I - ORIGEM, NASCIMENTO E BATISMO
Era no
tempo do rei.
Uma das
quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se
mutuamente, chamava-se nesse tempo-O canto dos meirinhos-; e bem lhe assentava
o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa
classe (que gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não
são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram
gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da
formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que
a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os
desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o
círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações,
provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se
chamava o processo.
Daí sua
influência moral.
Mas
tinham ainda outra influência, que é justamente a que falta aos de hoje: era a
influência que derivava de suas condições físicas. Os meirinhos de hoje são
homens como quaisquer outros; nada têm de imponentes, nem no seu semblante nem
no seu trajar, confundem-se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou
contínuo de repartição. Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam
com ninguém; eram originais, eram tipos, nos seus semblantes transluzia um
certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes significavam
chicana. Trajavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato
afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita
penduravam um círculo branco, cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto
por um grave chapéu armado. Colocado sob a importância vantajosa destas
condições, o meirinho usava e abusava de sua posição. Era terrível quando, ao
voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa, o cidadão esbarrava com uma
daquelas solenes figuras que, desdobrando junto dele uma folha de papel,
começava a lê-la em tom confidencial! Por mais que se fizesse não havia remédio
em tais circunstâncias senão deixar escapar dos lábios o terrível-Dou-me por
citado.-Ninguém sabe que significação fatalíssima e cruel tinham estas poucas
palavras! eram uma sentença de peregrinação eterna que se pronunciava contra si
mesmo; queriam dizer que se começava uma longa e afadigosa viagem, cujo termo
bem distante era a caixa da Relação, e durante a qual se tinha de pagar importe
de passagem em um sem-número de pontos; o advogado, o procurador, o inquiridor,
o escrivão, o juiz, inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão estendida, e
ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém todo o
conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência,
Mas
voltemos à esquina. Quem passasse por aí em qualquer dia útil dessa abençoada
época veria sentado em assentos baixos, então usados, de couro, e que se
denominavam-cadeiras de campanha-um grupo mais ou menos numeroso dessa nobre
gente conversando pacificamente em tudo sobre que era lícito conversar: na vida
dos fidalgos, nas notícias do Reino e nas astúcias policiais do Vidigal. Entre
os termos que formavam essa equação meirinhal pregada na esquina havia uma
quantidade constante, era o Leonardo-Pataca. Chamavam assim a uma rotunda e
gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado, que era o decano
da corporação, o mais antigo dos meirinhos que viviam nesse tempo. A velhice
tinha-o tornado moleirão e pachorrento; com sua vagareza atrasava o negócio das
partes; não o procuravam; e por isso jamais saía da esquina; passava ali os
dias sentado na sua cadeira, com as pernas estendidas e o queixo apoiado sobre
uma grossa bengala, que depois dos cinqüenta era a sua infalível companhia. Do
hábito que tinha de queixar-se a todo o instante de que só pagassem por sua citação
a módica quantia de 320 réis, lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome.
Sua
história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua
pátria; aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não
se sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e
que exercia, como dissemos, desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo
navio, não sei fazer o quê, uma certa Maria da hortaliça, quitandeira das
praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitota. O Leonardo, fazendo-se-lhe
justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal apessoado, e sobretudo era
maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o
Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão
assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse
por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de
disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma
declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro
cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a
diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os
dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos.
Quando
saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos: foram os dois morar
juntos: e daí a um mês manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do
beliscão; sete meses depois teve a Maria um filho, formidável menino de quase
três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o
qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas seguidas sem largar o peito. E
este nascimento é certamente de tudo o que temos dito o que mais nos interessa,
porque o menino de quem falamos é o herói desta história.
Chegou
o dia de batizar-se o rapaz: foi madrinha a parteira; sobre o padrinho houve
suas dúvidas: o Leonardo queria que fosse o Sr. juiz; porém teve de ceder a
instâncias da Maria e da comadre, que queriam que fosse o barbeiro de defronte,
que afinal foi adotado. Já se sabe que houve nesse dia função: os convidados do
dono da casa, que eram todos dalém-mar, cantavam ao desafio, segundo seus
costumes; os convidados da comadre, que eram todos da terra, dançavam o fado. O
compadre trouxe a rabeca, que é, como se sabe, o instrumento favorito da gente
do ofício. A princípio o Leonardo quis que a festa tivesse ares aristocráticos,
e propôs que se dançasse o minuete da corte. Foi aceita a idéia, ainda que houvesse
dificuldade em encontrarem-se pares. Afinal levantaram-se uma gorda e baixa
matrona, mulher de um convidado; uma companheira desta, cuja figura era a mais
completa antítese da sua; um colega do Leonardo, miudinho, pequenino, e com
fumaças de gaiato, e o sacristão da Sé, sujeito alto, magro e com pretensões de
elegante. O compadre foi quem tocou o minuete na rabeca; e o afilhadinho,
deitado no colo da Maria, acompanhava cada arcada com um guincho e um
esperneio. Isto fez com que o compadre perdesse muitas vezes o compasso, e
fosse obrigado a recomeçar outras tantas.
Depois
do minuete foi desaparecendo a cerimônia, e a brincadeira aferventou, como se
dizia naquele tempo. Chegaram uns rapazes de viola e machete: o Leonardo,
instado pelas senhoras, decidiu-se a romper a parte lírica do divertimento.
Sentou-se num tamborete, em um lugar isolado da sala, e tomou uma viola. Fazia
um belo efeito cômico vê-lo, em trajes do oficio, de casaca, calção e espadim,
acompanhando com um monótono zum-zum nas cordas do instrumento o garganteado de
uma modinha pátria. Foi nas saudades da terra natal que ele achou inspiração
para o seu canto, e isto era natural a um bom português, que o era ele. A
modinha era assim: Quando estava em minha terra, Acompanhado ou sozinho,
Cantava de noite e de dia Ao pé dum copo de vinho!
Foi
executada com atenção e aplaudida com entusiasmo; somente quem não pareceu
dar-lhe todo o apreço foi o pequeno, que obsequiou o pai como obsequiara ao
padrinho, marcando-lhe o compasso a guinchos e esperneios. À Maria
avermelharam-se-lhe os olhos, e suspirou.
O canto
do Leonardo foi o derradeiro toque de rebate para esquentar-se a brincadeira,
foi o adeus às cerimônias. Tudo daí em diante foi burburinho, que depressa
passou à gritaria, e ainda mais depressa à algazarra, e não foi ainda mais
adiante porque de vez em quando viam-se passar através das rótulas da porta e
janelas umas certas figuras que denunciavam que o Vidigal andava perto.
A festa
acabou tarde; a madrinha foi a última que saiu, deitando a bênção ao afilhado e
pondo-lhe no cimeiro um raminho de arruda.
II PRIMEIROS INFORTÚNIOS
Passemos
por alto sobre os anos que decorreram desde o nascimento e batizado do nosso
memorando, e vamos encontrá-lo já na idade de sete anos. Digamos unicamente que
durante todo este tempo o menino não desmentiu aquilo que anunciara desde que
nasceu: atormentava a vizinhança com um choro sempre em oitava alta; era
colérico; tinha ojeriza particular à madrinha, a quem não podia encarar, e era
estranhão até não poder mais.
Logo
que pôde andar e falar tornou-se um flagelo; quebrava e rasgava tudo que lhe
vinha à mão. Tinha uma paixão decidida pelo chapéu armado do Leonardo; se este
o deixava por esquecimento em algum lugar ao seu alcance, tomava-o
imediatamente, esganava com ele todos os móveis, punha-lhe dentro tudo que
encontrava, esfregava-o em uma parede, e acabava por varrer com ele a casa; até
que a Maria, exasperada pelo que aquilo lhe havia de custar aos ouvidos, e
talvez às costas, arrancava-lhe das mãos a vítima infeliz. Era, além de
traquinas, guloso; quando não traquinava, comia. A Maria não lhe perdoava;
trazia-lhe bem maltratada uma região do corpo; porém ele não se emendava, que
era também teimoso, e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das
palmadas.
Assim
chegou aos sete anos.
Afinal
de contas a Maria sempre era saloia, e o Leonardo começava a arrepender-se
seriamente de tudo que tinha feito por ela e com ela. E tinha razão, porque,
digamos depressa e sem mais cerimônias, havia ele desde certo tempo concebido
fundadas suspeitas de que era atraiçoado. Havia alguns meses atrás tinha notado
que um certo sargento passava-lhe muitas vezes pela porta, e enfiava olhares
curiosos através das rótulas: uma ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o
vira encostado à janela. Isto porém passou sem mais novidade.
Depois
começou a estranhar que um certo colega seu o procurasse em casa, para tratar
de negócios do oficio, sempre em horas desencontradas: porém isto também passou
em breve. Finalmente aconteceu-lhe por três ou quatro vezes esbarrar-se junto
de casa com o capitão do navio em que tinha vindo de Lisboa, e isto causou-lhe
sérios cuidados. Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta adentro;
alguém que estava na sala abriu precipitadamente a janela, saltou por ela para
a rua, e desapareceu.
À vista
disto nada havia a duvidar: o pobre homem perdeu, como se costuma dizer, as
estribeiras; ficou cego de ciúme. Largou apressado sobre um banco uns autos que
trazia embaixo do braço, e endireitou para a Maria com os punhos cerrados.
—
Grandessíssima!...
E a
injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou... e pôs-se a tremer com
todo o corpo.
A Maria
recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois também não era das que se receava
com qualquer coisa.
—
Tira-te lá, ó Leonardo!
— Não
chames mais pelo meu nome, não chames... que tranco-te essa boca a socos...
—
Safe-se daí! Quem lhe mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo?
Isto
exasperou o Leonardo; a lembrança do amor aumentou-lhe a dor da traição, e o
ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em socos sobre a Maria,
que depois de uma tentativa inútil de resistência desatou a correr, a chorar e
a gritar:
— Ai...
ai... acuda, Sr. compadre... Sr. compadre!...
Porém o
compadre ensaboava nesse momento a cara de um freguês, e não podia largá-lo.
Portanto a Maria pagou caro e por junto todas as contas. Encolheu-se a
choramingar em um canto.
O
menino assistira a toda essa cena com imperturbável sangue-frio: enquanto a
Maria apanhava e o Leonardo esbravejava, aquele ocupava-se tranqüilamente em
rasgar as folhas dos autos que este tinha largado ao entrar, e em fazer delas
uma grande coleção de cartuchos.
Quando,
esmorecida a raiva, o Leonardo pôde ver alguma coisa mais do que seu ciúme,
reparou então na obra meritória em que se ocupava o pequeno. Enfurece-se de
novo: suspendeu o menino pelas orelhas, fê-lo dar no ar uma meia volta, ergue o
pé direito, assenta-lhe em cheio sobre os glúteos atirando-o sentado a quatro
braças de distância.
— És
filho de uma pisadela e de um beliscão; mereces que um pontapé te acabe a
casta.
O
menino suportou tudo com coragem de mártir, apenas abriu ligeiramente a boca
quando foi levantado pelas orelhas: mal caiu, ergueu-se, embarafustou pela
porta fora, e em três pulos estava dentro da loja do padrinho, e
atracando-se-lhe às pernas. O padrinho erguia nesse momento por cima da cabeça
do freguês a bacia de barbear que lhe tirara dos queixos: com o choque que
sofreu a bacia inclinou-se, e o freguês recebeu um batismo de água de sabão.
— Ora,
mestre, esta não está má!...
—
Senhor, balbuciou este... a culpa é deste endiabrado... O que é que tens,
menino?
O
pequeno nada disse; dirigiu apenas os olhos espantados para defronte, apontando
com a mão trêmula nessa direção.
O
compadre olhou também, aplicou a atenção, e ouviu então os soluços da Maria.
— Ham!
resmungou; já sei o que há de ser... eu bem dizia... ora ai está!...
E
desculpando-se com o freguês saiu da loja e foi acudir ao que se passava.
Por
estas palavras vê-se que ele suspeitara alguma coisa; e saiba o leitor que
suspeitara a verdade.
Espiar
a vida alheia, inquirir dos escravos o que se passava no interior das casas,
era naquele tempo coisa tão comum e enraizada nos costumes, que ainda hoje,
depois de passados tantos anos, restam grandes vestígios desse belo hábito ².
Sentado pois no fundo da loja, afiando por disfarce os instrumentos do ofício,
o compadre presenciara os passeios do sargento por perto da rótula de Leonardo,
as visitas extemporâneas do colega deste, e finalmente os intentos do capitão
do navio. Por isso contava ele mais dia menos dia com o que acabava de suceder.
Chegando
ao outro lado da rua empurrou a rótula que o menino ao sair deixara cerrada, e
entrou. Dirigiu-se ao Leonardo, que se conservava ainda em posição hostil.
— Ó
compadre, disse, você perdeu o juízo?...
— Não
foi o juízo, disse o Leonardo em tom dramático, foi a honra!...
A
Maria, vendo-se protegida pela presença do compadre, cobrou animo, e
altanando-se disse em tom de zombaria:
—
Honra!... honra de meirinho... ora!
O
vulcão de despeito que as lágrimas da Maria tinham apagado um pouco, borbotou
de novo com este insulto, que não ofendia só um homem, porém uma classe
inteira! Injurias e murros à mistura caíram de novo sobre a Maria das mãos e da
boca de Leonardo. O compadre, que se interpusera, levou alguns por descuido;
afastou-se pois a distância conveniente, murmurando despeitado por ver
frustrados seus esforços de conciliador:
— Honra
de meirinho é como fidelidade de saloia.
Enfim
serenou a tormenta: a Maria sentou-se a um canto a chorar e a maldizer a hora
em que nascera, o dia em que pela primeira vez vira o Leonardo, a pisadela, o
beliscão com que tinha começado o namoro a bordo, e tudo mais que a dor dos
murros lhe trazia à cabeça.
O
Leonardo, depois de um pouco de calma, teve um momento de exasperação;
avermelharam-se-lhe os olhos e as faces, cerrou os dentes, meteu as mãos nos
bolsos do calção, inchou as bochechas e pôs-se a balançar violentamente a perna
direita. Depois, como tomando uma resolução extrema, juntou as folhas dispersas
dos autos que o menino despedaçara, enterrou atravessado na cabeça o chapéu armado,
agarrou na bengala, e saiu batendo com a rótula e exclamando:
— Vá-se
tudo com os diabos!...
— Vai..
vai... exclamou a Maria já de novo em segurança, pondo as mãos nas cadeiras,
que o caso não há de ficar assim... pôr-me as mãos!... ora.., vou com isto à
justiça!...
—
Comadre...
— Nada,
não atendo, compadre... vou com isto à justiça, e apesar de ser ele um
meirinhaço muito velhaco, há de se haver comigo.
— É
melhor não se meter nisto, comadre... sempre são negócios com a justiça... o
compadre é seu oficial, e ela há de punir pelos seus.
As
ameaças da Maria não passavam de bravatas que lhe arrancava o despeito, e
portanto com mais quatro razões do compadre cedeu, e foi restituída a paz em
casa. Houve então larga conferência entre os dois, no fim da qual o compadre
saiu dizendo:
— Ele
há de voltar... aquilo é gênio... há de passar... e se não... o dito está dito;
fico com o pequeno.
A Maria
mostrou-se satisfeita. Tinha ela suas resoluções tomadas, ou anteriormente ou
naquela ocasião, e por isso na conferência que referimos tratara de engordar o
compadre e arrancar-lhe a promessa de que no caso de algum desarranjo tomaria a
si e cuidaria do filho. Esse desarranjo ela figurara e o compadre acreditara
que só partiria de Leonardo; porem o leitor vai ver que o pobre homem era
condescendente, e que a Maria tinha razão quando falara ironicamente em honra
de meirinho.
Toda
esta cena que acabamos de descrever passou-se de manhã. À tardinha o Leonardo
entrou pela loja do compadre, aflito e triste. O pequeno estremeceu no banco em
que se achava sentado, lembrando-se do passeio aéreo que o pontapé de seu pai
lhe fizera dar de manhã. O compadre adiantou-se e disse-lhe com um sorriso
conciliador:
— O
passado passado; vamos... ela está arrependida... doidices de rapariga... mas
não há de fazer outra...
O
Leonardo não respondeu; pôs-se a passear pela loja com as mãos cruzadas para
trás e por baixo das abas da casaca; porém pelo seu semblante via-se que ele
estimara as palavras do compadre, e que seria o primeiro a pronunciá-las se ele
não o precedesse.
— Vamos
até lá, disse o compadre, e acabe-se tudo! Coitada!... ela ficou muito chorosa.
—
Vamos, disse o Leonardo...
Chegando
à porta de casa fez uma pequena parada como quem tinha tomado a resolução de
não entrar; mas o que ele queria eram algumas súplicas do compadre, que
pudessem ser ouvidas pela Maria; a fim de fazê-la acreditar que se ele voltava
era arrastado, e não por sua vontade. O compadre percebeu isto, e satisfez o
pensamento de Leonardo dizendo:
—
Entre, homem... basta de criançadas... o passado passado.
Entraram.
A sala estava vazia; o Leonardo sentou-se junto de uma mesa, descansou o rosto
numa das mãos, conservando sempre o chapéu armado atravessado na cabeça, o que
lhe dava um aspecto entre cômico e melancólico.
—
Comadre, disse em voz alta o agente da conciliação, tudo está acabado; venha
cá...
Ninguém
respondeu.
— Há de
estar aí a chorar metida em algum canto, tornou o compadre.
E
começou a procurar por toda a casa.
Não era
esta mui grande; em pouco percorreu-a toda, e ficou tomado do mais cruel
desapontamento por não encontrar a Maria. Voltou portanto à sala entre
consternado e espantado.
O
Leonardo, supondo que ele tinha achado a Maria, e que sem dúvida a trazia pela
mão contrita e humilhada, quis fazer-se de bom: ergueu-se, meteu as mãos nos
bolsos, e pôs-se de costas para o lugar donde vinha o compadre.
— Ó
compadre, disse este aproximando-se...
— Nada,
atalhou o Leonardo sem voltar-se... o dito por não dito...mudei de
resolução!...
— Olhe,
homem...
— Nada,
nada... está tudo acabado...
O
Leonardo, dizendo isto, ia dando sempre as costas ao compadre, quando se lhe
queria pôr de frente.
—
Homem... escute... olhe que a comadre...
— Não
quero saber dela... está tudo acabado; e já disse...
—
Foi-se embora... homem... foi-se embora, gritou o compadre impacientado.
O
Leonardo foi fulminado por estas palavras; voltou-se então todo trêmulo. Não
vendo a Maria desatou a chorar.
— Pois
bem, disse entre soluços, está tudo acabado... adeus compadre!
— Mas
olhe que o pequeno... atalhou este.
O Leonardo
nada respondeu, e saiu precipitadamente.
O
compadre compreendeu tudo: viu que o Leonardo abandonava o filho, uma vez que a
mãe o tinha abandonado, e fez um gesto como quem queria dizer:-Está bom, já
agora... vá; ficaremos com uma carga às costas.
Ao
outro dia sabia-se por toda a vizinhança que a moça do Leonardo tinha fugido
para Portugal com o capitão de um navio que partira na véspera de noite.
— Ah!
disse o compadre com um sorriso maligno, ao saber da noticia, foram saudades da
terra!...
III - DESPEDIDAS ÀS TRAVESSURAS
O
Leonardo abandonara de uma vez para sempre a casa fatal onde tinha sofrido
tamanha infelicidade; nem mesmo passara mais por aquelas alturas; de maneira
que o compadre por muito tempo não lhe pôde pôr a vista em cima.
O
pequeno, enquanto se achou novato em casa do padrinho, Portou-se com toda a
sisudez e gravidade; apenas porém foi tomando mais familiaridade, começou a pôr
as manguinhas de fora. Apesar disto porém captou do padrinho maior afeição, que
se foi aumentando de dia em dia, e que em breve chegou ao extremo da amizade
cega e apaixonada. Até nas próprias travessuras do menino, as mais das vezes
malignas, achava o bom do homem muita graça; não havia para ele em todo o
bairro rapazinho mais bonito, e não se fartava de contar à vizinhança tudo o
que ele dizia e fazia; às vezes eram verdadeiras ações de menino malcriado, que
ele achava cheias de espírito e de viveza; outras vezes eram ditos que
denotavam já muita velhacaria para aquela idade, e que ele julgava os mais
ingênuos do mundo.
Era
isto natural em um homem de uma vida como a sua; tinha já 50 e tantos anos,
nunca tinha tido afeições; passara sempre só, isolado; era verdadeiro
partidário do mais decidido celibato. Assim à primeira afeição que fora levado
a contrair sua alma expandiu-se toda inteira, e seu amor pelo pequeno subiu ao
grau de rematada cegueira. Este, aproveitando-se da imunidade em que se achava
por tal motivo, fazia tudo quanto lhe vinha à cabeça.
Umas
vezes sentado na loja divertia-se em fazer caretas aos fregueses quando estes
se estavam barbeando. Uns enfureciam-se, outros riam sem querer; do que
resultava que saíam muitas vezes com a cara cortada, com grande prazer do
menino e descrédito do padrinho. Outras vezes escondia em algum canto a mais
afiada navalha do padrinho, e o freguês levava por muito tempo com a cara cheia
de sabão mordendo-se de impaciência enquanto este a procurava; ele ria-se
furtiva e malignamente. Não parava em casa coisa alguma por muito tempo
inteira; fazia andar tudo numa poeira; pelos quintais atirava pedras aos
telhados dos vizinhos; sentado à porta da rua, entendia com quem passava e com
quem estava pelas janelas, de maneira que ninguém por ali gostava dele. O
padrinho porém não se dava disto, e continuava a querer-lhe sempre muito bem.
Gastava às vezes as noites em fazer castelos no ar a seu respeito; sonhava-lhe
uma grande fortuna e uma elevada posição, e tratava de estudar os meios que o
levassem a esse fim. Eis aqui pouco mais ou menos o fio dos seus raciocínios.
Pelo ofício do pai... (pensava ele) ganha-se, é verdade, dinheiro quando se tem
jeito, porém sempre se há de dizer:-ora, é um meirinho!... Nada... por este
lado não... Pelo meu ofício... Verdade é que eu arranjei-me (há neste
arranjei-me uma história que havemos de contar), porém não o quero fazer
escravo dos quatro vinténs dos fregueses... Seria talvez bom mandá-lo ao
estudo... porém para que diabo serve o estudo? Verdade é que ele parece ter boa
memória, e eu podia mais para diante mandá-lo a Coimbra... Sim, é verdade... eu
tenho aquelas patacas; estou já velho, não tenho filhos nem outros parentes...
mas também que diabo se fará ele em Coimbra? licenciado não: é mau oficio;
letrado? era bom... sim, letrado... mas não; não, tenho zanga a quem me lida
com papéis e demandas... Clérigo?... um senhor clérigo é muito bom... é uma
coisa muito séria... ganha-se muito... pode vir um dia a ser cura. Está dito,
há de ser clérigo... ora, se há de ser; hei de ter ainda o gostinho de o ver
dizer missa... de o ver pregar na Sé, e então hei de mostrar a toda esta
gentalha aqui da vizinhança que não gosta dele que eu tinha muita razão em lhe
querer bem. Ele está ainda muito pequeno, mas vou tratar de o ir desasnando
aqui mesmo em casa, e quando tiver 12 ou 14 anos há de me entrar para a escola.
Tendo
ruminado por muito tempo esta idéia, um dia de manhã chamou o pequeno e
disse-lhe:
—
Menino, venha cá, você está ficando um homem (tinha ele 9 anos); é preciso que
aprenda alguma coisa para vir um dia a ser gente; de segunda-feira em diante
(estava em quarta-feira) começarei a ensinar-lhe o bê-a-bá. Farte-se de
travessuras por este resto da semana.
O
menino ouviu este discurso com um ar meio admirado, meio desgostoso, e
respondeu:
— Então
eu não hei de ir mais ao quintal, nem hei de brincar na porta?
— Aos
domingos, quando voltarmos da missa...
— Ora,
eu não gosto da missa.
O
padrinho não gostou da resposta; não era bom anúncio para quem se destinava a
ser padre; mas nem por isso perdeu as esperanças.
O
menino tomou bem sentido nestas palavras do padrinho: "Farte-se de
travessuras por este resto da semana", e acreditou que aquilo era uma
licença ampla para fazer tudo quanto de bom e de mau lhe lembrasse durante o
tempo que ainda lhe restava de folga. Levou pois todo o dia em uma desenvoltura
assustadora; o padrinho foi achá-lo por duas ou três vezes a cavalo em cima do
muro que dividia o quintal da casa do vizinho, em grande risco de
precipitar-se.
Ao
anoitecer, estando sentado à porta da loja, viu ao longe no princípio da rua um
acompanhamento alumiado pela luz de lanternas e tochas, e ouviu padres a
rezarem; estremeceu de alegria e pôs-se em pé de um salto. Era a via-sacra do
Bom Jesus.
Há bem
pouco tempo que existiam ainda em certas ruas desta cidade cruzes negras
pregadas pelas paredes de espaço em espaço.
Às
quartas-feiras e em outros dias da semana saía do Bom Jesus e de outras igrejas
uma espécie de procissão composta de alguns padres conduzindo cruzes, irmãos de
algumas irmandades com lanternas, e povo em grande quantidade; os padres
rezavam e o povo acompanhava a reza. Em cada cruz parava o acompanhamento,
ajoelhavam-se todos, e oravam durante muito tempo. Este ato, que satisfazia a
devoção dos carolas, dava pasto e ocasião a quanta sorte de zombaria e de
imoralidade lembrava aos rapazes daquela época, que são os velhos de hoje, e
que tanto clamam contra o desrespeito dos moços de agora. Caminhavam eles em
charola atrás da procissão, interrompendo a cantoria com ditérios em voz alta,
ora simplesmente engraçados, ora pouco decentes; levavam longos fios de
barbante, em cuja extremidade iam penduradas grossas bolas de cera. Se ia por
ali ao seu alcance algum infeliz, a quem os anos tivessem despido a cabeça dos
cabelos, colocavam-se em distancia conveniente, e escondidos por trás de um ou
de outro, arremessavam o projétil que ia bater em cheio sobre a calva do
devoto; puxavam rapidamente o barbante, e ninguém podia saber donde tinha
partido o golpe. Estas e outras cenas excitavam vozeria e gargalhadas na
multidão.
Era a
isto que naqueles devotos tempos se chamava correr a via-sacra.
O
menino, como já dissemos, estremecera de prazer ao ver aproximar-se a
procissão. Desceu sorrateiramente a soleira, e sem ser visto pelo padrinho
colocou-se unido à parede entre as duas portas da loja, levantando-se na ponta
dos pés para ver mais a seu gosto.
Vinha
aproximando-se o acompanhamento, e o menino palpitava de prazer. Chegou mesmo
defronte da porta; teve ele então um pensamento que o fez estremecer; tornou-se
a lembrar das palavras do padrinho: "farte-se de travessuras"; espiou
para dentro da loja, viu-o entretido, deu um salto do lugar onde estava,
misturou-se com a multidão, e lá foi concorrendo com suas gargalhadas e seus
gritos para aumentar a vozeria. Era um prazer febril que ele sentia;
esqueceu-se de tudo, pulou, saltou, gritou, rezou, cantou, e só não fez daquilo
o que não estava em suas forças. Fez camaradagem com dois outros meninos do seu
tamanho que também iam no rancho, e quando deu acordo de si estava de volta com
a via-sacra na igreja do Bom Jesus.
IV - FORTUNA
Enquanto
o compadre, aflito, procura por toda a parte o menino, sem que ninguém possa
dar-lhe novas dele, vamos ver o que é feito do Leonardo, e em que novas alhadas
está agora metido.
Lá para
as bandas do mangue da Cidade Nova havia, ao pé de um charco, uma casa coberta
de palha da mais feia aparência, cuja frente suja e testada enlameada bem
devotavam que dentro o asseio não era muito grande. Compunha-se ela de uma
pequena sala e um quarto; toda a mobília eram dois ou três assentos de paus,
algumas esteiras em um canto, e uma enorme caixa de pau, que tinha muitos
empregos; era mesa de jantar, cama, guarda-roupa e prateleira. Quase sempre
estava essa casa fechada, o que a rodeava de um certo mistério. Esta sinistra
morada era habitada por uma personagem talhada pelo molde mais detestável; era
um caboclo velho, de cara hedionda e imunda, e coberto de farrapos. Entretanto,
para a admiração do leitor, fique-se sabendo que este homem tinha por ofício
dar fortuna!
Naquele
tempo acreditava-se muito nestas coisas, e uma sorte de respeito supersticioso
era tributado aos que exerciam semelhante profissão. Já se vê que inesgotável
mina não achavam nisso os industriosos!
E não
era só a gente do povo que dava crédito às feitiçarias; conta-se que muitas
pessoas da alta sociedade de então iam às vezes comprar venturas e felicidades
pelo cômodo preço da prática de algumas imoralidades e superstições.
Pois ao
nosso amigo Leonardo tinha-lhe também dado na cabeça tomar fortuna, e tinha
isso por causa das contrariedades que sofria em uns novos amores que lhe faziam
agora andar a cabeça à roda.
Tratava-se
de uma cigana; o Leonardo a vira pouco tempo depois da fuga da Maria, e das
cinzas ainda quentes de um amor mal pago nascera outro que também não foi a
este respeito melhor aquinhoado; mas o homem era romântico, como se diz hoje, e
babão, como se dizia naquele tempo; não podia passar sem uma paixãozinha. Como
o ofício rendia, e ele andava sempre apatacado, não lhe fora difícil conquistar
a posse do adorado objeto; porém a fidelidade, a unidade no gozo, que era o que
sua alma aspirava, isso não o pudera conseguir: a cigana tinha pouco mais ou
menos sido feita no mesmo molde da saloia. Por toda a parte há sargentos,
colegas e capitães de navios; a rapariga tinha-lhe já feito umas poucas, e
acabava também por fugir-lhe de casa. Desta vez porém, como não eram saudades
da pátria a causa desta fugida, o Leonardo decidira haver de novo e por todos
os meios a posse de sua amada. Encontrou-a com pouco trabalho, e empregando o
pranto, as súplicas, as ameaças, porém tudo embalde, decidiu por isso a buscar
com meios sobrenaturais o que os meios humanos lhe não tinham podido dar.
Entregou-se
portanto em corpo e alma ao caboclo da casa do mangue, o mais afamado de todos
os do ofício. Tinha-se já sujeitado a uma infinidade de provas, que começavam
sempre por uma contribuição pecuniária, e ainda nada havia conseguido; tinha
sofrido fumigações de ervas sufocantes, tragado beberagens de mui enjoativo
sabor; sabia de cor milhares de orações misteriosas, que era obrigado a repetir
muitas vezes por dia; ia depositar quase todas as noites em lugares
determinados quantias e objetos com o fim de chamar em auxílio, dizia o
caboclo, as suas divindades; e apesar de tudo a cigana resistia ao sortilégio.
Decidiu-se finalmente a sujeitar-se à última prova, que foi marcada para a meia-noite
em ponto na casa que já conhecemos. À hora aprazada lá se achou o Leonardo;
encontrou na porta o nojento nigromante, que não consentiu que ele entrasse do
modo em que se achava, e obrigou-o a pôr-se primeiro em hábitos de Adão no
paraíso, cobriu-o depois com um manto imundo que trazia, e só então lhe
franqueou a entrada.
A sala
estava com um aparato ridiculamente sinistro, que não nos cansaremos em
descrever; entre outras coisas, cuja significação só conheciam os iniciados nos
mistérios do caboclo, havia no meio uma pequena fogueira.
Começando
a cerimônia o Leonardo foi obrigado a ajoelhar-se em todos os ângulos da casa,
e recitar as orações que já sabia e mais algumas que lhe foram ensinadas na
ocasião, depois foi orar junto da fogueira. Neste momento saíram do quarto três
novas figuras, que vieram tomar parte na cerimônia, e começaram então,
acompanhando-os o supremo sacerdote, uma dança sinistra em roda do Leonardo. De
repente sentiram bater levemente na porta da parte de fora, e uma voz descansada
dizer:
— Abra
a porta.
— O
Vidigal! disseram todos a um tempo, tomados do maior susto.
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