Thursday 4 February 2021

Thursday's Serial: "O Guarani" by José de Alencar (in Portuguese) - IV

Capítulo X - Ao Alvorecer

No dia seguinte, ao raiar da manhã, Cecília abriu a portinha do jardim e aproximou-se da cerca.

—Peri! disse ela.

O índio apareceu à entrada da cabana; correu alegre, mas tímido e submisso.

Cecília sentou-se num banco de relva; e a muito custo conseguiu tomar um arzinho de severidade, que de vez em quando quase traia-se por um sorriso teimoso que lhe queria fugir dos lábios.

Fitou um momento no índio os seus grandes olhos azuis com uma expressão de doce repreensão; depois disse-lhe em um tom mais de queixa do que de rigor:

—Estou muito zangada com Peri!

O semblante do selvagem anuviou-se.

—Tu, senhora, zangada com Peri! Por quê?

—Porque Peri é mau e ingrato; em vez de ficar perto de sua senhora, vai caçar em risco de morrer! disse a moça ressentida.

—Ceci desejou ver uma onça viva!

—Então não posso gracejar? Basta que eu deseje uma coisa para que tu corras atrás dela como um louco?

—Quando Ceci acha bonita uma flor, Peri não vai buscar? perguntou o índio.

—Vai, sim.

—Quando Ceci ouve cantar o sofrer, Peri não o vai procurar?

—Que tem isso?

—Pois Ceci desejou ver uma onça, Peri a foi buscar.

Cecília não pôde reprimir um sorriso ouvindo esse silogismo rude, a que a linguagem singela e concisa do índio dava uma certa poesia e originalidade.

Mas estava resolvida a conservar a sua severidade, e ralhar com Peri por causa do susto que lhe havia feito na véspera.

—Isto não é razão, continuou ela; porventura um animal feroz é a mesma coisa que um pássaro, e apanha-se como uma flor?

—Tudo é o mesmo, desde que te causa prazer, senhora.

—Mas então, exclamou a menina com um assomo de impaciência, se eu te pedisse aquela nuvem?...

E apontou para os brancos vapores que passavam ainda envolvidos nas sombras pálidas da noite.

—Peri ia buscar.

—A nuvem? perguntou a moça admirada.

—Sim, a nuvem.

Cecília pensou que o índio tinha perdido a cabeça; ele continuou:

—Somente como a nuvem não é da terra e o homem não pode tocá-la, Peri morria e ia pedir ao Senhor do céu a nuvem para dar a Ceci.

Estas palavras foram ditas com a simplicidade com que fala o coração.

A menina que um momento duvidara da razão de Peri, compreendeu toda a sublime abnegação, toda a delicadeza de sentimento dessa alma inculta.

A sua fingida severidade não pôde mais resistir; deixou pairar nos seus lábios um sorriso divino.

—Obrigada, meu bom Peri! Tu és um amigo dedicado; mas não quero que arrisques tua vida para satisfazer um capricho meu; e sim que a conserves para me defenderes como já fizeste uma vez.

—Senhora, não está mais zangada com Peri?

—Não; apesar de que devia estar; porque Peri ontem fez sua senhora afligir-se cuidando que ele ia morrer.

—E Ceci ficou triste? exclamou o índio.

—Ceci chorou! respondeu a menina com uma graciosa ingenuidade.

—Perdoa, senhora!

—Não só te perdôo, mas quero também fazer-te o meu presente.

Cecília correu ao seu quarto e trouxe o rico par de pistolas que havia encomendado a Álvaro.

—Olha! Peri não desejava ter umas?

—Muito!

—Pois aqui tens! Tu não as deixarás nunca porque são uma lembrança de Cecília, não é verdade?

—Oh! o sol deixará primeiro a Peri, do que Peri a elas.

—Quando correres algum perigo, lembra-te que Cecília as deu para defenderem e salvarem a tua vida.

—Por que é tua, não é, senhora?

—Sim, porque é minha, e quero que a conserves para mim.

O rosto de Peri irradiava com o sentimento de um gozo imenso, de uma felicidade infinita; meteu as pistolas na cinta de penas e ergueu a cabeça orgulhoso, como um rei que acabasse de receber a unção de Deus.

Para ele essa menina, esse anjo louro, de olhos azuis, representava a divindade na terra; admirá-la, fazê-la sorrir, vê-la feliz, era o seu culto; culto santo e respeitoso em que o seu coração vertia os tesouros de sentimentos e poesia que transbordavam dessa natureza virgem.

Isabel entrou no jardim; a pobre menina tinha velado toda a noite, e o seu rosto parecia conservar ainda os traços de algumas dessas lágrimas ardentes que escaldam o seio e requeimam as faces.

A moça e o índio nem se olharam; odiavam-se mutuamente; era uma antipatia que começara desde o momento em que se viram, e que cada dia aumentava.

—Agora, Peri, Isabel e eu vamos ao banho.

—Peri te acompanha, senhora?

—Sim, mas com a condição de que Peri há de estar muito quieto e sossegado.

A razão por que Cecília impunha esta condição, só podia bem compreender quem tivesse assistido a uma das cenas que se passavam quando as duas moças iam banhar-se, o que sucedia quase sempre ao domingo.

Peri, com o seu arco, companheiro inseparável e arma terrível na sua mão destra, sentava-se longe, à beira do rio, numa das pontas mais altas do rochedo ou no galho de alguma árvore, e não deixava ninguém aproximar-se num raio de vinte passos do lagar onde as moças se banhavam.

Quando algum aventureiro por acaso transpunha esse círculo que o índio traçava com o olhar em redor de si, Peri na posição sobranceira em que se colocara o percebia imediatamente.

Então se o descuidado caçador sentia o seu chapéu ornar-se de repente com uma pena vermelha que voava pelos ares sibilando; se via uma seta arrebatar-lhe o fruto que ele estendia a mão para colher; se parava assustado diante de uma longa flecha emplumada que despedida por elevação vinha cair-lhe a dois passos da frente como para embargar-lhe o caminho e servir de baliza: não se admirava.

Compreendia imediatamente o que isto queria dizer; e pelo respeito que todos votavam a D. Antônio de Mariz e à sua família, arrepiava caminho; e voltava lançando uma jura contra Peri que lhe crivara o chapéu e o obrigara a encolher a mão de susto.

E fazia bem em voltar, porque o índio com o seu zelo ardente não duvidaria vazar-lhe os olhos para evitar que chegando-se à beira do rio, visse a moça a banhar-se nas águas.

Entretanto Cecília e sua prima tinham o costume de banhar-se vestidas com um trajo feito de ligeira estamenha que ocultava inteiramente sob a cor escura as formas do corpo, deixando-lhes os movimentos livres para nadarem.

Mas Peri entendia que apesar disto seria uma profanação consentir que um olhar de quem quer que fosse visse a senhora no seu trajo de banho; nem mesmo o dele que era seu escravo, e por conseguinte não podia ofendê-la, a ela que era o seu único deus.

Enquanto porém o índio mantinha assim pela certeza de sua vista rápida, e pela projeção das suas flechas esse círculo impenetrável para quem quer que fosse, não deixava de olhar com uma atenção escrupulosa a corrente e as margens do rio.

O peixe que beijava a flor da água, e que podia ir ofender a moca; uma cobra verde inocente que se enroscava pelas folhas dos aguapés; um camaleão que se aquecia ao sol fazendo cintilar o seu prisma de cores brilhantes; um sagüi branco e felpudo que se divertia a fazer caretas maliciosas suspendendo-se pela cauda ao galho de uma árvore; tudo quanto podia ir causar um susto à moça, o índio fazia fugir, se estava longe, e se estava perto, pregava o animal imóvel sobre o tronco ou sobre o chão.

Se um ramo arrastado pela corrente passava, se um pouco do limo das águas despegava-se da margem pedregosa do rio, se o fruto de uma sapucaia pendida sobre o Paquequer estalava prestes a cair, o índio, veloz como o tiro do seu arco, lançava-se e retinha o coco no meio da sua queda, ou precipitava-se na água e apanhava os objetos que boiavam.

Cecília podia ser ofendida pelo tronco que a correnteza carregava, pela fruta que caía; podia assustar-se com o contato do limo julgando ser uma cobra; e Peri não perdoaria a si mesmo a mais leve mágoa que a moça sofresse por falta de cuidado seu.

Enfim ele estendia ao redor dela uma vigilância tão constante e infatigável, uma proteção tão inteligente e delicada, que a moça podia descansar, certa de que, se sofresse alguma coisa, seria porque todo o poder do homem fora impotente para evitar.

Eis pois a razão por que Cecília recomendava a Peri que estivesse quieto e sossegado; é verdade que ela sabia que essa recomendação era sempre inútil, e que o índio faria tudo para que uma abelha sequer não viesse beijar os seus lábios vermelhos confundindo-os com uma flor de pequiá.

Quando as duas mocas atravessaram a esplanada, Álvaro passeava junto da escada.

Cecília saudou de passagem com um sorriso ao jovem cavalheiro; e desceu ligeiramente seguida por sua prima.

Álvaro que tinha procurado ler-lhe nos olhos e no rosto o perdão de sua loucura da véspera, e nada havia percebido que acabasse com o seu receio, quis seguir a moça, e falar-lhe.

Voltou-se para ver se alguém estava ali que reparasse no que ia fazer, e deu com o italiano que a dois passos dele o olhava com um dos seus sorrisos sarcásticos.

—Bom dia, sr. cavalheiro.

Os dois inimigos trocaram um olhar que se cruzara como laminas de aço que rogassem uma na outra.

Nesse momento Peri se aproximava lentamente deles, carregando uma das pistolas que Cecília lhe havia dado há alguns minutos.

O índio parou, e com um ligeiro sorriso de uma expressão indefinível tomou as pistolas pelo cano e apresentou-as uma a Álvaro e outra a Loredano.

Ambos compreenderam o gesto e o sorriso; ambos sentiram que tinham cometido uma imprudência, e que o espírito perspicaz do selvagem havia lido nos seus olhos um ódio profundo, e talvez a causa desse ódio.

Voltaram-se fingindo não ter visto o movimento.

Peri levantou os ombros e metendo as pistolas na cinta passou entre eles com a cabeça alta, o olhar sobranceiro, e acompanhou sua senhora.

 

 

Capítulo XI - No Banho

Descendo a escada de pedras da esplanada Cecília perguntava à sua prima:

—Dize-me uma coisa, Isabel; por que é que tu não falas ao Sr. Álvaro?

Isabel estremeceu.

—Tenho reparado, continuou a menina, que nem mesmo respondes à cortesia que ele nos faz.

 

—Que ele te faz, Cecília, replicou a moça docemente.

—Confessa que não gostas dele. Tens-lhe antipatia?

A moça calou-se.

—Não falas?... olha que então vou pensar outra coisa! continuou Cecília galanteando.

Isabel empalideceu; e levando a mão ao coração para comprimir as pulsações violentas, fez um esforço supremo e arrancou algumas palavras que pareciam queimar-lhe os lábios:

—Bem sabes que o aborreço!...

Cecília não viu a alteração da fisionomia de sua prima, porque tendo chegado à baixa nesse momento, esquecera a conversa, e começara a brincar com uma alegria infantil sobre a relva.

Mas ainda que visse a perturbação da moça e o choque que ela tinha sentido, decerto atribuiria isso a qualquer outro motivo, menos ao verdadeiro.

A afeição que tinha a Álvaro lhe parecia tão inocente, tão natural, que nunca se lembrara que devia um dia passar daquilo que era, isto é, de um prazer que fazia sorrir, e de um enleio que fazia corar.

Esse amor pois, se era amor, não podia conhecer o que se passava na alma de Isabel; não podia compreender a sublime mentira que os lábios da moça acabavam de proferir.

Quanto a Isabel, temendo trair o seu segredo, tinha arrancado do seu coração cheio de amor, essa palavra de ódio, que para ela era quase uma blasfêmia.

Mas antes isso do que revelar o que se passava em sua alma; esse mistério, essa ignorância que envolvia o seu amor, e o escondia a todos os olhos, tinha para ela uma voluptuosidade inexprimível.

Podia assim fitar horas e horas o moço, sem que ele o percebesse, sem o incomodar talvez com a prece muda do olhar suplicante; podia rever-se em sua alma sem que um sorriso de desdém ou de zombaria a fizesse sofrer.

O sol vinha nascendo.

O seu primeiro raio espreguiçava-se ainda pelo céu anilado, e ia beijar as brancas nuvenzinhas que corriam ao seu encontro.

Apenas a luz branda e suave da manhã esclarecia a terra e surpreendia as sombras indolentes que dormiam sob as copas das árvores.

Era a hora em que o cacto, a flor da noite, fechava o seu cálice cheio das gotas de orvalho com que destila o seu perfume, temendo que o sol crestasse a alvura diáfana de suas pétalas.

Cecília com a sua graça de menina travessa corria sobre a relva ainda úmida colhendo uma gracíola azul que se embalançava sobre a haste, ou um malvaísco que abria os lindos botões escarlates.

Tudo para ela tinha um encanto inexprimível; as lágrimas da noite que tremiam como brilhantes das folhas das palmeiras; a borboleta que ainda com as asas entorpecidas esperava o calor do sol para reanimar-se; a viuvinha que escondida na ramagem avisava o companheiro que o dia vinha raiando: tudo lhe fazia soltar um grito de surpresa e de prazer.

Enquanto a menina brincava assim pela várzea, Peri, que a seguia de longe, parou de repente tomado por uma idéia que lhe fez correr pelo corpo um calafrio; lembrara-se do tigre.

De um pulo sumiu-se numa grande moita de arvoredo que se elevava a alguns passos; ouviu-se um rugido abafado, um grande farfalhar de folhas que se espedaçavam, e o índio apareceu.

Cecília tinha-se voltado um pouco trêmula:

—Que é isto, Peri?

—Nada, senhora.

—E assim que prometeste estar quieto?

—Ceci não se há de zangar mais.

—Que queres tu dizer?

—Peri sabe! respondeu o índio sorrindo.

Na véspera tinha provocado uma luta espantosa para domar e vencer um animal feroz, e deitá-lo submisso e inofensivo aos pés da moça, julgando que isso lhe causava um prazer.

Agora estremecendo com o susto que sua senhora podia sofrer, destruíra em um instante essa ação de heroísmo, sem proferir uma palavra que a revelasse. Bastava que ele soubesse o que tinha feito, e o que todos deviam ignorar; bastava que sua alma sentisse o orgulho da nobre dedicação que se expandia no sorriso de seus lábios.

As moças que estavam bem longe de saber até que ponto tinha chegado a loucura de Peri, e que não julgavam possível que um homem pudesse fazer o que ele tinha feito, não compreenderam nem a frase, nem o sorriso.

Cecília tinha chegado a uma latada de jasmineiros que havia à borda dágua, e que lhe servia de casa de banho; era um dos trabalhos do índio, que o havia arranjado com aquele cuidado e esmero que punha em satisfazer as vontades da menina.

Peri já tinha ganho a margem do rio, e estava longe; Isabel sentou-se na relva.

Então afastando as ramas dos jasmineiros que ocultavam inteiramente a entrada, Cecília penetrou naquele pequeno pavilhão de verdura, e examinou se as folhas estavam bem embastidas, se não havia alguma fresta por onde o olhar do dia penetrasse.

A inocente menina tinha vergonha até do raio de luz que podia vir espiar o tesouros de beleza que ocultava a cambraia de suas roupagens.

Assim, foi depois desse exame escrupuloso, e ainda corando de si mesma, que começou o seu vestuário de banho. Mas quando o corpinho da anágua caindo, descobriu suas alvas espáduas e seu colo paro e suave, a menina quase morreu de pejo e de susto. Um passarinho, escondido entre as folhas, um gárrulo travesso e malicioso, gritara distintamente:—Bem-te-vi!

Cecília riu-se do susto que tivera, e acabou o seu vestuário de banho que a cobria toda, deixando apenas nus os braços e o pezinho de menina.

Atirou-se à água como um passarinho; Isabel que a acompanhara por comprazer ficou sentada à beira do rio.

Como Cecília estava bela nadando sobre as águas límpidas da corrente, com seus cabelos louros soltos, e os braços alvos que se curvavam graciosamente para imprimir ao corpo um doce movimento! Parecia uma dessas garças brancas, ou colhereiras de rósea cor que deslizam mansamente à flor do lago, nas tardes serenas, espelhando-se no cristal das águas.

Às vezes a linda menina se deitava de braços e sorrindo ao céu azul ia levada pela corrente; ou perseguia as jaçanãs e marrecas que fugiam diante dela. Outras vezes Peri que estava distante, do lado superior do rio, colhia alguma flor parasita que deitava sobre um barquinho feito de uma casca de pau e que vinha trazido pela correnteza.

A menina perseguia o barquinho a nado, apanhava a flor, e ia oferecê-la na pontinha dos dedos a Isabel, que desfolhando-a tristemente, murmurava as palavras cabalísticas com que o coração procura iludir-se.

Em vez porém de consultar o presente, perguntava o futuro, porque sabia que o presente não tinha esperanças para ela, e se a flor dissesse o contrário mentia.

Havia meia hora que Cecília estava no banho, quando Peri, que colocado sobre uma árvore não deixava de lançar o olhar ao redor de si, viu na margem oposta as guaximas se agitarem.

A ondulação produzida nos arbustos foi-se estendendo como um caracol e aproximando-se do lagar onde a moça se banhava, até que parou detrás de umas grandes pedras que havia à beira do rio.

Do primeiro lanço de olhos o índio conheceu que o largo sulco traçado entre as hastes verdes do arvoredo não podia deixar de ser produzido por um animal de grande corpulência.

Seguiu rapidamente pelos ramos das árvores, atravessou o rio sobre essa ponte aérea, e conseguiu, escondido pelas folhas, colocar-se perpendicularmente ao lagar onde ainda se fazia sentir a oscilação dos arbustos.

Viu então sentados entre as guaximas dois selvagens, mal cobertos por uma tanga de penas amarelas, que com o arco esticado e a flecha a partir, esperavam que Cecília passasse diante da fresta que formavam as pedras para despedirem o tiro.

E a menina descuidada e tranqüila já tinha estendido o braço e ferindo a água passava sorrindo por diante da morte que a ameaçava.

Se se tratasse de sua vida, Peri teria sangue-frio; mas Cecília corria um perigo, e portanto não refletiu, não calculou.

Deixou-se cair como uma pedra do alto da árvore; as duas flechas que partiam, uma cravou-se-lhe no ombro, a outra rogando-lhe pelos cabelos mudou de direção.

Ergueu-se então, e sem mesmo dar-se ao trabalho de arrancar a seta, de um só movimento tomou à cinta as pistolas que tinha recebido de sua senhora, e despedaçou a cabeça dos selvagens.

Ouviram-se dois gritos de susto que partiam da margem oposta, e quase logo a voz trêmula e colérica de Cecília que chamava:

—Peri!...

Ele beijou as pistolas ainda fumegantes e ia responder, quando a dois passos surgiu de entre a touça o vulto de uma índia que sumiu-se ligeiramente no mato.

Enfiou um olhar pela fresta e julgando Cecília já fora do banho e em lugar seguro, lançou-se atrás da índia a que já lhe levava um grande avanço.

Uma larga fita vermelha que escapava da ferida tingia a sua alva túnica de algodão; Peri sentiu-se vacilar de repente e apertou com desespero o coração como para reter o sangue que espadanava.

Foi um momento de luta terrível entre o espírito e a matéria, entre a força da vontade e o poder da natureza.

O corpo desfalecia, os joelhos se dobravam, e Peri erguendo os braços como para agarrar-se à cúpula das árvores, estorcendo os músculos para manter-se em pé, lutava debalde com a fraqueza que se apoderava dele.

Debateu-se um momento contra a poderosa gravitação que o vergava para a terra; mas era homem, e tinha de ceder à lei da criação. Entretanto sucumbindo o valente índio resistia sempre; e vencido parecia querer lutar ainda.

Não caiu, não; quando a força lhe faltou de todo, foi-se lentamente retraindo e tocou a terra com os joelhos.

Mas então lembrou-se de Cecília, de sua senhora a quem tinha de vingar, e para quem devia viver a fim de salvá-la, e de velar sobre ela. Fez um esforço supremo: contraindo-se conseguiu reerguer-se; deu dois passos vacilantes, girou no ar e foi bater de encontro a uma árvore com a qual se abraçou convulsivamente.

Era uma cabuíba de alta grandeza que se elevava pelo cimo da floresta, e de cujo tronco cinzento borbulhava um óleo cor de opala que desfiava em lágrimas.

O suave aroma que recendia dessas gotas fez o índio abrir os olhos amortecidos, que se iluminaram de uma brilhante irradiação de felicidade. Colou ardentemente os lábios no tronco, e sorveu o óleo, que entrou no seu seio como um bálsamo poderoso.

Sentiu-se renascer.

Estendeu o óleo sobre a ferida, estancou o sangue e respirou.

Estava salvo.

 

 

Capítulo XII - A Onça

Voltemos à casa.

Loredano, depois do movimento de Peri, tinha acompanhado com os olhos a Álvaro, o qual seguia pela borda da esplanada para ver Cecília que dirigia-se ao rio.

Apenas o moço dobrou o ângulo que formava o rochedo, o italiano desceu a ladeira rapidamente, e meteu-se pelo mato.

Poucos instantes se tinham passado quando Rui Soeiro apareceu na esplanada, ganhou a baixa, e entranhou-se por sua vez na floresta.

Bento Simões imitou-o com pequeno intervalo, e guiando-se por alguns talhos frescos que viu nas árvores, tomou a mesma direção.

O pátio ficou deserto.

Decorreu cerca de meia hora: a casa tinha aberto todas as suas janelas para receber o ar puro da manhã, e as emanações saudáveis dos campos; um ligeiro penacho de fumo alvadio coroava o tubo da chaminé, anunciando que os trabalhos caseiros haviam começado.

De repente ouviu-se um grito no interior da habitação; todas as portas e janelas do edifício fecharam-se com um estrépito e uma rapidez, como se um inimigo caísse de assalto.

Pela fresta de uma janela entreaberta apareceu o rosto de D. Lauriana, pálida, e com os cabelos sem estarem riçados, o que era uma coisa extraordinária.

—Aires Gomes!... O escudeiro!... Chamem Aires Gomes! Que venha já! gritou a dama.

A janela fechou-se de novo com o ferrolho.

A personagem que já conhecemos pouco tardou, e atravessando a esplanada dirigiu-se à casa, sem compreender a razão por que àquela hora com o sol alto ainda toda a habitação parecia dormir.

—Fizestes-me chamar! disse ele chegando-se à janela.

—Sim; estais armado? perguntou D. Lauriana por detrás da porta.

—Tenho a minha espada; mas que novidade há?

A fisionomia decomposta de D. Lauriana apareceu de novo na fresta da janela.

—A onça!... Aires Gomes! A onça!...

O escudeiro deu um salto prodigioso julgando que o animal de que se falava ia saltar-lhe ao cangote, e sacou da espada pondo-se em guarda.

A dama vendo o movimento do escudeiro supôs que a onça atirava-se à janela, e caiu de joelhos murmurando uma oração ao santo advogado contra as feras.

Alguns minutos se passaram assim; D. Lauriana rezando; e Aires Gomes rodando no pátio como um corrupio, com receio de que a onça não o atacasse pelas costas, o que além de ser uma vergonha para um homem de armas da sua têmpera, seria um pouco desagradável para sua saúde.

Por fim, de pulo em pulo o escudeiro conseguiu ganhar de novo a parede do edifício e encostar-se nela, o que o tranqüilizou completamente; pela frente não havia inimigo que o fizesse pestanejar.

Então batendo com a folha da espada na ombreira da janela disse em voz alta:

—Explicar-me-eis que onça é essa de que falais, Sra. D. Lauriana; ou estou cego, ou não vejo aqui sombra de semelhante animal.

—Estais bem certo disso, Aires Gomes? disse a dama reerguendo-se.

—Se estou certo! Assegurai-vos com os vossos próprios olhos.

—É verdade! Mas em alguma parte há de estar!

—E por que quereis vós à fina força que aqui esteja uma onça, Sra. D. Lauriana? disse o escudeiro um tanto impacientado.

—Pois não sabeis! exclamou a dama.

—O quê, senhora?

—Aquele bugre endemoninhado não se lembrou de trazer ontem uma onça viva para a casa!

—Quem, o perro do cacique?

—E quem mais senão aquele cão tinhoso!

—É das que ele costuma fazer!

—Viu-se já uma coisa semelhante, Aires Gomes!

—Mas a culpa não tem ele!

—Quero ver se o Sr. Mariz ainda teima em guardar essa boa jóia.

—E que é feito da fera, Sra. D. Lauriana?

—Algures deve estar. Procurai-a, Aires; corram tudo, matem-na, e tragam-me aqui.

—É dito e feito, respondeu o escudeiro correndo tanto quanto lhe permitiam as suas botas de couro de raposa.

Com pouca demora cerca de vinte aventureiros armados desceram da esplanada.

Aires Gomes marchava na frente com um enorme chuço na mão direita, a espada na mão esquerda, e uma faca atravessada nos dentes.

Depois de percorrerem quase todo o vale e baterem o arvoredo, voltavam, quando o escudeiro estacou de repente e gritou:

—Ei-la, rapazes! Fogo antes que faça o pulo!

Com efeito, por entre a ramagem das árvores via-se a pele negra e marchetada do tigre e os olhos felinos que brilhavam com o seu reflexo pálido.

Os aventureiros levaram o mosquete à face, mas no momento de puxarem o gatilho, largaram todos uma risada homérica, e abaixaram as armas.

—Que é lá isso? Têm medo?

E o destemido escudeiro sem se importar com os outros, mergulhou por sob as árvores e apresentou-se arrogante em face do tigre.

Aí porém caiu-lhe o queixo de pasmo e de surpresa.

A onça embalava-se a um galho suspensa pelo pescoço e enforcada pelo laço que apertando-se com o seu próprio peso, a estrangulara.

Enquanto viva, um só homem bastara para trazê-la desde o Paraíba até à floresta, onde tinha sido caçada, e da floresta até àquele lugar onde havia expirado.

Era depois de morta que fazia todo aquele espalhafato; que punha em armas vinte homens valentes e corajosos; e produzia uma revolução na casa de D. Lauriana.

Passado o primeiro momento de admiração, Aires Gomes cortou a corda e arrastando o animal foi apresentá-lo à dama.

Depois que de fora lhe asseguraram que o tigre estava bem morto, entreabriu-se a porta, e D. Lauriana ainda toda arrepiada olhou estremecendo o corpo da fera.

—Deixe-o aí mesmo. O Sr. D. Antônio há de vê-lo com seus olhos!

Era o corpo de delito, sobre o qual pretendia basear o libelo acusatório que ia fulminar contra Peri.

Por diferentes vezes a dama tinha procurado persuadir seu marido a expulsar o índio que ela não podia sofrer, e cuja presença bastava para causar-lhe um faniquito.

Mas todos os seus esforços tinham sido baldados; o fidalgo com a sua lealdade e o cavalheirismo apreciava o caráter de Peri, e via nele embora selvagem, um homem de sentimentos nobres e de alma grande. Como pai de família estimava o índio pela circunstância a que já aludimos de ter salvado sua filha, circunstância que mais tarde se explicará.

Desta vez porém, D. Lauriana esperava vencer; e julgava impossível que seu marido não punisse severamente esse crime abominável de um homem que ia ao mato amarrar uma onça e trazê-la viva para casa. Que importava que ele tivesse salvado a vida de uma pessoa, se punha em risco a existência de toda a família, e sobretudo a dela?

Terminava esta reflexão justamente no momento em que D. Antônio de Mariz assomava à porta.

—Dir-me-eis, senhora, que rumor é este, e qual a causa?

—Aí a tendes! exclamou D. Lauriana apontando para a onça com um gesto soberbo.

—Lindo animal! disse o fidalgo adiantando-se e tocando com o pé as presas do tigre.

—Ah! achais lindo! Inda mais achareis quando souberdes quem o trouxe!...

—Deve ter sido um hábil caçador, disse D. Antônio contemplando a fera com esse prazer de montearia que era um dom dos fidalgos daquele tempo: não tem o sinal de uma só ferida!

—E obra daquele excomungado caboclo, Sr. Mariz! respondeu D. Lauriana preparando-se para o ataque.

—Ah! exclamou o fidalgo rindo; é a caça que Peri ontem perseguia, e de que nos falou Álvaro!

—Sim; e que trouxe viva como se fosse alguma paca!

—Ah! trouxe viva! Mas não vedes que é impossível?

—Como impossível se Aires Gomes vem de acabá-la agora mesmo! Aires Gomes quis retrucar; mas a dama impôs-lhe silêncio com um gesto.

O fidalgo curvou-se e segurando o animal pelas orelhas ergueu-o; ao passo que examinava o corpo para ver se lhe descobria alguma bala, notou que tinha as patas e as mandíbulas ligadas.

—É verdade! murmurou ele; devia estar viva há coisa de uma hora; ainda conserva o calor.

D. Lauriana deixou que seu marido se fartasse de contemplar o animal, certa de que as reflexões que esta vista produziria não podiam deixar de ser favorável ao seu plano.

Quando julgou que tinha chegado o momento, deu dois passos, arranjou a cauda do seu vestido, e dando um certo descaído ao corpo, dirigiu-se a D. Antônio:

 

Bom é que vejais, Sr. Mariz, que nunca me iludo! Que de vezes vos hei dito que fazíeis mal em conservar esse bugre? Não queríeis acreditar: tínheis um fraco inexplicável pelo pagão. Pois bem...

A dama tomou um tom oratório e acentuou a palavra com um gesto enérgico apontando para o animal morto:

—Aí tendes o pago. Toda a vossa família ameaçada! Vós mesmo que podíeis sair desapercebido; vossa filha que ignorando o perigo que corria, foi banhar-se, e podia a esta hora estar pasto de feras.

O fidalgo estremeceu à idéia do perigo que correra sua filha e ia precipitar-se; mas ouviu um doce murmúrio de vozes que parecia um chilrear de sais: eram as duas moças que subiam a ladeira.

D. Lauriana sorria-se do seu triunfo.

—E se fosse só isto? continuou ela. Porém não pára aqui: amanhã vereis que nos traz algum jacaré, depois uma cascavel ou uma jibóia; encher-nos-á a casa de cobras e lacraus. Seremos aqui devorados vivos, porque a um bugre arrenegado deu-lhe na cabeça fazer as suas bruxarias!

—Exagerais muito também, D. Lauriana. É certo que Peri fez uma selvajaria; mas não há razão para que receemos tanto. Merece uma reprimenda: lha darei e forte. Não continuará.

—Se o conhecêsseis como eu, Sr. Mariz! É bugre e basta! Podeis ralhar-lhe quanto quiserdes; ele o fará mesmo por pirraça!

—Prevenções vossas, que não partilho.

A dama conheceu que ia perdendo terreno; e resolveu dar o golpe decisivo; amaciou a voz, e tomou um tom choroso.

—Fazei o que vos aprouver! Sois homem, e não tendes medo de nada! Mas eu, continuou arrepiando-se, não poderei mais dormir, só com a idéia de que uma jararaca sobe-me à cama; de dia a todo momento julgarei que algum gato montês vai saltar-me pela janela; que a minha roupa está cheia de lagartas de fogo! Não há forças que resistam a semelhante martírio!

D. Antônio começou a refletir seriamente sobre o que dizia sua mulher, e a pensar no sem-número de faniquitos, desmaios e arrufos que ia produzir o terror pânico justificado pelo fato do índio; contudo conservava ainda a esperança de conseguir acalmá-la e dissuadi-la.

D. Lauriana espiava o efeito do seu último ataque. Contava vencer.

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