Capítulo XIII: Revelação
Isabel e Cecília que voltavam do banho conversando, aproximaram-se da porta, não sem algum susto do animal; susto que se desfez com o sorriso do velho fidalgo, revendo-se na beleza de sua filha.
Com efeito, Cecília estava nesse momento de uma formosura que fascinava.
Tinha os cabelos ainda úmidos, dos quais se escapava de vez em quando um aljôfar que ia perder-se na covinha dos seios cobertos pelo linho do roupão; a pele fresca como se ondas de leite corressem pelos seus ombros; as faces brilhantes como dois cardos rosas que se abrem ao pôr-do-sol.
As duas meninas falavam com alguma vivacidade; mas ao aproximarem-se da porta, Cecília que ia um pouco adiante voltou-se para sua prima na pontinha dos pés, e com um arzinho petulante levou o dedo aos lábios recomendando silêncio.
—Sabes, Cecília, que tua mãe está muito zangada com Peri? disse D. Antônio tomando o rostinho mimoso de sua filha e beijando-a na fronte.
—Por quê, meu pai? Fez ele alguma coisa?
—Uma das suas, e de que já sabes parte.
—E eu vou contar-te o resto, atalhou D. Lauriana, tocando com a mão o braço de sua filha.
E de fato apresentou com as cores mais negras, e com a ênfase mais dramática, não só o risco iminente que na sua opinião tinha corrido a casa inteira, mas os perigos que ameaçavam ainda a paz e sossego da família.
Referiu que, se por um milagre a sua caseira não tivesse há coisa de uma hora chegado a esplanada e visto o índio fazendo partes diabólicas com o tigre ao qual naturalmente ensinava a maneira de penetrar na casa, todos àquela hora estariam defuntos.
Cecília empalideceu, lembrando-se do descuido e alegria com que atravessara o vale e se banhara; Isabel conservou-se calma, mas seus olhos brilhavam.
—Assim, concluiu peremptoriamente D. Lauriana, não é concebível que continuemos com semelhante praga em casa.
—Que dizeis, minha mãe? exclamou Cecília assustada: pretendeis mandá-lo embora?
—Sem dúvida: essa casta de gente, que nem gente é, só pode viver bem nos matos.
—Mas ele nos ama tanto! Tem feito tanto por nós, não é verdade, meu pai? disse a menina voltando-se para o fidalgo.
D. Antônio respondeu à sua filha por um sorriso que a sossegou:
—Vós ralhareis com ele, meu pai; eu ficarei agastada, continuou Cecília, e ele se emendará e não fará mais outra.
—E a de há pouco? replicou Isabel dirigindo-se a Cecília.
D. Lauriana, que via a sua causa mal parada depois da chegada das moças, apesar da repugnância que sentia por Isabel, conheceu que tinha nela um aliado; e dirigiu-lhe a palavra, o que sucedia uma vez por semana.
—Chega-te, menina; o que é que dizes ter acontecido há pouco?
—É também um perigo que correu Cecília.
—Qual! minha mãe; foi mais susto de Isabel do que outra coisa.
—Susto, sim; mas pelo que vi...
—Conta-me isso; e tu, Cecília, fica ai sossegada.
A menina pelo respeito que tinha a sua mãe não se animou a dizer mais uma palavra; porém aproveitando-se do movimento que fez D. Lauriana ao voltar-se para ouvir a Isabel, abanou a cabeça à sua prima pedindo-lhe que nada dissesse.
A moça fez que não viu o gesto e respondeu à sua tia:
—Cecília estava se banhando e eu tinha ficado à beira do rio: daí a algum tempo vejo Peri que passava ao longe pelo galho de uma árvore. Ele sumiu-se, e de repente uma seta partida daquele lugar veio cair a dois passos de minha prima!
—Ouça cá, Sr. Mariz! exclamou D. Lauriana; ouça as estripulias do capeta!
—No mesmo instante, continuou Isabel, ouvimos dois tiros de pistola, que ainda mais nos assustaram, porque decerto foram apontados também para nosso lado.
—Senhor Deus! É pior do que uma judiaria! Mas quem deu pistolas a esse bugio?
—Fui eu, minha mãe, respondeu timidamente Cecília.
—Melhor seria que rezasses as tuas contas. Era bem-feito que com elas mesmo... Senhor Deus! perdoai-me!
D. Antônio tinha ouvido as palavras de Isabel, apesar de conservar-se a alguma distância; o rosto do fidalgo tomara uma expressão grave.
Fez um ligeiro aceno a Cecília, e afastou-se com ela em ar de quem passeava pela esplanada:
—O que diz tua prima é verdade?
—É, meu pai; mas estou certa que Peri não o fez por maldade.
—Contudo, replicou o fidalgo, isto pode renovar-se; por outro lado tua mãe está atemorizada; assim, o melhor é afastá-lo.
—Ele vai sentir muito!
—E eu e tu também, porque o estimamos; mas não seremos ingratos; eu pagarei a tua e a minha dívida de gratidão; deixa isto ao meu cuidado.
—Sim, meu pai! exclamou a menina com um olhar úmido de reconhecimento e de admiração: Sim! Vós que sabeis compreender tudo que é nobre!
—Como tu, minha Cecília! respondeu o fidalgo acariciando-a.
—Oh! eu aprendi no vosso coração, e nas vossas menores ações.
D. Antônio abraçou-a.
—Ah! tenho uma coisa a pedir-vos!
—Dize: há muito que não me pedes nada, e eu já tenho queixa disso.
—Mandareis conservar este animal. Sim?
—Desde que o desejas...
—Será uma lembrança que teremos de Peri.
—Para ti, que para mim a melhor lembrança és tu. Se não fosse ele, podia eu agora apertar-te nos meus braços?
—Sabeis que tenho vontade de chorar só de pensar que ele se vai?
—É natural, minha filha, as lágrimas são um bálsamo que Deus deu à fraqueza da mulher, e que negou à força do homem.
O fidalgo separou-se de sua filha, e chegou-se à porta onde se achavam ainda sua mulher, Isabel e Aires Gomes.
—Que decidistes, Sr. D. Antônio? perguntou a dama.
—Decidi fazer-vos a vontade, para sossego vosso e descanso meu. Hoje mesmo ou amanhã Peri deixará esta casa; mas enquanto ele aqui estiver, eu não quero, disse carregando ligeiramente sobre aquele monossílabo, que se lhe diga uma palavra sequer de desagrado. Peri sai desta casa porque lho peço, e não porque isto seja-lhe ordenado por alguém. Entendeis, minha mulher?
D. Lauriana, que compreendia o que havia de energia e resolução naquela imperceptível entonação dada pelo fidalgo a uma simples frase, inclinou a cabeça.
—Incumbo-me de falar eu mesmo a Peri! Dir-lhe-ás de minha parte, Aires Gomes, que venha ter comigo.
O escudeiro inclinou-se; o fidalgo que se ia retirando, voltou-se:
—Ah! esquecia-me. Mandarás encher este lindo animal que desejo conservar; será uma curiosidade para o meu gabinete de armas.
D. Lauriana fez à sorrelfa uma careta de nojo.
—E servirá para que minha mulher se habitue com sua vista, e tenha menos medo de onças.
D. Antônio afastou-se.
A dama pôde então ir riçar os seus cabelos, e preparar o seu toucado domingueiro; tinha alcançado uma importante vitoria. Peri ia finalmente ser expulso dessa casa, onde na sua opinião nunca devera ter entrado.
Enquanto isto passava, Cecília, ao separar-se de seu pai, voltara o canto da casa para entrar no jardim, e encontrara Álvaro que passeava inquieto e pensativo.
—D. Cecília! disse o moço.
—Oh! deixai-me Sr. Álvaro! respondeu Cecília sem parar.
—Em que vos ofendi eu para que me trateis assim?
—Desculpai-me, estou triste; em nada me ofendestes.
—É que quando se cometeu uma falta...
—Uma falta? perguntou a menina admirada.
—Sim! respondeu o moço abaixando os olhos.
—E que falta cometestes vós, Sr. Álvaro?
—Desobedeci-vos.
—Ah! é grave! disse a moça com um meio sorriso.
—Não zombeis, D. Cecília! Se soubésseis que inquietações isto me tem feito passar! Arrependo-me mil vezes do que pratiquei, e contudo parece-me que era capaz de praticá-lo de novo.
—Mas, Sr. Álvaro, esqueceis que falais de uma coisa que ignoro; sei apenas que se trata de uma desobediência!
—Lembrai-vos que ontem me mandastes guardar um objeto, que...
—Sim, atalhou a moça corando; um objeto que...
—Que vos pertencia, e que eu contra vontade vossa restituí.
—Como! que dizeis?
—Oh! perdoai! foi uma ousadia! mas...
—Mas enfim eu não entendo nem uma palavra de tudo isto! exclamou a moça com um movimento de impaciência.
Álvaro vencendo enfim o seu acanhamento contou rapidamente o que tinha feito na véspera à noite.
Cecília ouvindo-o, ia-se tornando séria.
—Sr. Álvaro, disse ela num tom de exprobação, fizestes mal em praticar semelhante ação, muito mal. Que ninguém o saiba ao menos.
—Eu juro pela minha honra!
—Não basta; vis mesmo desfareis o que fizestes. Não abrirei aquela janela enquanto houver ali um objeto que não me veio de meu pai, e em que não posso tocar.
—Senhora!... balbuciou o moço pálido e abatido.
Cecília levantou os olhos, e viu no rosto de Álvaro tanta amargura e desespero, que sentiu-se comovida.
—Não me acuseis do que sucede, disse ela com a voz meiga, a culpa é vossa.
—Eu o sinto; e não me queixo.
—Bem vistes que não podendo aceitar, pedi que a conservásseis como uma lembrança.
—Oh! eu a conservarei ainda: ela me ensinará a expiar a minha falta, e ma recordará sempre.
—Será agora uma triste recordação.
—E posso-as eu ter alegres!
—Quem sabe! disse Cecília desentrançando dos seus cabelos louros um jasmim; é tão doce esperar!
Voltando-se para esconder o rubor de suas faces, Cecília viu perto a Isabel que devorava esta cena com um olhar ardente.
A menina soltou um grito de susto e entrou rapidamente no jardim, Álvaro apanhou no ar a pequena flor que se escapara dos dedos de Cecília e beijou-a julgando que ninguém ali estava. Quando o cavalheiro deu com os olhos na moça, ficou tão perturbado que deixou cair o jasmim sem sentir.
Isabel apanhou-o; e apresentando-o a Álvaro, disse com um acento de voz inimitável:
—É também uma restituição!
Álvaro empalideceu.
A moça, trêmula, passou diante dele, e entrou no quarto de sua prima.
Cecília vendo chegar Isabel corou e não se animou a levantar os olhos, lembrando-se do que ela tinha visto e ouvido: pela primeira vez a inocente menina conhecia que havia na sua pura afeição alguma coisa que se escondia aos olhos dos outros.
Isabel, entrando no aposento da prima ao qual fora arrastada por um sentimento irresistível, arrependera-se imediatamente; a perturbação que sentia era tão grande, que temeu trair-se; encostou-se no leito defronte de Cecília, muda e com os olhos cravados no chão.
Assim passou-se um longo intervalo; depois as duas moças quase ao mesmo tempo ergueram a cabeça; e lançaram um olhar para a janela; seus olhos se encontraram, e ambas coraram ainda mais.
Cecília revoltou-se; a menina alegre e travessa que conservava num cantinho do coração, sob os risos e as graças, o germe da firmeza de caráter que distinguia seu pai, sentiu-se ofendida por se ver obrigada a corar de vergonha diante de outrem, como se tivesse cometido uma falta.
Revestiu-se de coragem e tomou uma resolução cuja energia se desenhava em um movimento imperceptível das sobrancelhas.
—Isabel, abre esta janela.
A moça estremeceu como se uma faísca elétrica tivesse abalado o seu corpo; hesitou, mas por fim atravessou o aposento.
Dois olhares ávidos, ardentes, caíram sobre a janela no momento em que se abriu.
Nada havia ali.
A emoção que teve Isabel foi tão forte, que involuntariamente voltou-se para sua prima soltando uma exclamação de prazer; sua fisionomia iluminou-se com um desses reflexos divinos, que parecem descer do céu sobre a cabeça da mulher que ama.
Cecília olhava sua prima sem compreendê-la; mas a pouco e pouco a admiração e o espanto desenharam-se no semblante da menina.
—Isabel!...
A moça caiu de joelhos aos pés de Cecília.
Tinha-se traído.
Capítulo XIV - A Índia
Peri apenas sentiu voltarem-lhe as forças, continuou a sua marcha através da floresta.
Por muito tempo seguiu as pegadas da índia pelo meio do mato com uma rapidez e uma certeza incríveis para quem não conhecer a facilidade com que os selvagens percebem os mais fracos vestígios que deixam as pisadas de um animal qualquer.
Um ramo quebrado, o capim abatido, as folhas secas espalhadas e partidas, um galho que ainda se agita, as pérolas do orvalho desfeitas, são aos seus olhos exercitados o mesmo que uma linha traçada na floresta, e que eles seguem sem hesitação.
Uma razão havia para que Peri se encarniçasse assim em perseguir aquela índia inofensiva, e a fazer esforços inauditos a fim de agarrá-la.
Para bem compreender esta razão, é necessário conhecer alguns acontecimentos que se haviam passado nos últimos dias pelas vizinhaças do Paquequer.
No fim da lua das águas, uma tribo de Aimorés descera das eminências da Serra dos Órgãos para fazer a colheita dos frutos e preparar os vinhos, bebidas e diversos alimentos de que costumava fazer provisão.
Uma família dessa tribo trazida pela caça aparecera há dias nas margens do Paraíba; compunha-se de um selvagem, sua mulher, um filho e uma filha.
Esta última era uma bela índia, cuja posse se disputavam todos os guerreiros Aimorés; seu pai, o chefe da tribo, sentia o orgulho de ter uma filha tão formosa, como a mais linda seta do seu arco, ou a mais vistosa pena do seu cocar.
Estamos no domingo.
Na sexta-feira, eram dez horas da manhã, Peri atravessava a mata imitando alegremente o canto do saixê, cujas notas sibiladas ele traduzia pelo doce nome de Ceci.
Ia então em procura desse animal que tão importante papel representa nesta história, especialmente depois de morto; como não o satisfazia qualquer pequeno jaguar, assentara buscar nos seus próprios domínios um dos reis das grandes florestas que corriam ao longo do Paraíba.
Cecília havia dito uma palavra, e ele que não discutia os desejos de sua senhora, tomara o seu arco e seu clavinote e se tinha posto a caminho. Chegava a um pequeno regato, quando um cãozinho felpudo saiu do mato, e logo depois uma índia que deu dois passos e caiu ferida por uma bala.
Peri voltou-se para ver donde partia o tiro, e reconheceu D. Diogo de Mariz que se aproximava lentamente acompanhado por dois aventureiros.
O moço ia atirar a um pássaro, e a índia que passava nesse momento, recebera a carga da espingarda e caíra morta.
O cãozinho lançou-se para sua senhora Uivando, lambendo-lhe as mãos frias e rogando a cabeça pelo corpo ensangüentado como procurando reanimá-la. D. Diogo, apoiado sobre o arcabuz, volvia um olhar de piedade sobre essa moça vitima de um capricho de caçador, que não desejava perder a sua pontaria.
Quanto a seus companheiros, riam-se do acontecimento e divertiam-se a fazer comentários sobre a qualidade de caça que o cavalheiro tinha escolhido.
De repente o cãozinho que acariciava sua senhora morta, ergueu a cabeça, farejou o ar, e partiu como uma flecha.
Peri que tinha sido testemunha muda desta cena, aconselhou a D. Diogo que se recolhesse à casa por prudência, e continuou a sua caminhada.
O espetáculo que acabava de presenciar o entristecera; lembrou-se de sua tribo, de seus irmãos que ele havia abandonado há tanto tempo, e que talvez àquela hora eram também vitimas dos conquistadores de sua terra, onde outrora viviam livres e felizes.
Tendo andado cerca de meia légua, avistou ao longe um fogo na mata; ao redor estavam sentados dois selvagens e uma índia.
O mais velho, de estatura gigantesca, engastava as presas longas e aguçadas da capivara nas pontas de canas silvestres, e afiava numa pedra essa arma terrível. O mais moço enchia de pequenas sementes pretas e vermelhas um fruto oco, ornado de penas e preso a um cabo de dois palmos de comprimento.
A mulher, que ainda era moça, cardava uma porção de algodão cujos flocos alvos e puros caiam sobre uma grande folha que tinha no regaço.
Junto do fogo havia um pequeno vaso vidrado com brasas no qual a índia de vez em quando deitava umas grandes folhas secas, que levantavam grossos novelos de fumo. Então os dois índios por meio de uma taboca aspiravam as baforadas deste fumo, até que os olhos lhes choravam; depois continuavam o seu trabalho.
No momento em que Peri examinava de longe esta cena, o cãozinho saltava no meio do grupo: o animal apenas respirou da corrida em que vinha, puxou com os dentes a trota de penas do índio mais moço, que o atirou a quatro passos com um empurrão.
Aproximou-se então da índia, repetiu o mesmo movimento; e como fosse mal acolhido ainda, saltou sobre o algodão, e mordeu-o: a mulher tomou-o pela coleira de frutos que trazia ao pescoço, sacudiu-o pelas costas, e arranjou as suas pastas; mas estavam tintas de sangue.
Examinou com inquietação o animal; e não o vendo ferido, lançou os olhos ao redor de si e soltou um grito rouco e gutural; os dois índios ergueram a cabeça interrogando com os olhos a causa dessa exclamação.
Por toda resposta, a índia mostrou o sangue que cobria o animal, e pronunciou com a voz cheia de aflição uma palavra de uma língua desconhecida, e que Peri não entendeu.
O índio mais moço saltou pela floresta como um campeiro atrás do cãozinho que lhe servia de guia; o velho e a mulher o seguiram de perto.
Peri compreendeu perfeitamente o que se passava, e seguiu seu caminho pensando que os colonos já deviam àquela hora estar fora do alcance dos selvagens.
Era isto o que o índio tinha visto; o que ele ignorava, o acontecimento do banho lhe revelara claramente.
Os selvagens haviam encontrado o corpo de sua filha, e reconhecido o sinal da bala; por muito tempo procuraram debalde as pisadas dos caçadores, até que no dia seguinte a cavalgata que passava serviu-lhes de guia.
Toda a noite rondaram em torno da habitação, e nessa manhã vendo sair as duas moças, resolveram vingar-se com a aplicação dessa lei de talião que era o único princípio de direito e justiça que reconheciam.
Tinham morto sua filha, era justo que matassem também a filha do seu inimigo; vida por vida, lágrima por lágrima, desgraça por desgraça.
Como pretenderam realizar a sua vingança e o fim que tiveram, já sabemos; os dois selvagens dormiam para sempre nas margens do Paquequer, sem que uma mão amiga lhes viesse dar sepultura.
Agora é fácil conhecer a razão por que Peri perseguia a índia, resto da infeliz família sabia que ela ia direito ter com seus irmãos, e que à primeira palavra que proferisse, toda a tribo se levantaria como um só homem para vingar a morte do seu cacique e a perda da mais bela filha dos Aimorés.
Ora, o índio conhecia a ferocidade desse povo sem pátria e sem religião, que se alimentava de carne humana e vivia como feras, no chão e pelas grutas e cavernas; estremecia só com a idéia de que pudesse vir assaltar a casa de D. Antônio de Mariz.
Era preciso pois exterminar toda a família e não deixar nem um vestígio de sua passagem.
Fazendo estas reflexões, Peri tinha gasto perto de uma hora a percorrer a floresta inutilmente; a índia ganhara um grande avanço durante o tempo em que ele lutava contra o desfalecimento produzido pela ferida. Por fim julgou que o mais prudente era avisar a D. Antônio imediatamente, a fim de que tomasse todas as medidas de prevenção que exigia a iminência do perigo.
Tinha chegado a um campo coberto por algumas moitas de carrascos, que se destacavam aqui e ali sobre um capim áspero e queimado pelo sol.
Apenas o índio deu alguns passos para atravessar o campo, parou fazendo um gesto de surpresa; diante dele arquejava um cãozinho, que reconheceu pela coleira de frutos escarlates que tinha ao pescoço.
Era o mesmo que há dois dias encontrara na floresta, e que naturalmente seguia a índia no momento em que ela fugia; o índio não o tinha visto por causa das guaximas.
O animal mostrava ter sido estrangulado por uma torção tão violenta, que lhe partira a coluna vertebral; entretanto ainda agonizava.
Do primeiro lanço de olhos Peri tinha visto tudo isto, e calculado o que se havia passado.
Aquela morte, pensava ele, não podia ter sido feita senão por uma criatura humana; qualquer outro animal usaria dos dentes ou das garras, e deixaria traços de ferimento.
O cão pertencia à índia; fora ela pois quem o havia estrangulado há bem poucos momentos, porque a fratura do pescoço era de natureza a produzir a morte quase imediatamente.
Mas por que motivo tinha feito essa barbaridade?—Porque, respondia o espírito do índio, ela sabia que era perseguida, e o cão que a não podia acompanhar serviria para denunciá-la.
Apenas formulou este pensamento, Peri deitou-se e auscultou o seio da terra por muito tempo; duas vezes ergueu a cabeça julgando iludir-se, e encostou de novo o ouvido ao chão.
Quando levantou-se, o seu rosto exprimia grande surpresa e admiração; tinha ouvido alguma coisa de que parecia duvidar ainda, como se os seus sentidos o iludissem.
Caminhou para o lado do nascente, auscultando a terra a cada momento, e assim chegou a alguns passos de uma grande touça de cardos que se elevava numa baixa do terreno.
Então colocando-se de encontro ao vento, aproximou-se com toda cautela e ouviu um murmúrio de vozes confusas, e o som de um instrumento que cavava a terra.
Peri aplicou o ouvido e procurou ver o que se passava além, mas era impossível; nem uma aberta, nem uma fresta davam passagem ao som ou ao olhar.
Só quem tem viajado nos sertões e visto esses cardos gigantes, cujas largas palmas crivadas de espinhos se entrelaçam estreitamente formando uma alta muralha de alguns pés de grossura, poderá fazer idéia da barreira impenetrável que cercava por todos os lados as pessoas cuja voz Peri ouvia sem distinguir as palavras.
Entretanto esses homens deviam ter ai entrado por alguma parte; e não podia ser senão pelo galho de uma árvore seca que se estendia sobre os cardos, e ao qual se enroscava um cipó nodoso e forte como uma vide.
Peri estudava a posição, e tratava de descobrir o meio de saber o que se passava atrás daquelas árvores, quando uma voz que julgou reconhecer exclamou:
—Per Dio! ei-la!
O índio estremeceu ouvindo esta voz, e resolveu a todo o custo conhecer o que faziam aqueles homens; pressentiu que havia ali um perigo a conjurar, e um inimigo a combater. Inimigo talvez mais terrível do que os Aimorés, porque se estes eram feras, aquele podia ser a serpente escondida entre as folhas e a relva.
Assim esqueceu tudo, e o seu pensamento concentrou-se numa única idéia, ouvir o que aqueles homens diziam.
Mas por que meio?
Era o que Peri procurava: tinha rodeado a touça aplicando o ouvido, e pareceu-lhe que em um lugar o ruído das vozes e do ferro que continuava a cavar, lhe chegava mais distinto.
O índio abaixou os olhos, que brilhavam de contentamento.
O que produzira essa agradável impressão fora um simples montículo de barro gretado, que se elevava como um pão de açúcar dois palmos acima da terra, e que estava encoberto por folhas de tanchagem.
Era a entrada de um formigueiro, de uma dessas casas subterrâneas construídas pelos pequenos arquitetos que à força de paciência e trabalho minam um campo inteiro, e formam verdadeiras abóbadas debaixo da terra.
Aquele que Peri descobrira tinha sido abandonado pelos seus habitantes, em virtude da enxurrada que penetrara no pequeno subterrâneo.
O índio tirou a sua faca, e cerceando a cúpula dessa torre em miniatura, deixou a descoberto um buraco que penetrava pelo interior da terra, e decerto ia ter à baixa onde estavam reunidas as pessoas que conversavam.
Este buraco tornou-se para ele uma espécie de tubo acústico, que lhe trazia as palavras claras e distintas.
Sentou-se e ouviu.
Capítulo XV: Os Três
Loredano que nessa mesma manhã saíra de casa tão cedo, apenas se entranhou na mata, esperou.
Um quarto de hora depois vieram ter com ele Bento Simões e Rui Soeiro.
Os três seguiram juntos sem dar uma palavra; o italiano caminhava adiante, e os dois aventureiros o acompanhavam trocando de vez em quando um olhar significativo. Por fim Rui Soeiro rompeu o silêncio:
—Não foi decerto para espairecer pelos matos ao romper da alva, que nos fizestes vir aqui, misser Loredano?
—Não, respondeu o italiano laconicamente.
—Mas então desembuchai de uma vez, e não percamos tempo.
—Esperai!
—Que espereis, vos digo eu, atalhou Bento Simões, ides numa batida... Onde nos pretendeis levar nesta marcha?
—Vereis.
—Já que não há meio de vos sacar mais palavra, segui com Deus, misser Loredano.
—Sim, acudiu Rui Soeiro, segui; que nós tornamos por onde viemos.
—Quando estiverdes de vez para falar, nos avisareis.
E os dois aventureiros pararam dispostos a retroceder; o italiano voltou-se com um gesto de desprezo.
—Parvos que sois! disse ele. Se vos parece, revoltai-vos agora que estais em meu poder, e que não tendes outro remédio senão seguir a minha fortuna! Voltai!... Também eu voltarei; mas para denunciar-vos a todos.
Os dois aventureiros empalideceram.
—Não me façais lembrar, Loredano, disse Rui Soeiro abaixando um olhar rápido para o punhal, que há um meio de fechar para sempre as bocas que se obstinam a falar.
—Isto quer dizer, replicou o italiano desdenhosamente, que me mataríeis no caso de que eu vos quisesse denunciar?
—À fé que sim! respondeu Rui Soeiro com um tom que mostrava a sua resolução.
—E eu pela minha parte faria o mesmo! Primeiro está a nossa vida que as vossas venetas, misser italiano.
—E que ganharíeis vós em matar-me? perguntou Loredano sorrindo.
—Essa é melhor! que ganharíamos? Achais que é coisa de pequena valia assegurar a sua existência e o seu descanso?
—Néscios!... disse o italiano cobrindo-os com um olhar de desprezo e de piedade ao mesmo tempo. Não vedes que quando um homem traz um segredo como o meu, a menos que esse homem não seja um truão da vossa laia, ele deve ter tomado as suas precauções contra estes pequenos incidentes?
—Bem vejo que estais armado, e mais vale assim, respondeu Rui Soeiro; será morte antes que homizio.
—Direis melhor, execução, Rui Soeiro! retrucou Bento Simões.
O italiano continuou:
—Não são essas armas que me servirão contra vós; outras tenho eu que mais podem; sabei unicamente que vivo ou morto, a minha voz virá de longe, até mesmo da campa, denunciar-vos e vingar-me.
—Quereis gracejar, misser italiano? A ocasião não é azada.
—A seu tempo vereis se gracejo. Tenho na mão de D. Antônio de Mariz o meu testamento, que ele deve abrir quando me saiba ou me julgue morto. Nesse testamento conto as relações que existem entre nós, e o fim para que trabalhamos.
Os dois aventureiros tornaram-se lívidos como espetros.
—Compreendeis agora, disse Loredano sorrindo, que se me assassinardes, se um acidente qualquer me privar da vida, se me der na cabeça mesmo fugir e fazer supor que morri, estais perdidos irremediavelmente.
Bento Simões ficou paralisado como se uma catalepsia o tivesse fulminado. Rui Soeiro, apesar do violento abalo que sentia, conseguiu com um esforço recobrar a palavra.
—É impossível!... gritou ele. Isso que dizeis é falso. Não há homem que o fizesse.
—Ponde à prova! respondeu o italiano calmo e impassível.
—Ele o fez... estou certo... balbuciou Bento Simões em voz sumida.
—Não, retrucou Rui Soeiro; Satanás não o faria. Vamos, Loredano: confessai que nos enganastes, que quisestes atemorizar-nos?
—Disse a verdade.
—Mentes! gritou o aventureiro desesperado.
O italiano sorriu: tirando a sua espada estendeu a mão sobre a cruz do punho, e disse lentamente deixando cair as palavras uma a uma:
—Por esta cruz e pelo Cristo que nela sofreu; por minha honra neste mundo, e minha alma no outro, juro.
Bento Simões caiu de joelhos esmagado por este juramento, que não deixava de ter alguma solenidade no meio da floresta sombria e silenciosa.
Rui Soeiro, pálido, com os olhos a saltarem-lhe das órbitas, os lábios trêmulos, os cabelos eriçados e os dedos hirtos, parecia a múmia do desespero.
Estendeu os braços para Loredano, e exclamou com a voz trêmula e sufocada:
—Pois vós, Loredano, confiastes a D. Antônio de Mariz um papel onde existe a maquinação infernal que tramastes contra sua família?
—Confiei-o!
—E nesse papel escrevestes que o pretendeis assassinar a ele e a sua mulher, e lançar fogo à casa se preciso for para a realização de vossos intentos?
—Escrevi tudo!
—Tivestes o arrojo de confessar que tencionais roubar sua filha e fazer dela, nobre moça, a barregã de um aventureiro e réprobo como vós?
—Sim!
—E dissestes também, continuou Rui no auge da desesperação, que a outra sua filha nos pertencerá, a nós que jogaremos a sorte para decidir a qual deverá tocar?
—Não me esqueci de nada, e menos desse ponto importante, respondeu o italiano com um sorriso; tudo isso está escrito em um pergaminho, nas mãos de D. Antônio de Mariz. Para sabê-lo, basta que o fidalgo rompa os pingos de cera preta com que mestre Garcia Ferreira, tabelião do Rio de Janeiro, o cerrou na minha penúltima viagem.
Loredano pronunciou estas palavras com a maior calma, contemplando os dois aventureiros pálidos e humilhados diante dele.
Passou-se algum tempo em silêncio.
—Já vedes, disse o italiano, que estais na minha mão; sirva-vos isto de exemplo. Quando uma vez se pôs o pé sobre o precipício, amigos, é preciso caminhar por cima dele, para não rolar e ir ao fundo. Caminhemos pois. Só de uma coisa vos advirto;—de hoje em diante obediência cega e passiva!
Os dois aventureiros não disseram palavra; porém a sua atitude respondia melhor do que mil protestos.
—Agora deixai essa cara triste e consternada. Estou vivo: e D. Antônio é um verdadeiro fidalgo incapaz de abrir um testamento. Criai esperança, confiai em mim, que breve alcançaremos a meta.
A fisionomia de Bento Simões reanimou-se.
—Falai claro uma vez ao menos, retrucou Rui Soeiro.
—Não aqui; segui-me, que vos levarei a um lugar onde conversaremos à vontade.
—Esperai, acudiu Bento Simões; antes de tudo, reparação vos é devida. Há pouco vos ameaçamos; aqui tendes as nossas armas.
—Sim, depois do que se passou, é justo que desconfieis de nós; tomai.
Os dois tiraram os punhais e as espadas.
—Guardai as vossas armas, disse Loredano escarnecendo, servirão para me defenderdes. Eu sei quanto vos é preciosa e cara a minha existência!
Ambos os aventureiros empalideceram, e seguiram o italiano, que depois de uma meia hora de caminho chegou à touça de cardos que já descrevemos.
A um sinal de Loredano, os seus companheiros subiram à árvore, e desceram pelo cipó ao centro dessa área cercada de espinhos, que tinha quando muito três braças de comprimento sobre duas de largura.
De um lado, na quebrada que fazia o terreno, via-se uma espécie de grata ou abóbada, restos desses grandes formigueiros que se encontram pelos nossos campos, já meio aluídos pela chuva. Neste lagar, à sombra de um pequeno arbusto que nascera entre os cardos, sentaram-se os três aventureiros.
—Oh! disse o italiano imediatamente; há algum tempo já que não venho dessas bandas; mas parece-me que ainda deve haver aqui o quer que seja que vos dará no goto.
Reclinou-se, e estendendo o braço pela cava retirou uma botija que ali estava deitada, e que colocou no meio do grupo.
—É de Caparica, mas do bom. Deste cá não vem!
—Diabo! tendes uma adega!... exclamou Bento Simões a quem a vista da botija tinha restituído todo o bom humor.
—A falar a verdade, disse Rui, esperaria tudo, menos ver sair deste buraco uma botija de vinho.
—É para verdes! Como costumo vir a este lugar, onde às vezes passo bem boas soalheiras, precisava ter um companheiro com quem espairecesse.
—E não podíeis achar melhor! disse Bento Simões dando uma empinadela à botija e estalando a língua. Já lhe tinha saudades!
Cada um dos três tomou a sua vez de vinho e a botija voltou ao seu lugar.
—Bom, disse o italiano, agora tratemos do que serve. Prometi, quando vos convidei a seguir-me, que vos faria ricos, muito ricos.
Os dois inclinaram a cabeça.
—A promessa que vos fiz vai-se realizar: a riqueza está aqui perto de nós, podemos tocá-la.
—Onde? perguntaram os aventureiros lançando um olhar ávido em roda.
—Não vai assim também; fala-se figuradamente. Digo que a riqueza está diante de nós, mas para nos apoderarmos dela é preciso...
—O quê? Dizei?
—A seu tempo; agora quero contar-vos uma história.
—Uma história! replicou Rui Soeiro.
—Da carocha? perguntou Bento Simões.
—Não, uma história verídica como uma bula do nosso santo padre. Ouvistes falar algum dia, em um certo Robério Dias?
—Robério Dias... Ah! sei! um tal do São Salvador? disse Rui Soeiro.
—O mesmo, sem tirar nem pôr.
—Vi-o há coisa de oito anos em São Sebastião, donde se passou às Espanhas.
—E sabeis o que ia fazer às Espanhas esse digno descendente de Caramuru, amigo Bento Simões? perguntou o italiano.
—Ouvi rosnar que se tratava de um tesouro fabuloso que contava oferecer a Filipe II, o qual em volta o faria marquês, e grande fidalgo de sua casa.
—E o resto, não vos chegou à noticia?
—Não; nunca mais ouvi falar do tal Robério Dias.
—Pois ouvi lá; chegando a Madri, o homem fez a sua oferta mui lampeiro; e foi recebido na palma das mãos por el-rei Filipe II que, como sabeis, tinha as unhas demasiado longas.
—E cinzou-o como uma raposa que era? acudiu Rui Soeiro.
—Enganai-vos; dessa vez a raposa tornara-se macaco; quis ver o coco antes de pagá-lo.
—E então?
—Então, disse o italiano sorrindo maliciosamente, o coco estava oco.
—Como oco?
—Sim, amigo Rui, tinham-lhe deixado apenas as cascas; felizmente para nós, que vamos lograr o miolo.
—Sois um homem de caixas encouradas, Loredano!
—Dá-se a gente a tratos, e não é possível entender-vos.
—Tenho culpa eu, que não sejais lido na história das coisas de vossa terra?
—Nem todos são mitrados como vós, dom italiano.
—Bom, acabemos de uma vez; o que Robério Dias julgava oferecer em Madri a Filipe II, amigos, está aqui!
E Loredano dizendo estas palavras assentou a mão sobre um seixo que havia ao lado.
Os dois aventureiros olharam-se sem compreender, e duvidando da razão de seu companheiro. Quanto a este, sem se importar com o que eles pensavam, tirou a espada, e depois de desenterrar a pedra, começou a cavar.
Enquanto prosseguia neste trabalho, os dois observando-o passavam alternadamente a botija de vinho, e faziam conjeturas e suposições.
O italiano já cavava há tempo, quando o ferro tocou num objeto duro, que o fez tinir.
—Per Dio, exclamou, ei-la!
Daí a alguns momentos retirava do buraco um desses vasos de barro vidrado, a que os índios chamavam camuci; este era pequeno e fechado por todos os lados.
Loredano tomando-o pelas duas mãos abalou-o e sentiu o imperceptível vascolejar que fazia dentro um objeto qualquer.
—Aqui tendes, disse ele lentamente, o tesouro de Robério Dias; pertence-nos. Um pouco detento, e seremos mais ricos que o sultão de Bagdá, e mais poderosos que o doge de Veneza.
O italiano bateu sobre a pedra com o vaso que se partiu em pedaços.
Os aventureiros, com os olhares incendidos de cobiça, esperando ver correr ondas de ouro, de diamantes e esmeraldas, ficaram estupefatos. Do bojo do vaso saltara apenas um pequeno rolo de pergaminho coberto por um couro avermelhado, e atado em cruz por um fio pardo.
Loredano com a ponta do punhal rompeu o laço, e abrindo rapidamente o pergaminho, mostrou aos aventureiros um rótulo escrito em grandes letras vermelhas.
Rui Soeiro soltou um grito: Bento Simões começou a tremer de prazer, de pasmo e admiração.
Passado um momento, o italiano estendeu a mão para o papel colocado no meio do grupo; seus olhos tomaram uma expressão dura.
—Agora, disse ele com a sua voz vibrante, agora que tendes a riqueza e o poder ao alcance da mão, jurai que o vosso braço não tremerá quando chegar a ocasião; que obedecereis ao meu gesto, à minha palavra, como à lei do destino.
—Juramos!
—Estou cansado de esperar, e resolvido a aproveitar o primeiro ensejo. A mim como chefe, disse o italiano com um sorriso diabólico, devia pertencer D. Antônio de Mariz; eu vo-lo cedo, Rui Soeiro. Bento Simões terá o escudeiro. Eu reclamo para mim Álvaro de Sá, o nobre cavalheiro.
—Aires Gomes vai-se ver numa dança! disse Bento Simões com um aspecto marcial.
—Os mais, se nos incomodarem, irão depois; se nos acompanharem serão bem-vindos. Unicamente vos aviso que aquele que tocar a soleira da porta da filha de D. Antônio de Mariz, é um homem morto; essa é a minha parte na presa! E a parte do leão.
Nesse momento ouviu-se um rumor como se as folhas se tivessem agitado.
Os aventureiros não fizeram reparo, e atribuíram naturalmente ao vento.
—Mais alguns dias, amigos, continuou Loredano, e seremos ricos, nobres, poderosos como um rei. Tu, Bento Simões, serás marquês de Paquequer; tu, Rui Soeiro, duque das Minas; eu... Que serei eu, disse Loredano com um sorriso que iluminou a sua fisionomia inteligente. Eu serei...
Uma palavra partiu do seio da terra, surda e cavernosa, como se uma voz sepulcral a houvesse pronunciado:
—Traidores!...
Os três aventureiros ergueram-se de um só movimento, hirtos e lívidos: pareciam cadáveres surgindo da campa.
Os dois persignaram-se. O italiano suspendeu-se ao ramo da árvore, e lançou um olhar rápido.
Tudo estava em sossego.
O sol a pino derramava um oceano de luz: nenhuma folha se agitava ao sopro da brisa; nenhum inseto saltitava sobre a relva.
O dia no seu esplendor dominava a natureza.
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