Tuesday 12 September 2023

Tuesday's Serial: "Ubirajara: lenda tupy" by José de Alencar (in Portuguese) - I

 

CAPÍTULO I — O CAÇADOR

Pela margem do grande rio caminha Jaguarê, o joven caçador.

O arco pende-lhe ao hombro, esquecido e inutil. As flechas dormem no coldre da niraçaba.

Ora veados saltam das moitas de ubaia e vem retouçar na gramma, zombando do caçador.

Jaguarê não vê o timido campeiro, seus olhos buscam uni inimigo capaz de resistir-lhe ao braço robusto.

O rugido do jaguar abala a floresta; mas o caçador tambem despreza o jaguar, que já cansou de vencer.

Elle chama-se Jaguarê, o mais feroz jaguar da floresta; os outros fogem espavoridos quando de longe o presentem.

Não é esse o inimigo que procura, porém outro mais terrivel, para vencel-o em combate de morte e ganhar nome de guerra.

Jaguarê chegou á idade em que o mancebo troca a fama do caçador pela gloria do guerreiro.

Para ser acclamado guerreiro por sua nação é preciso que o joven caçador conquiste esse titulo por uma grande façanha.

Por isso deixou a taba dos seus e a presença de Jandyra, a virgem formosa que lhe guarda o seio de esposa.

Mas o sol tres vezes guiou o passo rapido do caçador atravez das campinas e tres vezes, como agora, deitou-se além nas montanhas do Aratuba, sem mostrar-lhe um inimigo digno de seu valor.

A sombra vae descendo da serra pelo valle e a tristeza cáe da fronte sobre a face de Jaguarê.

O joven caçador empunha a lança de duas pontas, feita da roxa craúba, mais rija que o ferro.

Nenhum guerreiro brandiu jamais essa arma terrivel, que sua mão primeiro fabricou.

Lá estaca o joven caçador no meio da campina. Volvendo ao céo o olhar torvo e iracundo, solta ainda uma vez seu grito de guerra.

O bramido rolou pela amplidão da matta e foi morrer longe nas cavernas da montanha.

Respondeu o ronco da sucury na madre do rio e o urro do tigre escondido na furna; mas outro grito de guerra não acudiu ao desafio do caçador.

Jaguarê arremessou a lança, que vibrou nos ares e foi cravar-se além, no grosso tronco da emburana.

A copa frondosa ramalhou, como as pal- mas do coqueiro ao sôpro do vento e o tronco gemeu até á raiz.

O caçador repousa á sombra de sua lança.

 

Salta uma corça da matta e veloz atra- vessa a campina.

Mais veloz a persegue gentil caçadora com a setta embebida no arco flexível.

Ergue-se Jaguarê.

Seu olhar ardente voou, soffrego de encontrar o inimigo que lhe tardava.

Avistando uma mulher, a alegria do mancebo apagou-se no rosto sombrio.

Pela facha, côr de ouro, tecida das pennas do tucano, Jaguarê conheceu que era uma filha da valente nação dos tocantins, senhora do grande rio, cujas margens elle pisava.

A liga vermelha que cingia a perna esbelta da estrangeira dizia que nenhum guerreiro jamais possuirá a virgem formosa.

A corça veiu cahir aos pés de Jaguarê, atravessada pela flecha certeira da joven caçadora que a seguia de perto.

A virgem reconheceu o cocar da nação que na ultima lua chegára aos campos do Taary e da qual os pagés tinham dado noticia.

— Guerreiro araguaya, pois vejo pela penna vermelha de teu cocar que pertences a essa nação valente, si pisas os campos dos tocantins como hospede, bem vindo sejas; mas si vens como inimigo, foge, para que tua mãi não chore a morte de seu filho e tenha quem a proteja na velhice.

— Virgem dos tocantins, Jaguarê já soltou seu grito de guerra. Elle pisa os campos de teus pais, como senhor. Tu és sua prisioneira. Não que vencer a corça timida seja gloria para o caçador; mas tu chamarás o inimigo que elle espera.

— Si o veado te der a sua ligeireza, joven guerreiro, ella não te servirá senão para vêr o rasto de meu pé antes que o vento o apague.

A linda caçadora desferiu a corrida pela immensa campina. Apóz ella se arremessou Jaguarê, que muitas vezes vencera o tapyr.

Mas a virgem dos tocantins corria como a nandú no deserto e o caçador conheceu que seu braço nunca poderia alcançal-a.

Travou do arco e o brandiu. A setta obedeceu-lhe, pregando no tronco do assahy a facha que fluctuava ao sopro do vento.

— A filha dos tocantins tem no pé as azas do beija-flôr ; mas a setta de Jaguarê vôa como o gavião. Não te assustes, virgem das florestas; tua formosura venceu o impeto de meu braço e apagou a colera no coração feroz do caçador. Feliz o guerreiro que te possuir.

— Eu sou Aracy, a estrella do dia, filha de Itaquê, pai da grande nação tocantim. Cem dos melhores guerreiros o servem em sua cabana para merecer que elle o escolha por filho. O mais forte e valente me terá por esposa. Vem commigo, guerreiro araguaya, excede os outros no trabalho e na constancia e tu romperás a liga de Aracy na próxima lua do amor.

— Não, filha do sol ; Jaguaré não deixou a taba de seus pais, onde Jandyra lhe guarda o seio de esposa, para ser escravo da virgem. Elle vem combater e ganhar um nome de guerra que encha de orgulho a sua nação. Torna á taba dos tocantins e dize aos cem guerreiros captivos de teu amor que Jaguaré, o mais destemido dos caçadores araguayas, os desafia ao combate.

— Aracy vae, pois assim o queres. Si fôres vencido, ella guardará tua lembrança, pois nunca seus olhos viram mais bello caça- dor. Si fores vencedor, será uma alegria para a virgem do sol pertencer ao mais valente dos guerreiros.

A virgem disse e desappareceu na selva. Os olhos de Jaguarê seguiram o passo ligeiro da formosa caçadora, como o gua- chimim que rasteja a zabelê.

Quando ella desappareceu, o joven caçador recostou-se ao tronco da emburana e esperou.

 

Do outro lado da campina assoma um guerreiro.

Tem na cabeça o kanitar das plumas de tocano e no punho do tacape uma franja das mesmas pennas.

E' um guerreiro tocantim. De longe avistou Jaguarê e reconheceu o pennacho vermelho dos araguayas.

As duas nações não estão em guerra, mas sem quebra de fé pôde um guerreiro, cansado do longo repouso, offerecer a outro guerreiro combate leal.

Quando o tocantim armou o arco, Jaguarê já tinha brandido o seu e disparado no ar uma setta, mensageira do desafio.

Respondeu o guerreiro disparando tambem uma flecha no ar, para dizer que aceitava o combate.

Então os dois campeões caminharam um para o outro com passo grave e pararam frente a frente.

— Eu sou Jaguarê, filho de Camacan, chefe da valente nação dos araguayas, que vem de longe em busca da terra de seus pais. Minha fama corre as tabas e tu já deves conhecer o maior caçador das florestas. Mas Jaguarê despreza a fama do caçador; elle quer um nome de guerra, que diga ás nações a força de seu braço e faça tremer aos mais bravos. Si tua nação te acclamou forte entre os fortes, prepara-te para morrer; sinão, passa teu caminho, guerreiro vil, para que o sangue do fraco não manche o tacape virgem de Jaguarê.

— O caraiba guiou teu passo ao encontro de Pojucan, o matador de gente, guerreiro chefe da terrível nação tocantim, que enche de terror as outras nações. Ha tres luas, desde que fugiram espavoridos os barbaros Tapuyas, que Pojucan não combate; e seu tacape tem fome do inimigo. Tu não és digno dos golpes de um guerreiro chefe; mas Pojucan se compadece de tua mocidade e consente em combater comtigo. Terás a gloria de ser morto pelo mais valente guerreiro tocantim. Os cantores de meus feitos lembrarão teu nome; e todos os mancebos de tua nação invejarão tua sorte.

— Jaguarê agradece a Tupan que te fez urp grande guerreiro e o chefe mais feroz da grande nação tocantim, Pojucan, matador de gente. A tua morte será a primeira façanha do caçador araguaya e lhe dará um nome de guerra que se torne o espanto dos teus e o terror das outras nações.

Os dois campeões recuaram passo a passo até que se acharam a um tiro de arco.

Então soltaram o grito de guerra e se arremessaram um contra o outro, brandindo o tacape.

 

Os tacapes toparam no ar e os dois guerreiros rodaram como as torrentes impetuosas no remoinho da Itaoca.

Dez vezes as clavas bateram e dez vezes volveram para bater de novo.

Os animaes que passavam na floresta fugiram espavoridos, como si a borrasca ribombasse no céo.

Ainda uma vez encontraram-se os dois tacapes e voaram em lascas pelos ares.

— O ubiratan é forte; mas ha outro ubiratan que lhe resiste. Como o braço de Pojucan é que não ha outro braço. Já viste, joven caçador, o veado nas garras da giboia? Assim vais morrer.

— Si tu fosses a cascavel que sómente sabe morder, Jaguarê te esmagaria a cabeça com o pé e seguiria seu caminho. Mas tu és a giboia feroz e Jaguarê gosta de estrangular a giboia. Não morrerás pelo pé, mas pela mão do caçador. Lança teu bote, guerreiro tocantim.

Pojucan estendeu os braços e estreitou os rins de Jaguarê, que por sua vez cingiu os lombos do guerreiro.

Cada um dos campeões poz na luta todas as suas forças, bastantes para arrancar o tronco mais robusto da matta.

Ambos, porém, ficaram immoveis. Eram dois jatobás que nasceram juntos e entrelaçaram os galhos, ligando-se no mesmo tronco.

Nada os desprende; nada os abala. O tufão passa bramindo sem agital-os; e elles permanecem quedos pelo volver dos tempos.

Um pagé que passou na orla da matta viu os lutadores e esconjurou-os, pensando que eram almas de dois guerreiros presos no abraço da morte.

Já a sombra se desdobrava pelo valle fóra e o sol despedia-se dos cimos dos montes, sem que os campeões se movessem.

Por fim affrouxaram os braços e cada lutador recuou para contemplar seu adversario. Nenhum mostrava no rosto sombra de fadiga.

Conheceram que podiam lutar corpo a corpo a noite inteira, sem que um prostrasse o outro.

— Tu és igual na valentia e na força ao guerreiro chefe da nação tocantim. Mas Pojucan não consente que haja na terra quem resista a seu braço. É preciso que tu morras, Jaguarê, para que elle seja o primeiro dos guerreiros que o sol allumia. — Pojucan, matador de gente, guerreiro feroz da nação tocantim, Jaguarê deixou-te viver até este momento para saber si tu eras digno de dar-lhe um nome de guerra. Agora que te conhece como o primeiro dos guerreiros que existiram até este momento, elle quer que tua derrota seja a sua primeira façanha.

Disse e arrancando do tronco da emburana a lança de duas pontas caminhou outra vez para Pojucan.

— Esta arma que tu vês é a lança de duas pontas. Jaguarê fabricou-a do rijo galho da craúba, endurecido pelo fogo. Sua mão foi a primeira que a arremessou e teu corpo é o primeiro cujo sangue ella vae beber. Empunha a lança de duas pontas, guerreiro chefe, e ataca Jaguarê para receberes a morte dos valentes.

 

Pojucan repelliu a lança que o joven caçador lhe apresentára.

— Jamais no combate um guerreiro tocantim atacará seu adversario desarmado; nem Pojucan precisa da lança. Ataca tu, Jaguarê, que não tens confiança em teu braço; o de Pojucan basta para te prostrar.

— O orgulho te cega, guerreiro chefe. A lança conhece Jaguarê que a inventou e lhe obedece como o arpão á corda do pescador. Aperta-a bem em tua mão robusta e Jaguarê estará duas vezes mais armado do que tu, que não sabes manejal-a.

O chefe tocantim cruzou os braços.

— Toma a lança, Pojucan, si não queres que te chame covarde; pois tu sabes que Jaguarê não te matará desarmado, mas te abandonará como indigno de combater com o filho do maior guerreiro araguaya, o grande Camacan.

O chefe tocantim arrojou-se contra Jaguarê, que travou-lhe dos pulsos, e outra vez os dois campeões ficaram immoveis.

A noite veiu achal-os na mesma posição.

Três vezes cessaram a luta e de novo a travaram. Mas, afinal, se convenceram de que nenhum derrubaria o outro.

Então Pojucan disse:

— Guerreiro araguaya, é preciso acabar o combate. A terra não chega para dois guerreiros como nós. Finca no chão a lança e caminhemos até á margem do rio. Aquelle que primeiro chegar, será o senhor da lança e da vida do outro.

Assim fizeram os dois campeões. Chegados á margem do rio, dispararam a corrida. Ao mesmo tempo a mão de ambos tocou a haste da lança; mas Jaguarê, arremessado pelo impeto da desfilada, não pôde arrancar a arma que ficou na mão de Pojucan.

 

O guerreiro chefe enrista desdenhosamente a lança e caminha para Jaguarê.

Não vai como o guerreiro que marcha ao combate, mas como o matador que se prepara para immolar a victima.

— Guerreiro chefe, Jaguarê não te quer matar como a serpente que ataca o descuidado caçador. Dez vezes já si quizesse elle te houvera ferido com tua própria mão.

— Abandona a gloria do guerreiro, que não é para ti, nhengahiba. Pojucan te concederá a vida e te levará captivo á taba dos tocantins para que tu cantes as suas façanhas na festa dos guerreiros.

— Captivo serás tu, mas não para cantar os feitos dos guerreiros. Tu servirás na taba dos araguayas para ajudar as velhas a varrer a oca.

Arremessou-se Pojucan avante e desfechou o golpe; mas a lança rodara e foi o chefe tocantim que recebeu no peito a ponta farpada.

Quando o corpo robusto de Pojucan tombava, cravado pelo dardo, Jaguarê dum salto calcou a mão direita sobre o hombro esquerdo do vencido, e, brandindo a arma sangrenta, soltou o grito do triumpho:

— Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro invencível que tem por arma a serpente. Reconhece o teu vencedor, Pojucan, e proclama o primeiro dos guerreiros, pois te venceu a ti, o maior guerreiro que existiu antes delle.

— Si meu valor, que serviu para augmentar a tua fama, merece de ti uma graça, não deixes que Pojucan soffra mais um instante a vergonha de sua derrota.

— Não, chefe tocantim. Tu me acompanharás á taba dos araguayas para narrar meu valor. A fama de Jaguarê precisa de um prisioneiro como o grande Pojucan na festa da victoria.

— Tu és cruel, guerreiro da lança; mas fica certo de que si tua arma traiçoeira feriu-me o peito, o supplicio não vencerá a constancia do varão tocantim, que sabe affrontar as iras de Tupan e desprezar a vingança dos araguyas.

 

 

CAPÍTULO II — O GUERREIRO

Retumba a festa na taba dos araguayas.

As fogueiras circulam a vasta ocara e derramam no seio da noite escura as chammas da alegria.

Toda a tarde o troçano reboou chamando os guerreiros das outras tabas á grande taba do chefe.

Era a festa guerreira de Jaguarê, filho de Camacan, o maior chefe dos araguayas.

No fundo da ocara preside o conselho dos anciãos, que decide da paz ou da guerra e governa a valente nação.

Os anciãos sentados no longo giráo contemplam taciturnos a geração de guerreiros que elles ensinaram a combater e têm saudades da passada gloria.

Suspenso em frente delles está o grande arco da nação araguaya, ornado nas pontas, das pennas vermelhas da arara.

E' a insignia do chefe dos guerreiros, a qual Camacan, pai de Jaguarê, conquistou na mocidade e ainda a conserva, pois ninguem ousa disputal-a.

Eil-o, o velho chefe, embaixo do arco, que sua mão tantas vezes brandiu na guerra. Em pé, arrimado ao invencível tacape, elle dirige a festa.

De um e outro lado da vasta ocara, está a multidão dos guerreiros, collocados por sua ordem; primeiro, os chefes das tabas; depois, os varões; por ultimo, os moços guerreiros.

Vêm depois os jovens caçadores que já deixaram a oca materna e estão impacientes de ganhar por suas proezas a honra de serem admittidos entre os guerreiros.

Mas para isso têm de passar pelas provas, e sua juventude não lhes consente ainda a robustez, que tamanho esforço demanda.

Todos invejam a gloria de Jaguarê, que hontem era o primeiro entre elles e hoje ali está disputando a fama aos mais valentes guerreiros. Por detraz da estacada apinham-se as mulheres, que, segundo o rito patrio, não pódem ser admittidas nas festas guerreiras.

De longe acompanham silenciosas, com os olhos, as velhas aos filhos, as esposas aos seus guerreiros e as virgens aos noivos.

Exultam quando ouvem celebrar as façanhas dos seus; mas não ousam murmurar uma palavra.

Entre ellas está Jandyra, a doce virgem, cujos negros olhos não se cançam de admirar Jaguarê, seu futuro senhor.

Já lhe tarda o momento de ver acclamar guerreiro ao joven caçador, para ter a felicidade de servil-o como escrava na paz e acompanhal-o como esposa ao combate.

No centro da ocara ergue-se Jaguarê.

Defronte delle, Pojucan, no corpo que a ferida não abateu, mostra a grande alma, serena em face dos inimigos.

Camacan troou a inubia para ordenar silencio e o filho começou:

— Guerreiros araguayas, ouvi a minha historia de guerra.

«Depois que Jaguarê soffreu as provas do valor, partiu para conquistar um nome famoso.

«Deixando a taba, viu o falcão negro que despedia o vôo para as aguas sem fim e Jaguarê disse:

«O falcão negro é o valente guerreiro dos ares; elle será a fama do guerreiro araguaya que atravessará as nuvens e subirá ao céo.

«Então Jaguarê marcou o vôo do falcão negro e seguiu por elle.

«O sol despediu-se e voltou, uma, duas, tres vezes. No ultimo sol. Jaguarê encontrou um guerreiro da nação tocantim, senhora do grande rio.

«Guerreiros araguayas, quereis saber qual foi o campeão que Tupan enviou a Jaguarê para dar-lhe o nome de guerra?

«Elle ahi está diante de vós.

«E' o grande Pojucan, o feroz matador de gente, chefe da tribu mais valente da poderosa nação dos tocantins, senhores do grande rio.

«Vós, que o tendes aqui presente, vêde como é terrível o seu aspecto, mas só eu que o pelejei conheço o seu valor no combate.

«O tacape em sua mão possante é como o tronco do ubiratan que brotou no rochedo e cresceu.

«Jaguarê, que arranca da terra o cedro gigante, não o pôde arrancar de sua mão e foi obrigado a despedaçal-o.

«Os braços de Pojucan, quando elle os estende na luta, não ha quem os vergue; são dois penedos que saem da terra.

«Seu corpo é a serra que se levanta no valle. Nenhum homem, nem mesmo Camacan, o póde abalar.

«Pojucan era o varão mais forte e o mais valente guerreiro que o sol tinha visto até áquelle momento.

«Foi este, guerreiros araguayas, o heróe que offereceu combate ao filho de Camacan; e Jaguarê aceitou, porque logo conheceu que havia encontrado um inimigo digno de seu valor.

«Elle vos contempla, guerreiros araguayas. Si alguém duvída da palavra de Jaguarê e da força do guerreiro tocantim, chame-o a combate e saberá quem é Pojucan».

O chefe tocantim lançou um olhar ameaçador á multidão dos guerreiros; mas nenhum ousou aceitar o desafio.

 

Pojucan alçou a mão em signal de que desejava falar; todos escutaram com respeito o heróe, ainda maior na desgraça.

— Guerreiros araguayas, ouvi a voz de Pojucan, vosso inimigo, que affronta as iras dos fortes e despreza a vingança dos fracos.

«Pojucan, guerreiro chefe da grande nação tocantim, jamais encontrou guerreiro que resistisse á forca de seu braço invencivel.

«Mas Tupan, cançado de ouvir celebrar em todas as festas o nome de Pojucan, como vencedor, emprestou sua força a Jaguarê, o maior guerreiro que já pisou a terra.

«Eu, que senti o impeto de sua coragem, posso dizer-vos que só o sangue tocantim é capaz de gerar um guerreiro tão poderoso.

«Foi alguma virgem araguaya que, vagando pela floresta, encontrou Pojucan e trouxe no seio fecundo a alma do grande guerreiro.

«Seu braço é como o corisco do céo e a sua força como a tempestade que desce das nuvens».

Calou-se Pojucan e Jaguarê continuou o seu canto de guerra:

«Quando a sombra começava a descer da crista da montanha, Pojucan e Jaguarê caminharam um contra o outro.

«Toda a noite combateram. O sol nascendo veiu achai-os ainda na peleja, como os deixára: nem vencidos, nem vencedores.

«Conheceram que eram os dois maiores guerreiros, na fortaleza do corpo e na destreza das armas.

«Mas nenhum consentia que houvesse na terra outro guerreiro igual; pois ambos queriam ser o primeiro.

«Foi então que o chefe tocantim ganhou na corrida a lança de duas pontas, que Jaguarê havia fabricado.

«Três vezes seu punho robusto a brandiu e três vezes ella escapou-lhe da mão, como a serpente das garras do gavião. «Mais uma vez o grande guerreiro investiu com o bote armado; e a lança, escrava de Jaguarê, cravou o peito do inimigo.

«Elle caiu, o guerreiro chefe, o grande varão dos tocantins, o valente dos valentes, Pojucan, o feroz matador de gente.

«E Jaguarê, brandindo a arma da victoria, bradou:

«Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, que venceu o primeiro guerreiro dos guerreiros de Tupan.

— Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro terrível que tem por arma uma serpente».

 

O trocano ribombou, derramando longe, pela amplidão dos valles e pelos echos das montanhas, a pocema do triumpho.

Os tacapes, vibrados pela mão pujante dos guerreiros, bateram nos largos escudos retinindo.

Mas a voz possante da multidão dos guerreiros cobriu o immenso rumor, clamando:

— Tu és Ubirajara, o senhor da lança, o vencedor de Pojucan, o maior guerreiro da nação tocantim.

«Os guerreiros araguayas te recebem por seu irmão nas armas e te acclamam forte entre os fortes.

«Os cantores celebrarão teu nome como o dos mais famosos da nação araguaya; e Camacan terá a gloria de chamar-se pai de Ubirajara; como foi gloria para Jaguarê ser filho de Camacan.»

Quando parou o estrondo da festa e cessou o canto dos guerreiros, avançou Camacan, o grande chefe dos araguayas.

De um salto o ancião alcançou o arco da nação, insignia do chefe na guerra, e caminhou para Ubirajara.

O arco era de ubiratan, grosso como o braço do mais robusto guerreiro; a corda trançada de crautá tinha o corpo do dedo que a brandia.

Os mais possantes varões da nação araguaya a custo empunhavam o grande arco; mas só um tinha força para disparar a setta.

Era Camacan, o chefe dos chefes, que dirigia na guerra os guerreiros araguayas.

Assim falou o ancião:

— Ubirajara, senhor da lança, é tempo de empunhares o grande arco da nação araguaya, que deve estar na mão do mais possante. Camacan o conquistou no dia em que escolheu por esposa Jaçanan, a virgem dos olhos de fogo, em cujo seio te gerou seu primeiro sangue. Ainda hoje, apezar da velhice que lhe mirrou o corpo, nenhum guerreiro ousaria disputar o grande arco ao velho chefe, que não soffresse logo o castigo de sua audacia. Mas Tupan ordena que o ancião se curve para terra até desabar como o tronco carcomido e que o mancebo se eleve para o céo como a arvore altaneira. Camacan revive em ti; a gloria de ser o maior guerreiro cresce com a gloria de ter gerado um guerreiro ainda maior do que elle.

 

Ubirajara tomou o arco que lhe apresentava o pai e disse:

— Camacan, tu és o primeijro guerreiro e o maior chefe da nação araguaya. Para a gloria de Jaguarê, bastava que elle se mostrasse teu filho no valor, como é teu filho no sangue. Mas o grande arco da nação araguaya, Ubirajara não o recebe de ti e nenhum outro guerreiro, pois o ha de conquistar pela sua pujança.

Disse, e arremessando no meio da ocara o grande arco, bradou:

— O guerreiro que ouse empunhar o grande arco da nação araguaya, venha disputal-o a Ubirajara.

Nenhuma voz se ergueu; nenhum campeão avançou o passo.

O troncano reboou de novo, e, no meio da pocema do triumpho, a multidão dos guerreiros proclamou:

Ubirajara, senhor da lança, tu és o mais forte dos guerreiros araguayas; empunha o arco chefe.

Então Ubirajara levantou o grande arco e a corda zuniu como o vento na floresta.

Era a primeira setta, mensageira do chefe, que levava ás nuvens a fama de Ubirajara.

Os cantores exaltaram a gloria dos dois chefes; a do velho Camacan, que trocára a arma do guerreiro pelo bordão do conselho; e a do joven Ubirajara, que na sua mocidade já se mostrava tão grande, como fôra o pai na robustez dos annos.

Pojucan teve o consolo de ouvir seu nome repetido muitas vezes e louvado a par com o de seu vencedor.

Os cantores celebraram depois os grandes feitos da nação araguaya, desde os tempos remotos em que os progenitores deixaram a grande taba dos Tamoyos, seus avós.

Quando os nhengaçáras entoaram o canto do triumpho, vieram as mulheres com vasos cheios de generoso cauim e apresentaram as taças aos guerreiros.

Jandyra suspirou; ella era virgem, e, como suas companheiras, não podia apparecer na festa dos guerreiros.

Sentiu não ser já esposa, para ter o orgulho de encher de vinho espumante, por ella fabricado, a taça do seu heróe e senhor.

O guincho agoureiro da inhúma resoava na matta, quando começou a dansa guerreira que durou até o romper da alvorada.

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