levaram ao cabo. Desta maneira o Infante D. Henrique, que será sempre de
feliz memória, nos ganhou com sua constância as conquistas, conquistando-as
primeiro em Portugal, do que fossem conquistadas na África, Ásia, América, e
contrastando com igual fortaleza o indômito furor do segundo e quarto elemento
(que são o mar e o fogo), que não pudera conseguir sem o socorro da luz do Céu,
animado nas contradições e contrariedades presentes com o conhecimento e
certeza dos sucessos futuros, para que até nesta parte deva Portugal as suas conquistas
aos lumes e alentos da profecia.
Finalmente, esta última resolução que no ano de
quarenta assombrou o Mundo, posto que muito a devamos à ousadia do nosso valor,
muito mais a deve o nosso valor à confiança de nossos vatícinios. Que valor
sesudo, prudente e bem aconselhado se havia de atrever a uma empresa tão
cercada de dificuldades, como levantar-se contra o mais poderoso monarca do
Mundo, e restituir-se à sua liberdade, e aclamar novo rei, não longe senão
dentro de Espanha, um reino de grandeza tão desigual, sobre sessenta anos de
cativo e despojado; sem armas, sem soldados, sem amigos, sem aliados, sem
assistências, sem socorros, só e até de si mesmo dividido em tão distantes
partes do Mundo? Mas como havia outros tantos anos que a profecia estava dando
brados aos corações, em que nunca se apagou o amor da Pátria, e a saudade do
rei, e o zelo da liberdade, dizendo e publicando a todos que o desejado tempo
dela havia de chegar no ano felicíssimo de quarenta, em que o novo rei seria
levantado; a promessa que sempre a conservou nos corações, a levantou a seu
tempo nas vozes, e ela foi a que deu o rei ao Reino, o Reino à Pátria, a Pátria
aos Portugueses, e Portugal a si mesmo; e este seja entre todos o maior
exemplo, assim das nossas guerras como das nossas conquistas, pois tudo o que
tínhamos vencido e conquistado em quinhentos anos, alentados das promessas do
Céu, o pudemos restaurar um dia.
E se tanto tem valido e importado a Portugal o
conhecimento de seus futuros, em todos os casos maiores que podem acontecer a
um reino; se debaixo desta fé nasceu, quando recebeu a coroa. se debaixo desta
fé cresceu, quando lhe acrescentou as conquistas; se debaixo desta fé se
restaurou, quando as restituiu a elas e se restituiu a si mesmo, oh! quanto
mais necessário lhe será a Portugal, e quanto mais útil e importante esta mesma
fé e conhecimento de seus futuros sucessos para aquelas empresas novas, e muito
maiores, que nos tempos que hão-de vir (ou que já vêm) o esperam! Não se poderá
compreender a grandeza e capacidade desta importância senão depois de lida toda
a História do Futuro, na qual só se medirá bem a imensidade do objeto com a
desigualdade do instrumento.
Mas quem quiser desde logo fazer de algum modo a
conjectura desta desproporção, tome os compassos a Portugal e ao Mundo, e
pergunte-se a si mesmo se se atreve a igualar estes paralelos. É porém, tão
poderoso contra todos os impossíveis o conhecimento e fé do que há-de ser
representado no espelho das profecias, que nenhuma empresa pode haver tão
desigual, nenhuma tão armada de perigos, nenhuma tão defendida de dificuldades,
que debaixo do escudo desta confiança se não intente, se não avance, se não
prossiga, se não vença. Da conquista espiritual do Mundo se pode fazer bom
argumento para a temporal, pois é mais forte a guerra e mais dura resistência a
dos entendimentos que a dos braços.
Quis Deus que a Igreja, que é o seu reino, fundada
pelos Apóstolos, se estendesse por seus sucessores em todo o Mundo; e quais
foram as armas com que Deus os fortaleceu para que não temessem ou duvidassem a
empresa e se dispusessem animosamente a tão estranha conquista?
Advertiu com profundo juízo Primásio que fora o
Apocalipse de S. João, porque, lendo os soldados evangélicos naquelas profecias
quão largamente se havia de propagar a mesma Igreja e quão prodigiosas vitórias
havia de alcançar a Fé contra todos os inimigos, este mesmo conhecimento os
animava a quererem ser (como foram) os instrumentos gloriosos delas.
Segurou-lhes Deus as vitórias, para que não duvidassem cometer as batalhas:
Post exortum autem Ecolesiae, quae jam fuerat apostolorum praedicatione
funduta, revelari oportuit — diz Primásio — qualiter esset latius propaganda,
vel quali etiam fine contenta, ut praedicatores veritatis, hujus cognitionis
fidutia freti, indubitanter aggrederentur pauci multos, inermes armatos,
humiles superbos, infirmi nobiles, vivi tamen spiritualiter mortuos. Não se
pode dizer, nem mais certa, nem mais elegantemente, se exceptuarmos a
desproporção de poucos a muitos, pauci multos. Em todas as outras considerações
foi mais desigual esta empresa que as que eu prometo ou hei-de prometer; e se a
esta se atreveram poucos homens sem armas, sem estimação, sem nobreza, sem
poder, contra tantos armados arrogantes, nobres e poderosos, só porque no
conhecimento das profecias tinham segura a felicidade e fim da empresa, porque
se não atreverão à mesma empresa, e na confiança das mesmas profecias, aqueles
em quem o poder se iguala com as armas, as armas se ilustram com a nobreza e a
nobreza compete com a estimação e com a fama, ainda que sejam poucos contra
muitos?
E digo na confiança das mesmas profecias, porque uma
boa parte da nossa História (como veremos em seu lugar) são as do mesmo
Apocalipse. Lerão os Portugueses, e todos os que lhes quiserem ser
companheiros, este prodigioso livro do futuro, e com ele embraçado em uma mão e
a espada na outra, posta toda a confiança em Deus e em sua palavra, que
conquista haverá que não empreendam, que dificuldades que não desprezem, que
perigos que não pisem, que impossíveis que não vençam?
Ao conhecimento antecedente dos futuros chamou
discretamente S. Gregório escudo fortíssimo da presciência, em que todas as
adversidades e golpes do Mundo se sustentam, se reparam e se rebatem: Et nos
tolerabilius mundi mula suscipmus, si contra haec per prtescientiae clypeum
munimur. Que vem a ser esta nossa História do Futuro, senão escudo da
presciência - praescientia, clypeum? Armados com este escudo, que trabalhos,
que perigos nos pode oferecer o mar, a terra e o Mundo, e que golpes nos pode
atirar com todas as forças de seu poder, que não sustentemos nele com animosa
constância? Quem haverá que debaixo deste escudo não empreenda as mais
dificultosas conquistas, nem aceite as mais arriscadas batalhas, e não vença e
triunfe dos mais poderosos inimigos, se as empresas no mesmo escudo vão já
resolutas, as batalhas vão já vencidas e os inimigos já triunfados?
Fingiu o príncipe dos poetas latinos, que pediu
Vênus, mãe de Eneias, ao deus Vulcano lhe fabricasse umas armas divinas, com
que entrasse armado na dificultosíssima conquista de Itália, com que vencesse
os reis e sujeitasse as nações belicosíssimas que a dominavam, com que
vitorioso fundasse naquelas terras o famosíssimo Império Romano, que pelos
fados lhe estava prometido. Forjou Vulcano as armas, e no escudo, que era a
maior e principal peça delas, diz que abriu de subtilíssima escultura as
histórias futuras das guerras e triunfos romanos, compondo e copiando os
sucessos pelos oráculos e vaticínios dos profetas e pelas notícias próprias que
tinha, como um dos deuses que era participante dos segredos do supremo Júpiter.
...Clypei
non enarrabile textum
Illic
res Italas, romanotumque triumphos,
Haud
vatum ignarus, venturique inscius aevi,
Fecerat
igni potens: illic genus omne futurae
Stirpis
ab Ascanio, purgnataque ordine bella.
(Virgílio,
Aeneid . 8. )
O ofício
e obrigação dos poetas não é dizerem as cousas como foram, mas pintarem-nas
como haviam de ser ou como era bem que fossem; e achou o mais levantado e
judicioso espírito de quantos escreveram em estilo poético, que para vencer as
mais dificultosas empresas, para conquistar as mais belicosas nações e para
fundar o mais poderoso e dilatado império, nenhuma arma poderia haver mais
forte, nem mais impenetrável, nem que mais enchesse de ânimo, confiança e valor
o peito que fosse coberto e defendido com ela, que um escudo formado por arte e
sabedoria divina, no qual estivessem entalhados e descritos os mesmos sucessos
futuros que se haviam de obrar naquela empresa. Assim armou o grande poeta ao
seu Enéias ; e este mesmo escudo, não fabuloso, senão verdadeiro, e não
fingidos depois de experimentados os sucessos, senão escritos antes de
sucederem, é propriamente, e sem ficção, o que nesta História do Futuro
ofereço, Portugueses, ao nosso rei.
Dobrado de sete lâminas dizem que era aquele escudo;
e também o da nossa História, para que em tudo lhe seja semelhante, é publicado
em sete livros. Nele verão os capitães de Portugal, sem conselho, o que hão-de
resolver; sem batalha, o que hão-de vencer; e sem resistência, o que hão-de
conquistar. Sobre tudo se verão nele a si mesmos e suas valorosas ações, como
em espelho, para que, com estas cópias de morte-cor diante dos olhos, retratem
por elas vivamente os originais, antevendo o que hão-de obrar, para que o
obrem, e o que hão-de ser. para que o sejam.