Friday, 15 July 2016

Letter from St Bernard of Claraval to his Nefew (translated into Portuguese)

translated by Ricardo da Costa


            1. Diletíssimo filho Roberto, esperei até o limite do possível, confiando que talvez a piedade de Deus se dignasse a visitar tua alma por si e a minha por ti, isto é, que Ele infundisse em ti a saudável compunção e em mim a grande alegria de tua salvação. Mas já que até agora me senti frustrado em minha expectativa, não posso encobrir mais a minha dor, nem reprimir a minha ansiedade, nem dissimular a minha tristeza. Por isso, mesmo contra toda a ordenação jurídica, minha ferida me induz a chamar àquele que me feriu e a desprezadamente requerer àquele que me desprezou, humilhando-me para satisfazer a injúria de meu injuriante, e rogando a quem devia me rogar.
            Claro que a dor excessiva não delibera nem se ruboriza, não consulta a razão, não teme o dano da própria dignidade, não se atém à lei, não aquiesce com o juízo; ignora o modo e a ordem, pois, antes de tudo, busca uma solução para o sofrimento ou o gozo do que falta. Tu poderás replicar-me: “Eu não feri ninguém, e a ninguém desprezei. Pelo contrário: eu fui o ferido e desprezado de mil maneiras; limitei-me a fugir de meu malfeitor. A quem eu injuriei fugindo das injúrias? Não é melhor distanciar-se do perseguidor que viver agüentando-o? Não é preferível fugir daquele que te fere que feri-lo?”
            Estou de acordo. Não pretendo discutir, mas dirimir a discussão. Fugir da perseguição não é culpa do fugitivo, mas do perseguidor. Não o contradigo. Omito os fatos, não discuto as culpas, não retrato as causas, não recordo as injúrias. Isso só serve para instigar as discórdias, não para mitigá-las. Somente quero falar o que mais me afeta. Sofro muito porque não te tenho ao meu lado, não te vejo, pois vivo sem ti e, para mim, morrer por ti é viver, e viver sem ti é morrer. Não me pergunto por que fostes; o que me dói é que não voltes. Não denuncio as causas de tua partida, mas a dilação de teu regresso. Vem e façamos as pazes; volta e satisfaça meus desejos. Vem, insisto, volta que eu cantarei com gozo: “Fora morto e reviveu; fora perdido e encontrado”.
            2. É certo que a culpa de sua partida foi minha. Fui muito austero com um delicado adolescente, tratei com dureza desumana a um jovem. De fato, essa era a causa de teus murmúrios contra mim, que eu recordo, quando ainda vivia conosco. E por essa mesma razão, segundo soube, não cessas de desprestigiar-me. Não te culpo. Eu poderia desculpar-me e explicar-te que era necessário coagir as paixões de tua adolescência lasciva, e conduzir a difícil idade desde seu começo com uma disciplina dura e áspera, como diz a Escritura: “Dá a vara a teu filho que o livrará da morte”, e em outro lugar, “O Senhor castiga aos que ama e açoita os filhos que reconhece como seus”, e este outro, “São preferíveis os golpes do amigo que os beijos do inimigo”.
            Mas, como disse, vamos reconhecer que a culpa de tua partida seja minha; não nos detenhamos em discutir quem perpetrou o delito, porque assim atrasaríamos a emenda. Apesar disso, se não perdoas o arrependido, se não és indulgente com o confesso, a culpa começaria a recair sobre ti. Posso ter ultrapassado os limites contigo em algumas coisas, mas certamente não por má vontade. E se suspeitas que no futuro eu me portaria contigo da mesma maneira, deves saber que eu não sou o que era, porque tu tampouco serás o que fostes. Tu mudaste, e também me encontrarás transformado. Podes estar seguro que aquele mestre que temias será para ti um companheiro que te abraça.
            Seja por que fostes embora por minha culpa, como tu acreditas e eu o reconheço, ou por tua fragilidade, como muitos pensam, embora eu não tenha dito pessoalmente, enfim, seja por minha causa ou tua, como creio, se agora resistes a voltar, tu serás o único indesculpável. Queres libertar-te de toda a culpa? Volta. Se tu a reconheces como tua, te perdôo; perdoa-me tu também, porque reconheço a minha. Do contrário, ou és demasiado indulgente contigo, porque reconheces a culpa e a encobres, ou demasiado cruel comigo, porque me negas o perdão quando te apresento minhas desculpas.
            3. Mas se recusas a voltar, busca outra desculpa com a qual possas lisonjear falsamente tua consciência, pois daqui em diante não tens mais porque temer minhas rigorosas exigências. Tampouco te aterrorizarás pensando que em teu regresso serei terrível contigo, porque tu ainda estás ausente e eu tenho meu coração totalmente abatido, e minhas entranhas traspassadas de dor. Mostro-te minha humildade, te prometo meu amor e ainda me temes? Vem intrépido para onde te chama a humildade e te arrasta a caridade. Aproxima-te seguro, tranqüilizado com estas garantias; se fugiste do intransigente, retorna ao manso; que te arraste a ternura daquele cuja severidade te desterrou. Veja, filho, como desejo dirigir-te, não com um espírito que te escravize e te leve outra vez ao temor, mas para fazer-te filho e então poderás clamar seguro: Abba, Pater. A causa dessa minha dor tão intensa não me induz a ameaçar-te, mas a acariciar-te; a suplicar-te, não a espantar-te.
            Talvez outro tentasse de outra maneira. Não é verdade que te teria jogado na cara tua culpa para te aterrorizar? Não teria te acusado pelo descumprimento de teus votos para abrir-te um juízo? Não te acusaria de desobediência, não te tacharia de apostasia porque trocaste a túnica pela peliça, os legumes por outras comidas mais suculentas e a pobreza pelas riquezas? Mas eu conheço teu modo de ser, mais propenso a se curvar diante do amor que a deixar levar-se pela coação do temor. Além disso, que necessidade há de incitar por duas vezes ao condescendente, atemorizar o vacilante, envergonhar com rancor o confuso, cuja mestra é sua razão, cuja própria consciência é seu castigo, cuja vergonha instintiva é a lei de sua disciplina?
            Alguém poderia estranhar que um jovem envergonhado, simples e indeciso tenha se atrevido a enfrentar o amor de seus irmãos, a autoridade de seu mestre, as disposições de sua regra, até romper com seus votos e desertar de seu mosteiro. Mas também deveria estranhar o fato de Davi trair sua santidade, a sabedoria de Salomão se deixar enganar e a força de Sansão ser vencida. E aquele que pôde expulsar da pátria da felicidade a nosso primeiro pai, seduzido pelo engano, não será capaz de conduzir furtivamente a um adolescente para um lugar horrível e uma solitária vastidão? Tenhamos em conta também que a ele não seduziu a beleza como aos velhos da Babilônia, nem o amor ao dinheiro como a Giezi, nem a ambição da honra como a Juliano, o Apóstata. Não, quem o enganou foi a santidade, quem o seduziu foi a religião, quem fez que se perdesse foi a autoridade dos maiores. E de que modo?
            4. O primeiro superior o enviou a um prior relevante, com uma aparente vestimenta de ovelha, mas em realidade um lobo rapace. Enganados foram os pastores, acreditando que era uma ovelha. Que dor! Deixaram a sós o lobo e o cordeiro. E este não fugiu, porque também acreditou que era uma ovelha. E o que mais? Ele o atrai para si, o acaricia, o lisonjeia e, pregando-lhe um novo evangelho, o recomenda à embriaguez e condena sua sobriedade, fazendo-o ver que a pobreza voluntária é uma vida miserável, e que são loucuras o jejum, as vigílias, o silêncio e o trabalho manual. Por sua vez, qualifica como contemplação a ociosidade e considera uma discrição a voracidade, o charlatanismo, a curiosidade e todas as demais destemperanças. E lhe sugere: desde quando Deus se deleita com nossos sofrimentos? Onde a Escritura prescreve que alguém mate a si mesmo? Que tipo de religião é essa que ordena cavar a terra, cortar os bosques e carregar esterco? Por acaso a Verdade não diz “Quero misericórdia, não sacrifícios”?, “Não quero a morte do pecador, mas que ele se converta e viva?”,“Beatos são os misericordiosos, porque eles alcançarão a misericórdia”? Para que Deus criou os alimentos se não é lícito comê-los? Para que nos deu o corpo se não podemos alimentá-lo? E o que é mau para si mesmo, com quem será bom? Além disso, aquele que é tacanho consigo, com quem será generoso? Ninguém, em são juízo, odiou seu próprio corpo.
            5. Semelhantes alegações seduzem este jovem desgraçadamente crédulo. Ele segue seu sedutor e assim o levam a Cluny. Tonsura-se, barbeia-se e se lava. Trocam seu hábito rústico, velho e sórdido e lhe dão outro precioso, novo e limpo; assim ele entra no convento. Com quanta honra, com quanto triunfo e com quanta reverência ele é recebido! Designam-lhe um lugar superior ao de todos os seus coetâneos e, como um soldado vitorioso que volta da batalha, o malvado se glorifica de sua ambição. Elevam-no ao cume, em um lugar privilegiado: é um adolescente, mas antecede a muitos anciãos. Toda a comunidade o acolhe, o elogia e o felicita. Todos, vitoriosos, se alegram ao dividirem o espólio. Oh, bom Jesus! Quantos disparates para fazer perder uma pobre alma! Qual coração, por mais robusto que fosse, não amoleceria? Quem não se desorientaria, por mais espiritual que fosse seu interior? Quem seria capaz de recorrer à sua consciência diante de semelhantes turbações? Quem teria valor para reconhecer a verdade e se manter na humildade entre tanta pompa?
            6. Além disso, intercedem por ele em Roma. Urgem à autoridade apostólica e, para que o papa concorde, alegam que foi oferecido ao mosteiro ainda criança. Não houve quem desmentisse, porque não se esperou a impugnação, e assim o juízo foi parcial, com manifesto atropelo dos ausentes. A injustiça tornou-se justa, as vítimas perderam a causa e o réu foi absolvido sem qualquer satisfação. A sentença, exclusivamente absoluta, foi firmada por um privilégio cruel que, uma vez obtido, confirmou aquele que flutuava em seu mal, aconselhado a uma mudança de estabilidade, dissipando toda vacilação. O conteúdo dos documentos, a sentença do juízo, a determinação de toda a causa decide que aqueles que o levaram podem retê-lo, os que ficaram sem ele devem se calar e, em conseqüência, se perderá uma alma pela qual Cristo morreu simplesmente porque essa é a vontade dos cluniacenses. Troca-se uma profissão por outra, promete-se o que não se vai cumprir, contrai-se um compromisso que não será observado e, rompendo o primeiro pacto, comete-se uma prevaricação com o segundo, porque o pecado germina mais pecados.
            7. Virá sim, virá o dia em que se julgarão novamente os juízos injustos e se anularão os juramentos ilícitos por aquele que faz justiça aos pacientes, Ele, que sentenciará de acordo com o direito em favor dos pobres, e acusará com retidão em defesa dos mansos da terra. Certamente virá o que o Salmo ameaça por meio do Profeta, dizendo: “Quando chegar o tempo, julgarei retamente”. Que fará com os juízos injustos Aquele que julgará até o mais justo? Virá, insisto, virá o dia do Juízo, em que pesarão mais os corações puros que as palavras sagazes, mais as consciências retas que as bolsas cheias, porque então as palavras não enganarão o Juiz, nem Lhe dobrarão os subornos.
Senhor Jesus, apelo ao Teu tribunal, reservo-me ao Teu juízo, a Ti encomendo minha causa, Senhor Deus dos exércitos, Tu, que julgas retamente, que sonda as entranhas e o coração. Tu não podes enganar-Te, nem permites que Te enganem. Tu sabes quem busca o Teu e quem afana o que é Teu. Tu conheces minha contínua e entranhável solicitude com ele em todas as suas constantes provas, quantas vezes chamei a Tua bondade gemendo por ele, como me abrasava, me atormentava e me afligia diante de cada um de seus tropeços, inquietudes e sofrimentos. Agora eu temo que tudo tenha sido inútil, pois sei que, por experiência, tratando-se de um adolescente apaixonado e insolente por si mesmo, seus sentidos e seu espírito são prejudicados por essas concessões da comodidade e essas seduções da glória. Por isso, meu Juiz, Senhor Jesus, que emane de Ti a sentença, e que Teus olhos mirem a retidão.
            8. Olhem e julguem o que deve prevalecer: a vontade do pai sobre o filho ou o capricho do filho, sobretudo uma vez que o filho está comprometido com algo superior. Veja também teu servo e legislador, nosso Bento, que está mais concorde com sua Regra: o que fizeram com o filho sem ele saber, ou o que depois ele fez com consciência e em seu são juízo, quando teve idade suficiente para decidir por si próprio, embora, obviamente, aquilo tenha sido uma promessa, não uma oblação. Porque nem seus pais formaram a petição prescrita pela Regra, nem envolveram suas mãos com os mantéis do altar, com a mesma petição, para oferecê-lo dessa maneira diante das testemunhas.
            Também se referem às terras que, segundo eles, entregaram com ele em seu favor. Mas se receberam as terras, porque não o retiveram com elas? Ou será que estimaram mais as terras que a sua alma? Se ele estava oferecido ao mosteiro, o que buscava no século? Por que deixavam à exposição do diabo o educado por Deus? Por que apareceu a ovelha de Cristo exposta à dentada do lobo? Porque tu és testemunha, Roberto, que chegaste a Cister não procedente de Cluny, mas do século. Buscaste, pediste, chamaste, mas, por tua tenra idade e, apesar de tuas resistências, tua entrada foi indeferida por dois anos. Tiveste paciência para esperar esse tempo e, sem qualquer calúnia, rogando muito e com muitas lágrimas, se se recordas, no fim pedistes a misericórdia tão esperada, e conseguiste o ingresso que havia tanto sonhado. Depois, tu foste colocado à prova da paciência durante um ano, conforme a Regra, e passaste com perseverança e submissão. Terminado o ano, professaste livremente e, deixando tua roupa secular, vestiste pela primeira vez o hábito religioso.
            9. Ah, criança insensata! Quem te fascinou para que descumprisse os votos que teus lábios pronunciaram? Por acaso não será a tua boca que te salvará ou te condenará? Por que te preocupas com o voto de teus pais e te esquece do teu? Serás julgado pelo compromisso deles ou pelo teu? Pedirão contas dos votos de teus lábios, não do deles. Por que podes te agradar em vão com o indulto apostólico se tua consciência está atada pela sentença divina? Aquele que deixa o arado e segue olhando para trás não serve para o reino de Deus. Ou será o que te dizem “bem, bem, te mostrarão que isso não é olhar para trás”?
            Filhinho meu, se os pervertidos tentam te enganar, não concordes. Não creias em qualquer espírito. Que sejam muitos os que te saúdam, mas mestre, um entre mil. Evite as ocasiões, despreze a lisonja, feche os ouvidos à adulação, interroga a ti mesmo, porque tu te conheces melhor que qualquer outro. Vigia teu coração, interrogue tua intenção, consulte a verdade. Que tua consciência responda por que fugistes, por que abandonastes tua ordem, os irmãos, o lugar e a mim, que sou teu chegado na carne e muito mais no espírito. Se o fizestes para viver mais austeramente, com maior integridade e perfeição, podes estar seguro que não olhastes para trás; glorifica-te melhor com o apóstolo, dizendo: “Esquecendo o que fica para trás e lançando-me ao que está na frente, corro ao prêmio da glória”. Mas se é o contrário, não sejas soberbo e anda com cuidado, porque, me permita dizer, todo o supérfluo que te concedas em comer e em vestir, na conversa desnecessária ou, se comportando como um folgazão licencioso e curioso, equivale a olhar para trás, prevaricar e apostatar da promessa que cumpristes vivendo conosco.
            10. E digo isso, filho meu, não para te confundir, mas para te chamar a atenção, como a um filho amadíssimo, pois mesmo que tenhas muitos pedagogos em Cristo, não tens muitos pais. E se tu me permites, eu te engendrei para a religião com a minha palavra e com o meu exemplo. Alimentei-te depois com leite, eras ainda uma criança e não podias tomar outra coisa. E se houvesses esperado para crescer, eu também teria te dado pão. Ah, quão prematura e intempestivamente desmamaste! Temo que tudo o que fomentei com as blandícias, reanimei com as exortações, consolidei com as orações, esteja a ponto de esvaecer, de se extinguir, de desaparecer, e que talvez eu deva deplorar tanta desgraça, não pelo acaso de um esforço inútil, mas pelo desastre infeliz de um filho que se condenou.
            Ou será que te agrada que agora se orgulhe de ti alguém que não fez absolutamente nada por ti? A mim me ocorre o mesmo que àquela meretriz, cujo filho sua companheira tomou às escondidas, quando esta asfixiou o seu, nos tempos de Salomão. A ti também me arrancaram de meu seio e de minhas entranhas. Gemo porque te arrebataram de mim, e furiosamente exijo o que me arrancaram. Não posso adormecer minhas entranhas: quando separam uma parte não pequena das mesmas, é impossível que a outra não se contorça.
            11. Mas que vantagem ou necessidade tua o moveu até nossos amigos para urdir isso contra nós? Suas mãos estão cheias de sangue, sua espada me traspassa o coração, seus dentes são lanças e flechas, sua língua é uma espada afiada. Contra mim é que deveriam ter arremetido, se alguma vez eu lhes ofendi e não sou consciente. Mas curiosamente, aplicaram comigo a Lei de Talião, pois nunca fui capaz de ofendê-los tanto como agora me fizeram sofrer. Se eu digo a verdade, não é que me tenham arrancado um osso de meus ossos ou uma carne de minha carne, é que me roubaram o gozo de meu coração, o fruto de meu espírito, a coroa de minha esperança e, segundo creio, a metade de minha alma. E para que? Talvez compadecidos de ti, eles tenham se indignado que um cego conduzisse outro cego, e te colocaram sob sua direção para que não perecesses depois de mim.
            Que caridade funesta! Que amizade cruel! Amaram tanto a tua salvação que dificultaram a minha! Não podiam salvar a ti a não ser que eu o perdesse? Melhor seria se eu morresse para que tu vivesses. Mas não. E o que assegura mais a salvação, a bela veste e uma comida opulenta ou a alimentação sóbria e a veste moderada? Santificam-se as peliças finas e de qualidade, os tecidos sutis e preciosos, as luvas grandes e os capuzes largos, as capas de pele e as estamenhas suaves, e o que faço eu que não te sigo?
            Não. Tudo isso serve de alívio para os efeminados, mas não são armas de combatentes. Os que vestem trajes delicados estão nas cortes dos reis. O vinho e seus derivados, o mosto e a vida fácil servem ao corpo, não ao espírito. Os condimentos não engordam a alma, mas o corpo. Pois muitos irmãos nossos serviram muito tempo a Deus no Egito sem comer peixe. A pimenta, o gengibre, o cominho, a sálvia e muitas outras especiarias para salsas agradam ao paladar, mas excitam a libido. Tu me garantes com isso a segurança? Podes passar assim a adolescência com tranqüilidade? Basta àquele que vive com prudência e sobriedade o sal, pois seu único condimento é a fome. Quando se buscam outras satisfações, se necessitam muitas outras combinações de não sei que tipos de sucos estranhos para satisfazer o paladar, provocar a gula e excitar o apetite.
            12. Mas tu dirás: que pode fazer aquele que não resiste mais? Certo. Bem sei que tu és delicado e que, uma vez acostumado com essas coisas, não és capaz de suportar outras mais duras. Mas e se pudesses conseguir suportá-las? Pergunta-me como? Decida-te, levanta-te, evita o ócio, esforça-te, move-te, ocupa tuas mãos, faz algo, e logo sentirás que o único que te apetece é matar a fome, não adular o paladar. Isso porque o exercício devolve o sabor a muitas coisas perdidas pela inércia. Depois de trabalhar, tu tomarás com vontade muitos alimentos que rechaças em tua ociosidade. Porque a desocupação engendra o desgosto, o trabalho a fome, e a fome, misteriosamente, torna doce o que o aborrecimento faz insípido. Os legumes, os feijões, as pastas de farinha, o pão de cevada com água enfadam o indolente, mas são as delícias do trabalhador.
            Talvez já tenhas desacostumado a vestir-te a túnica e te aborreças tanto com o frio do inverno quanto o calor do verão. Mas não lestes “A neve cairá para aquele que teme o orvalho”? Te espantam as vigílias, os jejuns e o trabalho manual, mas para aquele que medita nas chamas eternas, isso é muito leve. Além disso, a lembrança das trevas exteriores faz com que a solidão não nos horrorize. Se pensas no juízo futuro das palavras ociosas, o silêncio não te desagradará em demasia. Se levas diante dos olhos do coração o pranto eterno e aquele ranger de dentes, dará no mesmo dormir sobre uma esteira ou num colchão. Se, em plena noite, como prescreve a Regra, salmodias com toda a vigilância, o leito terá que ser muito duro para que não durmas impassível. Se trabalhas manualmente durante o dia quando tua profissão te exige, muito acre será a comida para não comê-la com gosto.
            13. Portanto, levanta-te, soldado de Cristo, levanta-te, sacode a poeira, volta à batalha da qual fugistes, para lutar com maior brio depois de tua fuga, e teu triunfo será mais glorioso, porque Cristo tem muitos soldados que começaram a lutar com intrepidez, perseveraram e venceram, mas poucos desertores arrependidos se arrojaram de novo ao perigo que se esquivaram. Poucos foram os que puseram em fuga aos inimigos de quem fugiram. E como todo o extraordinário é precioso, me alegra que tu possas ser um desses que, quanto mais excepcionais, mais são gloriosos. Se, por outro lado, és muito tímido, porque temes quando não deves e não temes quando mais precisa fazê-lo? Por acaso pensas que te livrastes do poder dos inimigos porque fugistes da batalha? Pois saibas que o adversário te persegue mais alegremente se foges que se lhe fazes frente, ataca com mais audácia pelas costas, mas oferece menos resistência quando é enfrentado. Tu lanças as armas e dormes tranqüilo pela manhã precisamente na hora em que Cristo ressuscitou, e ignoras que desarmado perdes valor e és menos temível para os inimigos?
            Uma multidão armada ronda tua casa e tu dormes? Já escalam os muros, derrubam a cerca, irrompem pelo postigo. Se te surpreendem só, tu crês que estás mais seguro só que acompanhado, desnudo no leito que armado no campo? Deixa a preguiça de lado, empunha as armas e retorna a teus companheiros a quem abandonastes em tua fuga. Assim, o mesmo temor que te separou deles voltará a te unir. Por que recusas o peso e o incômodo das armas, afetado combatente? Quando ameaças o adversário e voam as flechas, não te pesa o escudo, nem sentes a loriga e o elmo. Tudo é difícil àquele que passa subitamente da sombra para o Sol, da ociosidade ao trabalho, mas quando começa a se soltar e lentamente se acomoda ao novo, o hábito elimina a dificuldade, e se torna fácil o que antes parecia impossível. Os mais fortes soldados, ao escutarem as trombetas, também costumam tremer diante do combate. Mas quando se inicia a batalha, aumenta seu valor com a esperança de vencer e o temor de serem derrotados.
            Por que temes tu, protegido que estás pela unanimidade de teus irmãos armados, se os anjos caminham junto a ti, e se Cristo vai à frente como um duque guerreiro, dizendo aos seus para se animarem a vencer “Ânimo, que Eu venci o mundo”?, e “Se Cristo está em nosso lado, quem poderá estar contra?” Tu podes lutar seguro quando estás certo da vitória. Que segurança lutar por Cristo e com Cristo! Nem ferido, nem derrubado, nem pisoteado, nem morto mil vezes, se fosse possível, tu deixarias de vencer: basta não fugir. A única coisa que pode fazer perder a vitória é a fuga. Fugindo, podes perdê-la, morrendo, não. Beato serás se morreres lutando, porque os mortos te coroarão. Mas, ai de ti, se, declinando a batalha, perderes a vitória e a coroa. Filho, diletíssimo, que tu evites aquele que no juízo fará recair sobre ti uma condenação mais grave, devido a esta carta minha, se, ao final, tu veres que não aproveitastes nada.
            “Senhor Jesus Cristo, Filho do Pai, envia agora o teu Espírito sobre a Terra. Faze habitar o Espírito Santo nos corações de todos os povos, a fim de que sejam preservados da corrupção, da calamidade e da guerra. Que a Senhora de todos os povos, que uma vez era MARIA, seja a nossa advogada. Amém”

No comments:

Post a Comment