Thursday, 25 February 2021

Thursday's Serial: "O Guarani" by José de Alencar (in Portuguese) - VII

Capítulo IV - Ceci

Poucas horas depois que Loredano fora admitido na casa de D. Antônio de Mariz, Cecília chegando à janela do seu quarto viu do lado oposto do rochedo Peri, que a olhava com uma admiração ardente.

O pobre índio tímido e esquivo, não se animava a chegar-se à casa, senão quando via de longe a D. Antônio de Mariz passeando sobre a esplanada; adivinhava que naquela habitação só o coração nobre do velho fidalgo sentia por ele alguma estima.

Havia quatro dias que o selvagem não aparecia; D. Antônio supunha já que ele tivesse voltado com sua tribo para os lugares onde vivia, e que só deixara para fazer a guerra aos índios e portugueses.

A nação Goitacá dominava todo o território entre o Cabo de São Tomé e o Cabo Frio; era um povo guerreiro, valente e destemido, que por diversas vezes fizera sentir aos conquistadores a força de suas armas.

Tinha arrasado completamente a colônia da Paraíba fundada por Pero de Góis; e depois de um assédio de seis meses conseguira destruir igualmente a colônia de Vitória, fundada no Espírito Santo por Vasco Fernandes Coutinho. Voltemos dessa pequena digressão histórica ao nosso herói.

O primeiro movimento de Cecília, vendo o índio fora de susto; fugira insensivelmente da janela. Mas o seu bom coração irritou-se contra esse receio, e disse-lhe que ela não tinha que temer do homem que lhe salvara a vida. Lembrou-se que era ser má e ingrata pagar a dedicação que o índio lhe mostrava deixando-lhe ver a repugnância que lhe inspirava. Venceu pois a timidez, e assentou de fazer um sacrifício ao reconhecimento e gratidão que devia ao selvagem. Chegou à janela; fez com a mão alva e graciosa um gesto dizendo a Peri que se aproximasse.

O índio não se contendo de alegria, correu para a casa, enquanto Cecília ia ter com seu pai, e dizia-lhe:

— Vinde ver Peri, que chega, meu pai.

— Ah! inda bem, respondeu o fidalgo.

E acompanhando sua filha, D. Antônio foi ao encontro do índio que já subia a esplanada.

Peri trazia um pequeno cofo, tecido com extraordinária delicadeza, feito de palha muito alva, todo rendado; por entre o crivo que formavam os fios, ouviam-se uns chilidos fracos e um rumor ligeiro que faziam os pequenos habitantes desse ninho gracioso.

O índio ajoelhou aos pés de Cecília; sem animar-se a levantar os olhos para ela, apresentou-lhe o cabaz de palha: abrindo a tampa, a menina assustou-se, mas sorriu; um enxame de beija-flores esvoaçava dentro; alguns conseguiram escapar-se.

Destes um veio aninhar-se no seu seio, o outro começou a voltejar em torno de sua cabeça loura como se tomasse a sua boquinha rosada por um fruto.

A menina admirava essas avezinhas brilhantes, umas escarlates, outras azuis e verdes; mas todas de reflexos dourados, e formas mimosas e delicadas!

Vendo-se esses íris animados acredita-se que a natureza os criou com um sorriso, para viverem de pólen e de mel, e para brilharem no ar como as flores na terra e as estrelas no céu.

Quando Cecília se cansou de admirá-los, tomou-os um por um, beijou-os, aqueceu-os no seio, e sentiu não ser uma flor bela e perfumada para que eles a beijassem também, e esvoaçassem constantemente em torno dela.

Peri olhava e era feliz; pela primeira vez depois que a salvara, tinha sabido fazer uma coisa, que trouxera um sorriso de prazer aos lábios da senhora. Entretanto, apesar dessa felicidade que sentia interiormente, era fácil de ver que o índio estava triste; ele chegou-se para D. Antônio de Mariz e disse-lhe:

— Peri vai partir.

— Ah! disse o fidalgo, voltas aos teus campos?

— Sim: Peri volta à terra que cobre os ossos de Ararê.

D. Antônio encheu o índio de presentes dados em seu nome e em nome de sua filha.

— Perguntai a ele por que razão parte e nos deixa, meu pai, disse Cecília.

O fidaldo traduziu a pergunta.

— Porque a senhora não precisa de Peri; e Peri deve acompanhar sua mãe e seus irmãos.

— E se a pedra quiser fazer mal à senhora, quem a defenderá? perguntou a menina sorrindo e fazendo alusão à narração do índio.

Ouvindo dos lábios de D. Antônio a pergunta, o selvagem não soube o que responder, porque lhe lembrava um pensamento que já tinha passado por seu espírito; temia que na sua ausência a menina corresse um perigo e ele não estivesse junto dela para salvá-la.

— Se a senhora manda, disse enfim, Peri fica.

Cecília, apenas seu pai lhe traduziu a resposta do índio, riu-se daquela cega obediência; mas era mulher; um átomo de vaidade dormia no fundo do seu coração de moça.

Ver aquela alma selvagem, livre como as aves que planavam no ar ou como os rios que corriam na várzea; aquela natureza forte e vigorosa que fazia prodígios de força e coragem; aquela vontade indomável como a torrente que se precipita do alto da serra; prostrar-se a seus pés submissa, vencida, escrava!...

Era preciso que não fosse mulher para não sentir o orgulho de dominar essa organização e brincar com a força obrigando-a a curvar-se diante do seu olhar.

As mulheres têm isso de particular; reconhecendo-se fracas, a sua maior ambição é reinar pelo imã dessa mesma fraqueza, sobretudo o que é forte, grande e superior a elas: não amam a inteligência, a coragem, o gênio, o poder, senão para vencê-los e subjugá-los.

Entretanto a mulher deixa-se bastantes vezes dominar; mas é sempre pelo homem que, não lhe excitando a admiração, não irrita a sua vaidade e não provoca por conseguinte essa luta da fraqueza contra a força.

Cecília era uma menina ingênua e inocente, que nem sequer tinha consciência do seu poder, e do encanto de sua casta beleza; mas era filha de Eva, e não podia se eximir de um quase nada de vaidade.

— A senhora não quer que Peri parta, disse ela com um arzinho de rainha, e fazendo um gesto com a cabeça.

O índio compreendeu perfeitamente o gesto.

— Peri fica.

— Vede, Cecília, replicou D. Antônio rindo: ele te obedece!

Cecília sorriu.

— Minha filha te agradece o sacrifício, Peri, continuou o fidalgo; mas nem ela nem eu queremos que abandones a tua tribo.

— A senhora mandou, respondeu o índio.

— Ela queria ver se tu lhe obedecias: conheceu a tua dedicação, está satisfeita; consente que partas.

— Não!

— Mas os teus irmãos, tua mãe, tua vida livre?

— Peri é escravo da senhora.

— Mas Peri é um guerreiro e um chefe.

— A nação Goitacá tem cem guerreiros fortes como Peri; mil arcos ligeiros como o vôo do gavião.

— Assim, decididamente queres ficar?

— Sim; e como tu não queres dar a Peri a tua hospitalidade, uma árvore da floresta lhe servirá de abrigo.

— Tu me ofendes, Peri! exclamou o fidalgo; a minha casa está aberta para todos, e sobretudo para ti que és amigo e salvaste minha filha.

— Não, Peri não te ofende; mas sabe que tem a pele cor de terra.

— E o coração de ouro.

Enquanto D. Antônio continuava a insistir com o índio para que partisse, ouviu-se um canto monótono que saia da floresta.

Peri aplicou o ouvido; descendo à esplanada correu na direção donde partia a voz, que cantava com a cadência triste e melancólica particular aos índios, a seguinte endecha na língua dos Guaranis:

"A estrela brilhou; partimos com a tarde. A brisa soprou; nos leva nas asas.

"A guerra nos trouxe; vencemos. A guerra acabou; voltamos.

"Na guerra os guerreiros combatem; há sangue. Na paz as mulheres trabalham; há vinho.

"A estrela brilhou; é hora de partir. A brisa soprou; é tempo de andar."

A pessoa que modulava esta canção selvagem era uma índia já idosa; encostada a uma árvore da floresta ela vira por entre a folhagem a cena que passava na esplanada.

Chegando-se a ela, Peri ficou triste e vexado.

— Mãe!... exclamou ele.

— Vem! disse a índia seguindo pela mata.

— Não!

— Nós partimos.

— Peri fica.

A índia fitou em seu filho um olhar de profunda admiração.

— Teus irmãos partem!

O selvagem não respondeu.

— Tua mãe parte!

O mesmo silêncio.

— Teu campo te espera!

— Peri fica, mãe! disse ele com a voz comovida.

— Por quê?

— A senhora mandou.

A pobre mãe recebeu esta palavra como uma sentença irrevogável; sabia do império que exercia sobre a alma de Peri a imagem de Nossa Senhora, que ele tinha visto no meio de um combate e havia personificado em Cecília.

Sentiu que ia perder o filho, orgulho de sua velhice, como Ararê tinha sido o orgulho de sua mocidade. Uma lágrima deslizou pela sua face cor de cobre.

— Mãe, toma o arco de Peri; enterra junto dos ossos de seu pai: e queima a cabana de Ararê.

— Não; se algum dia Peri voltar, achará a cabana de seu pai, e sua mãe para amá-lo: tudo vai ficar triste até que a lua das flores leve o filho de Ararê ao campo onde nasceu.

Peri abanou a cabeça com tristeza:

— Peri não voltará!

Sua mãe fez um gesto de espanto e desespero.

— O fruto que cai da árvore, não torna mais a ela; a folha que se despega do ramo, murcha, seca e morre; o vento a leva. Peri é a folha; tu és a árvore, mãe. Peri não voltará ao teu seio.

— A virgem branca salvou tua mãe; devia deixá-la morrer, para não lhe roubar seu filho. Uma mãe sem seu filho é uma terra sem água; queima e mata tudo que se chega a ela.

Estas palavras foram acompanhadas de um olhar de ameaça, em que se revelava a ferocidade do tigre que defende os seus cachorrinhos.

— Mãe, não ofende a senhora; Peri morreria, e na última hora não se lembraria de ti.

Os dois ficaram algum tempo em silêncio.

— Tua mãe fica! disse a índia com um acento de resolução.

— E quem será a mãe da tribo? Quem guardará a cabana de Peri? Quem contará aos pequenos as guerras de Ararê, forte entre os mais fortes? Quem dirá quantas vezes a nação Goitacá levou o fogo à taba dos brancos e venceu os homens do raio? Quem há de preparar os vinhos e as bebidas para os guerreiros, e ensinar aos filhos os costumes dos velhos?

Peri preferiu estas palavras com a exaltação, que despertavam nele as reminiscências de sua vida selvagem; a índia ficou pensativa e respondeu:

— Tua mãe volta; vai te esperar na porta da cabana, à sombra do jambeiro; se a flor do jambo vier sem Peri, tua mãe não verá os frutos da árvore.

A índia pousou as mãos sobre os ombros de seu filho, e encostou a fronte na fronte dele; durante um momento as lágrimas que saltavam dos olhos de ambos, se confundiram.

Depois ela afastou-se lentamente; Peri seguiu-a com os olhos até que desapareceu na floresta; esteve a correr, chamá-la e partir com ela. Mas o vento lhe trazia a voz argentina de Cecília que falava com seu pai; ficou.

Nessa mesma noite construirá aquela pequena cabana que se via na ponta do rochedo, e que ia ser o seu mundo.

Passaram três meses.

Cecília que um momento conseguira vencer a repugnância que sentia pelo selvagem, quando lhe ordenara que ficasse, não se lembrou da ingratidão que cometia e não disfarçou mais a sua antipatia.

Quando o índio chegava-se a ela, soltava um grito de susto; ou fugia, ou ordenava-lhe que se retirasse; Peri que já falava e entendia o português, afastava-se triste e humilde.

Entretanto a sua dedicação não se desmentia; ele acompanhava a D. Antônio de Mariz nas suas excursões, ajudava-o com a sua experiência, guiava-o aos lugares onde havia terrenos auríferos ou pedras preciosas. De volta destas expedições corria todo o dia os campos para procurar um perfume, uma flor, um pássaro, que entregava ao fidalgo e pedia-lhe desse a Ceci, pois já não se animava a chegar-se para ela, com receio de desgostá-la.

Ceci era o nome que o índio dava à sua senhora, depois que lhe tinham ensinado que ela se chamava Cecília.

Um dia a menina ouvindo chamar-se assim por ele e achando um pretexto para zangar-se contra o escravo humilde que obedecia ao seu menor gesto, repreendeu-o com aspereza:

— Por que me chamas tu Ceci?

O índio sorriu tristemente.

— Não sabes dizer Cecília?

Peri pronunciou claramente o nome da moça com todas as sílabas; isto era tanto mais admirável quanto a sua língua não conhecia quatro letras, das quais uma era o L.

— Mas então, disse a menina com alguma curiosidade, se tu sabes o meu nome, por que não o dizes sempre?

— Porque Ceci é o nome que Peri tem dentro da alma.

— Ah! é um nome de tua língua?

— Sim.

— O que quer dizer?

— O que Peri sente.

— Mas em português?

— Senhora não deve saber.

A menina bateu com a ponta do pé no chão e fez um gesto de impaciência.

D. Antônio passava; Cecília correu ao seu encontro:

— Meu pai, dizei-me o que significa Ceci nessa língua selvagem que falais.

— Ceci?... disse o fidalgo procurando lembrar-se. Sim! É um verbo que significa doer, magoar.

A menina sentiu um remorso; reconheceu a sua ingratidão; e lembrando-se do que devia ao selvagem e da maneira por que o tratava, achou-se má, egoísta e cruel.

— Que doce palavra! disse ela a seu pai; parece um canto de pássaro.

Desde este dia foi boa para Peri; pouco a pouco perdeu o susto; começou a compreender essa alma inculta; viu nele um escravo, depois um amigo fiel e dedicado.

— Chama-me Ceci, dizia às vezes ao índio sorrindo-se; este doce nome me lembrará que fui má para ti; e me ensinará a ser boa.

 

 

Capítulo V - Vilania

É tempo de continuar esta narração interrompida pela necessidade de contar alguns fatos anteriores.

Voltemos pois ao lagar em que se achavam Loredano e seus companheiros tomados de medo pela exclamação inesperada que soara no meio deles.

Os dois cúmplices, supersticiosos, como eram as pessoas de baixa classe naquele tempo, atribuíam o fato a uma causa sobrenatural, e viam nele um aviso do céu. Loredano porém não era homem que cedesse a semelhante fraqueza; tinha ouvido uma voz; e essa voz embora surda e cava devia ser de um homem.

Quem ele era? Seria D. Antônio de Mariz? Seria algum dos aventureiros? Não podia saber; o seu espírito perdia-se num caos de dúvidas e incertezas.

Fez um gesto a Rui Soeiro e a Bento Simões para que o seguissem; e apertando ao seio o fatal pergaminho, causa de tantos crimes, lançou-se pelo campo. Teriam feito umas cinqüenta braças do caminho, quando viram cortar pela vereda que eles seguiam um cavalheiro que o italiano reconheceu imediatamente; era Álvaro.

O moço procurava a solidão para pensar em Cecília, mas sobretudo para refletir num fato que se tinha dado essa manhã e que ele não podia compreender.

Vira de longe a janela de Cecília abrir-se, as duas moças aparecerem, trocarem um olhar; depois Isabel cair de joelhos aos pés de sua prima. Se ele tivesse ouvido o que já sabemos, teria perfeitamente compreendido; mas longe como estava, apenas podia ver, sem ser visto das duas moças.

Loredano, vendo o cavalheiro passar, voltou-se para os seus companheiros.

— Ei-lo!... disse com um olhar que brilhou de alegria. Imbecis! que atribuís ao céu aquilo que não sabeis explicar!...

E acompanhou estas palavras com um sorriso de profundo desprezo.

— Esperai-me aqui.

— O que ides fazer? perguntou Rui Soeiro.

O italiano se voltou surpreso; depois levantou os ombros, como se a pergunta do seu companheiro não merecesse resposta.

Rui Soeiro, que conhecia o caráter desse homem, entendeu o gesto; um resquício de generosidade que ainda havia no seu coração corrompido, o fez segurar o braço do seu companheiro para retê-lo.

— Quereis que fale?... disse Loredano.

— É mais um crime inútil! acudiu Bento Simões.

O italiano fitou nele os olhos, frios como o contato do aço polido:

— Há um mais útil, amigo Simões; cuidaremos dele a seu tempo.

E sem esperar a réplica, meteu-se pelas moitas que cobriam o campo nesse lugar, e seguiu Álvaro que continuava lentamente o seu caminho.

O moço, apesar de preocupado, tinha o hábito da vida arriscada dos nossos caçadores do interior, obrigados a romper as matas virgens.

Aí o homem vê-se cercado de perigos por todos os lados; da frente, das costas, à esquerda, à direita, do ar, da terra, pode surgir de repente um inimigo oculto pela folhagem, que se aproxima sem ser visto.

A única defesa é a sutileza do ouvido que sabe distinguir entre os rumores vagos da floresta, aquele que é produzido por uma ação mais forte do que a do vento; assim como a rapidez e certeza da vista que vai perscrutar as sombras das moitas e devassar a folhagem espessa das árvores.

Álvaro tinha esse dom dos caçadores hábeis; apenas o vento lhe trouxe um estalido de folhas secas pisadas, levantou a cabeça, e circulou o campo com os olhos; depois por prudência encostou-se ao grosso tronco de uma árvore isolada, e cruzando os braços sobre a clavina, esperou.

Nessa posição o inimigo, qualquer que ele fosse, fera, réptil ou homem, não o podia atacar senão de face; ele o veria aproximar-se e o receberia.

Loredano agachado entre as folhas tinha notado este movimento e hesitara; mas o seu segredo estava comprometido, a suspeita que concebera de que Álvaro fora quem há pouco o ameaçara com a palavra traidores, acabava de confirmar-se no seu espírito, vendo a prudência com que o moço evitava uma surpresa.

O cavalheiro era um inimigo terrível, e jogava todas as armas com uma destreza admirável.

A lâmina de sua espada como uma cobra elástica, flexível, rápida, volteava sibilando e atirava o bote com a velocidade e a certeza da cascavel. O arremesso do seu punhal, vibrado pelo braço ligeiro e auxiliado pela agilidade do corpo, era como raio; listrava no ar uma cruz de fogo, e caia sobre o peito do inimigo e o fulminava.

A bala de sua clavina era uma mensageira fiel que ia buscar a ave que pairava no ar, ou a folha que o vento agitava. Muitas vezes na esplanada da casa, o italiano vira Álvaro, depois de ter feito milagres de pontaria, quebrar no ar as setas que Peri atirava de propósito para lhe servirem de alvo.

Cecília aplaudia batendo as mãos; Peri ficava contente por ver a senhora alegre; e embora para ele que fazia muito mais, aquilo fosse uma coisa vulgar, deixava que o moço conservasse a superioridade, e fosse por todos admirado.

Mas Álvaro sabia que só um homem podia lutar com ele, e levar-lhe vantagem em qualquer arma, e esse era Peri; porque juntava à arte a superioridade do selvagem habituado desde o berço à guerra constante que é a sua vida.

Loredano tinha pois razão de hesitar em atacar de frente um inimigo desta força; mas a necessidade urgia, e o italiano era corajoso e ágil também. Endireitou para o cavalheiro, resolvido a morrer ou a salvar a sua vida e a sua fortuna.

Álvaro vendo-o aproximar-se rugou o sobrolho; depois do que se tinha passado na véspera e nessa manhã, odiava aquele homem ou antes, desprezava-o.

— Aposto que tivestes o mesmo pensamento que eu, sr. cavalheiro? disse o aventureiro, quando chegou a três passos de distância.

— Não sei o que pretendeis dizer, replicou o moço secamente.

— Pretendo, sr. cavalheiro, que dois homens que se odeiam acham-se melhor num lagar solitário, do que no meio dos companheiros.

— Não é ódio que me inspirais, é deprezo; é mais do que desprezo, é asco. O réptil que se roja pelo chão causa-me menos repugnância do que o vosso aspecto.

— Não disputemos sobre palavras, sr. cavalheiro; tudo vem dar no mesmo; eu vos odeio, vós me desprezais; podia dizer-vos outro tanto.

— Miserável!... exclamou o cavalheiro levando a mão à guarda da espada.

O movimento foi tão rápido, que a palavra soou ao mesmo tempo que a ponta da lamina de aço batendo na face do italiano.

Loredano quis evitar o insulto, mas não era tempo; seus olhos injetaram-se de sangue:

— Sr. cavalheiro, deveis-me satisfação do insulto que me acabais de fazer.

— É justo, respondeu Álvaro com dignidade; mas não à espada que é a arma do cavalheiro; tirai o vosso punhal de bandido, e defendei-vos.

Proferindo estas palavras, o moço embainhou a espada com toda a calma, segurou-a à cinta para não embaraçar-lhe os movimentos e sacou o seu punhal, excelente folha de Damasco.

Os dois inimigos marcharam um para o outro, e lançaramse; o italiano era ágil e forte, e defendia-se com suma destreza; por duas vezes já, o punhal de Álvaro, roçando-lhe o pescoço, tinha cortado o talho de seu gibão de belbute.

De repente Loredano, fincando os pés, deu um pulo para trás, e ergueu a mão esquerda em sinal de trégua.

— Estais satisfeito? perguntou Álvaro.

— Não, sr. cavalheiro; mas penso que em vez de nós estarmos aqui a fatigar inutilmente, melhor seria tomarmos um meio mais expedito.

— Escolhei o que quiserdes, menos a espada; o mais me é indiferente.

— Outra coisa ainda: se nos batermos aqui, podemos incomodar-nos reciprocamente; porque pretendo matar-vos, e creio que o mesmo desejo tendes a meu respeito. Ora é preciso que desapareça o que ficar e o outro não leve um vestígio que o possa denunciar.

— Que quereis fazer neste caso?

— O rio está aqui perto, tendes a vossa clavina; colocar-nos-emos cada um sobre uma ponta do rochedo; aquele que cair morto ou simplesmente ferido, pertencerá ao rio e à cachoeira; não incomodará o outro.

— Tendes razão, é melhor assim; eu me envergonharia se D. Antônio de Mariz soubesse que me bati com um homem da vossa qualidade.

— Sigamos, sr. cavalheiro; nós nos odiamos bastante para não gastarmos tempo em palavras.

Ambos tomaram na direção do rio, cujo estrépito ouvia-se distintamente.

Álvaro, valente e corajoso, desprezava muito o seu inimigo para ter o menor receio dele; demais a sua alma nobre e leal, incapaz da mais pequena vilania, não pensava na traição. Nunca podia lembrar-lhe que um homem que o viera provocar e ia medir-se com ele num combate franco, levasse a infâmia a ponto de querer feri-lo pelas costas.

Assim, continuou a caminhar, quando o italiano, deixando cair de propósito a cinta da espada, parou um instante para apanhá-la e prendê-la de novo.

O que passava então no seu espírito não estava de acordo com as idéias nobres do cavalheiro; vendo o moço adiantar-se, disse consigo:

— Preciso da vida desse homem, eu a tenho! Seria uma loucura deixá-la escapar, e pôr a minha em risco. Um duelo neste deserto, sem testemunhas, é um combate em que a vitória pertence ao mais esperto.

Dizendo isto o italiano ia armando a sua clavina com toda a cautela, e seguia de longe a Álvaro, a fim de que o ranger do ferro ou o silêncio de suas pisadas não excitassem a atenção do moço.

Álvaro caminhava tranqüilamente; seu pensamento estava bem longe dele, e esvoaçava em torno da imagem de Cecília, junto da qual via os grandes olhos negros e aveludados de Isabel embebidos numa languidez melancólica; era a primeira vez que aquele rosto moreno e aquela beleza ardente e voluptuosa se viera confundir em sonhos com o anjo louro dos seus amores.

Donde provinha isto? O moço não sabia explicar; mas um quer que seja, como um pressentimento, lhe dizia que naquela cena da janela havia entre as duas moças um segredo, uma confidência, uma revelação, e que esse segredo era ele.

Assim, quando a morte se aproximava, quando já o bafejava e ia tocá-lo, ele descuidoso e pensativo repassava no pensamento idéias de amor, e alimentava-se de esperanças. Não se lembrava de morrer; tinha consciência de si e fé em Deus; mas se por acaso uma fatalidade caísse sobre ele, consolava-o a idéia de que Cecília, ofendida, lhe perdoaria um resto de ressentimento que talvez conservasse.

Nisto meteu a mão no seio do gibão e tirou o jasmim que a moça lhe dera, e que já tinha murchado ao contato dos seus lábios ardentes; ia beijá-lo ainda uma vez, quando lembrou-se que o italiano podia vê-lo.

Mas não ouviu os passos do aventureiro; a primeira idéia que lhe veio foi que ele tinha fugido; e como a cobardia para as almas grandes se associa à baixeza, lembrou-se de uma traição.

Quis voltar-se, e entretanto não o fez. Mostrar que tinha medo daquele miserável revoltava os seus brios de cavalheiro; ergueu a cabeça com altivez e seguiu.

Mal sabia ele que nesse momento o fecho da clavina movido por um dedo seguro caia, e que a bala ia partir guiada pelo olhar certeiro do italiano.

 

 

Capítulo VI - Nobreza

Álvaro ouviu um sibilo agudo.

A bala rogando pela aba rebatida de seu chapéu de feltro cortou a ponta da pluma escarlate que se enroscava sobre o ombro.

O moço voltou-se calmo, sereno, impassível; nem um músculo de seu rosto agitou-se; apenas um sorriso de soberano desprezo arqueava o lábio superior, sombreado pelo bigode negro.

O espetáculo que se ofereceu aos seus olhos causou-lhe uma surpresa extraordinária: não esperava decerto ver o que se passava a dez passos dele.

Peri mostrando nos movimentos toda a força muscular de sua organização de aço, com a mão esquerda segura à nuca de Loredano, curvava-o sob a pressão violenta, e obrigava-o a ajoelhar.

O italiano lívido, com o rosto contraído e os olhos imensamente dilatados, tinha ainda entre as mãos hirtas a clavina fumegante.

O índio arrancou-a, e sacando a longa faca, levantou o braço para cravá-la no alto da cabeça do italiano.

Mas Álvaro tinha-se adiantado e aparou o golpe; depois estendeu a mão ao índio.

— Solta este miserável, Peri!

— Não!

— A vida deste homem me pertence; atirou sobre mim; é a minha vez de atirar sobre ele.

Álvaro ao mesmo tempo que dizia estas palavras armava a clavina, e apoiava a boca na fronte do italiano.

— Ides morrer. Fazei a vossa oração.

Peri abaixou a faca; recuou um passo, e esperou.

O italiano não respondeu; a sua oração foi uma blasfêmia horrível e satânica; as palpitações violentas do coração batiam de encontro ao pergaminho que tinha no seio, e lembravam-lhe o seu tesouro que ia talvez cair nas mãos de Álvaro e dar-lhe a riqueza de que não pudera gozar.

Entretanto, na baixeza dessa alma havia ainda alguma altivez, o orgulho do crime; não suplicou, não disse uma palavra; sentindo o contato frio do ferro sobre a fronte, fechou os olhos e julgou-se morto.

Álvaro olhou-o um instante, e abaixou a clavina:

— Tu és indigno de morrer à mão de um homem, e por uma arma de guerra; pertences ao pelourinho e ao carrasco. Seria um roubo feito à justiça de Deus.

Loredano abriu os olhos; seu rosto iluminou-se com um raio de esperança.

— Vais jurar que amanhã deixarás a casa de D. Antônio de Mariz, e nunca mais porás o pé neste sertão; por tal preço tens a vida salva.

— Juro! exclamou o italiano.

O moço tirou o colar que deva três voltas sobre os ombros, e apresentou a Loredano a cruz vermelha do Cristo que lhe pendia do peito; o aventureiro estendeu a mão, e repetiu o juramento.

— Ergue-te; e tira-te dos meus olhos.

E com o mesmo desprezo e a mesma nobreza, o cavalheiro desarmou a sua clavina; voltou-se para continuar o seu caminho fazendo um sinal a Peri para que o acompanhasse.

O índio, enquanto se passava a rápida cena que descrevemos, refletia profundamente.

Quando ouvira o que diziam há pouco Loredano e seus dois companheiros, quando pelo resto da conversa compreendera que se tratava de fazer mal à sua senhora e a D. Antônio de Mariz, a sua primeira idéia tinha sido lançar-se aos três inimigos e matá-los.

Foi por isso que soltou aquela palavra que revelava a sua indignação; mas imediatamente lembrou-se que ele podia morrer, e que nesse caso Cecília não teria quem a defendesse. Pela primeira vez na sua vida teve medo; teve medo por sua senhora, e sentiu não possuir mil vidas para sacrificá-las todas à sua salvação.

Fugiu então com bastante rapidez para não ser visto pelo italiano que subia à árvore; afastou-se deles; chegando à beira do rio, lavou a sua túnica de algodão, que ficara manchada de sangue; não queria que soubessem que estava ferido.

Enquanto se entregava a este trabalho, combinava um plano de ação.

Resolveu não dizer nada a quem quer que fosse, nem mesmo a D. Antônio de Mariz: duas razões o levavam a proceder assim; a primeira era o receio de não ser acreditado, pois não tinha provas com que pudesse justificar a acusação, que ele, índio ia fazer contra homens brancos; a segunda era a confiança que tinha de que ele só bastava para desfazer todas as tramas dos aventureiros, e lutar contra o italiano.

Assentado este primeiro ponto, passou à execução do plano; esta reduzia-se para ele em uma punição; aqueles três homens queriam matar, portanto deviam morrer, mas deviam morrer ao mesmo tempo, do mesmo golpe. Peri receava que, combinados como estavam, se um escapasse vendo sucumbir seus companheiros, se deixaria levar pelo desespero e anteciparia a realização do crime antes que ele o pudesse prevenir.

A sua inteligência sem cultura, mas brilhante como o sol de nossa terra, vigorosa como a vegetação deste solo, guiava-o nesse raciocínio com uma lógica e uma prudência, dignas do homem civilizado; previa todas as hipóteses, combinava todas as probabilidades, e preparava-se para realizar o seu plano com a certeza e a energia de ação que ninguém possuía em grau tão elevado.

Assim dirigindo-se para a casa onde o chamava um outro dever, o de avisar a D. Antônio da eventualidade de um ataque dos Aimorés, ele tinha passado junto de Bento Simões e Rui Soeiro, e guiado pelos olhares destes viu ao longe Loredano no momento em que apontava sobre o cavalheiro.

Correr, cair sobre o italiano, desviar a pontaria, e dobrá-lo sobre os joelhos, foi um movimento tão rápido que os dois aventureiros apenas o viram passar, viram ao mesmo tempo o seu companheiro subjugado.

A realização do projeto de Peri apresentava-se naturalmente, sem ser procurada. Tinha o italiano na sua mão; depois dele caminhava aos dois aventureiros para os quais bastava a sua faca; e quando tudo estivesse consumado, iria ter com D. Antônio de Mariz e lhe diria: — Esses três homens vos traiam, matei-os; se fiz mal, puni-me.

A intervenção de Álvaro, cuja generosidade salvou a vida de Loredano, transtornou completamente esse plano; ignorando o motivo por que Peri ameaçava o aventureiro, julgando que era unicamente para puni-lo da tentativa que acabava de cometer perfidamente contra ele, o cavalheiro a quem repugnava tirar a vida a um homem sem necessidade, satisfez-se com o juramento e a certeza de que deixaria a casa.

Enquanto isto se dava, Peri refletia na possibilidade de fazer as coisas voltarem à mesma posição; mas conheceu que não o conseguiria.

Álvaro tinha recebido de D. Antônio de Mariz todos os princípios daquela antiga lealdade cavalheiresca do século XV, os quais o velho fidalgo conservava como o melhor legado de seus avós; o moço moldava todas as suas ações, todas as suas idéias, por aquele tipo de barões portugueses que haviam combatido em Aljubarrota ao lado do Mestre de Avis, o rei cavalheiro.

Peri conhecia o caráter do moço; e sabia que depois de ter dado a vida a Loredano, embora o desprezasse, não consentiria que em presença dele lhe tocasse num cabelo; e se preciso fosse tiraria a sua espada para defender este homem, que acabava de tentar contra sua existência.

E o índio respeitava a Álvaro, não por sua causa, mas por Cecília a quem ele amava; qualquer desgraça que sucedesse ao cavalheiro tornaria a senhora triste; e isto bastava para que a pessoa do moço fosse sagrada, como tudo o que pertencia à menina, ou que era necessário ao seu descanso, ao seu sossego e felicidade.

O resultado dessa reflexão foi Peri meter a sua faca à cinta; e sem importar-se mais com o italiano, acompanhar o cavalheiro.

Ambos seguiram em direção da casa, caminhando ao longo da margem do rio.

— Obrigado ainda uma vez, Peri; não pela vida que me salvaste, mas pela estima que me tens.

E o moço apertou a mão do selvagem.

— Não agradece; Peri nada te fez; quem te salvou foi a senhora.

Álvaro sorriu-se da franqueza do índio e corou da alusão que havia em suas palavras.

— Se tu morresses, a senhora havia de chorar; e Peri quer ver a senhora contente.

— Tu te enganas; Cecília é boa, e sentiria da mesma maneira o mal que sucedesse a mim, como a ti, ou a qualquer dos que está acostumada a ver

— Peri sabe por que fala assim; tem olhos que vêem, e ouvidos que ouvem; tu és para a senhora o sol que faz o jambo corado, e o sereno que abre a flor da noite.

— Peri!... exclamou Álvaro.

— Não te zanga, disse o índio com doçura; Peri te ama, porque tu fazes a senhora sorrir. A cana quando está à beira dágua, fica verde e alegre; quando o vento passa, as folhas dizem Ce-ci. Tu és o rio; Peri é o vento que passa docemente, para não abafar o murmúrio da corrente; é o vento que curva as folhas até tocarem na água.

Álvaro fitou no índio um olhar admirado. Onde é que este selvagem sem cultura aprendera a poesia simples, mas graciosa; onde bebera a delicadeza de sensibilidade que dificilmente se encontra num coração gasto pelo atrito da sociedade?

A cena que se desenrolava a seus olhos respondeu-lhe; a natureza brasileira, tão rica e brilhante, era a imagem que produzia aquele espírito virgem, como o espelho das águas reflete o azul do céu.

Quem conhece a vegetação de nossa terra desde a parasita mimosa até o cedro gigante; quem no reino animal desce do tigre e do tapir, símbolos da ferocidade e da força, até o lindo beija-flor e o inseto dourado; quem olha este céu que passa do mais puro anil aos reflexos bronzeados que anunciam as grandes borrascas; quem viu, sob a verde pelúcia da relva esmaltada de flores que cobre as nossas várzeas deslizar mil répteis que levam a morte num átomo de veneno, compreende o que Álvaro sentiu.

Com efeito, o que exprime essa cadeia que liga os dois extremos de tudo o que constitui a vida? Que quer dizer a força no ápice do poder aliada à fraqueza em todo o seu mimo; a beleza e a graça sucedendo aos dramas terríveis e aos monstros repulsivos; a morte horrível a par da vida brilhante?

Não é isso a poesia? O homem que nasceu, embalou-se e cresceu nesse berço perfumado; no meio de cenas tão diversas, entre o eterno contraste do sorriso e da lágrima, da flor e do espinho, do mel e do veneno, não é um poeta?

Poeta primitivo, canta a natureza na mesma linguagem da natureza; ignorante do que se passa nele, vai procurar nas imagens que tem diante dos olhos, a expressão do sentimento vago e confuso que lhe agita a alma.

Sua palavra é a que Deus escreveu com as letras que formam o livro da criação; é a flor, o céu, a luz, a cor, o ar, o sol; sublimes coisas que a natureza fez sorrindo.

A sua frase corre como o regato que serpeja, ou salta como o rio que se despenha da cascata; às vezes se eleva ao cimo da montanha, outras desce e rasteja como o inseto, sutil, delicada e mimosa.

Eis o que a decoração da cena majestosa, no meio da qual se achava, à beira do Paquequer, disse a Álvaro, mas rapidamente, por uma dessas impressões que se projetam no espírito como a luz no espaço.

O moço recebeu a confissão ingênua do índio sem o mínimo sentimento hostil; ao contrário apreciava a dedicação que o selvagem tinha por Cecília, e ia ao ponto de amar a tudo quanto sua senhora estimava.

— Assim, disse Álvaro sorrindo, tu só me amas por que pensas que Cecília me quer? disse o moço.

— Peri só ama o que a senhora ama; porque só ama a senhora neste mundo: por ela deixou sua mãe, seus irmãos e a terra onde nasceu.

— Mas se Cecília não me quisesse como julgas?

— Peri faria o mesmo que o dia com a noite; passaria sem te ver.

— E se eu não amasse a Cecília?

— Impossível!

— Quem sabe? disse o moço sorrindo.

— Se a senhora ficasse triste por ti!... exclamou o índio cuja pupila irradiou.

— Sim? o que farias?

— Peri te mataria.

A firmeza com que eram ditas estas palavras não deixava a menor dúvida sobre a sua realidade; entretanto Álvaro apertou a mão do índio com efusão.

Peri temeu ofender o moço; para desculpar a sua franqueza, disse-lhe com um tom comovido:

— Escuta, Peri é filho do sol; e renegava o sol se ele queimasse a pele alva de Ceci. Peri ama o vento; e odiava o vento se ele arrancasse um cabelo de ouro de Ceci. Peri gosta de ver o céu; e não levantava a vista, se ele fosse mais azul do que os olhos de Ceci.

— Compreendo-te, amigo; votaste a tua vida inteira à felicidade dessa menina. Não receies que te ofenda nunca na pessoa dela. Sabes se eu a amo; e não te zangues, Peri, se disser que a tua dedicação não é maior do que a minha. Antes que me matasses, creio que me mataria a mim mesmo se tivera a desgraça de fazer Cecília infeliz.

— Tu és bom; Peri quer que a senhora te ame.

O índio contou então a Álvaro o que se tinha passado na noite antecedente; o moço empalideceu de cólera, e quis voltar em busca do italiano; desta vez não lhe perdoara.

— Deixa! disse o índio Ceci teria medo; Peri vai endireitar isto.

Os dois tinham chegado perto da casa e iam entrar a cerca do vale, quando Peri segurou o braço de Álvaro:

— O inimigo da casa quer fazer mal; defende a senhora; se Peri morrer, manda dizer à sua mãe, e verás todos os guerreiros da tribo chegarem para combaterem contigo, e salvarem Ceci.

— Mas quem é o inimigo da casa?

— Queres saber?

— Decerto; como hei de combatê-lo?

— Tu saberás.

Álvaro quis insistir; mas o índio não lhe deu tempo; meteu-se de novo pelo mato; enquanto o moço subia a escada, ele fazia uma volta ao redor da casa e ganhava o lado para onde dava o quarto de Cecília.

Já tinha avistado ao longe a janela, quando debaixo de uma ramagem surdiu a figura magra e esguia de Aires Gomes, coberta de urtigas e ervas-de-passarinho, e deitando os bofes pela boca.

O digno escudeiro, tendo encontrado em cima de sua cabeça um maldito galho desajeitado, foi de narizes ao chão, e estendeu-se maciamente sobre a relva.

Apesar disto ergueu-se um pouco sobre os cotovelos, e gritou com toda a força dos pulmões:

— Olá! mestre bugre!... D. Cacique!... Caçador de onça viva!... Ouve cá!

Peri não se voltou.

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