VII - Remédio aos males
O pobre
rapaz saíra, como dissemos, pela porta fora, e caminhando apressadamente olhava
de vez em quando para trás, pois julgava ver ainda enristado contra si o
espadim com que o pai o ameaçara, que parecia com ele querer acabar a obra que
com um pontapé começara. Andou a bom andar por largo tempo, e foi dar consigo
lá para as bandas dos Cajueiros: cansado, ofegante, sentou-se sobre umas
pedras, e quem o visse com ar tristonho e pensativo julgaria talvez que ele
cismava na sua posição e no caminho que havia tomar. Pois enganava-se
redondamente quem tal julgasse: pensava em coisa muito mais agradável; pensava
em Luisinha. Pensando nela não podia, é verdade, abster-se de ver surgir diante
dos olhos o terrível José Manuel; e isto explicava certos movimentos de
impaciência que de vez em quando se lhe podiam observar. Tinha gasto largo
tempo nesta meditação, quando foi repentinamente acordado por umas poucas de
gargalhadas partidas detrás de umas moitas vizinhas. Estremeceu da cabeça aos
pés; pareceu-lhe que lhe tinham lido os pensamentos que lhe passavam pela mente
e que se riam dele. Voltou-se, nada viu; guiado por um rumor que ouvia, começou
a procurar, e sem grande trabalho viu, atrás de umas moitas um pouco altas, uns
poucos de rapazes e raparigas, que, assentados em uma esteira entre os restos
de um jantar, debruçavam-se curiosos sobre dois parceiros que, com um baralho
de cartas amarrotado e sujo, desencabeçavam uma intrincada partida de bisca! As
gargalhadas que ouvira há pouco tinham sido a conseqüência de um capote que um
deles acabava de levar. À vista daqueles restos de um jantar, que, se não
parecia ter sido abundante, fez-lhe lembrar que saíra de casa na ocasião de
pôr-se a mesa, deu-lhe então o estômago umas formidáveis badaladas. Tentou
entretanto voltar, porque não se queria meter em festa alheia, quando,
levantando um dos jogadores a cabeça, conheceu nele um seu antigo camarada, o
menino que fora sacristão da Sé. Ainda que apesar disso se quisesse retirar, já
era tarde, porque com o movimento que fizera, o jogador, dando com ele, o havia
também conhecido.
— Olá
Leonardo! por que carga d’água vieste parar a estas alturas? Pensei que te
tinha já o diabo lambido os ossos, pois depois daquele maldito dia em que nos
vimos em pancas por causa do mestre-de-cerimônias, nunca mais te pus a vista em
cima.
Leonardo
chegou-se ao rancho, e trocados os cumprimentos com o seu antigo camarada foi
convidado a servir-se de alguma coisa do que ainda havia. Quis fazer cerimônia,
mas não estava em circunstâncias disso: uma das moças serviu-o, e enquanto
continuava a bisca, comeu ele a barrete fora.
—
Escorropicha essa garrafa que ai resta, disse-lhe o amigo, e vê se o vinho tem
o mesmo gosto daquele que em outro tempo escorropichávamos juntos das galhetas
da Sé, com desespero de meu pai e furor do mestre-de-cerimônias .
Quando
Leonardo acabou de comer, acabaram também os dois parceiros de jogar; chamou
então o amigo à parte, e perguntou-lhe:
— Então
que gente é esta com que te achas aqui de súcia?
— É
minha gente.
— Tua
gente?
— Sim,
pois não vês aquela moça morena que ali está?
— Sim,
e então?
—
Ora!...
— Pois
tu casaste?
—
Não... mas que tem isso?
—
Ah!... estás de moça!
— E tu?
— Eu...
ora nem te digo... morreu meu padrinho.
— Sim,
ouvi dizer.
— Fui
para casa de meu pai... e de repente, hoje mesmo, brigo lá com a cuja dele; ele
corre de espada atrás de mim, e eu safo-me. Parei ali adiante, e as gargalhadas
que vocês aqui davam...
— Sei
do resto... E agora tu não tens para onde ir?
—
Homem, eu ia ver...
— Ver o
quê?
— Ver
por aí...
— Por
aí, por onde?
— Nem
mesmo eu Sei...
E
desataram os dois a rir. Quando temos apenas 18 a 20 anos sobre os ombros, o
que é um peso ainda muito leve, desprezamos o passado, rimo-nos do presente,
entregamo-nos descuidados a essa confiança cega no dia de amanhã, que é o
melhor apanágio da mocidade.
— Sabes
que mais? continuou o amigo do Leonardo, vem conosco, e não te hás de
arrepender.
— Mas
com vocês, para onde?
— Para
onde? Sem dúvida algum partido melhor tens a escolher? queres fazer cerimônias?
Começava
a cair a noite.
— Vamos
levantar a súcia, minha gente, disse um dos convivas.
— Sim,
vamos.
— Nada,
inda não: Vidinha vai cantar uma modinha.
— Sim,
sim, uma modinha primeiro; aquela: Se os meus suspiros pudessem.
— Não,
essa não, cante antes aquela: Quando as glórias que eu gozei.
— Vamos
lá, decidam, respondeu uma voz de moça aflautada e lânguida.
Vidinha
era uma mulatinha de 18 a 20 anos, de altura regular, ombros largos, peito
alteado, cintura fina e pés pequeninos; tinha os olhos muito pretos e muito
vivos, os lábios grossos e úmidos, os dentes alvíssimos, a fala era um pouco
descansada, doce e afinada.
Cada
frase que proferia era interrompida com uma risada prolongada e sonora, e com
um certo caído de cabeça para trás, talvez gracioso se não tivesse muito de
afetado.
Assentou-se
finalmente que ela cantaria a modinha: Se os meus suspiros pudessem.
Tomou
Vidinha uma viola, e cantou acompanhando-se em uma toada insípida hoje, porém
de grande aceitação naquele tempo, o seguinte:
Se os meus suspiros pudessem
Aos teus ouvidos chegar,
Verias que uma paixão
Tem
poder de assassinar.
Não são de zelos
Os meus queixumes,
Nem de ciúme
Abrasador;
São das saudades
Que me atormentam
Na dura ausência
De meu amor.
O
Leonardo, que talvez hereditariamente tinha queda para aquelas coisas, ouviu
boquiaberto a modinha, e tal impressão lhe causou, que depois disso nunca mais
tirou os olhos de cima da cantora. A modinha foi aplaudida como cumpria.
Levantaram-se então, arrumaram tudo o que tinham levado em cestos, e puseram-se
a caminho, acompanhando o Leonardo o farrancho.
VIII - Novos amores
Chegaram
todos depois de longo caminhar, e quando já brilhava nos céus um desses luares
magníficos que só fazem no Rio de Janeiro, a uma casa da rua da Vala. Naqueles
tempos uma noite de luar era muito aproveitada, ninguém ficava em casa; os que
não saíam a passeio sentavam-se em esteiras às portas, e ali passavam longas
horas em descantes, em ceias, em conversas, muitos dormiam a noite inteira ao
relento.
Como os
nossos conhecidos já tinham dado um grande passeio, adotaram o expediente das
esteiras à porta, e continuaram assim pela noite em diante a súcia em que
haviam gasto o dia, pois aquilo que Leonardo vira nos Cajueiros, e em que
também tomara parte, era o final de uma patuscada que havia começado ao
amanhecer, de uma dessas romarias consagradas ao prazer, que eram então tão
comuns e tão estimadas.
Agora
devemos dar ao leitor conhecimento da nova gente, no meio da qual se acha o
nosso Leonardo. Se nos pudéssemos socorrer aqui do amigo José Manuel, sem
dúvida nos desfolharia ele toda a árvore genealógica dessa família a quem o
amigo do Leonardo chamava a sua gente: porém contentem-se os leitores com o
presente sem indagar o passado. Saibam pois que a família era composta de duas
irmãs, ambas viúvas, ou que pelo menos diziam sê-lo, uma com três filhos e
outra com três filhas; passando qualquer das duas dos seus quarenta e tantos;
ambas gordas e excessivamente parecidas. Os três filhos da primeira eram três
formidáveis rapagões de 20 anos para cima, empregados todos no Trem; as três
filhas da segunda eram três raparigas desempenadas, orçando pela mesma idade
dos primos, e bonitas cada uma no seu gênero. Uma delas já os leitores
conhecem; é Vidinha, a cantora de modinhas; era solteira como uma de suas irmãs;
a última era também solteira, porém não como estas duas. O amigo do Leonardo
que explique o que isso quer dizer, e explicando dará também a conhecer o que
era ele próprio na família. Os mais que se achavam presentes eram pela maior
parte vizinhos que se reuniam para aquelas súcias, que eram tradicionais na
família.
Quando
chegaram à casa, o amigo do Leonardo tomou as duas velhas de parte, e começou a
conversar com elas, sem dúvida a respeito do Leonardo, pois que o olhavam todos
três durante a conversa; e mesmo quem tivesse o ouvido atilado teria escutado
às velhas estas palavras:
—
Coitado do moço!...
— Ora
vejam que pai de más entranhas!...
Outro
qualquer que tivesse mais idade, ou antes, falando claro, mais juízo e outra
educação, envergonhar-se-ia talvez muito de achar-se na posição em que se
achava o Leonardo, porém ele nem nisso pensava, e o que é mais, nem mais
pensava naquilo que até então lhe não saía da cabeça, isto é, em Luisinha de um
lado e José Manuel do outro: agora não via senão os olhos negros e brilhantes,
e os alvos dentes de Vidinha; não ouvia senão o eco da modinha que ela cantara.
Estava pois embebido num êxtase contemplativo.
No mais
pensaria quando lhe restasse tempo.
Mal se
haviam todos sentado em uma larga esteira junto à soleira da porta sobre a
calçada, o Leonardo propôs logo que se cantasse uma nova modinha.
—
Qual... respondeu Vidinha acompanhando este qual da sua costumada risada; estou
já tão cansada... que nem posso!
—
Ora... ora... disseram umas poucas de vozes. Além do costume das risadas tinha
Vidinha um outro, e era o de começar sempre tudo que tinha a dizer por um qual
muito acentuado; respondeu ainda portanto:
—
Qual... pois se eu também já cantei tudo que sabia. Qual, meu Deus! nem eu
posso mais!
— Ainda
não cantou a minha favorita, disse um dos presentes.
— Nem a
minha, disse outro.
— Eu
também, acrescentou outro, ainda não lhe pedi aquela cá do peito.
— Qual,
meu Deus! onde é que isto vai parar!
— Ora,
mana, não se faça de boa.
— Ai,
criatura, disse uma das velhas, quereis que vos reze um responso para cantardes
uma modinha?
Leonardo,
vendo sua causa advogada por tantas vozes, conservou-se calado. Tentados mais
alguns meios, e feitas mais algumas negaças, Vidinha decidiu-se, e tomando a
viola cantou, segundo a indicação de uma das velhas, o seguinte:
Duros ferros me prenderam
No momento de te ver;
Agora quero quebrá-los,
É tarde não pode ser.
Este
último passo acabou de desorientar completamente o Leonardo: ainda bem não
tinham expirado as últimas notas do canto, e já, passando-lhe rápido pela mente
um turbilhão de idéias, admirava-se ele de como é que havia podido inclinar-se
por um só instante a Luisinha, menina sensaborona e esquisita, quando haviam no
mundo mulheres como Vidinha.
Decididamente
estava apaixonado por esta última.
O
leitor não se deve admirar disto, pois não temos cessado de repetir-lhe que o
Leonardo herdara de seu pai aquela grande cópia de fluido amoroso que era a sua
principal característica. Com esta herança parece porém que tinha ele tido
também uma outra, e era a de lhe sobrevir sempre uma contrariedade em casos
semelhantes. José Manuel fora a primeira; vejamos agora qual era, ou antes quem
era a segunda.
Se o
leitor pensou no que há pouco dissemos, isto é, que naquela família haviam três
primos e três primas, e se agora acrescentarmos que moravam todos juntos, deve
ter cismado alguma coisa a respeito. Três primos e três primas, morando na
mesma casa, todos moços... não há nada mais natural; um primo para cada prima,
e está tudo arranjado. Cumpre porém ainda observar que o amigo do Leonardo
tomara conta de uma das primas, e que deste modo vinha a haver três primos para
duas primas, isto é, o excesso de um primo. À vista disto o negócio já se torna
mais complicado. Pois para encurtar razão, saiba-se que haviam dois primos
pretendentes a uma só prima, e essa era Vidinha, a mais bonita de todas;
saiba-se mais que um era atendido e outro desprezado: logo, o amigo Leonardo
terá desta vez de lutar com duas contrariedades em vez de uma.
Mas por
ora de nada sabia ele, e entregava-se tranqüilo às suas emoções sem se lembrar
do que qualquer se lembraria, que entre primos e primas há Assim um certo
direito mútuo em negócio de amor, que muito prejudica a qualquer pretendente
externo.
Gastaram
grande parte da noite ali sentados, e trataram de recolher-se já muito tarde.
O amigo
do Leonardo, a quem daqui em diante trataremos pelo seu próprio nome de Tomás
com o apelido-da Sé-ambos herdados de seu pai, declarou que o seu amigo ficava
ali por aquela noite, por já ser muito tarde; quis assim poupar-lhe um vexame,
e mostrou nisto ser bom amigo.
Agora
que o nosso Leonardo está instalado em quartel seguro, vamos ocupar-nos de
alguma coisa de importante que havíamos deixado suspensa.
IX - José Manuel triunfa
A
comadre correra toda a cidade, e em parte alguma encontrara o Leonardo;
enquanto cansava-se assim a procurá-lo, estava ele tranqüilo e descansado
mirando-se nos olhos de Vidinha, regalando-se a ouvir modinhas, como sabem os
leitores, sem se lembrar do que ia pelo mundo.
A pobre
mulher, depois de muito cansada, foi ter à casa de D. Maria. Era já noite
fechada.
Quando
ela entrava saía o mestre-de-reza que acabava de dar a sua lição às crias de
casa. A comadre há algum tempo que andava desconfiada do mestre-de-reza;
combinando o que por aí se dizia do seu crédito com certas coisas que tivera
ocasião de presenciar, estava quase a concluir que era ele emissário de José
Manuel junto à corte de D. Maria. Não gostou portanto do encontro, e doeu-lhe o
cabelo vê-lo sair àquela hora, pois que de ordinário as lições não se demoravam
até tão tarde; e para metê-lo à bulha disse-lhe:
— A
lição hoje foi comprida, devoto... as raparigas parece que gostam mais? da
lambetice do que da reza.
— Não,
respondeu o velho com sua voz fanhosa, elas não vão mal, empacam em alguns
lugares, mas sempre vão indo; bem sabe também que sempre trago comigo o santo
remédio.
E
afagou o cabo da palmatória com que sempre andava armado.
— Ah!
então esteve o devoto de conversa; gosta também de dar à língua...
— Não
desgosto; mas também não digo senão aquilo que sei, isto é, aquilo que ouço; os
outros gastam o seu tempo a ver e a ouvir; eu, como não posso senão ouvir,
emprego a falar o que os mais empregam a ver; falo, e falo muito; mas que quer
se me sobra tempo para isso; e demais, bem sabe que não é trabalho que canse.
Meus pais eram Algarves, e eu não quero desmentir a minha paternidade.
— Então
já sei que hoje desenterraram-se mortos e enterraram-se vivos; pois eu não
posso fazer outro tanto, porque vou aqui muito e muito zangada de minha vida.
Se o devoto, como é homem que muito gira por toda esta cidade, souber por aí
notícias de meu afilhado Leonardo, queira vir dar-me parte, pois saiu-nos ele
hoje de casa lá por causa de umas histórias, e não sei por onde andará dando
com os ossos.
— Ora,
isto fica por minha conta; não há nada mais fácil do que dar com ele.
E aqui
terminou esta conversa que tinha lugar na porta da rua, e com a qual não ficara
a comadre muito contente. D. Maria, que ouvira tudo, veio ao encontro da
comadre, e foi-lhe logo dizendo antes de lhe dar tempo de tirar a mantilha:
— Então
já o rapaz não está em casa? Senhora, aquilo é gênio, nasceu com ele, e com ele
há de ir à sepultura. Bem me diziam o que ele era, e apesar do seu ar sonso
nunca lhe fiz fé.
— Adeus
que me está a senhora a pôr culpas em quem não as tem; o rapaz desta vez tem
toda a razão...
— Ora,
histórias da vida; isso diz você porque o estima como se fosse sua mãe; mas vá
com esta que eu lhe digo: os rapazes de agora andam de cabeça levantada... Mas
o defunto padrinho-Deus lhe fale n’alma,-foi o próprio que teve culpa de tudo
isso com aquelas fumaças de Coimbra que lhe meteu na cabeça...
— Mas,
senhora de Deus, se o bruto do pai até chegou a corrê-lo de espada na mão...
— Que
tal não faria ele! mas que tinha isso? o pai não o havia esquartejar... por
certo, que eu bem lhe conheço o gênio; aquilo era raiva, e havia de passar;
devia ele sujeitar-se... sempre é seu pai.
— Com a
Virgem Santa! pois se tudo isso foi por uma coisa de nada, por causa de uma
almofada de renda... Isto é coisa em que se creia?!... E agora para onde é que
há de ir aquele coitado?...
— Há de
estar por aí metido em algum fado de ciganos; não se lembra do que ele fez
quando o padrinho era vivo?
— Ora,
criançadas... para que falar nisso?
Este
diálogo ia continuando interminável sobre o mesmo assunto, quando D. Maria,
mudando repentinamente de conversa, disse à comadre:
— Ora é
verdade, sente-se para cá que temos contas que ajustar...
—
Contas!...
— E
muito compridas, começo por dizer, acrescentou D. Maria, que não parecia estar
nesta ocasião de muito bom humor; começo por dizer-lhe mesmo na bochecha que
quando for à confissão este ano trate de desobrigar-se de um grande pecado que
cometeu.
— E eu
que já não tenho poucos: mas então o que é?
— É um
aleive, senhora, um aleive muito grande que levantou a pessoa que tal não
merecia.
A
comadre não precisou de mais nada para conhecer onde é que tudo aquilo ia
parar; o aleive mais moderno de que a acusava a sua consciência bem sabia ela
qual era. Começou a ver tudo claro como o dia; viu José Manuel justificado
completamente aos olhos de D. Maria a respeito da história do roubo da moça no
Oratório de Pedra, e viu também como medianeiro dessa justificação o cego
mestre-de-reza. Ficou pois visivelmente incomodada; volvia-se de um para outro
lado, como se estivesse cheia de espinhos a banquinha em que estava sentada, e
teve um forte acesso de tosse quando D. Maria acabou de pronunciar aquelas
últimas palavras.
— Tudo
quanto me disse a respeito de José Manuel naquela história do roubo da moça,
continuou D. Maria fazendo-se vermelha, o que era nela mau sinal, é falso, e
muito falso. Sei isto de parte muito certa...
Novo
acesso de tosse acometeu a comadre.
— Pois
olhe, prosseguiu D. Maria, tinha eu dado todo o crédito, tanto que havia
rompido por um excesso com o pobre do homem, mas não caio noutra; esta me
serviu de emenda.
A
comadre viu que o vento se lhe ia tornando absolutamente contrário; compreendeu
que D. Maria estava muito bem informada, e que inútil seria qualquer
sustentação que pretendesse fazer de tudo quanto havia avançado; isso só
serviria para agravar-lhe a posição.
Forjou
pois repentinamente um novo plano e disse:
— Não
me dá nada de novo, senhora; sei muito bem de tudo; o homem está nesse negócio
como Pilatos no Credo.
— Mas
lembre-se que me havia dito que tinha visto com seus próprios olhos.
— Ah!
senhora, era o diabo por ele; nunca vi coisa assim tão parecida. Outro dia
porém soube de tudo, e agora estou arrependida.
—
Mandei por isso chamar o pobre homem, continuou D. Maria, que de ofendido que
estava com o modo por que eu o tratava custou muito a vir, e abri-me aqui com
ele. E uma coisa lhe digo, é que a comadre não está bem no negócio; ele
expôs-me certas coisas... a que eu enfim não quis dar crédito.
— Pois
então a senhora disse-lhe que eu é que...
— Não
fui eu quem lhe disse; ele já o sabia, e não era possível negar-lho. Foi então
que ele me quis abrir os olhos sobre outros pontos...
A
comadre, que via todo o caldo entornado naqueles outros pontos, tratava de
desviar a conversação, fazendo que não dera atenção a essas últimas palavras.
— Mas
então, perguntou, por quem foi que soube como tinha sido o negócio? quero ver
se combina cá com o que sei.
— Ainda
há pouco acabou de sair daqui quem me pôs o negócio todo em pratos limpos.
— Ah!
disse a comadre.
E
mordeu os beiços, fazendo um gesto que queria dizer: "nunca me
enganei!"
D.
Maria prosseguiu contando à comadre que tendo falado em semelhante negócio ao
mestre-de-reza, ele lhe havia negado tudo quanto esta lhe dissera a respeito de
José Manuel; que muito tempo lutara com o velho para que lhe dissesse o que
sabia a respeito e em que fundava a denegação que fazia; que finalmente, depois
de grande resistência, tinha-lhe ele trazido à casa, mesmo no dia antecedente,
o pai da moça, que tudo confessara, declarando até o nome da pessoa com quem se
achava sua filha, que ele já conhecia, e com quem tinha feito as pazes.
— É
exatamente o que eu sabia, disse a comadre no fim da narração; foi tudo assim
mesmo. Veja, senhora, a que está sujeita a gente nesta vida: a levantar falsos
aos mais.
Agora
informemos ao leitor que tudo que se acabava de passar tinha sido com efeito
obra do mestre-de-reza. Pouco a pouco se tinha instruído do que se passava em
casa de D. Maria a respeito do seu cliente José Manuel; tinha conseguido saber
quem havia armado a intriga; indagou também o que se passava em casa de
Leonardo-Pataca; e como lá se falava um pouco alto a respeito das pretensões de
Leonardo, combinando umas coisas com outras, chegaram à conclusão certíssima
daquilo que com efeito se passara.
D.
Maria pareceu dar crédito ao arrependimento da comadre, e começou-lhe a aplacar
o humor um pouco desabrido em que se achava.
Voltaram
à questão da saída do Leonardo de casa, e desta vez já D. Maria não se mostrou
tão inflexível para com o rapaz. Entretanto à comadre não lhe saíram da cabeça
aquelas palavras de D. Maria: "abriu-me os olhos sobre outros
pontos"; e depois que viu D. Maria mais apaziguada, tentou chamar de novo
a conversa para esse ponto, e como que pedir explicações. Ela previa a
significação daquelas palavras, sem dúvida nenhuma que se referiam às suas
pretensões ou às de seu afilhado sobre Luisinha, porém queria saber as cores
com que esse negócio tinha sido pintado a D. Maria por José Manuel.
Isso
foi-lhe porém fatal, porque soube (o que lhe não foi nada agradável) que o
negócio estava muito mal parado a respeito do seu afilhado, e pelo contrário
muito adiantado a favor do seu adversário. D. Maria, depois de declarar que
José Manuel se tinha queixado da comadre, atribuindo-lhe tudo que se havia
passado, que não era mais do que uma intriga urdida com o fim de o apartar de
sua casa, porque tinham sobre ele caído suspeitas, que confessava justas,
acrescentou finalmente que José Manuel, completamente justificado, graças à
intervenção do mestre-de-reza, acabara por lhe dar a entender alguma coisa a
respeito de Luisinha, o que D. Maria confessou não lhe ter sido totalmente desagradável,
porque enfim, segundo alegava, José Manuel era um homem sisudo e de juízo,
tinha corrido mundo, e não era nenhuma criançola (esta palavra doeu à comadre)
que não fosse capaz de tratar bem de uma moça. A comadre descoroçoou
completamente com estas últimas declarações; porém o que fazer na ocasião? Ela
mesma tinha há pouco confessado o risco em que se está a cada momento de ser
injusto com o próximo, e não podia sem risco aventurar, pelo menos naquela
ocasião, alguma coisa contra José Manuel, tanto mais que tão mal se havia saído
da primeira intriga que armara. Contentou-se pois com repetir uma observação
que D. Maria mesma lhe havia feito há pouco tempo, e disse, referindo-se a
Luisinha:
—
Gente, pois aquela criança já está para essas!...
— Sim,
respondeu D. Maria, está ainda verdezinha, mas também isso não é sangria
desatada.
A
comadre respirou, pois viu que ainda havia tempo a ganhar.
X - O Agregado
Passaram-se
assim algumas semanas: Leonardo, depois de acabadas todas as cerimônias, foi
declarado agregado à casa de Tomás da Sé, e aí continuou convenientemente
arranjado. Ninguém se admire da facilidade com que se faziam semelhantes
coisas; no tempo em que se passavam os fatos que vamos narrando nada havia mais
comum do que ter cada casa um, dois e às vezes mais agregados.
Em
certas casas os agregados eram muito úteis, porque a família tirava grande
proveito de seus serviços, e já tivemos ocasião de dar exemplo disso quando
contamos a história do finado padrinho de Leonardo; outras vezes porém, e estas
eram em maior número, o agregado, refinado vadio, era uma verdadeira parasita
que se prendia à árvore familiar, que lhe participava da seiva sem ajudá-la a
dar os frutos, e o que é mais ainda, chegava mesmo a dar cabo dela. E o caso é
que, apesar de tudo, se na primeira hipótese o esmagavam com o peso de mil
exigências, se lhe batiam a cada passo com os favores na cara, se o filho mais
velho da casa, por exemplo, o tomava por seu divertimento, e à menor e mais
justa queixa saltavam-lhe os pais em cima tomando o partido de seu filho, no
segundo aturavam quanto desconcerto havia com paciência de mártir, o agregado
tornava-se quase rei em casa, punha, dispunha, castigava os escravos, ralhava
com os filhos, intervinha enfim nos mais particulares negócios.
Em qual
dos dois casos estava ou viria estar em breve o nosso amigo Leonardo? O leitor
que o decida pelo que se vai passar.
Principiemos
por declarar que as duas velhas irmãs tinham concedido desde o primeiro momento
uma decidida simpatia por ele, e era esse o único ponto por onde o podemos
julgar um pouco feliz: se a cada passo encontrava contrariedades e antipatias,
também lhe não faltavam por contrabalanço simpatias e favores. Isto já era meio
caminho andado para qualquer projeto que ele formasse, qualquer intenção que
tivesse ou desejo que se lhe despertasse. Mas note-se que para não falhar a lei
das compensações, que pesava constantemente sobre ele, logo o projeto, a
intenção e desejo que teve sucedeu ser a respeito de uma coisa que já tinha
despertado igual projeto, intenção e desejo em duas outras pessoas, o que
equivale a dizer-se, como já o fizemos, que tinha ele de lutar com duas
dificuldades.
Vidinha
era uma rapariga que tinha tanto de bonita como de movediça e leve: um
soprozinho, por brando que fosse, a fazia voar, outro de igual natureza a fazia
revoar, e voava e revoava na direção de quantos sopros por ela passassem; isto
quer dizer, em linguagem chã e despida dos trejeitos da retórica, que ela era
uma formidável namoradeira, como hoje se diz, para não dizer lambeta, como se
dizia naquele tempo. Portanto não foram de modo algum mal recebidas as
primeiras finezas do Leonardo, que desta vez se tornou muito mais
desembaraçado, quer porque já o negócio com Luisinha o tivesse desasnado, quer
porque agora fosse a paixão mais forte, embora esta última hipótese vá de
encontro à opinião dos ultra-românticos, que põem todos os bofes pela boca,
pelo tal-primeiro amor:-no exemplo que nos dá o Leonardo aprendam o quanto ele
tem de duradouro. Se um dos primos de Vidinha, que dissemos ser o atendido
naquela ocasião, teve motivo para levantar-se contra o Leonardo como seu rival,
o outro primo, que dissemos ser o desatendido, teve dobrada razão para isso,
porque além do irmão apresentava-se o Leonardo como segundo concorrente, e o
furor de quem se defende contra dois é, ou deve ser sem dúvida, muito maior do
que o de quem se defende contra um. Declarou-se portanto, desde que começaram a
aparecer os sintomas do quer que fosse entre Vidinha e o nosso hóspede, guerra
de dois contra um, ou de um contra dois. A princípio, foi ela surda e muda; era
guerra de olhares, de gestos, de desfeitas, de más caras, de maus modos de uns
para com os outros; depois, seguindo o adiantamento do Leonardo, passou a
ditérios, a chasques, a remoques. Um dia finalmente desandou em descompostura
cerrada, em ameaças do tamanho da torre de Babel, e foi causa disto ter um dos
primos pilhado o feliz Leonardo em flagrante gozo de uma primícia amorosa, um
abraço que no quintal trocava ele com Vidinha.
— Aí
está, minha tia, dissera enfurecido o rapaz dirigindo-se à mãe de Vidinha; ai
está o lucro que se tira de meter-se para dentro de casa um par de pernas que
não pertence à família...
— Onde
é, onde é que está pegando fogo? disse a velha em tom de escárnio, supondo ser
alguma asneira do rapaz, que era em tudo muito exagerado.
— Fogo,
replicou este; se ali pegar fogo não haverá água que o apague... e olhe o que
lhe digo, se não está pegando fogo... está-se ajuntando lenha para isso.
Vidinha,
que vinha chegando nessa ocasião, tomou a palavra e falou durante meia hora sem
interrupção, soltando contra os dois primos (pois que o outro já tinha também
intervindo) uma tremenda catilinária em que a palavra-qual-foi repetida enorme
número de vezes. Leonardo teve também de defender-se, e falou pelos cotovelos.
As duas velhas acompanharam aos quatro seguidas das outras duas moças, que
metiam também de vez em quando a sua colherada.
Seria
inútil a tentativa de querermos repetir as palavras textuais de cada um dos
faladores; isso seria coisa pouco mais ou menos semelhante a querer contar-se
numa tempestade os pingos de chuva que caem. Só quem já teve ocasião de
assistir pode bem avaliar o que era e talvez ainda é uma dessas brigas no
interior de uma família. Todos falam a um tempo, esforçando-se cada um por
falar mais alto do que todos os outros; ninguém parece atender às desculpas que
se apresentam, nem às recriminações que se fazem, e entretanto de minuto em
minuto cada qual tomando mais calor, se julga dobradamente ofendido; as juras
se cruzam, as ameaças se chocam; não fica no dicionário termozinho de escolha
que não saia à frente; umas questões trazem outras, estas ainda outras;
recorre-se às ofensas passadas, presentes e futuras para fazer-se carga aos
adversários. Tudo enfim se diz, e nada se consegue; a briga dura muitas horas,
ao termo das quais os contendores, fatigatis sed non saciatis, abandonam o
campo, ficando mais encarniçados uns contra os outros do que o estavam a
princípio. E se por acaso, tocando já em retirada, algum ousa ainda soltar uma
derradeira imprecação, pega de novo a coisa, e dura ainda bom pedaço. As mais
das vezes fica tudo em palavras.
Desta
vez porém não sucedeu assim: um dos primos, que era esquentadete, avançou para
o Leonardo depois de lhe ter mandado, como batedor, uma grande injúria, e
deu-lhe dois safanões, agarrando-o pela gola da camisa. Leonardo, que neste
mundo só tinha medo do pai, reagiu contra o agressor; as duas velhas e Vidinha,
tentando apartá-los, não faziam mais do que romper-lhes a roupa e aumentar-lhes
a raiva; as demais pessoas ocupavam-se em bater nas paredes e chamar os
vizinhos. Lutaram os dois por algum tempo sem que disso resultasse acidente
grave para nenhum deles, e afinal apartaram-se. Leonardo, apenas se viu livre
do seu adversário, foi querendo pôr-se no andar da rua: pesava sobre o infeliz
desde criança uma espécie de sina de Judeu Errante. As velhas, que em todo o
barulho tinham tomado o partido dele, não consentiram porém nisso; alegaram que
estavam em sua casa, e podiam mandar como quisessem. Leonardo insistiu apesar
disso e apesar dos rogos de Vidinha; porém no momento em que tentava abrir a
porta da rua, entrou por ela a comadre.
— Ora
graças que o encontro, senhor doido de pedras...
O
Leonardo recuou dois passos: naquele momento, assim como lhe aconteceu desde
que saiu de casa de seu pai, nem lhe passava pela idéia que tivesse no mundo
uma madrinha, um pai, ou qualquer parente que fosse. Houve em todos um
movimento de admiração e curiosidade, pois ninguém na casa conhecia a comadre.
Tantas
coisas havia feito a boa mulher, que afinal soubera do ninho a que se acolhera
o afilhado, e imediatamente para lá se dirigira. Tendo entrado e dito aquelas
primeiras palavras, queria logo depois seguir com uma grande exortação ao
sobrinho, quando, tendo visto as duas velhas, assentou que era melhor
dirigir-se a elas em primeiro lugar. Com efeito dirigiu-se, e entraram as três
em conferência.
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