Capítulo VII: Os Selvagens
Os aventureiros com o punhal erguido ameaçavam; mas não se animavam a romper o estreito círculo que os separava de D. Antônio de Mariz.
O respeito, essa força moral tão poderosa, dominava ainda a alma daqueles homens cegos pela cólera e pela exaltação; todos esperavam que o primeiro ferisse; e nenhum tinha a coragem de ser o primeiro.
Loredano conheceu que era necessário um exemplo; o desespero de sua posição, as paixões ardentes que tumultuavam em seu coração, deram-lhe o delírio que supre o valor nas circunstâncias extremas.
O aventureiro apertou convulsivamente o cabo de sua faca, e fechando os olhos e dando um passo às cegas, ergueu a mão para desfechar o golpe.
O fidalgo com um gesto nobre afastou o seio do gibão, e descobriu o peito; nem um tremor imperceptível agitou os músculos de seu rosto; sua fronte alta conservou a mesma serenidade; o seu olhar límpido e brilhante não se turvou.
Tal era a influência magnética que exercia essa coragem nobre e altiva, que o braço do italiano tremeu, e a ponta do ferro tocando a véstia do fidalgo paralisou os dedos hirtos do assassino.
D. Antônio sorriu com desdém; e abaixando a sua mão fechada sobre o alto da cabeça de Loredano, abateu-o a suas plantas como uma massa bruta e inerte: então erguendo a ponta do pé à fronte do italiano, o estendeu de costas sobre o pavimento.
O baque do corpo no chão ecoou no meio de um silêncio profundo; todos os aventureiros, mudos e estáticos, pareciam querer sumir-se pelo seio da terra.
— Abaixai as armas, miseráveis! O ferro que há de ferir o peito de D. Antônio de Mariz não será manchado pela mão cobarde e traiçoeira de vis assassinos! Deus reserva uma morte justa e gloriosa àqueles que viveram uma vida honrada!
Os aventureiros artudidos embainharam maquinalmente os punhais; aquela palavra sonora, calma e firme, tinha um acento tão imperativo, uma tal força de vontade, que era impossível resistir.
— O castigo que vos espera há de ser rigoroso; não deveis contar com a clemência nem com o perdão: quatro dentre vós à sorte, sofrerão a pena de homizio; os outros farão o oficio dos executores da alta justiça. Bem vedes que tanto a pena como o ofício são dignos de vós!
O fidalgo pronunciou estas palavras com um soberano desprezo, e encarou os aventureiros como para ver se dentre eles partia alguma reclamação, algum murmúrio de desobediência; mas todos esses homens, há pouco furiosos, estavam agora humildes e cabisbaixos.
— Dentro de uma hora, continuou o cavalheiro apontando para o corpo de Loredano, este homem será justiçado à frente da banda; para ele não há julgamento; eu o condeno como pai, como chefe, como um homem que mata o cão ingrato que o morde. É ignóbil demais para que o toque com as minhas armas; entrego-o ao baraço e ao cutelo.
Com a mesma impassibilidade e o mesmo sossego que conservava desde o momento em que aparecera imprevistamente, o velho fidalgo atravessou por entre os aventureiros imóveis e respeitosos, e caminhou para a saída.
Aí voltou-se; e levando a mão ao chapéu descobriu a sua bela cabeça encanecida, que destacava sobre o fundo negro da noite e no meio do clarão avermelhado das tochas com um vigor de colorido admirável.
— Se algum de vós der o menor sinal de desobediência; se uma das minhas ordens não for cumprida pronta e fielmente; eu, D. Antônio de Mariz, vos juro por Deus e pela minha honra que desta casa não sairá um homem vivo. Sois trinta; mas a vossa vida, de todos vós, tenho-a na minha mão; basta-me um movimento para exterminar-vos, e livrar a terra de trinta assassinos.
No momento em que o fidalgo ia retirar-se apareceu Álvaro pálido de emoção, mas brilhante de coragem e indignação.
— Quem se animou aqui a erguer a voz para D. Antônio de Mariz? exclamou o moço.
O velho fidalgo sorrindo com orgulho pôs a mão no braço do cavalheiro.
— Não vos ocupeis disto, Álvaro; sois bastante nobre para vingar uma afronta desta natureza, e eu, bastante superior para não ser ofendido por ela.
— Mas, senhor, cumpre que se dê um exemplo!
— O exemplo vai ser dado, e como cumpre. Aqui não há senão culpados e executores da pena. O lugar não vos compete. Vinde!
O moço não resistiu e acompanhou D. Antônio de Mariz, que se dirigiu lentamente a sala, onde achou Aires Comes.
Quanto a Peri, voltara ao jardim de Cecília, decidido a defender sua senhora contra o mundo inteiro.
O dia vinha rompendo.
O fidalgo chamou Aires Gomes e entrou com ele no seu gabinete de armas, onde tiveram uma longa conferência de meia hora.
O que aí se passou ficou em segredo entre Deus e estes dois homens; apenas Álvaro notou, quando a porta do gabinete se abriu, que D. Antônio estava pensativo, e o escudeiro lívido como um morto.
Neste momento ouviu-se um pequeno rumor na entrada da sala; quatro aventureiros parados, imóveis, esperavam uma ordem do fidalgo para se aproximarem.
D. Antônio fez-lhes um sinal; e eles vieram ajoelhar-se a seus pés; -as lágrimas rolavam por essas faces queimadas pelo sol; e a palavra tremia balbuciante nesses lábios pálidos que há instantes vomitavam ameaças:
— Que significa isto? perguntou o cavalheiro com severidade.
Um dos aventureiros respondeu:
— Viemo-nos entregar em vossas mãos; preferimos apelar para o vosso coração do que recorrer às armas para escaparmos à punição de nossa falta.
— E vossos companheiros? replicou o fidalgo.
— Deus lhes perdoe, senhor, a enormidade do crime que vão cometer. Depois que vos retirastes tudo mudou; preparam-se para atacar-vos!
— Que venham, disse D. Antônio, eu os receberei. Mas vós por que não os acompanhais? Não sabeis que D. Antônio de Mariz perdoa uma falta, mas nunca uma desobediência?
— Embora, disse o aventureiro que falava em nome de seus camaradas; aceitaremos de bom grado o castigo que nos impuserdes. Mandai, que obedeceremos. Somos quatro contra vinte e tantos; dai-nos essa punição de morrer defendendo-vos, de reparar pela nossa morte um momento de alucinação!... É a graça que vos pedimos!
D. Antônio olhou admirado os homens que estavam ajoelhados a seus pés; e reconheceu neles os restos dos seus antigos companheiros de armas do tempo em que o velho fidalgo combatia os inimigos de Portugal.
Sentiu-se comovido; sua alma grande, e inabalável no meio do perigo, orgulhosa em face da ameaça, deixava-se facilmente dominar pelos sentimentos nobres e generosos.
Essa prova de fidelidade que davam aqueles quatro homens na ocasião da revolta geral dos seus companheiros; a ação que acabavam de praticar, e o sacrifício com que desejavam expiar a sua falta, elevou-os no espírito do fidalgo.
— Erguei-vos. Reconheço-vos!... Já não sois os traidores que há pouco repreendi; sois os bravos companheiros que pelejastes a meu lado; o que fazeis agora, esquece o que fizestes há uma hora. Sim!... Mereceis que morramos juntos, combatendo ainda uma vez na mesma fileira. D. Antônio de Mariz vos perdoa. Podeis levantar a cabeça e trazê-la alta!
Os aventureiros ergueram-se radiantes do perdão que o nobre fidalgo tinha lançado sobre suas cabeças; todos eles estavam prontos a dar sua vida para salvarem o seu chefe.
O que tinha ocorrido depois da saída de D. Antônio do alpendre, seria longo de escrever.
Loredano tornando a si da vertigem que lhe causara o atordoamento e a violência da queda, soube da ordem que havia a seu respeito. Não era preciso tanto para que o audaz aventureiro recorresse à sua eloqüência a fim de excitar de novo à revolta. Pintou a posição de todos como desesperada, atribuiu o seu castigo e as desgraças que iam suceder ao fanatismo que havia por Peri; esgotou enfim os recursos da sua inteligência. D. Antônio não estava mais ai para conter com a sua presença a cólera que ia fermentando, a excitação que começava a lavrar, a princípio surdamente, as queixas e os murmúrios que afinal fizeram coro.
Um incidente veio atear a chama que lastrava; Peri, apenas começou a romper o dia, viu a alguma distancia do jardim o cadáver de Rui Soeiro; e temendo que sua senhora acordando presenciasse esse triste espetáculo tomou o corpo, e atravessando a esplanada, veio atirá-lo no meio do pátio.
Os aventureiros empalideceram e ficaram estupefatos; depois rompeu a indignação feroz, raivosa, delirante; estavam como possessos de furor e vingança. Não houve mais hesitação; a revolta pronunciou-se; apenas o pequeno grupo de quatro homens que desde a saída de D. Antônio se conservava em distancia, não tomou parte na insubordinação.
Ao contrário, quando viram que seus companheiros, com Loredano à frente se preparavam para atacar o fidalgo, foram, como vimos, oferecer-se voluntariamente ao castigo, e reunir-se ao seu chefe para partilharem a sua sorte.
Pouco tardou para que João Feio não se apresentasse como parlamentário da parte dos revoltosos; o fidalgo não o deixou falar.
— Dize a teus companheiros, rebelde, que D. Antônio de Mariz manda e não discute condições: que eles estão condenados; e verão se sei ou não cumprir o meu juramento.
O fidalgo tratou então de dispor os seus meios de defesa; apenas podia contar com quatorze combatentes: ele, Álvaro, Peri, Aires Comes, mestre Nunes com os seus companheiros, e os quatro homens que se haviam conservado fiéis; os inimigos eram em número de vinte e tantos.
Toda a sua família já então despertada recebeu a triste noticia de tantos acontecimentos passados durante aquela noite fatal; D. Lauriana, Cecília e Isabel recolheram-se ao oratório, e rezavam enquanto se preparava tudo para uma resistência desesperada.
Os aventureiros comandados por Loredano arregimentaram-se e marcharam para a casa dispostos a dar um assalto terrível; o seu furor redobrava tanto mais, quanto o remorso no fundo da consciência começava a mostrar-lhes toda a hediondez de sua ação.
No momento em que dobravam o canto, ouviu-se um som rouco que se prolongou pelo espaço, como o eco surdo de um trovão em distancia.
Peri estremeceu, e lançando-se para a beira da esplanada estendeu os olhos pelo campo que costeava a floresta. Quase ao mesmo tempo um dos aventureiros que estava ao lado de Loredano caiu traspassado por uma flecha.
— Os Aimorés!...
Apenas soltou Peri esta exclamação, uma linha movediça, longo arco de cores vivas e brilhantes, agitou-se ao longe da planície irradiando à luz do sol nascente.
Homens quase nus, de estatura gigantesca e aspecto feroz; cobertos de peles de animais e penas amarelas e escarlates, armados de grossas clavas e arcos enormes, avançavam soltando gritos medonhos.
A inúbia retroava; o som dos instrumentos de guerra misturado com os brados e alaridos formavam um concerto horrível, harmonia sinistra que revelava os instintos dessa horda selvagem reduzida à brutalidade das feras.
— Os Aimorés!... repetiram os aventureiros empalidecendo.
Capítulo VIII: Desânimo
Dois dias passaram depois da chegada dos Aimorés; a posição de D. Antônio de Mariz e de sua família era desesperada.
Os selvagens tinham atacado a casa com uma força extraordinária; diante deles a índia, terrível de ódio, os excitava à vingança
As setas escurecendo o ar abatiam-se como uma nuvem sobre a esplanada, e crivavam as portas e as paredes do edifício.
À vista do perigo iminente que corriam todos, os aventureiros revoltados retiraram-se e trataram de defender-se do ataque dos selvagens.
Houve como que um armistício entre os rebeldes e o fidalgo; sem se reunirem, os aventureiros conheceram que deviam combater o inimigo comum, embora depois levassem ao cabo a sua revolta.
D. Antônio de Mariz, encastelado na parte da casa que habitavam, rodeado de sua família e de seus amigos fiéis, resolvera defender até à última extremidade esses penhores confiados ao seu amor de esposo e de pai.
Se a Providência não permitisse que um milagre os viesse salvar, morreriam todos; mas ele contava ser o último, a fim de velar que mesmo sobre os seus despojos não atirassem um insulto.
Era o seu dever de pai, e o seu dever de chefe; como o capitão, que é o último a abandonar o seu navio, ele seria o último a abandonar a vida, depois de ter assegurado às cinzas dos seus o respeito que se deve aos mortos.
Bem mudada estava essa casa que vimos tão alegre e tão animada! Parte do edifício que tocava com o fundo onde habitavam os aventureiros tinha sido abandonada por prudência; D. Antônio concentrara sua família no interior da habitação para evitar algum acidente.
Cecília deixara o seu quartinho tão lindo e tão mimoso, e nele estabelecera Peri o seu quartel-general e o seu centro de operações; porque, é preciso dizer, o índio não partilhava o desanimo geral, e tinha uma confiança inabalável nos seus recursos.
Seriam dez horas da noite: a lâmpada de prata suspensa no teto da grande sala iluminava uma cena triste e silenciosa.
Todas as janelas e portas estavam fechadas; de vez em quando ouvia-se o estrépito que fazia uma seta cravando-se na madeira, ou enfiando-se por entre as telhas.
Nas duas extremidades da sala e na frente tinham-se praticado no alto da parede algumas seteiras, junto das quais os aventureiros faziam à noite uma sentinela constante, a fim de prevenir uma surpresa.
D. Antônio de Mariz, sentado numa cadeira de espaldar, sob o dossel, repousava um instante; o dia fora rude; os índios tinham investido por diferentes vezes a escada de pedra da esplanada; e o fidalgo com o pequeno número de combatentes de que dispunha e com o auxilio da colubrina conseguira repeli-los.
A sua clavina carregada descansava de encontro ao espaldar da cadeira; e as suas pistolas estavam colocadas em cima de um bufete ao alcance do braço.
Sua bela cabeça encanecida, pendida ao seio, ressaltava sobre o veludo preto de seu gibão, coberto por uma rede finíssima de malhas de aço que lhe guarnecia o peito.
Parecia adormecido; mas de vez em quando erguia os olhos e corria o vasto aposento, contemplando com uma melancolia extrema a cena que se desenhava no fundo meio esclarecido da sala.
Depois voltava à mesma posição, e continuava suas dolorosas reflexões; o fidalgo conservava toda a firmeza e coragem, mas interiormente tinha perdido a esperança.
Do lado oposto Cecília recostada em um sofá parecia desfalecida; seu rosto perdera a habitual vivacidade: seu corpo ligeiro e gracioso, alquebrado por tantas emoções prostrava-se com indolência sobre uma colcha de damasco. A mãozinha caia imóvel como uma flor a que tivessem quebrado a haste delicada; e os lábios descorados agitavam-se às vezes murmurando uma prece.
De joelhos à beira do sofá, Peri não tirava os olhos de sua senhora; dir-se-ia que aquela respiração branda que fazia ondular os seios da menina, e que se exalava de sua boca entreaberta, era o sopro que alimentava a vida do índio.
Desde o momento da revolta não deixou mais Cecília; seguia-a como uma sombra; sua dedicação, já tão admirável, tinha tocado o sublime com a iminência do perigo. Durante estes dois dias ele havia feito coisas incríveis, verdadeiras loucuras do heroísmo e abnegação.
Sucedia que um selvagem aproximando-se da casa soltava um grito que vinha causar um ligeiro susto à menina?
Peri lançava-se como um raio, e antes que tivesse tempo de contê-lo, passava entre uma nuvem de flechas, chegava à beira da esplanada, e com um tiro de sua clavina abatia o Aimoré que assustara sua senhora, antes que ele tivesse tempo de soltar um segundo grito.
Cecília, aflita e doente, recusava tomar o alimento que sua mãe ou sua prima lhe traziam?
Peri correndo mil perigos, arriscando-se a despedaçar-se nas pontas dos rochedos e a ser crivado pelas flechas dos selvagens, ganhava a floresta, e daí a uma hora voltava trazendo um fruto delicado, um favo de mel envolto de flores, uma caça esquisita, que sua senhora tocava com os lábios para assim pagar ao menos tanto amor e tanta dedicação.
As loucuras do índio chegaram a ponto que Cecília foi obrigada a proibir-lhe que saísse de junto dela, e a guardá-lo à vista com receio de que não se fizesse matar a todo o momento.
Além da amizade que lhe tinha, um quer que seja, uma esperança vaga lhe dizia que na posição extrema em que se achavam, se alguma salvação podia haver para sua família seria à coragem, à inteligência, e à sublime abnegação de Peri que a deveriam.
Se ele morresse quem velaria sobre ela com a solicitude e o ardente zelo que tinha ao mesmo tempo o carinho de uma mãe, a proteção de um pai, a meiguice de um irmão? Quem seria seu anjo da guarda para livrá-la de um pesar, e ao mesmo tempo seu escravo para satisfazer o seu menor desejo?
Não; Cecília não podia de modo algum admitir nem a possibilidade de que seu amigo viesse a morrer; por isso mandou, pediu, e até suplicou-lhe que não saísse de junto dela; queria por sua vez ser para Peri o bom anjo de Deus, o seu gênio protetor.
Do mesmo lado em que estava Cecília, mas num outro canto da sala, via-se Isabel sentada de encontro à ombreira da janela; enfiava um olhar ardente, cheio de ansiedade e de susto, por uma pequena fresta, que ela entreabrira a furto.
O raio de luz que filtrava por esta aberta da janela servia de mira aos índios, que faziam chover setas sobre setas naquela direção; mas Isabel, alheia de si, nem se importava com o perigo que corria.
Ela olhava Álvaro, que no alto da escada com a maior parte dos aventureiros fiéis, fazia a guarda noturna; o moço passeava pela esplanada ao abrigo de uma ligeira paliçada. Cada seta que passava por sua cabeça, cada movimento que fazia, causava em Isabel uma aflição imensa; sentia não poder estar junto dele para ampará-lo, e receber a morte que lhe fosse destinada.
D. Lauriana, sentada em um dos degraus do oratório, rezava; a boa senhora era uma das pessoas que mais coragem e mais calma mostravam no transe horrível em que se achava a família animada pela sua fé religiosa e pelo sangue nobre que girava nas suas veias, ela se tinha conservado digna de seu marido.
Fazia tudo quanto era possível; pensava os feridos, encorajava as meninas, auxiliava os preparativos de defesa, e ainda em cima dirigia sua casa como se nada se passasse.
Aires Gomes encostado à porta do gabinete, com os braços cruzados e imóvel, dormia; o escudeiro guardava o posto que lhe fora confiado pelo fidalgo. Desde a conferência que os dois tinham tido, Aires se postara naquele lagar, donde não saia senão quando D. Antônio vinha sentar-se na cadeira que havia junto da porta.
Dormia de pé; porém mal um passo, por mais sutil que fosse, soava no pavimento, acordava sobressaltado com a pistola em punho e a mão sobre o fecho da porta.
D. Antônio de Mariz levantou-se, e passando à cinta as suas pistolas e tomando a sua clavina, dirigiu-se ao sofá onde repousava sua filha, e beijou-a na fronte; fez o mesmo a Isabel, abraçou sua mulher e saiu. O fidalgo ia render a Álvaro, que fazia o seu quarto desde o anoitecer; poucos momentos depois de sua saída, a porta abriu-se de novo, e o cavalheiro entrou.
Álvaro trajava um gibão de lã forrado de escarlate; quando ele apareceu no vão da porta, Isabel soltou um grito fraco e correu para ele.
— Estais ferido? perguntou a moça com ansiedade, e tomando-lhe as mãos.
— Não; respondeu o moço admirado.
— Ah!... exclamou Isabel respirando.
Tinha-se iludido; o rasgão que uma flecha fizera sobre o ombro mostrando o forro escarlate do gibão, tinha de repente lhe parecido uma ferida.
Álvaro procurou desprender suas mãos das mãos de Isabel, mas a moca suplicando-o com o olhar e arrastando-o docemente, levou-o até o lugar onde estava há pouco, e obrigou o cavalheiro a sentar-se junto dela.
Muitos acontecimentos se tinham passado entre eles nestes dois dias; há circunstâncias em que os sentimentos marcham com uma rapidez extraordinária, e devoram meses e anos num só minuto.
Reunidos nesta sala pela necessidade extrema do perigo, vendo-se a cada momento, trocando ora uma palavra, ora um olhar, sentindo-se enfim perto um do outro, esses dois corações, se não se amavam, compreendiam-se ao menos.
Álvaro fugia e evitava Isabel; tinha medo desse amor ardente que o envolvia num olhar, dessa paixão profunda e resignada que se curvava a seus pés sorrindo melancolicamente. Sentia-se fraco para resistir, e entretanto o seu dever mandava que resistisse.
Ele amava, ou cuidava amar ainda Cecília; prometera a seu pai ser seu marido; e na situação em que se achavam, aquela promessa era mais do que um juramento, era uma necessidade imperiosa, uma fatalidade que se devia cumprir.
Como podia ele pois alimentar uma esperança de Isabel? Não seria infame, indigno, aceitar o amor que ela lhe oferecera suplicando? Não era seu dever destruir naquele coração esse sentimento impossível?
Álvaro pensava assim, e evitava todas as ocasiões de estar só com a moça, porque conhecia a impressão veemente, a atração poderosa que exercia essa beleza fascinadora quando a paixão, animando-a, cercava-a de um brilho deslumbrante.
Dizia a si mesmo que não amava, que nunca amaria Isabel! Entretanto, sabia que se ele a visse outra vez como no momento em que lhe confessara seu amor, cairia de joelhos a seus pés, e esqueceria o dever, a honra, tudo por ela.
A luta era terrível; mas a alma nobre do cavalheiro não cedia e combatia heroicamente: podia ser vencida, mas depois de ter feito o que fosse possível ao homem para conservar-se fiel à sua promessa.
O que tornava a lata ainda mais violenta era que Isabel não o perseguia com o seu amor; depois daquela primeira alucinação concentrava-se, e resignada amava sem esperança de nunca ser amada.
Capítulo IX: Esperança
Sentando-se junto da moça, Álvaro sentiu a sua coragem vacilar.
— Que me quereis, Isabel? perguntou ele com a voz um pouco trêmula.
A menina não respondeu; estava embebida a contemplar o moço; saciava-se de olhá-lo, de senti-lo junto de si, depois de ter sofrido a angústia de ver a morte rogando a sua cabeça e ameaçando a sua vida.
É preciso amar para compreender essa voluptuosidade do olhar que se repousa sobre o objeto amado, que não se cansa de ver aquilo que está impresso na imaginação, mas que tem sempre um novo encanto.
— Deixai-me olhar-vos! respondeu Isabel suplicando. Quem sabe! Talvez seja pela última vez!
— Por que essas idéias tristes? disse Álvaro com brandura. A esperança ainda não está de todo perdida.
— Que importa?... exclamou a moça. Ainda há pouco vos vi de longe que passeáveis sobre a esplanada, e a cada momento me parecia que uma seta vos tocava, vos feria e...
— Como?... Tivestes a imprudência de abrir a janela?
O moço voltou-se; e estremeceu vendo a janela entreaberta, crivada da parte exterior pelas setas dos selvagens.
— Meu Deus!... exclamou ele; por que expondes assim a vossa vida, Isabel?...
— Que vale a minha vida, para que a conserve? disse a moça animando-se. Tem ela algum prazer, alguma ventura, que me prenda? De que serviria a existência se não fosse para satisfazer um impulso de nossa alma? A minha felicidade é acompanhar-vos com os olhos e com o pensamento. Se esta felicidade me deve custar a vida, embora!...
— Não faleis assim, Isabel, que me partis a alma.
— E como quereis que fale? Mentir-vos é impossível; depois daquele dia, em que trai o meu segredo, de escravo que ele era tornou-se senhor, senhor despótico e absoluto. Sei que vos faço sofrer...
— Nunca disse semelhante coisa!
— Sois bastante generoso para dizê-lo, mas sentis. Eu conheço, eu leio nos vossos menores movimentos. Vós me estimais talvez como irmão, mas fugis de mim, e tendes receio que Cecília pense que me amais; não é verdade?
— Não, exclamou Álvaro insensivelmente; tenho receio, tenho medo... mas é de amar-vos!
Isabel sentiu uma comoção tão violenta ouvindo as palavras rápidas do moço, que ficou como estática sem fazer um movimento; as palpitações fortes do seu coração a sufocavam.
Álvaro não estava menos comovido; subjugado por aquele amor ardente, impressionado pela abnegação da menina que expunha sua vida só para acompanhá-lo de longe com um olhar e protegê-lo com a sua solicitude, tinha deixado escapar o segredo da luta que se passava em sua alma.
Mas apenas pronunciara aquelas palavras imprudentes, conseguiu dominar-se, e tornando-se frio e reservado, falou a Isabel em um tom grave.
— Sabeis que amo Cecília; mas ignorais que prometi a seu pai ser seu marido. Enquanto ele por sua livre vontade não me desligar de minha promessa, estou obrigado a cumpri-la. Quanto ao meu amor, este me pertence, e só a morte me pode desligar dele. No dia em que eu amasse outra mulher que não ela, me condenaria a mim mesmo como um homem desleal.
O moço voltou-se para Isabel com um triste sorriso:
— E compreendeis o que faz um homem desleal que tem ainda a consciência precisa para se julgar a si?
Os olhos da moça brilharam com um fogo sinistro:
— Oh! compreendo!... É o mesmo que faz a mulher que ama sem esperança, e cujo amor é um insulto ou um sofrimento para aquele a quem ama!
— Isabel!... exclamou Álvaro estremecendo.
— Tendes razão! Só a morte pode desligar de um primeiro e santo amor aos corações como os nossos!
— Deixai-vos dessas idéias, Isabel! Crede-me; uma única razão pode justificar semelhante loucura.
— Qual? perguntou Isabel.
— A desonra.
— Há ainda outra, respondeu a moça com exaltação: outra menos egoísta, mas tão nobre como esta; a felicidade daqueles que se amam.
— Não vos compreendo.
— Quando se sabe que se pode ser uma causa de desgraça para aqueles que se estima, melhor é desatar o único laço que nos prende à vida do que vê-lo despedaçar-se. Não dizíeis que tendes medo de amar-me? Pois bem, agora sou eu que tenho medo de ser amada.
Álvaro não soube o que responder: estava numa terrível agitação: conhecia Isabel, e sabia que força tinham aquelas palavras ardentes que soltavam os lábios da moça.
— Isabel! disse ele tomando-lhe as mãos. Se me tendes alguma afeição, não me recuseis a graça que vou pedir-vos. Repeli esses pensamentos! Eu vos suplico!
A moça sorriu-se melancolicamente:
— Vós me suplicais?... Me pedis que conserve esta vida que recusastes!... Não é ela vossa? Aceitai-a; e já não tereis que suplicar!
O olhar ardente de Isabel fascinava; Álvaro não se pôde mais conter; ergueu-se, e reclinando-se ao ouvido da moça balbuciou:
— Aceito!
Enquanto Isabel, pálida de emoção e felicidade, duvidava ainda da voz que ressoava no seu ouvido, o moço tinha saído da sala.
Durante que Álvaro e Isabel conversavam a meia voz, Peri continuava a contemplar a sua senhora.
O índio estava pensativo: e via-se que uma idéia o preocupava, e absorvia toda a sua atenção.
Por fim levantou-se, e lançando um último olhar repassado de tristeza a Cecília, encaminhou-se lentamente para a porta da sala.
A menina fez um ligeiro movimento e levantou a cabeça:
— Peri!...
Ele estremeceu, e voltando foi de novo ajoelhar-se junto do sofá.
— Tu me prometeste não deixar tua senhora! disse Cecília com uma doce exprobração.
— Peri quer te salvar.
— Como?
— Tu saberás. Deixa Peri fazer o que tem no pensamento.
— Mas não correrás nem um perigo?
— Por que perguntas isso, senhora? disse o índio timidamente.
— Por quê?... exclamou Cecília levantando-se com vivacidade. Porque se para nos salvar é preciso que tu morras, eu rejeito o teu sacrifício, rejeito-o em meu nome e no de meu pai.
— Sossega, senhora; Peri não teme o inimigo; sabe o modo de vencê-lo.
A menina abanou a cabeça com ar incrédulo.
— Eles são tantos!...
O índio sorriu com orgulho.
— Sejam mil; Peri vencerá a todos, aos índios e aos brancos.
Ele pronunciou estas palavras com a expressão de naturalidade e ao mesmo tempo de firmeza que dá a consciência da força e do poder.
Contudo Cecília não podia acreditar o que ouvia; parecia-lhe inconcebível que um homem só, embora tivesse a dedicação e o heroísmo do índio, pudesse vencer não só os aventureiros revoltados, como os duzentos guerreiros Aimorés que assaltavam a casa.
Mas ela não contava com os recursos imensos de que dispunha essa inteligência vigorosa, que tinha ao seu serviço um braço forte, um corpo ágil, e uma destreza admirável; não sabia que o pensamento é a arma mais poderosa que Deus deu ao homem, e que com ela se abatem os inimigos, se quebra o ferro, se doma o fogo, e se vence por essa força irresistível e providencial que manda ao espírito dominar a matéria.
— Não te iludas; vais fazer um sacrifício inútil. Não é possível que um homem só vença tantos inimigos, ainda mesmo que esse homem seja Peri.
— Tu verás! respondeu o índio com segurança.
— E quem te dará força para lutar contra um poder tão grande?...
— Quem?... Tu, senhora, tu só, respondeu o índio fitando nela o seu olhar brilhante.
Cecília sorriu como devem sorrir os anjos.
— Vai, disse ela, vai salvar-nos. Mas lembra-te que se tu morreres, Cecília não aceitará a vida que lhe deres.
Peri ergueu-se.
— O sol que se levantar amanhã será o último para todos os teus inimigos; Ceci poderá sorrir como dantes, e ficar alegre e contente.
A voz do índio tornou-se trêmula; sentindo que não podia vencer a emoção atravessou rapidamente a sala e saiu.
Chegando à esplanada Peri olhou as estrelas que começavam a apagar-se, e viu que o dia pouco tardaria a raiar: não tinha tempo a perder.
Qual era o projeto que havia concebido, e que lhe dava uma certeza e uma convicção profunda a respeito do seu resultado? Que meio ousado tinha ele para contar com a destruição dos inimigos e a salvação de sua senhora?
Fora difícil adivinhar; Peri guardava no fundo do coração esse segredo impenetrável, e nem a si mesmo o dizia com receio de trair-se, e de anular efeito, que esperava com uma confiança inabalável.
Tinha todos os inimigos na sua mão; e bastava-lhe um pouco de prudência para fulminá-los a todos como a cólera celeste, como o fogo de raio.
Peri dirigiu-se ao jardim e entrou no quarto de Cecília então abandonado por sua senhora, por causa da proximidade em que ficava do fundo da casa ocupada pelos aventureiros revoltados.
O quarto estava às escuras: mas a tênue claridade que entrava pela janela bastava ao índio para distinguir os objetos perfeitamente; a perfeição dos sentidos era um dom que os selvagens possuíam no mais alto grau.
Ele tomou suas armas uma a uma, beijou as pistolas que Cecília lhe havia dado e deitou-as no chão no meio do aposento, tirou os seus ornatos de penas, sua faixa de guerreiro, a pluma brilhante do seu cocar e lançou-os como um troféu sobre as suas armas.
Depois agarrou o seu grande arco de guerra, apertou-o ao seio e curvando-o de encontro ao joelho quebrou-o em duas metades, que foram juntar-se às armas e aos ornatos.
Por algum tempo Peri contemplou com um sentimento de dor profunda esses despojos de sua vida selvagem; esses emblemas de sua dedicação sublime por Cecília, e de seu heroísmo admirável.
Em luta com essa emoção poderosa, insensivelmente murmurou na sua língua algumas dessas palavras que a alma manda aos lábios nos momentos supremos:
— Arma de Peri, companheira e amiga, adeus! Teu senhor te abandona e te deixa: contigo ele venceria; contigo ninguém poderia vencê-lo. E ele quer ser vencido...
O índio levou a mão ao coração:
— Sim!... Peri, filho de Ararê, primeiro de sua tribo, forte entre os fortes, guerreiro goitacá, nunca vencido, vai sucumbir na guerra. A arma de Peri não pode ver seu senhor pedir a vida ao inimigo; o arco de Ararê, já quebrado, não salvará o filho.
Sua cabeça altiva e sobranceira enquanto pronunciava estas palavras caiu-lhe sobre o seio; por fim venceu a sua emoção, e cingindo nos seus braços esses troféus de suas armas e de suas insígnias de guerra, estreitou-as ao peito em um último abraço de despedida.
Um aroma agreste das plantas que começavam a se abrir com a aproximação do dia, avisou-lhe que a noite estava a acabar.
Quebrou a axorca de frutos que trazia na perna sobre o artelho, como todos os selvagens: este ornato era feito de pequenos cocos ligados por um fio e tingidos de amarelo.
Peri tomou dois destes frutos e partiu-os com a faca, sem contudo separar as cascas; fechando-os então na sua mão, levantou o braço como fazendo um desafio ou uma ameaça terrível e lançou-se fora do aposento.
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