Volume I
Capítulo I: Declara-se a primeira parte do titulo desta História, e quão
própria é da curiosidade humana a sua matéria.
Nenhuma
cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite,
nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos
futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e
nunca vista história. As outras histórias contam as cousas passadas, esta
promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos
públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos
ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o entendimento. Levanta-se este
assunto sobre toda a esfera da capacidade humana, porque Deus, que é a fonte de
toda a sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão liberalmente com os
homens, e muito mais com o primeiro, sempre reservou para si a ciência dos
futuros, como regalia própria da divindade. Como Deus por natureza seja eterno,
é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de sua eternidade,
que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho do tempo, reparte com
o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado
menos e do futuro nada.
A ciência dos futuros — disse Platão — é a que
distingue os deuses dos homens, e daqui lhes veio sem dúvida aquele
antiquíssimo apetite de serem como deuses. Aos primeiros homens, a quem Deus
tinha infundido todas as ciências, nenhuma lhes faltava senão a dos futuros, e
esta lhes prometeu o Demônio com a divindade, quando lhes disse: Eritis sicut
Dii, scientes bonum et malum. Mas ainda que experimentaram o engano, não
perderam o apetite. Esta foi a herança que nos ficou do Paraíso, este o fruto
daquela árvore fatal, bem vedado e mal apetecido, mas por isso mais apetecido,
porque vedado.
Como é inclinação natural no homem apetecer o
proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo
às portas deste segredo, ignorando sem moléstia muitas cousas das que são, e
afetando impaciente a ciência das que hão de ser. Por este meio veio o Demônio
a conseguir que o homem lhe desse falsamente a divindade, que o mesmo demônio
com igual falsidade lhe tinha prometido. E senão, pergunto: Quem foi o que
introduziu no Mundo, sem algum medo, mas antes com aplauso, a adoração do
Demônio? Quem fez que fosse tão freqüentado e consultado o ídolo de Apolo em
Delfos? O de Júpiter em Babilônia? O de Juno em Cartago? O de Vênus no Egito? O
de Dafne em Antioquia? O de Orfeu em Lesbo? O de Fauno em Itália? O de Hércules
em Espanha, e infinitos outros em muitas partes? Não há dúvida que o desejo
insaciável que os homens sempre tiveram de saber os futuros, e a falsa opinião
dos oráculos com que o Demônio respondia naquelas estátuas, foram os que todo
este culto lhe granjearam, sendo certo que, se Deus, vindo ao Mundo, não
emudecera (como emudeceu) os oráculos da Gentilidade, grande parte do que hoje
é fé, fora ainda idolatria. Tão mal sofreram os homens que Deus reservasse para
si a ciência dos futuros, que chegaram a dar às pedras a divindade própria de
Deus, só porque Deus fizera própria da divindade esta ciência: antes queriam
uma estátua que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos encobria.
Mas que direi das ciências ou ignorâncias das artes
ou superstições que os homens inventaram desde a terra até o céu, levados deste
apetite? Sobre os quatro elementos assentaram quatro artes de adivinhar os
futuros, que tomaram os nomes dos seus próprios sujeitos: agromancia, que
ensina a adivinhar pelas cousas da terra; a hidromancia, pelas da água; a
aeromancia, pelas do ar, e a piromancia, pelas do fogo. Tão cegos seus autores
no apetite vão daquela curiosidade, que, tendo-se perdido na terra os vestígios
de tantas cousas passadas, cuidaram que na água, no ar e no fogo os podiam
achar das futuras.
No mesmo homem descobriram os homens dois livros
sempre abertos e patentes, em que lessem ou soletrassem esta ciência. A
fisionomia, nas feições do rosto; a quiromancia, nas raias da mão. Em um mapa
tão pequeno, tão plano e tão liso como a palma da mão de um homem, inventaram
os quiromantes não só linhas e caracteres distintos, senão montes levantados e
divididos, e ali descrita a ordem e sucessão da vida e casos dela, os anos, as
doenças e os perigos, os casamentos, as guerras, as dignidades, e todos os
outros futuros prósperos ou adversos; arte certamente merecedora de ser
verdadeira pois punha a nossa fortuna nas nossas mãos.
Deixo a astrologia judiciária, tão celebrada no nascimento
dos príncipes, em que os genetlíacos, sobre o fundamento de uma só hora ou
instante da vida, levantam ou figura ou testemunhos a todos os Sucessos dela.
Nem quero falar na triste e funesta nicromancia, que, freqüentando os
cemitérios e sepulturas no mais escuro e secreto da noite, invoca com
deprecações e conjuros as almas dos mortos para saber os futuros dos vivos.
A este fim excogitaram tantos gêneros de sortilégios,
como se na contingência da sorte se houvesse de achar a certeza; a este fim
observaram os sonhos como se soubesse mais um homem dormindo do que sabia
acordado; a este sentido consultavam as entranhas palpitantes dos animais, como
se um bruto morto pudesse ensinar a tantos homens vivos. Com o mesmo apetite
pediam respostas às fontes, aos rios, aos bosques e às penhas; com o mesmo
inquiriam os cantos e vôos das aves, os mugidos dos animais, as folhas e
movimentos das árvores, com o mesmo interpretavam os números, os nomes e as
letras, os dias e os fumos, as sombras e as cores e não havia cousa tão baixa e
tão miúda por onde os homens não imaginassem que podiam alcançar aquele segredo
que Deus não quis que eles soubessem. O ranger da porta, o estalar do vidro, o
cintilar da candeia, o topar do pé, o sacudir dos sapatos, tudo notavam como avisos
da Providencia e temiam como presságios do futuro. Falo da cegueira e desatino
dos tempos passados, por não envergonhar a nobreza da nossa Fé com a
superstição dos presentes.
Finalmente, a investigação deste tão apetecido
segredo foi o estudo e disputa dos maiores e mais sinalados filósofos, de
Sócrates, de Pitágoras, de Platão, de Aristóteles e do eloqüente Túlio, nos
livros mais sublimes e doutos de todas suas obras. Esta era a teologia famosa
dos Caldeus; este o grande mistério dos Egípcios; esta em Roma a religião dos
áugures; esta em Judéia a seita dos Pitões e Aríolos; esta em Pérsia a ciência
e profissão dos Magos; esta enfim do Céu até o Inferno, o maior desvelo dos
sábios e maior ânsia e tropeço dos ignorantes; uns injuriando o Céu, e dando trato
às estrelas para que digam o que não podem; outros inquietando o Inferno (como
dizia Samuel), e tentando os mesmos demônios, para que revelem o que não sabem.
Tanto foi em todas as idades do Mundo, e tanto é hoje, na curiosidade humana, o
apetite de conhecer o futuro!
Mas o que mais que tudo encarece a tenacidade deste
desejo, é considerar que, enganados tão profundamente os homens pela falsidade
e mentira de todas estas artes e seus ministros, não tenha bastado nenhuma
experiência, nem haja de bastar já para mais os desenganar e apartar dele:
Genus hominum potentibus infidum, sperantibus fallax, quod in civitate nostra,
et vetabitur semper et retinebitur, disse Tácito. O mesmo Saul, que desterrou a
Pitonisa, a foi buscar e se serviu de sua má arte; e os mesmos que mais
severamente negam o crédito às cousas prognosticadas, folgam de ouvir e saber
que se prognosticam, sinal certo que não buscam os homens os futuros, porque os
achem, senão que vão sempre após eles, porque os amam.
Para satisfazer, pois, à maior ânsia deste apetite e
para correr a cortina aos maiores e mais ocultos segredos deste mistério, pomos
hoje no teatro do Mundo esta nossa História, por isso chamada do Futuro. Não
escrevemos com Beroso as antiguidades dos Assírios, nem com Xenofonte a dos
Persas, nem com Heródoto as dos Egípcios, nem com Josofo a dos Hebreus, nem com
Cúrcio a dos Macedônios, nem com Tucídides a dos Gregos, nem com Lívio a dos
Romanos, nem com os escritores portugueses as nossas; mas escrevemos sem autor
o que nenhum deles escreveu nem pôde escrever. Eles escreveram histórias do
passado para os futuros, nós escrevamos a do futuro para os presentes.
Impossível pintura parece antes dos originais retratar as cópias, mas isto é o
que fará o pincel da nossa História.
Assim foram retratos de Cristo Abel, Isaac, José,
David, antes do Verbo ser homem. O que ignorou o mundo antigo, o que não
conheceu o moderno e o que não alcança o presente, é o que se verá com
admiração neste prodigioso mapa descrito: cousas e casos que ainda lhes falta
muito para terem ser quanto mais Antigüidade.
A história mais antiga começa no princípio do Mundo;
a mais estendida e continuada acaba nos tempos em que foi escrita. Esta nossa
começa no tempo em que se escreve, continua por toda a duração do Mundo e acaba
com o fim dele. Mede os tempos vindouros antes de virem, conta os sucessos
futuros antes de sucederem, e descreve feitos heróicos e famosos, antes de a
fama os publicar e de serem feitos.
O tempo, como o Mundo, tem dois hemisférios: um
superior e visível, que é o passado, outro inferior e invisível, que é o
futuro. No meio de um e outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são
estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o
futuro começa. Desde este ponto toma seu princípio a nossa História, a qual nos
irá descobrindo as novas regiões e os novos habitadores deste segundo
hemisfério do tempo, que são os antípodas do passado. Oh que de cousas grandes
e raras haverá que ver neste novo descobrimento!
Aqueles historiadores que nomeamos e foram os mais
célebres do Mundo, escreveram os impérios, as repúblicas, as leis, os
conselhos, as resoluções, as conquistas, as batalhas, as vitórias, a grandeza,
a opulência e felicidade, a mudança, a declinação, a ruína ou daquelas mesmas
nações, ou de outras igualmente poderosas, que com elas contendiam. Nós também
havemos de falar de reinos e de impérios, de exércitos e de vitórias, de ruínas
de umas nações e exaltações de outras; mas de impérios não já fundados, senão
que se hão-de fundar; de vitórias não já vencidas, mas que se hão-de vencer; de
nações não já domadas e rendidas, senão que se hão-de render e domar.
Hão-se de ler nesta História, para exaltação da Fé,
para triunfo da Igreja, para glória de Cristo, para felicidade e paz universal
do Mundo, altos conselhos, animosas resoluções, religiosas empresas, heróicas
façanhas, maravilhosas vitórias, portentosas conquistas, estranhas e espantosas
mudanças de estados, de tempos, de gentes, de costumes, de governos, de leis; mas
leis novas, governos novos, costumes novos, gentes novas, tempos novos, estados
novos, conselhos e resoluções novas, empresas e façanhas novas, conquistas,
vitórias, paz, triunfos e felicidades novas; e não só novas, porque são
futuras, mas porque não terão semelhança com elas nenhumas das passadas. Ouvirá
o Mundo o que nunca viu, lerá o que nunca ouviu, admirará o que nunca leu, e
pasmará assombrado do que nunca imaginou. E se as histórias daqueles
escritores, sendo de cousas menores antigas e passadas, se leram sempre com
gosto, e depois de sabidas se tornaram a ler sem fastio, confiança nos fica
para esperar que não será ingrato aos leitores este nosso trabalho, e que será
tão deleitosa ao gosto e ao juízo a História do Futuro, quanto é estranho ao papel
o assunto e nome dela.
Mas porque não cuide alguma curiosidade crítica que o
nome do futuro não concorda nem se ajusta nem com o título de história, saiba
que nos pareceu chamar assim à esta nossa escritura, porque, sendo novo e
inaudito o argumento dela, também lhe era devido nome novo e não ouvido.
Escreveu Moisés a história do princípio e criação do
Mundo, ignorada até aquele tempo de quase todos os homens. E com que espírito a
escreveu? Respondem todos os Padres e Doutores que com espírito de profecia. Se
já no Mundo houve um profeta do passado, porque não haverá um historiador do
futuro? Os profetas não chamaram história às suas profecias, porque não guardam
nelas estilo nem leis de histórias: não distinguem os tempos, não assinalam os
lugares, não individuam as pessoas, não seguem a ordem dos casos e dos
sucessos, e quando tudo isto viram e tudo disseram, é envolto em metáforas,
disfarçado em figuras, escurecido com enigmas e contado ou cantado em frases
próprias do espírito e estilo profético, mais acomodadas à majestade e
admiração dos mistérios, que à notícia e inteligência deles.
Do profeta Isaías, que falou com maior ordem e maior
clareza, disseram S. Jerônimo e Santo Agostinho que mais escrevera história que
profecia. A sua profecia é o Evangelho fechado; o Evangelho é a sua profecia
aberta. E porque nós, em tudo o que escrevemos, determinamos observar religiosa
e pontualmente todas as leis da história, seguindo em estilo claro e que todos
possam perceber, a ordem e sucessão das cousas, não nua e secamente, senão
vestidas e acompanhadas das suas circunstancias; e porque havemos de distinguir
tempos e anos, sinalar províncias e cidades, nomear nações e ainda pessoas,
(quando o sofrer a matéria), por isso, sem ambição nem injúria de ambos os nomes,
chamamos a esta narração História e História do Futuro.
Sós e solitariamente entramos nela (mais ainda que
Noé no meio do dilúvio) sem companheiro nem guia, sem estrela nem farol, sem
exemplar nem exemplo. O mar é imenso, as ondas confusas, as nuvens espessas, a
noite escuríssima; mas esperamos no Pai dos lumes (a cuja glória e de seu Filho
servimos), tirará a salvamento a frágil barquinha: ela com maior ventura que
Argos, e nós com maior ousadia que Tífis.
Antes de abrir as velas ao vento (oh faça Deus que
não seja tempestade!), em lugar da benevolência que se costuma pedir aos
leitores, só lhes quero pedir justiça. É de direito natural que ninguém seja
condenado sem ser ouvido; isto só deseja e pede a todos a nova História do
Futuro, com palavras não suas, mas de S. Jerônimo: Legant prius et postea
despiciant: «Leiam primeiro, e depois condenem» — assim dizia aquele grande
mestre da Igreja, defendendo a sua versão dos sagrados Livros, então perseguida
e impugnada, hoje adorada e de fé.
Capítulo II: Segunda parte do titulo desta História; convidam-se os
Portugueses à lição dela.
No
capítulo passado falamos com todo o Mundo; neste só com Portugal. Naquele
prometemos grandes futuros ao desejo; neste asseguramos breves desejos ao
futuro. Nem todos os futuros são para desejar, porque há muitos futuros para
temer. «Amanhã serás comigo», disse Samuel a Saul, o profeta ao rei, o morto ao
vivo. Oh que temeroso futuro! Caiu Saul desmaiado, e fora melhor cair em si que
aos pés do Profeta. Mas era já a véspera do dia da morte; e quem busca o
desengano tarde, não se desengana. Outros reis houve, que por não temer os
futuros, quiseram antes ignorá-los.
...Cessant oracula Delphis,
Sed siluit postquam reges timuere futura,
Et Superos vetuere loqui...
Disse
sem murmuração o satírico que taparam os reis a boca aos deuses, e não queriam
consultar os oráculos, por não temer os futuros prósperos e adversos, os
felizes e os infelizes. Todos fora felicidade antever, os felizes para a
esperança e os infelizes para a cautela.
O maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é
revelar-lhe os futuros; e se não há entre nós os vivos quem faça estas
revelações, busque-se entre os sepultados, e achar-se-á. Saul achou a Samuel
morto e Baltasar a Daniel vivo, porque um matava os profetas, outro premiava as
profecias. Declarou Daniel a Baltasar a escritura fatal da parede, anunciou-lhe
intrepidamente que naquela mesma noite havia de perder a vida e o império. E
que lhe importou a Daniel esta tão triste interpretação? No mesmo ponto - diz o
texto- mandou Baltasar que o vestissem de púrpura e que lhe dessem o anel real,
e que fosse reconhecido por Tetrarca de todo o império dos Assírios, que era
faze-lo um dos quatro supremos ministros ou governadores da monarquia.
Só isto fez Baltasar nos instantes que lhe restaram
de vida; e premiado assim o profeta, cumpriu-se a profecia e foi morto o rei,
digno só por esta ação (se não foram as suas culpas sacrilégios) de que Deus
lhe perdoara a vida.
Se tanto vale o conhecimento de um futuro, ainda que
tão infeliz; se tanto prêmio se dá a uma profecia mortal e que tira impérios,
que seria se os prometera?
Não faltou a este merecimento Dario Hidaspes rei dos
Persas e dos Medos. Sucedeu vitorioso este príncipe na coroa de Baltasar, e confirmou
sempre a Daniel na mercê e lugar em que ele o tinha posto porque assim como
profetizou que havia de perder o império o rei dos Assírios, ajuntou também que
o havia de ganhar o dos Persas e Medos: Divisum est regnum tuum et datum est
Medis et Persis.
Eu, Portugal, (com quem só falo agora) nem espero o
teu agradecimento, nem temo a tua ingratidão. Porque, se me não contas com
Daniel entre os vivos, eu me conto com Samuel entre os mortos; se nas letras
que interpreto achara desgraças (bem poderá ser que as tenhas), eu te dissera a
má fortuna sem receio, assim como te digo a boa sem lisonja. Mas é tal a tua
estrela (benignidade de Deus contigo deverá ser), que tudo o que leio de ti são
grandezas, tudo que descubro melhoras, tudo o que alcanço felicidades. Isto é o
que deves esperar, e isto o que te espera; por isso em nome segundo e mais
declarado chamo a esta mesma escritura Esperanças de Portugal, e este é o
comento breve de toda a História do Futuro.
Mas vejo que o mesmo nome de Esperanças de Portugal
lhe poderá com razão suspender o gosto, assustar o desejo e embaraçar os mesmos
alvoroços em que o tenho metido com estas esperanças: Spes qae differtur,
affligit animam, disse a Verdade divina e o sabe e sente bem a experiência e
paciência humana: ainda que seja muito segura, muito firme e muito bem fundada
a esperança, é um tormento desesperado o esperar.
Muito seguras eram, e tão seguras como a mesma
palavra de Deus (que não pode mentir nem faltar)`, as promessas dos antigos
Profetas; mas cansava-se tanto o desejo na paciência de esperar por elas, que
vinham a ser fábula do vulgo em Jerusalém as esperanças das profecias. Assim
conta esta queixa Isaías no capítulo XXVIII, que pelas ruas e praças da corte
se andavam cantando por riso as suas esperanças, e que a volta ou estribilho da
cantiga era:
...expecta, reexpecta,
Expecta, reexpecta.
Modicum ibi,
Modicum ibi.
Esperavam,
reesperavam e desesperavam aqueles homens, porque em muitas cousas das que lhes
prometiam as profecias, primeiro se acabava a vida do que chegasse a esperança.
Deixaram os pais em testamento as esperanças aos filhos, os filhos aos netos e
nem estes, sendo então as vidas mais compridas, chegavam a ver o cumprimento do
que tão longamente tinham esperado. As esperanças da Terra de Promissão
deixou-as Abraão a Isaac, Isaac a Jacob e Jacob aos doze Patriarcas; mas todos
eles morreram e foram sepultados no Egito. A quem há-de cobrir a terra do
Egito, que lhe importam as esperanças da terra de Promissão? No cativeiro de
Babilônia pregavam e prometiam os Profetas que Deus havia de levantar mão do
castigo e restituir o povo à sua antiga liberdade; e se lhes perguntavam
quando, respondiam e afirmavam constantemente que dali a setenta anos.
Boa esperança para um cativo, ainda que não fosse muito
velho. De que me serve a esperança da liberdade, se primeiro se há-de acabar a
vida? O mesmo podem argüir os que hoje vivem com estas esperanças, que eu lhas
prometo. Grandes são essas esperanças de Portugal; mas quando há-de ver
Portugal essas esperanças?
Ponto é este que depois se há-de tratar muito de
propósito, e em que a nossa História há-de empregar todo o quinto livro. Por
agora só digo que me não atrevera eu a prometer esperanças, se não foram
esperanças breves. Deus na Lei Escrita, como notaram grandes autores, nunca
prometeu o Céu expressamente, porque o que se não pode dar logo não se há-de
prometer. Prometer o Céu para ir esperar por ele ao Limbo, são promessas em que
por então se dá o contrário do que se promete. Tais são as esperanças dilatadas.
Se nelas se promete a vida, são morte; se nelas se promete o gosto, são
tormento; se nelas se promete o Paraíso, são Inferno.
O Limbo chamava-se Inferno; e porque? Porque era um
lugar onde se esperava tantos anos pelo Paraíso. Não me tenha a minha Pátria
por tão cruel, que lhe houvesse de prometer martírios com nome de esperanças.
Para se avaliar a esperança, há-se de medir o futuro, e não é este o futuro da
minha História.
São Paulo, aquele filósofo do terceiro Céu,
desafiando todas as criaturas, e entre elas os tempos, dividiu os futuros em
dois futuros: Neque instantia, neque futura. Um futuro que está longe e outro
futuro que está perto; um futuro que há-de vir e outro futuro que já vem; um
futuro que muito tempo há-de ser futuro — Neque futura — e outro futuro que
brevemente há-de ser presente: Neque instantia.
Este segundo futuro é o da minha História, e estas as
breves e deleitosas esperanças que a Portugal ofereço. Esperanças que hão-de
ver os que vivem, ainda que não vivam muitos anos, mas viverão muitos anos os
que as virem. Lignum vitae, desiderium veniens, disse no mesmo lugar alegado a
mesma Verdade divina.
Assim como há esperanças que tardam, há esperanças
que vem. As esperanças que vem são o pomo da árvore da vida: Lignum vitae
desiderium veniens. A virtude maravilhosa daquele pomo era reparar e
acrescentar a vida e remoçar aos que o comiam. As esperanças que tardam, tiram
a vida; as esperanças que vem, não só não tiram a vida, mas acrescentam os dias
e os alentos dela: Spes quae differtur, affligit animam. Lignurn vitae,
desiderium veniens.
Que vida haverá em Portugal tão cansada, que idade
tão decrépita, que à vista do cumprimento destas esperanças, não torne atrás os
anos para lograr tanto bem? Vivei, vivei, Portugueses, vós os que mereceis
viver neste venturoso século! Esperai no Autor de tão estranhas promessas, que
quem vos deu as esperanças, vos mostrará o cumprimento delas.
Não é privilégio este de qualquer profecia, mas
daquelas profecias de que se compõe esta História. Sim, porque são mais que
profecias. Um profeta houve no Mundo mais que profeta, que foi o grande
precursor de Cristo. E por que razão mereceu a singularidade deste nome S. João
entre todos os profetas deste Mundo? Porque os outros profetas prometeram a
Cristo futuro, mas não o viram, nem o mostraram presente; o Batista prometeu o
futuro com a vez, e mostrou o presente com o dedo — Cecinit ad futurum, et
adesse monstravit.
Se houve um profeta que foi mais que profeta, porque
não haverá também algumas profecias que sejam mais que profecias? Assim espero
eu que o sejam aquelas em que se fundam as minhas esperanças e que, se nos
prometem as felicidades futuras, também as hão-de mostrar presentes. Agora as
prometem com a voz, depois as mostrarão com o dedo.
Mas este grande assunto fique para seu lugar. Só digo
que quando assim suceder, perderá esta nossa História gloriosamente o nome, e
que deixará de ser História do Futuro, porque o será do presente.
Mas perguntar-me-á porventura alguma emulação
estrangeira (que às naturais não respondo): se o império esperado, como se diz
no mesmo título, é do Mundo, as esperanças porque não serão também do Mundo,
senão só de Portugal? A razão (perdoe o mesmo Mundo) é esta: porque a melhor
parte dos venturosos futuros que se esperam, e a mais gloriosa deles, será não
só própria da Nação portuguesa, senão única e singularmente sua. Portugal será
o assunto, Portugal o centro, Portugal o teatro, Portugal o princípio e fim
destas maravilhas; e os instrumentos prodigiosos delas os Portugueses.
Vê agora, ó Pátria minha, quão agradável te deve ser.
e com quanto gosto deves aceitar a oferta que te faço desta nova História, e
com que alvoroço e alegria pede a razão e amor natural que leias e consideres
nela os seus e os teus futuros. O Grego lê com maior gosto as histórias de
Grécia, o Romano as de Roma e o Bárbaro as da sua nação, porque lêem feitos
seus e de seus antepassados . E Portugal que com novidade inaudita lerá nesta
História os seus e os dos seus vindouros, com quanto maior gosto e contentamento,
com quanto maior aplauso e alvoroço será razão que o faca?
Portentosas foram antigamente aquelas façanhas, ó
Portugueses, com que descobristes novos mares e novas terras, e destes a
conhecer o Mundo ao mesmo Mundo. Assim como líeis então aquelas vossas
histórias, lede agora esta minha, que também é toda vossa. Vós descobristes ao
Mundo o que ele era, e eu vos descubro a vós o que haveis de ser. Em nada é
segundo e menor este meu descobrimento, senão maior em tudo. Maior cabo, maior
esperança, maior império.
Naqueles ditosos tempos (mas menos ditosos que os
futuros) nenhuma cousa se lia no Mundo senão as navegações e conquistas de
Portugueses. Esta história era o silêncio de todas as historias. Os inimigos
liam nela suas ruínas, os êmulos suas invejas e só Portugal suas glórias. Tal é
a História, Portugueses, que vos presente, e por isso na língua vossa. Se se
há-de restituir o Mundo à sua primitiva inteireza e natural formosura, não se
poderá consertar um corpo tão grande, sem dor nem sentimento dos membros, que
estão fora de seu lugar. Alguns gemidos se hão-de ouvir entre vossos aplausos,
mas também estes fazem harmonia. Se são dos inimigos, para os inimigos será a
dor, para os êmulos a inveja, para os amigos e companheiros o gosto e para vós
então a glória, e, entretanto, as esperanças.
Capítulo III: Terceira parte do titulo e divisão de toda a História.
O que
encerra a terceira parte do título desta História só se pode declarar
inteiramente com o discurso de toda ela, porque toda se emprega em provar a
esperança dum novo império, ao qual, pelas razões que se verão a seu tempo,
chamamos quinto. Entretanto, para que a matéria de uma vez se compreenda e
saiba o leitor em suma o que lhe prometemos, porei brevemente aqui sua divisão.
Divide-se a História do Futuro em sete partes ou
livros: no primeiro se mostra que há-de haver no Mundo um novo império; no segundo,
que império há-de ser; no terceiro, suas grandezas e felicidades; no quarto, os
meios por que se há-de introduzir; no quinto, em que terra; no sexto, em que
tempo; no sétimo, em que pesca. Estas sete cousas são as que há-de examinar,
resolver e provar a nova História que escrevemos do Quinto Império do Mundo.
Mas porque esta palavra Mundo, nos ambiciosos títulos
dos impérios e imperadores, costuma ter maior estrondo na voz que verdade na
significação, será bem que digamos neste lugar o que o título da nossa História
entende por Mundo.
Os Faraós do Egito, e também os Ptolemeus que lhes
sucederam, de tal maneira mediam a estreiteza de suas terras pela arrogância e
inchação de seus vastos pensamentos, que, dominando somente aquela parte não
grande da extrema África, que jaz entre os desertos de Numídia e os do Mar
Vermelho, não duvidavam intitular-se Josés do Mundo. Essa foi a desigualdade do
nome que puseram os Egípcios ao seu restaurador José: Vocavit eum lingua
aegyptiaca Salvatorem Mundi. Não lhe chamaram Salvador do Egito, senão do
Mundo, como se não houvera mais mundo que o Egito. Imitavam a soberba de seu
soberbo Nilo, que, quando sai ao mar, se espraia em sete bocas, como se foram
sete rios, sendo um só rio; assim era aquele império, e os demais chamados do
Mundo, maiores sempre nas vozes que no corpo e grandeza.
Do império dos Assírios temos nas divinas letras uma
provisão lançada no III capítulo do Profeta Daniel e mandada expedir pelo
grande Nabucodonosor, cujo exórdio é este: Nabuchodonosor, rex omnibus populis,
gentibus et linguis, qui habitant in universa terra: «Nabucodonosor, rei. a
todos os povos, gentes e línguas, que habitam em todo o Mundo. E o mesmo Daniel
(que é mais) falando a este rei e acomodando-se aos estilos da sua corte e aos títulos
magníficos de sua grandeza, lhe diz assim no mesmo capítulo: Tu es rex qui
magnificatus es et invaluisti, et magnitudo tua [...] pervenit usque ad Coelum,
et potestas tua usque ad terminos universae terrae. Contudo, se lançarmos os
compassos às terras que obedeciam a Nabucodonosor, acharemos que da Ásia então
conhecida tinha uma boa parte, da África pouco, da Europa menos e do resto do
Mundo nada. Mas bastavam estes três retalhos da terra para a soberba de
Nabucodonosor revestir os títulos de seu império com o nome estrondoso de todo
o Mundo. Tão grande era a significação dos nomes, e tanto menos 0 que
significavam!
Do império de Assuero (que era o dos Persas) diz o
Texto Sagrado no primeiro capítulo da história de Ester, que se estendia da
Índia até a Etiópia, obedecendo àquela coroa 127 províncias. Esta era a
demarcação das terras e estes os limites do império, mas os títulos não tinham
limite. Assim nos consta por um decreto de Dario, que se refere no VI capítulo
de Daniel, por estas pomposas palavras, semelhantes em tudo às de Nabuco: Tunc
Darius rex scripsit omnibus populis et gentibus et linguis, qui habitant in
universa terra: Pax vobis multiplicetur.
E o mesmo Assuero por outro decreto, no cap. XIII de
Ester, não duvidou firmar por sua própria mão, que tinha sujeito ao seu domínio
o orbe universo: Cum universum orbem meae ditioni subjugassem. De maneira que
os reis persas, por serem senhores de 127 províncias, passaram provisões e
decretos a todo o Mundo; mas quem desenrolasse o mapa do Mundo e pusesse sobre
ele os pergaminhos destas provisões, veria facilmente que o Mundo, sem
demasiado encarecimento, é cento e vinte e sete vezes maior que o império
persiano: tão pouco se proporcionava a geografia dos títulos com a medida dos
impérios!
Que direi do império dos Romanos? Os termos que lhe
sinalam seus escritores são as raias do Mundo:
Orbem jam totum victor Romanus habebat
Qua mare, qua terra, qua sidus currit utrumque
disse
Petrônio; e Cícero, que professava mais verdade que os poetas: Nulla gens est.
quae aut ita subacta sit ut vi non extet, aut ita domita ut quiescat, aut ita
pacata ut victoria nostra imperioque laetetur. Tal era a opinião que Roma tinha
de sua grandeza e tal o estilo que guardava em seus editos: ...exiit edictum à
Caesare Augusto ut describeretur universus orbis.
Mandou Augusto César matricular e: alistar seu
império, e dizia o edito: Aliste-se o Mundo. Mas se examinarmos este mundo
romano até onde se estendia, acharemos que pelo oriente se fechava com o rio
Tigres, pelo ocidente com o mar de Cádis, pelo meio-dia com o Nilo e pelo
setentrião com o Danúbio e Reno. Estes limites lhe prescreveu Claudiano, ainda
que lhe deu por margens os Orientes:
Subdit Oceanum sceptris, et margine coeli
Clausit opes; quantum distant a Tigride Gades,
Inter se Tanais quantum Nilusque relinquunt.
Deixo o
Mogor, o China, o Tártaro e outros domínios bárbaros do nosso tempo, que com a
mesma majestade de títulos se chamam imperadores do Mundo, seguindo a
antiquíssima arrogância da Ásia, em que o Mundo andou sempre atado aos títulos
da monarquia.
O Mundo do nosso prometido império não é Mundo neste
sentido: não prometo mundos, nem impérios titulares, nomes tão alheios da
modéstia como da verdade. Bem sei que o império de Alemanha (envelhecidas relíquias,
e quase acabadas, do Romano) em muitos textos de um e outro direito se chama
império do Mundo; mas também se sabe que os textos podem dar títulos, mas não
impérios. No livro sétimo examinaremos os fundamentos deste direito;
entretanto, ainda que liberalmente lho concedamos, é certo que os impérios e os
reinos não os dá nem os defende a espada da justiça, senão a justiça da espada.
A Abraão prometeu Deus as terras da Palestina mas
conquistou-as a espada de Josué e defendeu-as a de seus sucessores. Estes são
os instrumentos humanos de que se serve (ainda quando obra divinamente) a
providencia daquele supremo Senhor que o é do Mundo e dos exércitos. Os que
querem o ruído e encher de algum modo o vazio destes grandes títulos, dizem que
se entende por hipérbole ou exageração, e por aquela figura que os retóricos
chamam sinédoque, em que se toma a parte pelo todo. O título desta História não
fala por hipérboles nem sinédoques, não chama a um pigmeu gigante nem a um
braço homem. O Mundo de que falo é o Mundo, aquele Mundo, e naquele sentido em
que disse S. João: ...Mundus per ipsum factus est, et Mundus eum non cognovit.
O Mundo que Deus criou, o Mundo que o não conheceu, e o Mundo que o há-de
conhecer. Quando o não conheceu, negou-lhe o domínio; quando o conhecer,
dar-lhe-á a posse . universum terraram orbem — diz Ortélio — veteres [...] in
tres partes divisere: Africam, scilicet, Europam et Asiam, sed in inventa
America, eam pro quarta parte nostra aetas adjecit; quintamque expectat sub
meridionali cardine jacentem: O Mundo que conheceram os Antigos se dividiu em
três partes: África, Europa, Ásia; depois que se descobriu a América,
acrescentou-lhe a nossa idade esta quarta parte; espera-se agora a quinta, que
é aquela terra incógnita, mas já reconhecida, que chamamos Austral.»
Este foi o Mundo passado, e este é o Mundo presente,
e este será o Mundo futuro; e destes três mundos unidos se formará (que assim o
formou Deus) um Mundo inteiro. Este é o sujeito da nossa História, e este o
império que prometemos do Mundo. Tudo o que abraça o mar, tudo o que alumia o
Sol, tudo o que cobre e rodeia o Sol, será sujeito a este Quinto Império; não
por nome ou título fantástico, como todos os que até agora se chamaram impérios
do Mundo, senão por domínio e sujeição verdadeira. Todos os reinos se unirão em
um centro, todas as cabeças obedecerão a uma suprema cabeça, todas as coroas se
rematarão em uma só diadema, e esta será a peanha da cruz de Cristo.
Resolveu Augusto com o senado pôr limites à grandeza
do Império Romano. Duvida Tácito se foi filha esta resolução do receio ou da
inveja: Incertum metu, an per invidiam. Temeu César (se foi receio) que um
corpo tão enormemente grande não se pudesse animar com um só espírito, não se
pudesse governar com uma só cabeça, não se pudesse defender com um só braço; ou
não quis (se foi inveja) que viesse depois outro imperador mais venturoso, que
trespassasse as balizas do que ele até então conquistara e fosse ou se chamasse
maior que Augusto. Tal foi, dizem, o pensamento de Alexandre, o qual, vizinho à
morte, repartiu em diferentes sucessores o seu império, para que nenhum lhe
pudesse herdar o nome de Magno. Não é nem poderá ser assim no império do Mundo
que prometemos; a paz lhe tirará o receio, a união lhe desfará a inveja, e Deus
(que é fortuna sem inconstância) lhe conservará a grandeza.
Aqui acaba o título desta História, e mais claramente
do que o dissemos agora o provaremos depois. Entretanto, se aos doutos ocorrem
instancias e aos escrupulosos dúvidas, damos por solução de todas a mão
onipotente: Ut videant, sciant et recogitent, et intelligant pariter quia manus
Domini fecit hoc...