Thursday, 16 January 2020

Thursday's Serial: "Memórias de um Sargento de Milícias" by Manuel Antônio de Almeida (in Portuguese) - VIII


XI - Malsinação        
As três velhas conversaram por largo tempo, não porque muitas coisas se tivessem a dizer a respeito do que se acabava de passar, porém porque a comadre, remontando ao mais remoto passado, entendera que para dizer que muito se interessava pela volta do afilhado para casa era mister contar desde sua origem a vida inteira deste, de sua mãe, de seu pai, e a sua própria, que fora mais comprida de todas, e porque as duas velhas entenderam que para dizerem que o Leonardo estava ali muito bem, e que não consentiriam que ele saísse, entenderam ser preciso fazer o que havia feito a comadre-contar a sua vida e de toda a família desde as eras primitivas.-Ora, como todas essas histórias contadas de parte a parte eram cheias de episódios, já sentimentais, já tocantes, já alegres, aconteceu que entre muita gargalhada correram também algumas lágrimas durante a conversação. Não há nada que mais sirva para fazer nascer e firmar a amizade, e mesmo a intimidade, do que seja o riso e as lágrimas: aqueles que se riram, e principalmente aqueles que uma vez choraram juntos, têm muita facilidade em fazerem-se amigos. Com efeito, no fim da conversa, as três velhas estimavam-se mutuamente de uma maneira incrível.
Se esta facilidade de expansão não fosse acompanhada da grande dificuldade de rompimentos e de intrigas, seria uma das grandes virtudes daquele tempo. Porém as simpatias que se criavam em uma hora de conversa transformavam-se em ódio num minuto de desavença.
Enquanto as velhas conversavam, os contendores acalmaram-se, passou a tormenta, e se tudo não ficou logo acabado, ficou pelo menos esquecido por algum tempo. Leonardo achava-se já disposto a atender às súplicas de Vidinha e das outras moças que o não queriam por modo algum fora de casa: os dois rivais derrotados pareciam resignar-se.
Quando terminou a conferência das três, a comadre entendeu que era chegado o momento de começar a pregação ao Leonardo, e começou nestes termos:
— Rapaz dos trezentos demos, valham-te os serafins... tu tens nessa cabeça pedras em vez de miolos; o sol não cobre criatura mais renegada do que tu. És um viramundo; andas feito um valdevinos sem eira nem beira nem ramo de figueira, sem ofício nem benefício, sendo pesado a todos nesta vida...
— Se é cá conosco que fala, acudiu uma das velhas, deixe-o estar aonde está que está muito bem.
— Qual! senhora, pois se vem levantar poeira na casa alheia! é um galo de brigas.
— Ora, isso é lá coisa entre rapazes e raparigas; deixá-los que eles se arranjarão, redargüiu a velha.
Ingenuidade infantil das velhas daquele tempo!
A comadre ia prosseguir; porém sendo a cada passo interrompida, tomou por seu barato dar a coisa por finda. Retirou-se, ficando convencionado que Leonardo permaneceria onde estava.
Vidinha ficou contentíssima com semelhante resultado; os primos porém fizeram má cara, porque tal não esperavam. Desde que viram que tudo ia continuar no mesmo pé, renasceu-lhes o despeito. Atiraram algumas indiretas, com as quais ia tudo pegando fogo novamente; porém contiveram-se ainda; um deles chamou o outro em particular, e começaram por seu turno a conferenciar, porém em segredo. Não havia nada mais natural: o inimigo era comum, juntavam-se para atacá-lo; depois que ele fosse derrotado, a questão se decidiria então entre os dois.
Depois desta última conferência serenou tudo definitivamente; cada qual recolheu-se a seu posto, e passaram-se muitos dias em santa paz. Durante esses dias mais se estreitaram os laços entre o Leonardo e Vidinha. É sempre assim que sucede: quereis que nos liguemos estreitamente a uma coisa? Fazei-nos sofrer por ela. Os dois tinham sofrido um pelo outro, e era isto uma forte razão para se amarem cada vez mais.
A comadre vinha regularmente ver o afilhado e visitar suas novas amigas.
Tudo parecia enfim nos seus eixos naturais; porém os dois primos tramavam, e tramavam largamente. Ninguém entretanto atinava com o que seria.
Leonardo passava vida completa de vadio, metido em casa todo o santo dia, sem lhe dar o menor abalo o que se passava lá fora pelo mundo. O seu mundo consistia unicamente nos olhos, nos sorrisos e nos requebros de Vidinha.
Um dia forjaram uma patuscada semelhante à que dera origem ao conhecimento do Leonardo com a família. Deviam sair de madrugada da cidade e passarem fora o dia. Preparou-se tudo: cestos de comida, esteiras e mais arranjos. Vidinha mandou encordoar de novo sua viola; avisaram-se os convivas do costume.
À hora aprazada partiram.
Quem estivesse menos distraído pelo prazer da patuscada do que estava qualquer dos suciantes, notaria que os dois primos deixavam-se de vez em quando ficar atrás, e cochichavam como se tramassem uma conspiração. Ninguém porém dera atenção a semelhante coisa.
Chegaram ao lugar determinado ao romper do dia. Apenas começavam a preparar-se para o almoço, viram surdir, ninguém soube bem de onde, a figura alta, magra, severa e sarcástica do nosso célebre major Vidigal. Correu por todos um sinal de pouco contentamento, exceto pelos primos, que trocaram entre si um olhar de inteligência e triunfo.
Os olhos de Vidinha dirigiram-se instintivamente para Leonardo.
O major Vidigal deixou passar o primeiro momento de surpresa, e depois, sorrindo-se, disse, como costumava, com sua voz descansada:
— Não tenham medo de mim, que não sou nenhum papa-crianças, nem eu venho desmanchar prazeres de ninguém. Quero só saber quem é aqui o amigo Leonardo.
Vidinha fez logo cara de choro. Leonardo levantou-se sem saber como, e disse todo trêmulo:
— Sou eu...
— Ora vejam, respondeu o Vidigal em tom de mofa, eu não sabia!... Pois, meus amigos, não se assustem que o caso não foi para tanto: um súcio de menos numa patuscada não faz falta nenhuma. Este amigo vai conosco. Se ele puder, voltará em breve... mas creio que já não chegará a tempo para acabar a patuscada.
— Qual, meu Deus! mas por que é então isto? que mal é que ele fez?
— Ele não fez nem faz nada; mas é mesmo por não fazer nada que isto lhe sucede. Leva, granadeiro.
E um dos granadeiros com que viera o major acompanhado foi tratando de conduzir o Leonardo.
O Vidigal seguiu-os tranqüilamente, sem alterar o passo, e dizendo polidamente:
— Adeus, minha gente.
Vidinha desatou a chorar, exclamando:
— Foi malsinação!
— Foi malsinação! repetiram todos, menos os dois primos.
A súcia levantou-se.

XII - Triunfo completo de José Manuel           
Era um sábado de tarde; em casa de D. Maria havia um lufa-lufa imenso; andavam as crias e mais escravos de dentro para fora; espanava-se a sala; arrumavam-se as cadeiras; corria-se, falava-se, gritava-se.
A dona da casa trajava, fora do ordinário, um rico vestido de cassa bordado de prata, de corpinho muito curto e mangas de um volume enorme. Seja dito de passagem que a prata do bordado estava já mareada, e o mais do vestido um pouco encardido. Trazia ainda D. Maria um penteado de desmedida altura, um formidável par de rodelas de crisólitas nas orelhas, e dez ou doze anéis de diversos tamanhos e feitios nos dedos.
Luisinha trajava também um vestido que qualquer menos entendido na matéria desconfiaria que era filho legítimo do de sua tia; trazia um toucado de plumas brancas na cabeça e um rosário de ouro de contas mui grossas na cintura.
Acabavam de sair as duas assim preparadas do quarto de vestir, quando sentiu-se rodar uma carruagem e parar na porta da casa. Luisinha estremeceu; D. Maria levou o lenço aos olhos, e tirou-o em pouco tempo molhado de lágrimas.
— Está ai a carruagem, gritou uma das crias que estava de sentinela à janela.
A carruagem era um formidável, um monstruoso maquinismo de couro, balançando-se pesadamente sobre quatro desmesuradas rodas. Não parecia coisa muito nova; e com mais dez anos de vida poderia muito bem entrar no número dos restos infelizes do terremoto, de que fala o poeta.
Mal tinha este trem parado à porta, sentiu-se o rodar de outro que veio parar junto dele. O que dissemos a respeito dos vestidos de D. Maria e sua sobrinha pode perfeitamente aplicar-se aos dois trens; o segundo parecia filho legitimo do primeiro.
Do último que chegara apeou-se José Manuel, e entrou em casa de D. Maria, que o veio receber à porta.
É inútil observar que a vizinhança estava toda à janela, e via todo aquele movimento com olhos regalados pela mais desabrida curiosidade.
José Manuel trajava casaca de seda preta, calções da mesma fazenda e cor; trazia meias também pretas e sapatos de entrada baixa, ornados com enormes fivelas de prata, espadim e chapéu de pasta.
Acompanhavam-no dois amigos vestidos pelo mesmo teor.
José Manuel estava com um ar entre compungido e triunfante, e desfazia-se em mesuras à D. Maria.
Depois de tudo isto quer ainda o leitor que lhe declaremos que a sobrinha de D. Maria casava-se naquela tarde com José Manuel?
Chegou o momento da partida. Luisinha, conduzida por D. Maria, que lhe ia servir de madrinha, embarcou num dos destroços da arca de Noé, a que chamamos carruagem; José Manuel, acompanhado por quem lhe ia servir de padrinho, fez outro tanto, e partiram depressa para a igreja. Fizeram bem em partir depressa, porque se se demorassem alguns minutos, corriam o risco de serem devorados pelos olhos dos vizinhos.
Apenas cessou a bulha das carruagens, começaram estes últimos em conversa renhida, de que damos aqui uma pequena amostra.
— Senhora, dizia uma sujeita que morava junto de D. Maria para outra que morava defronte, o tal noivo poderá ser coisa boa, mas não dou nada pela cara dele.
— E a noiva?... respondia a outra; arrenego também da lambisgóia...
— E o filho do Leonardo ficou vendo estrelas?...
— Por força: venceu este porque é um finório de conta.
— Se a velha deixar tudo à sobrinha, não é mau arranjo...
— Decerto. Pois não sabe que o seu defunto marido era um homem que viajava para a Índia?
Neste tom continuaram até a volta das carruagens.
Agora demos ao leitor algumas explicações a respeito do triunfo de José Manuel.
Depois das boas obras do mestre-de-reza, de que os leitores já foram informados, José Manuel reabilitara-se completamente junto a D. Maria; tornara a freqüentar a casa, e foi pouco a pouco pondo barro à sua parede. Um sucesso inesperado veio ajudá-lo com a maior eficácia. O testamenteiro do finado irmão de D. Maria, do pai de Luisinha, que já tinha tido com D. Maria, como talvez não estejam esquecidos os leitores, uma demanda por causa desta última, surdiu de repente com uma nova prebenda relativa a uma pontinha de testamento, e D. Maria teve de entrar de novo com ele em uma luta judiciária. Isto coincidiu com a morte inesperada do procurador de D. Maria. José Manuel ofereceu-se para cuidar da causa; e com tanto jeito arranjou tudo, que em muito pouco tempo, coisa que procurador nenhum teria feito, venceu a demanda em favor de D. Maria.
Ora, os leitores hão de estar lembrados da mania que tinha D. Maria por uma demandazinha; atirava-se a ela com vontade, e tal era o empenho que empregava na mais insignificante questão judiciária, que em tais casos parecia ter em jogo sua vida. Daqui se poderá concluir a satisfação que teria ela no dia em que se achava vencedora, e como se não julgaria obrigada a quem lhe proporcionasse a vitória.
José Manuel aproveitou-se disto; e no dia em que veio ler a D. Maria a sentença final que resolvia a pendência em seu favor, pediu-lhe a mão da sobrinha, a qual lhe foi prometida sem grandes escrúpulos.
Luisinha estava nesta ocasião em um daqueles períodos de abatimento que se costumam produzir nos moços, e principalmente nas moças que ainda marcham por aquela estrada florida que leva dos 13 aos 25 anos, quando as oprime o isolamento.
Ora, como sabem todos os que me lêem, o Leonardo tinha abandonado Luisinha; ela aceitou portanto indiferentemente a proposta de sua tia.

XIII - Escápula             
Deixemos aos noivos o gozo tranqüilo da sua lua-de-mel; deixemos D. Maria desfazer-se em carinhos e conselhos à sua sobrinha, que os recebia indiferentemente, e em atenções para com José Manuel, cuja cabeça se tinha tornado repentinamente uma aritmética completa, toda algarismos, toda cálculos, toda multiplicações; e voltemos a saber o que foi feito do Leonardo, a quem deixamos na ocasião em que fora arrancado pelo Vidigal dos braços do amor e da folia.
O Vidigal tinha-o posto diante de si, ao lado de um granadeiro, e marchava poucos passos atrás. Enquanto caminhavam o granadeiro pretendeu dar-lhe conversa; mas ele a nada respondia, parecendo absorto em grave cogitação.
Quem estivesse muito atento havia de notar que algumas vezes o Leonardo parecia, ainda que muito ligeiramente, apressar o passo, que outras vezes o retardava, que seu olhar e sua cabeça voltavam-se de vez em quando, quase imperceptivelmente, para a esquerda ou para a direita. O Vidigal, a quem nada disto escapava, achava em todas estas ocasiões pretextos para dar sinais de si; tossia, pisava mais forte, arrastava no chão o chapéu-de-sol que sempre trazia na mão, como quem queria dizer ao Leonardo, respondendo aos seus pensamentos íntimos:
— Cuidado! eu aqui estou.-E o Leonardo entendia tudo aquilo às mil maravilhas; contraía os lábios de raiva e de impaciência. Entretanto nem por isso abandonava a sua idéia: queria fugir. Desconfiava que ia para a casa da guarda, e pedia interiormente aos seus deuses que alongassem de muitas léguas as ruas que tinha de percorrer. Quando via de longe uma esquina dizia consigo:-E agora; quebro por ali fora, e bato pernas.-Porém ao chegar perto da esquina, o Vidigal achava alguma coisa que dizer ao granadeiro, e passava-se a esquina. Se lhe aparecia à direita ou à esquerda um corredor aberto, pensava consigo:-Embarafusto por ali adentro, e sumo-me.-Mas no momento em que ia tomar a última decisão, parecia-lhe sentir a mão do Vidigal que o agarrava pela gola da jaqueta, e esfriava. Não eram os granadeiros que lhe metiam medo; nunca em todos os planos de fugir que lhe passavam naquela ocasião pela cabeça contou uma só vez com eles; mas o Vidigal, o cruel major, era a quantidade constante de seus cálculos.
O pobre rapaz, durante aqueles combates íntimos, suava mais do que no dia em que fez a primeira declaração de amor a Luisinha. Só havia na sua vida um transe a que assemelhava, aquele em que então se achava, era o que se havia passado, quando criança, naquele meio segundo que levara a percorrer o espaço nas asas do tremendo pontapé que lhe dera seu pai.
Repentinamente uma circunstância veio favorecê-lo. Não sabemos por que causa ouviu-se um grande alarido na rua: gritos, assovios e carreiras. O Leonardo teve uma espécie de vertigem: zuniram-lhe os ouvidos, escureceram-se-lhe os olhos, e... dando um encontrão no granadeiro que estava perto dele, desatou a correr. O Vidigal deu um salto, e estendeu o braço para o agarrar; mas apenas roçou-lhe com a ponta dos dedos pelas costas. O rapaz tinha calculado bem: o Vidigal distraiu-se com o ruído que se fizera na rua, e aproveitou a ocasião. O Vidigal e os granadeiros soltaram-se imediatamente em seu alcance: o Leonardo embarafustou pelo primeiro corredor que achou aberto; os seus perseguidores entraram incontinenti atrás dele, e subiram em tropel o primeiro lance da escada. Apenas o haviam dobrado, e subiam o segundo, abriram-se as cortinas de uma cadeirinha que se achava na entrada, e pela qual tinham eles passado, sai dela Leonardo, e de um pulo ganha a rua. Ao entrar, tendo dado com aquele refúgio, metera-se dentro; os granadeiros e o Vidigal não haviam reparado em tal com a precipitação com que entraram, e isso lhe valeu.
É impossível descrever o que sentiu o Leonardo quando por entre as cortinas da cadeirinha viu-os passar e subir a escada. Foi uma rápida alternativa de frio e de calor, de tremor e de imobilidade, de medo e de coragem; veio-lhe outra vez à lembrança o pontapé paterno: era o termo constante de comparação para todos os seus sofrimentos.
Enquanto o Vidigal e os granadeiros varejavam a casa em que haviam entrado, Leonardo punha-se longe, e em quatro pulos achava-se em casa de Vidinha, que o recebeu com um abraço, exclamando:
— Qual! aí está ele!
Um raio de alegria iluminou todos os semblantes, menos o dos dois irmãos rivais, que ficaram horrivelmente desapontados. As duas velhas tiraram da cabeça as mantilhas que já haviam tomado para dar providências sobre o caso. A presença do Leonardo foi uma aura benfazeja que espalhou as nuvens de uma grossa tormenta, que tendo começado a roncar quando Leonardo foi preso com aquelas palavras-foi malsinação-viera desabar de todo em casa, e prometia durar muito tempo.
Vidinha, tendo a princípio trocado com os primos algumas indiretas a respeito da prisão de Leonardo, julgara conveniente deixar-se de panos quentes, e fora direito a eles, como se diz, com quatro pedras na mão, atribuindo-lhes o que acabava de suceder.
Eles denegaram, e travaram-se com ela de razões. A princípio as duas velhas estavam ambas da parte de Vidinha, porém tendo esta atirado três ou quatro ditos fortes demais aos primos, a tia ofendeu-se, e tomou o partido dos dois filhos: a outra velha, mãe de Vidinha, protesta contra a parcialidade de sua irmã, e reforça ainda mais, acompanhada dos que restavam, o partido de Vidinha. Divididos e extremados assim os dois campos, com terríveis campeões de lado a lado, fácil é prever-se o que teria sucedido se o Leonardo não viesse tão a tempo para acalmar tudo.
Tomado pelo prazer de ver-se livre, nem teve ele tempo de fazer recriminações aos seus inimigos: já sabia com certeza quem fora a causa do que acabava de sofrer, pois que o tinha percebido pela conversa que com ele tentara travar o granadeiro.
O major Vidigal fora às nuvens com o caso: nunca um só garoto, a quem uma vez tivesse posto a mão, lhe havia podido escapar; e entretanto aquele lhe viera pôr sal na moleira; ofendê-lo em sua vaidade de bom comandante de polícia, e degradá-lo diante dos granadeiros. Quem pregava ao major Vidigal um logro, fosse qual fosse a sua natureza, ficava-lhe sob a proteção, e tinha-o consigo em todas as ocasiões. Se o Leonardo não tivesse fugido, e arranjasse depois a soltura por qualquer meio, o Vidigal era até capaz, por fim de contas, de ser seu amigo; mas tendo-o deixado mal, tinha-o por seu inimigo irreconciliável enquanto não lhe desse desforra completa.
Já se vê pois que as fortunas do Leonardo redundavam-lhe sempre em mal: era realmente um mal naquele tempo ter por inimigo o major Vidigal, principalmente quando se tinha, como o Leonardo, uma vida tão regular e tão lícita.
Veremos agora o que se passou na casa em que entrara o Vidigal com os granadeiros em procura do Leonardo.

XIV - O Vidigal Desapontado               
O major Vidigal, vendo-se logrado, deu urros; e, como já fizemos sentir aos leitores, prometeu a si mesmo tomar séria vingança do Leonardo.
— Ora, dizia ele consigo, gastar meu tempo nesta vida, gastar os meus miolos a pensar nos meios de dar caça a quanto vagabundo gira por esta cidade, conseguir, à custa de muitos dias de fadiga, de muitas noites passadas sem pregar olho, de muita carreira, de muito trabalho, fazer-me temido, respeitado por aqueles que a ninguém temem e respeitam, os vadios e peraltas; e agora no fim de contas vir um melquetrefezinho pôr-me sal na moleira, envergonhar-me diante destes soldados e de toda esta gente! Agora, não há garoto por aí que, sabendo disto, não se esteja a rir de mim, e não conte já com a possibilidade de me pregar um segundo mono como este!...
O major tinha razão: riam-se com efeito dele; e os primeiros que o faziam eram os granadeiros. Apesar de que, escravos da disciplina, empregavam os mais sinceros esforços para coadjuvá-lo; e apesar também de que revertia para eles alguma glória das façanhas do major, não puderam entretanto deixar de achar graça no que acabava de suceder, pois conheciam a presunção do Vidigal, e repararam na cara desapontada com que ele havia ficado. Depois, apenas o major pôs pé fora da soleira da casa onde lhe tinha escapado Leonardo, uma multidão imensa que tudo havia presenciado desatou a rir estrondosamente.
— Então, Sr. major, dizia-lhe um dos da turba, desta vez.

    Passarinho foi-se embora,
    Deixou-me as penas na mão.

— Sr. major, dizia outro, procure nos bolsos.
— Dentro da barretina, emendava outro.
— Atrás da porta, replicava aquele.
E um coro de risadas acompanhava cada um destes conselhos.
— Lá está o bicho dentro da cadeirinha! gritou um repentinamente. O Vidigal, como que instintivamente, correu à cadeirinha e abriu-lhe as cortinas.
Nessa ocasião as risadas foram homéricas: o major compreendeu então qual fora o meio por que lhe escapara o Leonardo, e soltou um-ah!-prolongadíssimo. Enfim retirou-se acabrunhado, e ruminando projetos para sua reabilitação.
— Se aqueles rapazes da Conceição, dizia consigo o Vidigal, que me foram levar a nota do tal malandro, me tivessem avisado que ele era desta laia, eu não teria passado por esta imensa vergonha.
Por estas palavras vêem os leitores que as imputações da Vidinha contra os primos tinham mais que muito fundamento. Com efeito, o que se acabava de passar não era senão o resultado do ajuste que no dia da grande briga, por aquele motivo que o leitor bem sabe, haviam feito os dois rivais: tinham eles malsinado ao Leonardo. Foram ter com o Vidigal, e sem precisar mentir armaram ao Leonardo uma cama muito bem feita: era um homem sem ofício nem benefício, vivendo à custa alheia, enchendo de pernas a casa de duas mulheres velhas, a quem não tinha aproveitado a experiência, e, o que é mais, roubando aos primos o amor de sua prima.
O Vidigal regalara os olhos ouvindo a narração, e ficara muito agradecido aos dois rapazes pela nova que lhe levaram: era mais um pendão que ia juntar aos louros de suas façanhas policiais. A primeira tentativa custou-lhe porém bem caro.
Eis aqui pouco mais ou menos as reflexões em que o major ia engolfado:-Nada lhe seria mais agradável do que dia mais dia menos, quando ninguém pensasse em tal, acompanhado de uma escolta de granadeiros, dirigir-se à casa das duas velhas, cercá-la, e pilhar o Leonardo sem que lhe pudesse escapar. isto porém repugnava ao seu orgulho ofendido. Muitas vezes se tinha, é verdade, servido desse meio, porém fora isso para poder pilhar a capadócios de longa data, tidos e havidos como tais, e velhos no ofício. Não queria pois servir-se do mesmo meio para agarrar um recruta no ofício, que ainda agora começava. Nada, tal não fazia; não havia fazer cerco, e o que é mais, não queria de modo algum o adjutório dos granadeiros; jurava a si mesmo que ele sozinho, sem o apoio de ninguém, havia de pôr a mão no Leonardo.
Ia o Vidigal entrando na casa da guarda, para onde se dirigia, depois da derrota, quando sentiu-se repentinamente agarrado pelas pernas, e viu a seus pés uma mulher de mantilha, que chorava, soluçando muito, com o lenço no rosto.
— Que é isto, senhora? Deixe-me. Ora isto hoje é dia de má sina.
Continuaram os soluços por única resposta.
— Senhora, deixa-me ou não as pernas? Eu não gosto de carpideiras... entende?
Soluços ainda.
— Ora não está má esta... Se lhe morreu alguém, vá chorar na cama, que é lugar quente.
Redobrou o pranto.
— Valham-me trezentos diabos!... Quando é que isto terá fim?... Esta mulher acaba por atirar-me no chão...
Estava já muita gente junta na porta.
Passado finalmente um pouco de tempo em silêncio, quando já o major estava disposto a empregar alguma medida de rigor para ver-se livre da carpideira, esta ergueu a cabeça, e tirando o lenço da cara exclamou entre lágrimas:
— Sr. major, solte, solte por quem é meu afilhado, solte, solte o pobre rapaz; ele é um doido, é verdade, mas...
E os soluços lhe embargaram muito a propósito a voz.
Era a comadre que, tendo sabido da prisão do afilhado, viera fazer em seu favor aquela choradeira, ignorando que ele se tivesse evadido. A cena produziu o efeito esperado. Os granadeiros, de cada vez que a comadre dizia-solte, solte-desatavam a rir; tendo por boca pequena explicado tudo aos demais circunstantes; estes os acompanhavam.
O major tomou tudo aquilo como um escárnio que o gênio da vadiação e do garotismo lhe fazia: era mister que ele, para ver-se livre da comadre, que não lhe largava os joelhos, declarasse por sua própria boca, diante de toda aquela gente, que o Leonardo havia fugido! Declarou-o, e fugiu de todos aqueles olhares, em cada um dos quais via um insulto.
A comadre, apenas ouviu a declaração, tratou de retirar-se, e não pôde também deixar de achar graça no caso.

XV - Caldo entornado          
A comadre, tendo deixado o major entregue à sua vergonha, dirigira-se imediatamente para a casa onde se achava Leonardo para felicitá-lo e contar-lhe o desespero em que a sua fuga tinha posto o Vidigal. O Leonardo contava com isso, e não se admirou; Vidinha porém e as duas velhas, por entre muita praga e esconjuro, deram grandes risadas à custa do major. A comadre, segundo seu costume, aproveitou o ensejo, e depois que se aborreceu de falar no major desenrolou um sermão ao Leonardo, no qual, algumas exagerações de parte, havia grande fundo de justiça; e tanto que até a própria Vidinha chegou a dar-lhe inteira razão quanto a alguns trechos. O tema do sermão foi a necessidade de buscar o Leonardo uma ocupação, de abandonar a vida que levava, gostosa sim, porém sujeita a emergências tais como a que acabava de dar-se. A sanção de todas as leis que a predadora impunha ao seu ouvinte eram as garras do Vidigal.
— Haveis de afinal cair-lhe nas unhas, dizia ela no fim de cada período; e então o côvado e meio te cairá também nas costas.
Esta idéia do côvado e meio fez brecha no espírito do Leonardo: ser soldado era naquele tempo, e ainda hoje talvez, a pior coisa que podia suceder a um homem. Prometeu pois sinceramente emendar-se e tratar de ver um arranjo em que estivesse ao abrigo de qualquer capricho policial do terrível major. Achar porém ocupação para quem nunca cuidou nela até certa idade, e assim de pé para mão, não era das coisas mais fáceis.
Entretanto o zelo da comadre pôs-se em atividade, e poucos dias depois entrou ela muito contente, e veio participar ao Leonardo que lhe tinha achado um excelente arranjo que o habilitava, segundo pensava, a um grande futuro, e o punha perfeitamente a coberto das iras do Vidigal; era o arranjo de servidor na ucharia real. Deixando de parte o substantivo ucharia, e atendendo só ao adjetivo real, todos os interessados e o próprio Leonardo regalaram os olhos com o achado da comadre. Empregado da casa real?! oh! isso não era coisa que se recusasse; e então empregado na ucharia! essa mina inesgotável, tão farta e tão rica!... A proposta da comadre foi aceita sem uma só reflexão contra, da parte de quem quer que fosse.
Como a comadre pudera arranjar semelhante coisa para o afilhado é isso que pouco nos deve importar.
Dentro de poucos dias achou-se o Leonardo instalado no seu posto, muito cheio e contente de si.
O major, que o não perdia de vista, soube-lhe dos passos, e mordeu os beiços de raiva quando o viu tão bem aquartelado; só deixando a vida que levava podia o Leonardo cortar ao major pretextos para pôr-lhe a unha mais dia menos dia.
— Se ele se emenda?! dizia pesaroso o major; se ele se emenda perco eu a minha vingança... Mas... (e esta esperança o alentava) ele não tem cara de quem nasceu para emendas.
O major tinha razão: o Leonardo não parecia ter nascido para emendas. Durante os primeiros tempos de serviço tudo correu às mil maravilhas; só algum mal-intencionado poderia notar em casa de Vidinha uma certa fartura desusada na despensa; mas isso não era coisa em que alguém fizesse conta.
O Leonardo porém parece que recebera de seu pai a fatalidade de lhe previrem sempre os infortúnios dos devaneios do coração.
Dentro do pátio da ucharia morava um toma-largura em companhia de uma moça que lhe cuidava na casa; a moça era bonita, e o toma-largura um machacaz talhado pelo molde mais grotesco; a moça fazia pena a quem a via nas mãos de tal possuidor.
O Leonardo, cujo coração era compadecido, teve, como todos, pena da moça; e apressemo-nos a dizer, era tão sincero esse sentimento que não pôde deixar de despertar também a mais sincera gratidão ao objeto dele. Quem pagou o resultado da pena de um e da gratidão da outra foi o toma-largura.
Vidinha lá por casa começou a estranhar a assiduidade do novo empregado na sua repartição, e a notar o quer que fosse de esmorecimento de sua parte para com ela.
Um dia o toma-largura tinha saído em serviço; ninguém esperava por ele tão cedo: eram 11 horas da manhã. O Leonardo, por um daqueles milhares de escaninhos que existem na ucharia, tinha ido ter à casa do toma-largura. Ninguém porém pense que era para maus fins. Pelo contrário era para o fim muito louvável de levar à pobre moça uma tigela de caldo do que há pouco fora mandado a el-rei... Obséquio de empregado da ucharia. Não há aqui nada de censurável. Seria entretanto muito digno de censura que quem recebia tal obséquio não o procurasse pagar com um extremo de civilidade: a moça convidou pois ao Leonardo para ajudá-la a tomar o caldo. E que grosseiro seria ele se não aceitasse tão belo oferecimento? Aceitou.
De repente sente-se abrir uma porta: a moça, que tinha na mão a tigela, estremece, e o caldo entorna-se.
O toma-largura, que acabava de chegar inesperadamente, fora a causa de tudo isto. O Leonardo correu precipitadamente pelo caminho mais curto que encontrou; sem dúvida em busca de outro caldo, uma vez que o primeiro se tinha entornado. O toma-largura corre-lhe também ao alcance, sem dúvida para pedir-lhe que trouxesse desta vez quantidade que chegasse para um terceiro.
O caso foi que daí a pouco ouviu-se lá por dentro barulho de pratos quebrados, de móveis atirados ao chão, gritos, alarido; viu-se depois o Leonardo atravessar o pátio da ucharia à carreira e o toma-largura voltar com os galões da farda arrancados, e esta com uma aba de menos.

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No dia seguinte o Leonardo foi despedido da ucharia.


XVI - Ciúmes                
No dia seguinte já o Vidigal sabia de cor e salteado tudo quanto havia sucedido ao Leonardo, e pôs-se alerta, pois que a ocasião era oportuna.
O Leonardo entrara para a ucharia com o pé esquerdo: a tormenta por que havia passado nada foi em comparação da que lhe caiu nas costas, quando em casa se soube da causa verdadeira de sua saída.
É uma grande desgraça não corresponder a mulher a quem amamos aos nossos afetos; porém não é também pequena desventura o cairmos nas mãos de uma mulher a quem deu na cabeça querer-nos bem deveras. O Leonardo podia dar a prova desta última verdade. Vidinha era ciumenta até não poder mais: ora, as mulheres têm uma infinidade de maneiras de manifestar este sentimento. A umas dá-lhe para chorar em um canto, e choram aí em ar de graça dilúvios de lágrimas: isto é muito cômodo para quem as tem de sofrer. Outras recorrem às represálias, e nesse caso desbancam incontinenti a quem quer que seja: esta maneira é seguramente muito agradável para elas próprias. Outras não usam da mais leve represália, não espremem uma lágrima, mas assim por um espaço de oito ou quinze dias, desde que desponta a aurora, até que cai a noite, resmungam um calendário de lamentações, em que entram seu pai, sua mãe, seus parentes e amigos, seu compadre, sua comadre, seu dote, seus filhos e filhas, e tudo por aí além; isso sem cessar um só instante, sem um segundo de descanso: de maneira a deixar na cabeça do mísero que a escuta uma assuada eterna, capaz de fazer amolecer um cérebro de pedra. Outras entendem que devem afetar desprezo e pouco-caso: essas tornam-se divertidas, e faz gosto vê-las. Outras enfim deixam-se tomar de um furor desabrido e irreprimível; praguejam, blasfemam, quebram os trastes, rompem a roupa, espancam os escravos e filhos, descompõem os vizinhos: esta é a pior de todas as manifestações, a mais desesperadora, a menos econômica, e também a mais infrutífera. Vidinha era do número destas últimas.
Apenas pois, como há pouco dizíamos, se verificou a verdadeira causa da saída do Leonardo, desabou um temporal que só terá semelhante no que há de preceder ao aniquilamento do globo. Depois de gritar, chorar, maldizer, blasfemar, ameaçar, rasgar, quebrar, destruir, Vidinha parou um instante, concentrou-se, meditou, e depois, como tomando uma grande resolução:
— Minha mãe, disse dirigindo-se a uma das velhas, quero a sua mantilha...
— Filha de Deus, acudiu a velha, que desatino é esse? onde é que ides agora de mantilha?...
— Eu cá sei onde vou... quero a sua mantilha... tenho dito... quero a sua mantilha...
Foram todos reunindo-se em roda de Vidinha, surpreendidos por aquela resolução.
O Leonardo estava sentado, ou antes encolhido a seu canto, quedo e silencioso.
— Quero a sua mantilha, minha mãe; quero, e quero...
— Mas para onde ides, rapariga?... Ora, meu Deus!... isso foi coisa que vos fizeram...
— Quero ir à ucharia...
— Jesus!...
— Quero ir... que me importa que seja a casa do rei?... Hei de ir... hei de procurar o tal toma-largura... quero fazer-lhe cá duas perguntas... e, ou o Menino Jesus não é filho da Virgem, ou na tal ucharia não fica hoje coisa sobre coisa.
— Que loucura, rapariga... que desatino!...
Os dois primos riam-se interiormente do que se estava passando.
Não há coisa mais eminentemente prosaica do que uma mulher quando se enfurece. Tudo quanto em Vidinha havia de requebro, de languidez, de voluptuosidade tinha desaparecido; estava feia, e até repugnante.
Ninguém houve que a pudesse desviar do seu propósito: ela foi tomando a mantilha e dispondo-se a sair; rogos, choros, nada a pôde conter.
O Leonardo viu que o caso estava malparado, e tendo estado até então calado, decidiu-se também a pedir a Vidinha que não saísse. Foi, como se costuma dizer, pior a emenda que o soneto.
— Qual!... responde Vidinha... essa agora é que havia de ser bonita... Qual! pois eu não hei de sair?... Tinha que ver... então por pedido do senhor? Ora qual...
E foi saindo.
Começava a anoitecer.
A gente de casa ficou toda na maior aflição; ninguém sabia o que se havia de fazer. O Leonardo tomou a resolução de acompanhar Vidinha a ver se a detinha em caminho.
Vidinha caminhava tão depressa que a principio o Leonardo quase que a perdia de vista; finalmente conseguiu alcançá-la, e começou a pedir-lhe que voltasse, fazendo as maiores promessas de comedir-se dali em diante, e de lhe não dar mais motivos de desgosto. Vidinha porém a nada atendia, e caminhava sempre. O Leonardo recorreu a ameaças; Vidinha redobrou a passos: voltou de novo a rogativas; Vidinha caminhava sempre.
Já estavam no largo do Paço: Vidinha, quase a correr, deixou o Leonardo umas poucas de braças atrás de si, entrou muito adiante dele pelo portão da ucharia adentro, e desapareceu. O Leonardo parou um instante a resolver-se se entraria também ou não. Finalmente decidiu-se a entrar. No momento em que ia transpondo a soleira do portão, voltou repentinamente, e ia disparando uma carreira: uma mão magra, mas vigorosa, o deteve agarrando-o pela gola da jaqueta: era a mão do major Vidigal, com quem ele havia esbarrado ao querer entrar, e de quem pretendia fugir. Vendo que lhe seria inútil qualquer tentativa, porque ali perto havia guarda, o Leonardo resignou-se. O major olhou para ele soltando uma risadinha maligna; e disse-lhe apenas muito pausada e descansadamente:
— Ora vamos...
O Leonardo entendeu bem a significação daquelas duas palavras, e caminhou, ao lado do major, na direção que este lhe indicava.

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